Para evitar impeachments

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 julho 2020.

Quem se lembra daquele presidente de Honduras, caricatura do típico caudilho latino-americano bigodudo, aquele señor que queria se tornar ditador? Zelaya era o nome dele. O moço fez travessuras. Percebendo que o país ia desandar, militares de alta patente não hesitaram. Mandaram tirá-lo da cama no meio de uma tépida madrugada tropical, sem direito a trocar de roupa: foi desterrado de pijama. Não se ouviu mais falar dele.

Evo Morales, da Bolívia, era outro que dava sinais cada dia mais inquietantes de que pretendia se instalar em definitivo no Palacio Quemado. Um belo dia, foi discretamente informado pelo Estado Maior do Exército de que não podia mais contar com apoio militar e que era melhor afastar-se. Renunciou na hora, embarcou num avião das Forças Aéreas Mexicanas e asilou-se na turística Acapulco. Com as acusações que lhe pesam nas costas, dificilmente pisará de novo os picos áridos e gelados do país natal.

No Brasil, também costumava ser assim. Washington Luís em 1930, Getúlio Vargas em 1945 e Jango Goulart em 1964 seguiram figurino de justiça expeditiva. Hoje o procedimento está mais civilizado. Assim mesmo, com duas destituições em 25 anos, a rotatividade continua acelerada.

Os constituintes de 1988 decerto não imaginaram que processos de destituição pudessem repetir-se com tal frequência. Prova disso é que, apesar de detalhista, a Carta Magna não regulamentou a matéria. Em pleno século 21, impeachments continuam arrimados numa lei sancionada de 70 anos atrás. Recorrer à destituição a cada vez que o chefe do Executivo escorrega é processo desgastante, que trava o andamento normal do país durante meses. A conduta errática da atual presidência – e o espectro de impeachment que a acompanha – devem despertar uma reflexão nacional sobre a oportunidade de instaurar-se o parlamentarismo.

Para quem receasse sentir-se órfão, consola saber que o regime parlamentar não prescinde necessariamente da figura presidencial. O presidente pode até continuar a ser eleito pelo voto popular. A diferença mais notável é a drástica diminuição de seus poderes. Em alguns poucos países, como França e Portugal, embora o governo seja exercido por um primeiro-ministro eleito pelo Congresso, o presidente conserva certas atribuições de Estado; pode, em certos casos, interferir na política externa. Na maioria dos países, nem isso. Presidente é figura representativa – quem governa, de fato, é o parlamento.

Mas, atenção! Para um regime desses funcionar, é essencial estreitar a relação entre eleitores e eleitos. No sistema atual, com parlamentares eleitos pelo voto proporcional, o divórcio é total: nem o eleitor sabe quem o representa, nem o eleito se sente compromissado com quem o elegeu. É a perfeita negação da democracia. É verdade que mexer nisso é como enfiar a mão num saco de caranguejos. Mas não há outro jeito: quando um sistema de governo começa a dar sinais de exaustão como nosso presidencialismo de coalizão (ou de cooptação ou de confrontação, como preferir), é chegada a hora de aperfeiçoá-lo.

O voto proporcional tem de ceder lugar ao voto distrital puro. É simples. Divide-se o país em 513 distritos de população equivalente, cada um correspondendo a um assento na Câmara. Cada distrito escolherá um representante – o SEU deputado – em eleição de dois turnos. Esse sistema tem numerosas vantagens. A campanha eleitoral sai muito mais barata, dado que os candidatos só apertam mãos e distribuem santinhos no interior do distrito no qual concorrem.

O eleitor saberá a qualquer momento quem é seu deputado, fato que lhe permitirá acompanhar o trabalho do eleito e cobrar-lhe as promessas. O sistema distrital tende a enxugar a dispersão de votos, deixando à míngua partidos de aluguel. Com o método distrital, sumirá também o candidato puxador de voto, aquela figura conhecida que, ao receber enorme votação, elege mais quatro ou cinco companheiros inexpressivos.

Com o presidente atual, sempre em equilíbrio precário entre lutas no interior do clã e problemas com a Justiça, toda mudança é improvável. No dia em que ele deixar a presidência, será chegado o momento. Não vai ser fácil vencer as resistências, mas vale a pena – o Brasil merece essa chance.

Voto distrital misto

José Horta Manzano

O Senado da República acaba de dar grande passo em direção ao aprimoramento da representatividade dos eleitores. Dois projetos de lei ‒ que se pareciam como duas gotas d’água e que tramitavam havia anos a passo de tartaruga ‒ foram aprovados ao mesmo tempo. Tratam do voto distrital misto para escolha de deputados e de vereadores. Falta ser aprovado na Câmara, o que pode se revelar mais complicado.

Ainda que seja aprovada e promulgada este ano, a lei só será aplicada a partir das eleições de 2020. A menos que uma emenda de última hora apresse sua entrada em vigor, fato que me parece mais que duvidoso. Como resultado, teremos de aguentar mais uma legislatura com deputados eleitos pelo distorcido sistema atual. Paira ainda o espectro de que o STF considere que a lei fere a Constituição. De fato, a carta magna não é clara sobre o assunto.

O novo método não é a panaceia, mas avança no bom sentido. Quando (e se) entrar em vigor, o país será dividido em distritos de população equivalente. Nesse ponto, a porca começa a torcer o rabinho. Por razões que escapam à lógica, a Constituição de 1988 fez uma tremenda confusão entre senadores e deputados federais. Explico.

O Senado representa as unidades federativas. Cada estado, pequeno ou grande, populoso ou não, tem direito a três senadores. Esse dispositivo põe todas as unidades em pé de igualdade. Tanto São Paulo como Rondônia ou Alagoas dispõem de três votos no Senado. Os senadores são, portanto, representantes territoriais.

Já a Câmara representa a população. Em teoria, cada um dos deputados deveria ser o porta-voz de um número equivalente de cidadãos. Foi aí que os constituintes escorregaram. Passando por cima dessa obviedade, determinaram um piso e um teto para deputados de cada unidade federada. Por menor que seja a população, um estado elege um mínimo de oito deputados. Por mais populoso que seja, um estado não poderá eleger mais que setenta representantes. Daí vem a distorção.

Cada deputado paulista representa 650 mil eleitores, enquanto cada deputado roraimense traz a voz de apenas 65 mil eleitores. A deformação é flagrante. Na prática, é necessário que vinte eleitores paulistas unam forças para contrabalançar dois eleitores de Roraima.

Se nada for feito para modificar esse dispositivo constitucional, a disformidade continuará apesar da introdução do voto distrital. Cada distrito paulista terá 650 mil eleitores. Minas Gerais e o Rio de Janeiro contarão com distritos de 370 mil a 385 mil votantes. Enquanto isso, cada distrito do Amapá, apesar de ser habitado por apenas 100 mil eleitores, terá direito a eleger um deputado.

Suas Excelências prestariam enorme serviço à isonomia entre cidadãos se revissem esse dispositivo da Constituição. Não é necessário alterar o número total de deputados. Que se mantenha o número de 513 parlamentares. Basta dividir o eleitorado (ou a população do país) pelo número de deputados e teremos a população que cada distrito deverá abrigar. Vamos admitir que o Brasil tenha 210 milhões de habitantes. Dividindo esse número por 513, chegamos a 410 mil. Cada novo distrito eleitoral ‒ que não coincidirá necessariamente com limites político-geográficos ‒ terá aproximadamente 410 mil habitantes. Essa conta será revista, digamos, a cada três legislaturas (12 anos).

Não é complicado. Mas incomoda muitos políticos, fato que ergue uma barreira no caminho da aprovação. Seja como for, vamos nos contentando com o esboço de voto distrital que vem aí. Já é melhor que nada. Mingau se come pelas bordas.

República

José Horta Manzano

Na escola, aprendemos que o 15 de novembro marca aniversário da Proclamação da República. Sabemos que um certo general de nome Manuel Deodoro da Fonseca ‒ já sexagenário e, ainda por cima, adoentado ‒, foi tirado da cama de madrugadinha naquele dia. Meio atordoado, o militar acatou as sugestões que lhe foram feitas por sisudos senhores, e dirigiu-se ao palácio do imperador.

Sem se dar conta do alcance de seu ato, consumou o golpe de Estado ao fazer saber ao imperador que o regime monárquico estava extinto e substituído por uma república. Naquela altura, pouca gente conhecia o real significado da palavra. Os poucos que tinham conhecimento do assunto não imaginavam que o novo regime viesse a se revelar tão cheio de defeitos. Se soubessem, não teriam destronado o imperador. Teriam deixado as coisas como estavam.

Os republicanos esclarecidos, que não eram muitos, tinham boas intenções. Imaginavam instaurar um regime próximo da etimologia da palavra república: res + publica (= coisa pública). Acreditavam que a figura do imperador estivesse erigindo barreira entre cidadãos e dirigentes. Ao banir a figura do monarca, confiavam que o governante maior, escolhido pelo povo, passasse a ser mais sensível aos reclamos dos cidadãos.

Manchete do maior jornal do Brasil no dia seguinte ao da proclamação da República
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O futuro se encarregou de frustrar os idealistas. O regime republicano acabou diminuindo a influência do parlamento e atribuindo cada vez mais poder ao presidente. A confusão entre Estado e governo, já existente no império, foi agravada com a implantação da república. Abriu as portas para a promiscuidade entre interesses partidários e interesses da nação, disfunção que chegou ao apogeu durante os governos lulopetistas. Sem a república, não teria havido a ditadura Vargas nem a ditadura militar.

Em vez de destronar o imperador, os «republicanos» deviam ter exigido que se reformasse a Constituição. A figura do monarca seria conservada, mas seus poderes seriam fortemente diminuídos e transferidos ao congresso. Teríamos, assim, uma monarquia constitucional e parlamentar, nos moldes de países como Reino Unido, Japão, Espanha, Holanda, Suécia, Bélgica e diversos outros, tudo gente fina.

Restaurar a monarquia é tecnicamente possível, embora terrivelmente complicado. Instaurar regime parlamentar, no entanto, não é bicho de sete cabeças. Só funcionará após uma reforma que institua voto distrital e retire os poderes do presidente da República, deixando-lhe somente função representativa.

Sem isso, o país continuará, caótico, à espera do salvador da pátria. Convém esperar sentado, que periga demorar.

Pesquisa eleitoral

José Horta Manzano

‒ «Quem é que vai ganhar a eleição? É o candidato A

‒ «Que nada! Esse não tem chance. Quem ganha é o candidato B sem sombra de dúvida. Deu no jornal!»

‒ «Nesse caso, voto no B. Não quero perder meu voto.»

O distinto leitor achou graça? Parece conversa surreal? Pois acredite: em tempo de eleição, papo desse tipo é muito mais comum do que se imagina. Na cabeça de muita gente, «ganhar o voto» é escolher o candidato vencedor. E vice-versa: os que tiverem votado no derrotado «perderam o voto».

A um ano das eleições gerais do ano que vem, o termômetro político já começa a subir. Como é costume entre nós, regras são instáveis. Vai-se pra cama hoje sem saber qual será a lei amanhã. Neste momento, ninguém sabe como será regulado o pleito de 2018. Propaganda eleitoral, habilitação prévia de candidatos, limite de gastos, financiamento e partilha do fundo eleitoral ainda estão sendo discutidos.

Um ponto importante ainda em debate concerne à divulgação dos resultados de pesquisas eleitorais. Pelas normas atuais, podem ser publicados até a véspera da eleição. A comissão da Câmara que trata do assunto propõe que a divulgação de pesquisas seja interrompida uma semana antes do pleito. É notícia boa ou má?

by Constantin Ciosu (1938-), desenhista romeno

Levando em conta o baixo grau de politização do eleitorado brasileiro, a proliferação de partidos e a ausência de programas claros e consistentes ‒ e a conversa surreal reproduzida no início deste artigo ‒ acredito que a notícia tem seu lado positivo. A não-divulgação de sondagens de última hora tende a limitar o voto «maria vai com as outras». De fato, partidos e candidatos serão forçados, com antecedência maior, a definir seu programa e a declarar a que vêm.

Na própria França, onde os cidadãos têm consciência mais aguda do valor do voto, a lei determina que pesquisas deixem de ser publicadas 48 horas antes do dia da eleição. Toda propaganda eleitoral tem de cessar com a mesma antecedência.

Institutos de pesquisa conhecem as manhas. A formulação da pergunta, a ordem em que são apresentados os candidatos, a própria ênfase com que o entrevistador pronuncia o enunciado podem influir na resposta. Sutilmente, o formato do questionário pode induzir o entrevistado a pender para este ou para aquele lado. Pesquisa mal-intencionada divulgada às vésperas da eleição pode virar o jogo, o que é péssimo.

Felizmente, para cargos majoritários, temos um segundo turno, ocasião que permite a cada eleitor corrigir o que lhe parecer fora de lugar. Uma boa ideia seria instaurar eleição em dois turnos também para deputados. Para isso, no entanto, há que instituir primeiro o voto distrital. Chegaremos lá, mas parece que ainda não será desta vez. Cada coisa em seu tempo.

Salve a Seleção!

José Horta Manzano

Até não faz muito tempo, um jogo de futebol entre Brasil e Argentina, ainda que amistoso, ofuscaria todo e qualquer acontecimento e faria a manchete unânime da mídia. Dizem até as más línguas que, entre nossa Seleção e a dos hermanos, não existem partidas «amistosas», que são todas pra valer.

O mais recente encontro entre as duas, realizado hoje do outro lado do planeta, terminou há pouquinho. Curioso, vim conferir o resultado. Abro o Estadão online. Está lá uma manchete em letras enormes com o placar. Placar do jogo? Não, senhores. O placar do voto de Suas Excelências sobre o julgamento do pedido de cassação do presidente em exercício. Aliás, nem placar é, que não passa de projeção.

Dão nome, foto, idade e currículo da «seleção» de magistrados, exatamente como nas figurinhas de futebolistas que se colavam nos álbuns de antigamente. Exatamente como se descrevessem a expectativa de desempenho de cada jogador, dão a probabilidade de voto de cada um dos magistrados. A diferença mais notável entre os astros do gramado e os do tribunal é que aqueles são onze, enquanto estes não passam de sete. No mais, o entusiasmo pelo julgamento é o mesmo.

Vou descendo o elevador do jornal online à cata do resultado do jogo. Depois da manchete principal, vem uma notícia sobre a inflação de maio. Em seguida, nova manchetinha falando de acordos de leniência possíveis entre instituições financeiras e o Banco Central. Mais abaixo, uma chamada para os editoriais do dia informa que um deles discorre sobre o caráter pedagógico do julgamento.

Só depois disso é que aparece o resultado do jogo de futebol. Fico sabendo que o Brasil foi derrotado. Um pensamento me ocorre: se tivesse vencido, será que a notícia teria subido um ou dois degraus na ordem de apresentação do jornal? Nem Nostradamus tem resposta.

Bom, talvez seja eu o único a me surpreender com o que acabo de escrever. É possível que pareça natural a uma maioria de conterrâneos que a permanência ou não de doutor Temer na chefia do Executivo seja o assunto mais importante. Quanto a mim, não vejo com esses olhos, que fazer? Cada um enxerga através das próprias lentes.

Será que ‒ realmente ‒ faz alguma diferença que o presidente seja A, B ou C? Que Temer fique, que Temer caia ou que Temer balance, no fundo, que vantagem Maria leva? O que é que há de acontecer de tão importante para cada um de nós? Espremendo bem, analisando sem paixões, qualquer um chegará à mesma conclusão: nada vai mudar. É muito difícil, pra não dizer impossível, encontrar um homem público sem manchas no currículo. Qual deles nunca deu uma carteirada, nunca pegou carona num jatinho amigo, nunca empregou um parente, nunca inchou uma nota de despesa, nunca deixou a Casa no meio do expediente, nunca furou uma fila, nunca usou nenhum centavo de dinheiro público para fins pessoais?

Vai ser difícil encontrar a pérola rara, o imaculado, o honesto absoluto. Mas tem pior. Se, por um milagre do Espírito Santo, encontrassem o homem providencial, quem garante que fosse bom administrador? Honestidade e retidão não são necessariamente sinônimos de boa capacidade política e administrativa.

Em vez de insistir no «Fica, Temer!» ou no «Fora, Temer!», deveríamos pensar no «E depois de Temer?». Parlamentarismo? Voto distrital? Presidente da República desprovido de poder? Monarquia? O debate importante tem de passar por cima de querelas passageiras e enxergar mais longe. Pra frente, Brasil! Salve a Seleção!

Antipático por antipático

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 24 set° 2016

Diversos ramos da fé cristã reconhecem o estado de graça, condição extraordinária em que o seguidor fiel faz jus a uma ajuda sobrenatural que lhe permite, caso faleça, escapar à danação eterna. Quer tenha alcançado a graça por fé, por merecimento ou por outra razão qualquer, o devoto será premiado com a benevolência do Juiz Supremo. Estado de graça não é permanente: tem começo, meio e fim.

Em alguns países ‒ França, Alemanha e, em certa medida, Estados Unidos ‒ a expressão indica, por analogia, o período durante o qual a opinião pública tende a ser favorável a figurão político que acaba de ser alçado a importante posto de comando. Embora a duração exata fuja ao rigor científico, é geralmente aceito que o período se prolonga por cem dias, pouco mais ou menos. São quinze semanas durante as quais o governante beneficia de trégua relativa. Por um momento, todos se retêm na expectativa do que virá.

anjo-6Em abril de 2016, na sequência do afastamento provisório de Dilma Rousseff, doutor Michel Temer assumiu interinamente a presidência da República. Nos meses que se sucederam, vivemos um momento bizarro, com dois presidentes de direito. Uma ainda era, mas já não portava a faixa nem exercia o cargo. O outro já exercia o cargo ainda que não portasse a faixa. Nenhum dos dois era presidente pra valer.

Durante quatro meses e meio, o país viveu num compasso de espera, período em que os brasileiros ‒ gente cordial, como se sabe ‒ sobreviveram à custa de verdadeira paciência de Jó. A situação, tensa, não atava nem desatava. Tivemos de esperar até o derradeiro dia de agosto para conhecer o veredicto: o presidente provisório tomava posse do cargo e substituía definitivamente a antiga titular. Tanto os que simpatizavam com a anterior quanto os que preferem o atual hão de ter sentido alívio. A situação se desanuviou e a realidade, seja ela qual for, mais vale conhecê-la.

A contar da entronização, doutor Temer, pelo menos em teoria, entrou em período de graça. Atravessamos agora um tempo em que, excetuando-se algum resmungo aqui e ali, o país suspende a respiração. Estamos todos ansiosos pra saber a que veio o homem, se é manso ou bravio, se é incisivo ou frouxo, se dá mostras de ação ou, antes, de enrolação.

A relativa trégua de que goza o novo presidente é tênue e, grosso modo, vai até o fim do ano. Toda decisão mais encorpada tende a ser mais bem aceita pelo distinto público se for tomada neste período. Doutor Temer tem uma vantagem adicional sobre os que o precederam: já deixou claro que não se candidatará à reeleição. Se mantiver a decisão, essa firmeza de propósitos tende a eliminar toda suspeita de medida eleitoreira. Ninguém jamais poderá acusá-lo de ter agido para angariar votos.

Se o presidente for, como parece, bem-intencionado ‒ e se estiver disposto a deixar marca duradoura no avanço civilizatório do país ‒, há reformas urgentes na fila, todas esperando por alguém que dê mais importância ao futuro do Brasil do que davam os populistas. Algumas medidas são pouco simpáticas, outras francamente antipáticas. Para um homem que já viveu três quartos de século e que tenciona deixar um país melhor do que aquele que encontrou, tanto faz. Antipático por antipático, que seja proveitoso para os brasileiros de amanhã.

by Fernando de Castro Lopes (1957-), desenhista carioca

by Fernando de Castro Lopes (1957-), desenhista carioca

Já faz lustros que se sabe que o atual sistema de Previdência Social é uma bomba-relógio. Sucessivos governos fizeram-se de desentendidos, empurraram com a barriga e preferiram deixar a solução para o sucessor. O Brasil pensante espera que doutor Temer, que pouco tem a perder, não aja como os antecessores. Se conseguir adaptar o sistema à realidade atual do país, terá enriquecido a própria biografia.

Na área política, o presidencialismo à brasileira tem mostrado sinais de esgotamento. A profusão de partidos ‒ dezenas deles com representação no Congresso ‒ tem sido mais favorável à corrupção do que ao bem comum. A ausência de voto distrital, além de encarecer campanhas eleitorais, contribui para o divórcio entre eleitor e eleito. Representantes não sabem quem os elegeu e eleitores não sabem quem os representa. Vivemos uma paródia de regime representativo.

O país sofre de muitas mazelas. Não se pode atacar todas de uma vez. Se se dispuser a corrigir distorções da Previdência e a implantar o voto distrital, doutor Temer já pode ir reservando lugar de honra nos livros de História. Só tem uma coisa: tem de agir rápido, senão babau. O tempo lhe é contado.

Eleições gerais?

José Horta Manzano

Um senador baiano acaba de propor que a Constituição seja emendada a fim de fazer coincidir o mandato de todos os eleitos. Fosse aprovada, a PEC eliminaria as eleições a cada dois anos, como ocorre atualmente. Suprapartidária, a proposta arregimentou, logo de cara, 34 senadores a favor, distribuídos num amplo espectro que vai do PSDB ao PT.

A justificativa maior é a diminuição de gastos de campanha, uma economia de escala. Cem mil santinhos impressos não custam o dobro de cinquenta mil. Num mesmo palanque, há lugar para candidatos a diferentes níveis. Coligações partidárias ficariam mais claras ‒ de fato, não faria sentido que coalizões federais e municipais divergissem.

Urna 7Sob um ar de bondade, no entanto, uma armadilha está sendo montada. Suas excelências estão-se aproveitando do atual clamor popular para ajeitar o sistema em benefício próprio. Estão misturando estações. Todos sabem que as finanças nacionais não foram arruinadas por campanhas milionárias, mas pela incompetência no trato da coisa pública e, acima de tudo, pelo extraordinário assalto ao erário.

A proposta do senador, qual emplastro em perna de pau, não vai curar o doente. Reforma bem mais profunda terá de ser feita. A criação de partidos tem de ser de alguma maneira refreada. A representação proporcional dos Estados na Câmara, atualmente distorcida, tem de ser corrigida. As regras de financiamento público de partidos ‒ o famigerado Fundo Partidário ‒ têm de ser repensadas.

Urna transparente

Urna transparente

O vigor de uma democracia mede-se, entre outros parâmetros, pela frequência de eleições e outras votações. Dependesse de mim, faria o inverso: aumentaria a periodicidade das votações.

Instituiria, para começo de conversa, o voto distrital. Acabaria com as bizarras figuras de vices e de suplentes. Quando um eleito ‒ fosse ele vereador, prefeito, deputado, senador, governador ou presidente ‒ não pudesse mais exercer a função, eleição parcial seria convocada.

Urna 2Numa democracia sólida e vigorosa como a França, é assim que se procede. Acreditem, eleição regional não causa trauma nacional. Pelo contrário: quantas mais há, melhor fica. Se, por fatalidade, um deputado falece, organizam-se novas eleições unicamente no distrito que ele representava.

Voto 1Na Suíça, o povo é consultado, em média, quatro vezes por ano. A cada consulta, três, quatro, cinco assuntos costumam ser tratados. Algumas consultas são meramente locais, enquanto outras abrangem o país inteiro. O voto, naturalmente, não é obrigatório. Vota-se majoritariamente por correspondência, duas ou três semanas antes do dia D. De voto eletrônico, ninguém quer ouvir falar.

Num país como o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, há de ser possível organizar, sem tropeços, votos parciais e nacionais. É questão de hábito. De todo modo, o preço a pagar pelo vigor democrático é a multiplicação de votos, eleições e consultas ao povo.

O retrato

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 2 abril 2016

Faz ano e meio. Assim que Dilma Rousseff conquistou, pela segunda vez, vitória nas urnas, utilizei este espaço para dar-lhe meus parabéns. Aproveitei para pedir-lhe que não perseverasse na tática de alargar brechas entre classes de cidadãos, estranho método inaugurado por seu predecessor. Sugeri que não exacerbasse antagonismos e que pusesse fim à retórica do «nós» contra «eles».

A bem da verdade, é de constatar que o recurso ao antagonismo entre categorias de brasileiros se atenuou no discurso presidencial. O mérito é menos da presidente e mais do deslocamento da imaginária linha de fratura. O encorpamento do campo adverso acendeu luz vermelha no Planalto e deixou claro que era melhor botar a metáfora de molho.

Manif 3Dá tristeza, contudo, perceber que, antes mesmo que Dilma Rousseff assumisse o cargo maior, o mal já estava feito e a ferida, aberta. Nem nos tempos em que nosso povo se debateu sob feroz ditadura ‒ varguista ou militar ‒ hostilidades e ressentimentos entre cidadãos foram tão palpáveis. Se o objetivo tático dos que ora nos governam era segmentar e categorizar o povo, podem gabar-se de ter atingido o intento. Para seu desalento, no entanto, a parcela que os apoia vem-se apoucando a cada dia. O chavão do tiro que saiu pela culatra se aplica.

Ao ritmo em que avança a carroça, o caminho se estreita e o horizonte se fecha. Prever o futuro, como diz o outro, não é tarefa fácil. Tudo indica, no entanto, que os humores do Congresso se preparam a abreviar o mandato de Dilma. Se assim for, a ordem constitucional dispõe que Michel Temer ocupe o trono vacante. Missão espinhosa.

Numa primeira análise, tirando a honra de ganhar retrato na galeria de presidentes, o encargo será áspero. As finanças vão mal, a economia vai pior, a inflação come solta, o desemprego cresce, o PIB encolhe, a confiança na classe política esfarelou-se. O regime político de países vizinhos, antes considerados parceiros preferenciais, dá sinais de esgotamento. Na comparação internacional, o Brasil desaponta. Com tantas goteiras no teto, como impedir a inundação da casa?

Dilma e TemerChavão por chavão, aqui cabe outro: há que fazer das tripas coração. Paradoxalmente, é menos complicado erguer sobre escombros do que consertar um buraco aqui, uma avaria acolá. Com o país do jeito que está, não sobra alternativa, há que refundá-lo. Michel Temer, senhor de vasta experiência em coisas da política, tem o estofo necessário para a tarefa e dispensa palpites. Assim mesmo, deixo aqui algumas reflexões.

O atual vice-presidente, caso assuma a chefia do Executivo, terá chegado lá sem ter recebido um voto sequer. Longe de sombrear sua gestão, essa particularidade lhe confere amplitude de ação. Dado que não fez promessas, não poderá ser acusado de trair eleitores ‒ uma vantagem e tanto! A situação do Brasil desceu a um estado tal de degradação que qualquer ação que não se assemelhe a manobra para escapar da Justiça só poderá ser benfazeja. O alívio que a maioria do povo sentirá ao se dar conta de que o pesadelo terminou há de traduzir-se em simpatia ‒ e até em certa condescendência ‒ para com o novo mandatário.

Será um mandato curto, pouco mais de dois anos. Se senhor Temer quiser deixar marca positiva e relevante na história do país, terá de agir rápido. Para começar, tem de alinhavar um ministério com titulares capazes e de ficha limpa. Dividir por dois o número de ministros será medida apreciada.

Surfando na onda que clama por um Brasil decente, o chefe do Executivo deveria engajar pleno esforço na implantação do parlamentarismo. A hora é agora, que não dá mais pra esperar. Nosso regime presidencialista simplesmente se exauriu, mostrou seus limites, está gasto até a lona. Não tem remédio.

Galeria de presidentes da República

Galeria de presidentes da República

Outra reforma importante, sem a qual o parlamentarismo não funcionará, é a instauração do voto distrital puro, majoritário, com deputados eleitos em dois turnos. É a única maneira de aproximar representantes de representados. Cada eleitor conhecerá o deputado que o representa. Um benefício extra virá no bojo do voto distrital: a diminuição radical do número de partidos e a extinção das legendas de aluguel. Não é coisa pouca.

Essas são as grandes medidas, complicadas para governante eleito, mas ao alcance de um presidente sem voto, que nada prometeu. Claro está que senhor Temer pode optar pela facilidade e deixar tudo como está. Nesse caso, sua biografia desertará os livros de história e sua memória se resumirá a um retrato na galeria.

O bebê e o banho

José Horta Manzano

Um ditado francês manda ter cuidado para não jogar o bebê junto com a água do banho. Nada é inteiramente bom, assim como nada é totalmente ruim. Por pior que seja o caso, sempre dá pra salvar alguma coisa.

Senhor Luiz Roberto Barroso, juiz do STF, foi apanhado de surpresa ontem ao proferir opinião sem se dar conta de que a fala estava sendo gravada. Falou livre e solto até que percebeu a indiscrição.

Bebe eau du bain 1Análises e comentários raivosos apareceram hoje de manhã, focados todos nas críticas que o ministro fez à incompetência dos que deverão substituir a atual presidente caída. Segundo os articulistas, o passado petista do ministro o condena. Bobagem. Que os titulares de um passado absolutamente imaculado atirem a primeira pedra!

O furor dos comentaristas parece considerar que a alma humana é unifacetada e imutável. Não é bem assim. Mesmo a personalidade do pior dos facínoras tem aspectos menos sombrios.

Ainda que desagradem aos críticos, algumas considerações de senhor Barroso foram lúcidas e pertinentes. Ele disse, por exemplo, que a amplitude do dito «foro privilegiado» é desastre para o país. Preconiza que seja restrito ao presidente de cada um dos três poderes, a mais ninguém. Considera que o modelo atual estimula fraude de jurisdição. Tem razão.

by Jacques Sardat (aka Cled'12), desenhista francês

by Jacques Sardat (aka Cled’12), desenhista francês

Argumenta ainda que o atual sistema eletivo não reflete a vontade popular. O voto majoritário faz que o cidadão vote num candidato e, sem se dar conta, acabe elegendo outro. Recomenda o voto distrital, pelo qual cada eleitor escolhe o seu representante, do qual poderá cobrar as promessas de campanha. Do jeito que está, o cidadão não se sente representado e os representantes não se sentem vinculados aos que neles votaram. É belo exemplo de esquizofrenia.

A posição do ministro é equilibrada ‒ subscrevo. Um presidencialismo exaurido, como o nosso, deveria ‒ esse, sim ‒ ser jogado com o bebê e com a água do banho. No ponto a que chegamos, a instauração de parlamentarismo com voto distrital será mudança pra lá de bem-vinda.

Esqueça a mediocridade dos representantes atuais. Com o passar do tempo, um vínculo mais sólido se estabelecerá entre o povo e seus parlamentares. Será solução benéfica para todos.

Do futuro, ninguém sabe

José Horta Manzano

Cabeçalho 4Boas surpresas podem surgir de onde menos se espera. Não é corriqueiro, mas acontece. Quando o Lula indicou, para ocupar uma poltrona no Supremo Tribunal Federal, o senhor Dias Toffoli(*), a decisão levantou um bruaá dos diabos. Foi em 2009.

Tirando os admiradores mais entusiastas de nosso guia, a escolha foi recebida com cautela e desconfiança. Desconhecido, jovem demais, antigo advogado do PT, reprovado em exame para a magistratura, alvo de processo por fraude em licitação ‒ foram as acusações que sobressaíram.

É verdade que o moço não se encaixava no perfil do ministro ideal. No entanto, a pouca idade, que parecia fator agravante, dá indícios de se estar transformando em elemento positivo. ‘A adolescência é defeito que os anos corrigem’, como diz o outro.

Dias Toffoli 1Fidelidade e gratidão são propriedades com prazo de vencimento. O fato de ter sido nomeado por este ou por aquele não é, em si, garantia de obediência nem de reverência eterna. A história está cheia de exemplos de criaturas que, com o tempo, se emanciparam do criador. É compreensível. A natureza determina que seja assim, desde animais primitivos até animais políticos.

Contrariando a bolsa de apostas, senhor Toffoli posicionou-se contra os interesses do governo na votação da semana passada sobre rito de destituição de dona Dilma. Alguns dias depois, em entrevista ao Estadão, o ministro pronunciou a frase que pus lá em cima, no cabeçalho. Foi pronunciamento sensato, uma entrevista que vale a pena ler.

Parece que, apesar do histórico pouco promissor, o rapaz esteja conseguindo se distanciar da ideologia primária e ultrapassada do PT. As declarações que deu na entrevista são animadoras. Mostram que o fato de ter chegado jovem ao Supremo pode ter sido uma vantagem: sua visão de mundo ainda não estava cristalizada.

No meio da escuridão em que está mergulhado o andar de cima, qualquer indício de lucidez é bem-vindo. Qualquer voz que se alevante para preconizar voto distrital e cláusula de barreira terá meu apoio. Ainda que venha de antigo advogado do PT.

Interligne 18h

(*) Curiosidade etimológica
O sobrenome italiano Toffoli é frequente na região do Veneto, principalmente nas províncias de Veneza, Pordenone e Treviso. Provém de uma alteração ‒ que os linguistas chamam aférese ‒ do nome de origem grega Christopholus (=Cristóvão). O caminho é: Christopholus → Christopholi → Cristoffoli → Toffoli.

O fim do amém

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jul 2015

Revolution 1O dicionário ensina que revolução, no contexto político, é rebelião contra o poder vigente, com vista a implantar mudanças profundas. Diz ainda que pode ocorrer de maneira progressiva ou repentina. Quanto maior for a rudeza, mais caracterizada estará a reviravolta.

A transição do regime militar para a democracia plena, que os manuais situam em 1985, não pode ser catalogada como revolução. Na verdade, a eleição presidencial daquele ano marcou o desfecho de um processo paulatino, gradual e sobretudo consentido. A mudança pode não ter agradado aos mandatários da época, contudo não ocorreu à revelia deles. Tendo sido autorizada, revolução não era.

Já a ruptura havida em 1964, dado o grau de brusquidão, encaixa-se melhor, stricto sensu, no conceito de revolução. Aliás, foi assim qualificada nos primeiros anos, embora seja hoje mais usual designá-la como golpe.

Dilma e Lula 4Nossos pais e nossos avós – esses, sim – conheceram tempos bem mais turbulentos. Na primeira metade do século XX, revoluções e golpes (bem sucedidos ou não) sobrevinham a cada par de anos. Por um sim, por um não, entrincheiravam-se cidadãos, desembainhavam-se espadas, granadas explodiam, casernas eram sitiadas. Visto com óculos atuais, esse rebuliço nos parece longínquo, intangível, empoeirado, perdido nos livros de história.

Os brasileiros que assistiram, já em idade de entender, ao golpe de 1964 já estão todos, há anos, agasalhados sob o manto do Estatuto do Idoso. Mais velhos ainda estão os que viveram uma revolução de verdade, daquelas boas, com canhão e tropa nas ruas. São hoje anciãos.

Os tempos mudaram. Não se pega mais em armas pra impor ideias, que isso está completamente démodé. Armas, hoje, são muito mais numerosas que antigamente, circulam bem mais rápido, estão em mãos de muito mais gente, mas servem pra outros fins.

Revolution 2No que diz respeito à política, os jovens adultos brasileiros, aqueles que entram agora na casa dos vinte e poucos anos, andam desencantados. Levantamento recente do TSE informa que, no espaço de sete anos, nossos cinco maiores partidos perderam dois terços dos afiliados menores de 25 anos. O desinteresse da banda jovem é flagrante e inquietante: são precisamente eles que, daqui a vinte anos, conduzirão o País.

Quais serão as razões desse desamor? Poderíamos culpar internet, redes sociais, materialismo, facilidades do mundo moderno. Será? Se assim fosse, o desinteresse dos jovens pelas coisas da política seria planetário, o que está longe de ser verdade. As causas são domésticas.

Pra começo de conversa, os que chegam hoje aos vinte aninhos só conheceram, no topo do Executivo, a dupla Lula & Dilma. Não nos esqueçamos que o presidente anterior, ao impor a sucessora, fez questão de apregoar que ela era ele e que ele era ela. Ou seja, ficou claro que eram angu da mesma tigela.

Dilma e Lula 5Tem mais. Desde que se conhecem por gente, os jovens de hoje vêm sendo diariamente bombardeados com escândalos, roubalheiras, prisão de medalhões. E mais roubos, e mais escândalos, e falcatruas, e mentiras, e caraduras. Convenhamos: é muita água pra pouco pote. Compreende-se que se sintam enfastiados e que menosprezem política e políticos.

O que anda fazendo falta é o debate de ideias, a troca de argumentos, o empenho pelo bem comum, a demarcação rigorosa entre o público e o privado. O Executivo onipresente destes últimos dez anos tem relegado o Legislativo a papel de figurante de opereta.

A crise de governança gerada pela ação desastrada da presidência da República está mostrando corolário positivo: o fortalecimento do parlamento. Deputados e senadores, desacostumados que estavam de fazer aquilo para que foram eleitos, andam meio aturdidos. O momento parece confuso, mas o tempo se encarregará de pôr ordem na casa.

Senado federal 1Suas excelências já dão mostras de que a era do amém chegou ao fim. Não é revolução de tanque e canhão, mas é como se fosse: as consequências serão notáveis.

No Brasil, a prática costuma contradizer a teoria. Nosso presidencialismo está-se transmutando em parlamentarismo de facto. Após tantos anos de um Executivo onipotente acolitado por congresso submisso, a virada é notícia animadora.

Aperfeiçoamentos terão de vir, ressalte-se. Para viabilizar o novo modelo, é imperioso implantar voto distrital e cláusula de barreira. Mas há um tempo pra tudo. Por ora, festejemos a revolução que se desenrola diante de nossos olhos e façamos votos para que o reequilíbrio entre poderes seja duradouro. Será bom para todos nós. Que os anjos digam amém.

Depois do caos

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 2 mai 2015

Mês passado, neste espaço, sugeri a Dilma Rousseff convocar um plebiscito. Matéria para consulta popular há de sobra, fato que deixaria a presidente à vontade para escolher a que lhe conviesse. O ponto crucial, a não descurar sob hipótese alguma, seria deixar bem claro que sua permanência no cargo estaria vinculada ao resultado da consulta popular. Pisar em ovosApoiada pelos brasileiros, levaria o mandato até o fim, e não se falaria mais nisso – afinal, não se pode chamar eleitores às urnas a cada semana. Se, no entanto, os votantes se atrevessem a rejeitar a proposta, ela renunciaria, pura e simplesmente, ao mandato. Fiel a seu estilo, sairia de cabeça erguida, por decisão pessoal. Ficaria patente que valoriza o nobre sentimento da honra.

Assoberbada de trabalho e sobrecarregada de preocupações, a mandatária não há de ter tido tempo de avaliar a sugestão. Ou talvez, desacostumada a seguir conselhos, tenha decidido manter-se inabalada e inabalável. Cada um é que sabe onde lhe aperta o sapato.

A vida (não só a da presidente) anda um bocado complicada, convenhamos. A insegurança assusta, incertezas atulham o horizonte. A gente às vezes se sente mergulhado numa autêntica casa de mãe joana, uma espelunca onde todos gritam e ninguém tem razão. Paira no ar a impressão de que conquistas e avanços, que acreditávamos consolidados, andam evaporando num processo inexorável de dissolução.

Dilma ministerio 1Ministro que entra, ministro que sai; mandatária-mor em palpos de aranha e visivelmente isolada; antigos presidentes dando palpites sobre tudo e sobre todos, como se em roda de botequim estivessem; congressistas desacreditados; revelação diária de detalhes novos de roubalheiras antigas. Arre! Tudo contribui para aumentar a desagradável sensação de que o coreto bagunçou de vez. Aos cidadãos comuns que somos, restam o desencanto e, mais que tudo, a certeza de que nos caberá pagar a conta.

Nós, brasileiros, temos tendência a exagerar os aspectos negativos de todo acontecimento. Acentuamos de tal modo a face ruim, que acabamos incapazes de enxergar o lado positivo. Alguns asseguram que essa curiosa peculiaridade está inscrita no tema astral do País. Dizem que assim são as coisas e que é impossível contrariar o carma nacional. Como não sou do ramo, prefiro dar de barato e não comprar essa briga.

OmeletteNão se faz omelete sem partir ovos. Não se constrói o novo sem demolir o antigo. Não se ganha guerra sem travar batalha. O brado da sabedoria popular é incontestável: todo avanço, todo progresso, toda conquista pressupõe a falência da estrutura antiga. Exige mudança. Provoca crise. Abre um túnel que temos de atravessar para chegar à luz do outro lado.

Erramos ao dar exagerada importância à crise, que é passageira. Convém fazer das tripas coração e considerar que o atual momento conturbado é passagem obrigatória que conduz à transformação do modelo exaurido.

Quando se sacode a árvore, os frutos podres se esborracham no chão. É o que está acontecendo. Alguns sinais já sorriem no horizonte. Semana passada, antiga proposta de voto distrital foi aprovada no Senado. Tímido, o projeto restringe a prática a alguns poucos municípios. Mas é passo na boa direção.

Discussão 3«Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar» – sentenciou Nélson Rodrigues. Durante doze anos, afagados pela brisa leve da bonança econômica, estivemos anestesiados. Pouco se nos dava que o comportamento de medalhões fosse tortuoso: tinham todos direito ao apoio negligente e (quase) unânime da nação distraída.

Dissensões pipocam hoje na classe política. A presidente colide com o Senado, que abalroa a Câmara, que esbarra em líderes partidários, que estranham o STF. Não é motivo pra se deixar abater, distinto leitor! Ao contrário, esse cafarnaum é pra lá de salutar. A presença de vulto todo-poderoso na chefia do Executivo, como ocorreu nos últimos anos, empalidece os outros poderes, desequilibra o conjunto e distorce o espírito republicano.

Faixa presidencialA todo presidente com baixa aprovação popular, corresponde um Congresso revigorado. Parlamento fortalecido e voto distrital são notícias auspiciosas. Afinal, se a presidente foi eleita com o voto de metade dos eleitores, o Congresso representa a totalidade dos brasileiros.

Não nos deixemos abater pelas nuvens escuras que encobrem o sol neste momento. Que desabem, que se precipitem e que se dissipem. Bom marinheiro ensina que, depois da tempestade, é garantido: vem bom tempo.

Natan Donadon disse tudo!

Fernão Lara Mesquita (*)

«O voto aberto vai fazer com que meus colegas votem contra o coração e a vontade deles»

E não é com isso que o Brasil sempre sonhou? Que eles votem SEMPRE contra o coração e a vontade deles e a favor da nossa? Democracia é exatamente isso ― nem mais, nem menos. Estas duas votações em menos de seis meses:

Interligne vertical 7Meio ano atrás: 233 votos pela cassação, 24 a menos que o necessário a 172 pela manutenção do mandato (mais abstenções)

Ontem: 467 pela cassação x 1 abstenção (de outro deputado presidiário)

É a prova do que se tem afirmado desde sempre aqui no Vespeiro: a civilização (que é o outro nome da democracia) não é muito mais que a presença da polícia.

O voto distrital com recall põe polícia na política. É a chegada do xerife a este nosso faroeste dominado pelos bandidos.

Não há povos piores nem povos melhores, «gentinha» nem gentona. O que há são os que já experimentaram e os que ainda não experimentaram. E mesmo entre os que já experimentaram, se tirar a polícia de cima, volta tudo pra trás. Até o Steve Jobs, o Leonardo da Vinci cibernético ― o «inventor da modernidade» ― se tiver certeza de que não vai pagar por isso, vira explorador de menores miseráveis na China.Biscoito surpresa

O voto distrital com recall arma a mão da polícia da política ― que é você ― para que ela possa exigir o cumprimento da lei. E o efeito é imediato e automático, como previa o anteontem ainda deputado e hoje só presidiário. E se é assim diante da simples perspectiva de ser identificado pelo eleitor, imagine o que seria se eles soubessem que o eleitor pode, a qualquer momento, sem manifestação de rua nem bagunça, retirar o voto que lhes garante o emprego.

O recall é isso. Divide-se o número de eleitores pelo número de deputados e cria-se um distrito eleitoral delimitado pela geografia com aquele número de eleitores. Cada candidato só pode pedir votos em um único distrito eleitoral. Se eleito, fica-se sabendo exatamente que eleitores ele representa. E se mijar fora do penico, qualquer eleitor daquele distrito tem direito de passar uma lista pedindo a confirmação do mandato do porcalhão. Se conseguir colher a assinatura de 5% dos eleitores da circunscrição, convoca-se uma nova votação unicamente naquele distrito. Caso o deputado não seja confirmado, seu mandato será cassado. E, se calhar, ele que vá se entender com o Joaquim sobre os direitos que lhe vão restar lá na Papuda.

Isso faz milagres! Muda a vida! Qualquer outra reforma fica fácil de arrancar com essa arma na mão.

Agora que estamos na bica de acabar com essa tapeação dos mascarados assalariados, todo o mundo sabe de quem, quebrando tudo por aí, taí uma boa razão pra você voltar pra rua.

Mas jogue fora o cartaz inútil, por mais engraçadinho que tenha sido o trocadilho usado na última vez. Espalhe esta convocação. Vamos todos pra rua com o mesmo cartaz. Vamos todos exigir a arma que temos direito de carregar pra construir um Brasil do jeito que a gente quer.

VOTO DISTRITAL COM RECALL, JÁ!

Para maiores informações sobre o funcionamento do recall, clique aqui.

(*) Fernão Lara Mesquita é jornalista. Edita o site http://vespeiro.com/

Bye, bye, Paraguai

Fernão Lara Mesquita (*)

Outro dia foi a China que anunciou que está saindo de onde o PT quer entrar. Na semana passada, quem diria, quem passou por nós na contramão e dando adeus às Venezuelas e às Cubas dos sonhos do PT foi o Paraguai que, na quinta-feira 28, acabou com a imunidade parlamentar dos seus senadores ― ou melhor, com aquela parcela dela que é abusiva e antidemocrática ― depois de duas semanas de rebelião aberta contra a decisão anterior, do dia 14, quando 23 dos colegas do senador punido votaram a favor da sua permanência impune no Senado.

Victor Bogado, do Partido Colorado, tinha a babá de seus filhos ganhando dois salários ― um pela Câmara dos Deputados e outro pela Itaipu Binacional ― e foi um dos primeiros a ter seus podres publicados no novo site da internet criado pelo presidente Horácio Cartes, do seu próprio partido, para prestar contas sobre gastos públicos e dar transparência ao que se passa dentro do governo.

Pouco depois da votação espúria, um dos parlamentares que votou pela impunidade do senador alegando a imunidade parlamentar entrou numa pizzaria para jantar. Foi o estopim. Ele foi expulso sob vaias e palavrões e, por pouco, não foi agredido pelo público.

Daí por diante foi como uma epidemia. Restaurantes, bares, comércios, shopping centers e até estádios de futebol e hospitais (estes abrindo exceções só para emergências) começaram a pôr cartazes na porta anunciando «não atendemos ratos neste estabelecimento». A única exceção foi uma funerária que pôs anúncios nos jornais dizendo que receberia qualquer um dos traidores «com todo o prazer».

O povo montou uma vigília na frente do Congresso e um site foi aberto na internet com fotos dos 23 traíras e acompanhamento diário dos seus passos. Em duas semanas nova votação foi convocada, a imunidade do senador caiu e ele foi cassado.

Nesse meio tempo, Genoino ia para casa e José Dirceu passava a ganhar 20 mil reais por mês para conspirar contra a democracia brasileira do jeito a que já está acostumado, enquanto todos os partidos de algum peso fechavam as portas para a admissão de Joaquim Barbosa como candidato em 2014.

O Paraguai esteve 35 anos sob a ditadura de Alfredo Stroessner, 14 anos a mais que os nossos ditos «anos de chumbo». O país nunca experimentou nada que lembrasse remotamente uma democracia digna desse nome. E, no entanto, taí respirando ar fresco graças às novas condições de circulação da informação e à articulação da resistência civil.

E o Brasil?
Algo de muito semelhante ocorreu aqui no mês de junho deste ano. Mesmo com todo o marasmo em que vive a nossa política, bastou que alguém agitasse uma bandeira ― no caso o STF com as condenações do Mensalão ― e o povo se levantou com força suficiente para pôr o «Sistema» em pânico.

Mas nenhuma força organizada deu sequência ao movimento, o que ensejou que os profissionais do golpe armassem a sequência de quebra-quebras que tirou a gente séria das ruas.

Se tivesse havido uma única voz disposta a puxar a fila, ela teria seguido andando. Mas você pode virar e revirar os nossos 32 partidos «de esquerda», inclusive os «de oposição» e seus milhares de candidatos; pode ver e rever o horário eleitoral e não encontrará rigorosamente nada que escape daquela tapeação vergonhosa que conhecemos, ofensiva à nossa inteligência, de tão rasa e explícita.

Pior: você pode revirar todos os jornais, ouvir todas as rádios, ver todos os programas jornalísticos da TV, e nada que não seja esses mesmos candidatos e o que uns estão dizendo sobre os outros lhe será apresentado. Haverá até quem afirme gostar e quem afirme não gostar deste ou daquele. Mas sugestão nova, propostas, reportagens sobre modos diferentes de gerir a coisa pública ou informações sobre como os outros que dão certo estão fazendo, zero! Mesmo os acontecimentos do Paraguai tiveram uma cobertura menor que um reles desastre de trem em Nova York.

Não há exemplo histórico de processos como o brasileiro que tenham sido revertidos senão por dois tipos de expediente: uma iniciativa forte do Poder Judiciário ou a articulação de propostas novas e de campanhas, protagonizadas pela imprensa, para levá-las a efeito. Ou então essas duas coisas junto.

O voto distrital com recall foi uma das propostas que nasceram assim e têm currículo mais brilhante no rol das revoluções pacíficas da humanidade. Tem mudado mundos e fundos nos dois últimos séculos e está aí esperando quem a leve adiante para mudar o Brasil.

Mas, até agora, a única figura institucionalmente forte que vi pregar esse remédio no Brasil foi ― adivinhe! ― o ministro Joaquim Barbosa. Aquele que, pela primeira vez em nossa história, pôs essa bandidagem da porta da prisão para dentro, ainda que tenha sido impedido de trancá-la.

Aécio Neves, esse alegre candidato «de oposição» em busca de um discurso, é um que, se adotasse esta proposta, correria o sério risco de ter, pela primeira vez na vida, alguma coisa a dizer que valesse a pena ser ouvida.

(*) Fernão Lara Mesquita é jornalista. Edita o site http://vespeiro.com/

Que estamos esperando?

José Horta Manzano

Índio

Índio

Em nota publicada em seu site, o jovem deputado Jerônimo Goergen (PP-RS) mostrou-se frontalmente contrário à instauração de vagas exclusivamente dedicadas a representantes de comunidades indígenas na Câmara Federal.

Veja a íntegra do comunicado:

Interligne vertical 14O presidente da Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (Cindra), deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), considerou absurda a proposta de criação de uma eleição paralela para a Câmara, voltada exclusivamente para a escolha de quatro representantes das comunidades indígenas. “A criação de uma política de cota para a eleição de um segmento racial afronta a Constituição ao criar uma categoria superior de cidadão. Se abrirmos esse precedente, teremos de fazer uma eleição específica para a escolha de parlamentares afrodescendentes, ítalo-germânicos, nipônicos, ou seja, estaremos rasgando a carta maior ao dizer que nem todos são iguais perante a lei”, justificou o parlamentar.

Segundo Jerônimo, o parlamento brasileiro já contou com a presença de representantes de etnias indígenas. “As regras da democracia precisam ser respeitadas. Se os índios querem ser deputados ou senadores, devem se filiar a uma das siglas disponíveis e buscar o voto do eleitor”, ― defendeu ele.

Goergen entende que as comunidades indígenas devem se organizar e sair da órbita de influência de ongs que supostamente representam os interesses dessas populações.

Índios by Nick Mancini

Índios
by Nick Mancini

Tem razão o nobre deputado. Como já dizia o outro, a instauração do sistema de quotas para estudantes abriu uma caixa de pandora. É uma caixinha de surpresas, de onde nunca se sabe o que pode sair. Coisa boa é que não será.

Do jeito que as coisas vão, orelhudos deverão ser representados por deputados orelhudos. Descendentes de árabes elegerão exclusivamente deputados de origem árabe. Obesos vão naturalmente exigir que seus eleitos tenham volume corporal avantajado. Um pandemônio.

E pensar que o voto distrital puro resolveria esse problema de uma tacada só. Divide-se o país em 513 distritos eleitorais de população equivalente. Em eleição de dois turnos, cada distrito elege o seu deputado. Pronto, durante o mandato, o eleito naturalmente procurará contentar e satisfazer sua base, com vistas à reeleição. Por seu lado, todos os eleitores saberão quem é o seu deputado. Cada um terá um parlamentar para chamar de seu.

Que estamos esperando?

Passo tímido, pacote flácido

José Horta Manzano

Dia 13 de agosto — que não era sexta-feira —, a OAB passou às mãos da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal seu projeto de reforma política. É um projeto tímido, que está mais para gambiarra que para reforma. Assim mesmo, poucos acreditam que venha a ser debatido e sacramentado por suas excelências a tempo de valer para as eleições de 2014.

Palhaço

Palhaço

A reforma aventada tem, pelo menos, o mérito de existir. É mais uma prova de que a sociedade pensante brasileira não está acomodada, muito menos satisfeita, com o funcionamento da política no País.

A OAB garante que, uma vez introduzida essa modificação, desaparecerá o chamado «efeito Tiririca». Essa incongruência, que faz que meia dúzia de candidatos totalmente desconhecidos sejam eleitos a reboque dos votos excedentários recebidos por um candidato estrela, não é novidade no País. Antes do nobre palhaço, Clodovil, Enéas e outros personagens em voga já exerceram o mesmíssimo papel. Essas figurinhas carimbadas são, aliás, ultracobiçadas. E não só por partidos nanicos.

É uma distorção flagrante do sistema de representação popular, mas não é a única nem a pior. Como já tive ocasião de comentar neste espaço algumas semanas atrás (post Época de mudanças), algumas disposições da Constituição outorgada em 1988 traem o princípio basilar de que todos os brasileiros são iguais perante a lei. A limitação do número máximo (70) e do número minimo (8) de deputados que cada Estado tem direito de mandar a Brasília desvirtua a isonomia entre os eleitores. Na hora de escolher seus representantes, os brasileiros não são todos iguais. O voto de um roraimense vale pelo de dez paulistas. É disfunção tão flagrante, que fica difícil captar por que a Assembleia Constituinte de 1988 terá introduzido esse dispositivo.

Palhaço

Palhaço

Uma outra mudança que, mais dia, menos dia, terá de ser feita é a introdução do voto distrital. O Brasil tem Estados enormes e pouco populosos. Tem também Estados menores, mas densamente povoados. No sistema atual, cada Estado representa um distrito. Não é a melhor maneira de proceder. No final, não sendo ligado a nenhum distrito, a nenhuma região particular de seu Estado, o deputado não se sente na obrigação de representar ninguém em especial. Como corolário, o eleitor não se sente representado por nenhum deputado em particular. Aliás, poucos são os eleitores que se lembram em quem votaram. No voto distrital, o País é dividido em distritos, cada um com população equivalente. E cada distrito elege o seu deputado, em votação majoritária de dois turnos.

Para corrigir de verdade, uma nova Constituição teria de ser escrita. Mas isso, além de ser demorado e trabalhoso, incomoda muita gente. Não vai ser fácil chegar lá. Vamos ter de nos contentar com puxadinhos, como esse que a OAB está propondo. Que remédio?

Cá entre nós: no duro mesmo, o «efeito Tiririca» é produto da ignorância de imensos contingentes de nossa maltratada população. É pela instrução pública que as reformas deviam começar.

Mundo, mundo, vasto mundo

José Horta Manzano

Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso. É o que se costumava dizer para sublinhar traços que diferenciam os povos.

A globalização está aí. Hoje em dia, o mundo parece cada vez menor. Pode-se comprar camembert legítimo no Brasil. Qualquer bom supermercado europeu vende farinha de mandioca, maracujá e cachaça. Há restaurante especializado em sushi até na Bósnia. Na Mongólia ou em Uganda, basta dispor de uma parabólica ― uma «paranoica», como dizia o outro ― para captar Telesur, a televisão bolivariana. ¡Que felicidad, hermanos!

Mas essas mudanças, no fundo, são de fachada. Raspando a superfície, descobre-se que a casca é fininha. Abaixo dela, o miolo é bem mais resistente e detesta mudanças.

Nos costumes políticos, por exemplo. Em tempos idos, o Partido dos Trabalhadores chegou a expulsar afiliados que ousaram mostrar algum sinal de insubmissão a ditames superiores. Hoje, isso não impressiona mais ninguém, muito pelo contrário.

Não é raro ver deputados e outros eleitos bandearem-se do partido A ao partido B, que os acolhe braços abertos. Ficha limpa? Ficha suja? Processo nas costas? Condenação judicial? Pouco importa ― quem liga mais para essas picuinhas? Nestes tempos estranhos em que antigos «virtuosos» tomam a benção de Maluf, os valores andam um bocado turvos. O fato é que está cada dia mais difícil ser expulso de um partido no Brasil.

Torre Eiffel

Torre Eiffel

Já na França, outra roca, outro fuso. Por lá, ainda vale o velho adágio: bobeou, dançou. O site da televisão pública francesa dá hoje seis conselhos aos políticos que quiserem evitar ser expulsos de seu partido. Comparando a visão que se tem da política na França com a que se tem no Brasil, parece que estamos falando de um outro planeta.

Os conselhos são:

Interligne vertical 71) Não fazer a saudação nazista ― aquela com o braço direito estendido à frente do corpo.

2) Não minimizar os crimes da Segunda Guerra.

3) Não atacar as etnias minoritárias na França.

4) Não apoiar o partido Frente Nacional (extrema-direita).

5) Não se candidatar quando o partido tiver escolhido outro nome em sua circunscrição.
Nota: Os deputados franceses são eleitos por voto distrital puro.

6) Não fraudar a receita.

Cada conselho faz alusão a alguma expulsão ocorrida em tempos recentes. Mundo, mundo, vasto mundo.

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Época de mudanças

José Horta Manzano

Reforma política
Toda caminhada, seja ela de alguns metros ou de quilômetros, tem de começar pelo primeiro passo. Temos pela frente uma oportunidade rara, daquelas que não aparecem mais que uma ou duas vezes na vida: endireitar as estruturas de nosso País. Ou, pelo menos, tentar fazê-lo.

A frustração de constatar que aquilo que se fez não deu certo é sempre menor do que o arrependimento de não haver tentado.

Estados Unidos do Brazil Constituição da 1a. República, 1891

Estados Unidos do Brazil
Constituição da 1a. República, 1891

O Brasil é um país de muita desigualdade e de muitas distorções. Tem-se falado muito, estes últimos dias, em reforma política. Que seria isso? É um conceito amplo, vago. É como um ônibus em que, apertando um pouco, sempre cabe mais um.

Reforma política pode tratar da duração do mandato de cada eleito. Mas pode também substituir o regime republicano por uma monarquia. Num sentido lato, a política é a arte de administrar o Estado. Isso vai da fixação do horário de trabalho dos contínuos até a definição dos poderes da República e sua hipotética hierarquização.

Seria altamente recomendável que se fixassem os objetivos antes de dar o primeiro passo da caminhada. Que seja tudo muito claro. Que se determine aonde se quer chegar, sob pena de atolar no meio da estrada.

Interligne 17

Representatividade
Partindo do pressuposto que a reforma política mantenha a representação bicameral (Câmara + Senado), o momento vem a calhar para botar remédio numa distorção flagrante.

No nosso regime federativo bicameral, o Senado representa os estados, enquanto a Câmara reflete os habitantes. Para evitar que estados mais populosos exerçam uma influência esmagadora no Congresso, cada um, seja qual for sua população, envia 3 representantes ao Senado. Isso faz que, na câmara alta, os estados estejam todos em pé de igualdade.

Na Câmara Federal ― também chamada câmara baixa ― cada deputado deveria representar um determinado número de habitantes. Se somos, grosso modo, 200 milhões de cidadãos, cada um dos 513 deputados deveria representar cerca de 400 mil brasileiros, pouco mais, pouco menos. Não é o que acontece atualmente.

Brasília - Congresso Nacional

Brasília – Congresso Nacional

Por alguma razão que me foge, a Constituição de 1988 passou por cima do que parece uma evidência. Desprezando a representatividade proporcional, estabeleceu que cada estado enviasse um mínimo de 8 e um máximo de 70 representantes.

O resultado é que, no caso mais aberrante, o voto de um roraimense vale o de dez paulistas. Em outros termos, se um habitante do simpático estado do Norte decidir-se pelo candidato do partido A, será necessário que 10 paulistas votem no candidato do partido B para equilibrar. Haja desequilíbrio!

A Câmara Federal está longe de representar proporcionalmente os habitantes. O voto de um acriano vale o de 4 alagoanos. O partido A vai precisar conquistar o voto de 4 ou 5 mineiros para compensar o sufrágio de um único amapaense.

O voto distrital puro, em dois turnos, parece-me a melhor solução. Seja qual for o caminho escolhido, a atual distorção na representatividade tem de ser corrigida.