José Horta Manzano
Na Câmara Federal, a Comissão de Constituição e Justiça acaba de cometer mais uma sandice. Com a habitual leviandade, voltou a tratar do tema racial e propõe ao plenário a aprovação de uma enésima emenda à Constituição. Se aprovada a PEC, uma parte dos eleitos do povo terá obrigatoriamente de ser de raça negra.
Fico consternado ao me dar conta do caminho pedregoso que a ignorância de nossos parlamentares está preparando para nosso País. Já temos um dos índices de disparidade social mais elevados do mundo, uma desindustrialização crescente, uma imagem internacional em franca deterioração, uma inflação que ressurge, um nível de corrupção pra nenhum ditador africano botar defeito. Não fazia falta oficializar divisões raciais.
Se, em lugar de passar a vida tentando puxar a brasa para sua sardinha, nossos prodigiosos representantes tivessem procurado se informar sobre o que acontece no planeta, saberiam que raça e religião são dois dos temas mais explosivos. A maior parte dos conflitos tem como artista principal ― ou como coadjuvante ― a raça ou a religião. Em nossa terra, até hoje, passamos ao largo desses problemas. É monstruoso que parlamentares soprem as brasas. Elas acabarão por reavivar o fogo e transformá-lo em labaredas.
Para começo de conversa, a autodeclaração de pertencimento racial, num País onde a malandragem, a mentira e a esperteza são valorizadas, não pode funcionar. Suas Excelências sabem disso. Para fazer a coisa dentro de razoáveis padrões científicos, só passando por um teste ADN.
Há também outro fato: pelo menos metade da população do País é mestiçada, uns mais claros, outros mais escuros. Há os que têm mistura de sangue índio. Há os descendentes de africanos não escravos, como angolanos e nigerianos chegados nas décadas mais recentes. O balaio de gatos é grande e complexo demais para ser deixado na mão de meia dúzia de excelências de nível cultural duvidoso, mais preocupadas com o próprio umbigo do que com o povo que representam.
E tem mais. Por que só deputados e senadores seriam subordinados a quotas? E o STF como fica? Seguindo a mesma lógica, metade dos ministros do Supremo terão obrigatoriamente de ser de raça negra.
Quanto à presidência da República, temos um real problema. As novas leis vão enterrando, pouco a pouco, o conceito de mestiçagem. Pela visão de nossos iluminados guias, um brasileiro tem de ser branco ou preto. Para não desviar da lógica, o mesmo critério terá de ser aplicado à escolha do presidente. A base de cálculo terá de ser o último censo.
O presidente terá de pertencer necessariamente à raça majoritária. Se a maioria dos brasileiros se tiver autodeclarado branca, o presidente será obrigatoriamente branco. Caso contrário, não tem como escapar: o chefe do Executivo não poderá, em hipótese nenhuma, ser branco.
Será que essas questões roçaram a mente tosca de nossos sábios representantes? Tenho minhas dúvidas. Seu raciocínio embotado não lhes permite ir além do problema de cada momento. Fazem gambiarras, puxadinhos, remendos, mas não avaliam as consequências que cada solução acarreta. Para eles, mais importante é angariar a simpatia do povo inculto e, sobretudo, conquistar votos para as próximas eleições. Os brasileiros do futuro que se lixem.
Na França, alguns anos atrás, veio à tona a questão da paridade dos eleitos. Não se fala de paridade racial, que eles lá não são loucos de cutucar a onça com vara curta! Trata-se de isonomia de sexo. Constatando que, na assembleia nacional, a proporção de mulheres era ínfima, resolveram legislar. Mas escolheram um caminho mais racional e, a meu ver, mais justo.
Em vez de reservar cadeiras específicas para mulheres ― só para fazer número ― a lei francesa impõe a cada partido que apresente um número igual de candidatos e de candidatas. Em seguida, os eleitores serão livres de votar em quem lhes parecer melhor. Parece-me uma solução mais equilibrada. A paridade de oportunidades fica assegurada, mas a decisão final permanece nas mãos do eleitorado.
Nossas excelências, em sua maioria monoglotas e incultas, dão preferência a torrar o dinheiro que lhes pagamos viajando até mundos de fantasia em Orlando, sonho de todo novo-rico ibero-americano. Suas mentes estreitas não lhes permitem conceber que ― diabos! ― cabe ao eleitor escolher, não a eles. Pode-se organizar a paleta de candidatos conforme a cor da pele, o sexo, a idade, a orientação sexual, a corpulência, o nível de estudos, o país de origem ou outras características quaisquer. O que não fica bem é impor uma reserva de mercado a uma franja da população em detrimento de outras minorias.
Os que forem eleitos pelo sistema de quotas serão fatalmente percebidos pela população como parlamentares de segunda classe, como se tivessem entrado pela porta dos fundos. Em troca, no afã de defender seus eleitores e garantir seus votos, batalharão pela manutenção do sistema de quotas e pela extensão dele a outros campos da atividade humana.
Estamos fomentando e exacerbando comunitarismos que não existiam. Cercado de «não-podes» por toda parte, o Brasil periga se tornar um país inviável. É criminoso e muito triste.
Para quem perdeu o capítulo, aqui estão as fontes:
Folha de São Paulo
O Globo
Estadão