Imposto de renda

José Horta Manzano

As brutais desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira impedem a consolidação de um verdadeiro espírito nacional. Somos um aglomerado de gente que se observa, se cruza, se entretem, mas não se identifica.

Os objetivos de certos grupos estão demais distantes dos objetivos de outros grupos. As disparidades são tamanhas, que não permitem a constituição de um tecido social homogêneo.

A Copa do Mundo, talvez o único momento em que se chega a uma quase unanimidade, só dura um mês a cada quatro anos, o que é amplamente insuficiente para cimentar um sentimento geral de nacionalidade.

Vivemos num país em que:

  • 15% da população passa fome
  • Uma cidade (São Paulo) tem a maior frota de helicópteros particulares do mundo
  • Idosos tomam empréstimo consignado pra comprar alimento
  • Janelas têm de ser gradeadas pra conter assaltantes
  • Miseráveis se disputam ossos de gado
  • Há zonas onde a lei não chega (morros cariocas, vales amazônicos)

Num país assim, não há santo que resolva: nenhum indivíduo consegue sentir-se cidadão pleno.

Durante a campanha, o candidato Lula prometeu elevar a barra de isenção do imposto de renda até quem ganha R$ 5 mil por mês. O objetivo do presidente eleito, de dar um alívio aos que recebem salário baixo, é louvável; mas a mexida vai na contramão da busca da cidadania para todos.

Imposto é chateação, ninguém paga com prazer. Apesar disso, a tributação é o sistema que obriga todos os cidadãos a contribuirem para a sacola comum, cada um na medida de suas posses. Dinheiro não dá em árvore. Para funcionar, o governo precisa dispor de somas colossais para os serviços comuns a todos: Educação, Saúde, Rodovias, Segurança Pública, Defesa e todos os demais departamentos.

O distinto leitor certamente entende o funcionamento do sistema. Não paga imposto por prazer, mas sabe como o mecanismo funciona (ou como deveria funcionar, mas essa já é uma outra história). Mas boa parte da população menos favorizada não conhece o sistema nem sabe como funciona. Só tem certeza de não fazer parte dele: “Eu não pago imposto, meu salário não atinge”.

Sabemos que não é bem assim, que os impostos indiretos, embutidos no preço do feijão, do arroz e da passagem de ônibus são bastante elevados. Não conhecendo o funcionamento do sistema fiscal, a população mais humilde não se interessa por essas coisas: “Isso é coisa de rico”.

Nesse particular, penso diferente de Lula da Silva. Aumentar o valor de isenção do imposto é medida que serve mais para alijar parte da população do funcionamento da sociedade. Dependesse de mim, adotaria a medida inversa: baixaria o valor de isenção.

Por quê? Porque é um bom caminho para conscientizar os cidadãos desfavorizados de que também eles fazem parte da nação e, como cidadãos, devem dar sua contribuição.

A alíquota? Tanto faz, que é um gesto simbólico. Teria de ser baixíssima, pequena porcentagem do salário. O ideal é que não pesasse no bolso do trabalhador, mas que lhe incutisse a convicção de pertencer à sociedade. É importante que ele saiba que está contribuindo para o funcionamento da nação. Esse alargamento da base de contribuintes teria de ser reforçado por aprendizado a ser dado desde a escola elementar.

Essa medida simples seria de bom auxílio na busca de uma sociedade inclusiva. Uma política de cotas e de isenções tem a desvantagem de acentuar linhas de fratura na sociedade. Já uma política em que cada um dá sua contribuição à sacola comum tende a difundir um sentimento de homogeneidade, primeiro passo para a formação de uma nação.

À espera do Messias em frente ao quartel ou à PF em Curitiba

Eduardo Affonso (*)

Nos anos 80, ocupavam a Cinelândia, no Centro do Rio. Resistiram algumas décadas – hoje não há mais vestígios do que um dia foi a aguerrida Brizolândia. Em 2018, começaram uma vigília em frente à Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Por 580 manhãs, renovavam sua fé gritando: “Bom dia, presidente Lula!”. Desde o segundo turno das eleições de 2022, estão acampados diante de quartéis ou bloqueando estradas.

Muda a cor das roupas e bandeiras – sai o vermelho, entram o verde e o amarelo. Mudam as palavras de ordem: “Lula livre!”, “Intervenção militar!” e… (o que é mesmo que queriam os brizolistas, além de lutar contra as “perdas internacionais”?). Em comum, a inabalável fé num messias. E a negação – do resultado de eleições, da condenação ou do ocaso do seu líder, do seu capitão, do seu salvador. Nunca chegam a formar multidões – talvez daí o empenho em fazer tanto barulho.

São pessoas que se desconectaram de si mesmas e embarcaram num delírio coletivo. Não necessariamente por desinformação ou déficit cognitivo, mas para se congregar no seio de uma ficção compartilhada. Para ter a sensação de pertencimento, de estar do lado do Bem. E suprir sua grande carência – e de todo ser humano: a de amparo. Funciona para qualquer seita, religiosa ou ideológica.

Em linguagem de autoajuda: deixam de ser gota para se sentir oceano. Mal sabem que, nessa mudança, passam de sujeito a objeto, tornando-se cada vez mais manipuláveis: a permanência no grupo implica investimento psíquico incessante. Paga-se um boi para entrar e uma boiada e meia para tentar sair do rebanho.

São gente como a gente – só que, no momento, impermeável a argumentos. Como os amigos que me entopem a caixa postal com notícias falsas, falsos alarmes, teorias conspiratórias. Aponto o erro, encaminho o desmentido – em vão. Daí a pouco recomeça tudo, numa amnésia voluntária. Foi assim na época do impítimã (“É golpe!”); é agora no pós-eleições (“É fraude!”). Pessoas até outro dia bastante sensatas, mas que marcam território com bandeiras na janela (de casa ou do carro), cantam o Hino Nacional no portão de algum quartel (felizmente, não em torno de pneus) e clamam pelo fim do Estado de Direito (pelo menos não com o celular na cabeça pedindo socorro a extraterrestres). Não refletem, agem reativamente. Ao domínio cultural tirânico das esquerdas e à patrulha vingativa das minorias, respondem com o orgulho da tosquice, a celebração anticiência.

Lula elegeu Bolsonaro, Bolsonaro reelegeu Lula. Sem uma terceira via à vista, é possível que esse “Dia da Marmota” ainda dure muitos anos.

Os brizolistas conseguiam, no máximo, atravancar a passagem de pedestres na Cinelândia. Os lulistas, que penaram no frio de Curitiba, perturbaram apenas o sossego do pacato bairro de Santa Cândida. Os “patriotas” infernizam a vida de quem precisa viajar ou transportar sua carga e podem causar estragos à economia, ao convívio civilizado, à democracia.

Vai ser um desafio trazê-los de volta ao diálogo. É longo e penoso o luto de um messias.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Quem vai enfaixar o presidente?

José Horta Manzano

Nosso bizarro presidente será, com certeza, bizarro até o último dia. É grande a possibilidade de ele se recusar a passar a faixa ao sucessor. Como dizia o humorista Barão de Itararé, de onde menos se espera, daí é que não sai nada. Se a birra do capitão se confirmar, como é que fica?

Com aquele seu jeito espandongado, o general Mourão, o vice, já declarou que não entrega faixa a ninguém. Argumenta que essa incumbência não lhe assenta, visto que, segundo ele, faixa é coisa de presidente, não de vice. Mostra que se conformou com a ideia de ter sido um vice meramente decorativo.

Escanteado o vice, sobra a interrogação: quem vai enfaixar Lula?

Surgiu a ideia – dizem que é realmente do presidente eleito – de reunir um grupo de cidadãos para a cerimônia. Caberia a eles trazer a faixa numa bandeja e entregá-la ao empossando.

Imaginar que qualquer grupo de cidadãos represente o povo brasileiro é ideia distorcida e carregada de naftalina populista. Os parlamentares, gostemos ou não, são os representantes da população legitimados pelas urnas. Atrás de cada um deles, está o homem, a mulher, o índio, o preto, o LGBT, o ancião, o incapaz. E até o devoto e o golpista. Não faz sentido rejeitar os representantes que todos elegeram e substitui-los por um grupo selecionado pela equipe de transição.

A solução cogitada pelos que orbitam ao redor de Lula é engraçadinha mas, a meu ver, é simples tapa-buraco. Depois de quatro anos com um presidente que tentou por todas as maneiras destruir ritos e tradições, não acho que seja de bom augúrio já começar o novo governo com improvisações.

A República não pode ser modulada ao gosto do freguês como cardápio de restaurante fino. Seus ritos, baseados na Constituição ou na tradição, têm de ser respeitados. Chega de desrespeito às normas!

A linha de sucessão presidencial está prevista na Constituição. O primeiro na linha é o vice-presidente; em seguida vêm, na ordem: o presidente da Câmara, o presidente do Senado, o presidente do STF.

Por analogia, a mesma linha de sucessão deve ser aplicada na hora de passar o adereço. Pra não ficar esquisito, a autoridade que entregar a faixa não deve vir vestida com ela. A faixa será trazida sobre uma bandeja, e o empossando se vestirá sozinho ou eventualmente auxiliado por um ajudante de ordens.

Improvisação só caberia se todas as quatro autoridades da linha de sucessão se recusassem a entregar a faixa. Mas isso não deve ocorrer.

É importante mostrar que o Brasil está voltando a ser um país normal.

O público e o privado

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 26 novembro 2022

Monsieur Pierre Maudet é um político suíço. Talentoso, aos 33 anos já era prefeito de Genebra. Poucos anos depois, chegou ao posto máximo de seu cantão, o de presidente do Executivo colegiado. Muitos já vislumbravam para o jovem prodígio um posto de primeira gandeza no plano federal.

Em 2015, ele aceitou convite do príncipe herdeiro de Abu Dabi para passar três dias no emirado. Durante a visita, Maudet encontrou-se com dirigentes do país, inclusive com o emir. O episódio passou despercebido até que, três anos depois, o MP de Genebra abriu inquérito sobre o passeio. Queria saber se a viagem era privada ou de cunho político.

Monsieur Maudet jurou que tinha sido viagem de lazer com despesas pagas de seu próprio bolso. Mas nosso mundo digital não perdoa: tudo fica gravado e a verdade acaba vindo à tona. O inquérito prosseguiu e acabou descobrindo que o político estava mentindo: ele tinha viajado a convite do emir – e com todas as despesas pagas, inclusive o voo em primeira classe.

A carreira do promissor político estancou. Foi expulso do partido. O Tribunal Federal, última instância judiciária do país, acaba de confirmar sua condenação definitiva. Ele é culpado de ter aceitado favores indevidos, pouco importando a existência ou não de contrapartida aos mimos recebidos.

Outro dia, Lula da Silva, nosso presidente eleito, tomou a iniciativa de ir ao Egito para a Cúpula do Clima. Embarcou no jato particular de um empresário. O detalhe incômodo é que este último, enroscado na Lava a Jato, fez acordo de delação e devolveu 200 milhões ao erário.

A imprensa sentiu o cheiro de queimado. Indagado, o presidente eleito não se mostrou constrangido e informou com candura: “Não pedi o avião, foi ele quem me ofereceu. Não foi empréstimo, foi carona.”. Em outros tempos ou em outras terras, esse passo em falso teria potencial de ofuscar a totalidade do mandato, podendo até justificar o impedimento do recém-eleito.

Mas não estamos em outros tempos nem em outras terras. Em nosso leniente Brasil, em geral dá-se um jeito. Assim mesmo, há momentos em que fica difícil dar jeitinho. Os destituídos Collor e Dilma estão aí para provar. Assim como os condenados na Lava a Jato. E também os bolsonaristas enredados na justiça. Lula que tome cuidado.

O novo presidente vai governar num cenário diferente do de mandatos anteriores. Em vez de parlamentares bonachões, terá diante de si uma oposição do tipo “quatro pedras no bolso e faca entre os dentes” – uma espécie de PT ao quadrado, feroz, pronto a agarrar qualquer pretexto para tocar trombone e bater panela. Não terá a vida fácil.

Com razão ou não, a imagem de Lula no papel de chefe de quadrilha está cristalizada na mente de muitos eleitores. A justiça julgou, penas foram purgadas, mas o estigma ficou. Se todo homem público tem de escolher com atenção as pedras em que pisa, Lula tem de tomar cuidado redobrado, que há muita gente de olho em seu primeiro escorregão.

Na equipe de transição, já há um grupo de trabalho para o combate à corrupção. A preocupação com o tema é louvável. A ideia deveria ser levada adiante, quiçá com a criação de uma secretaria permanente. No entanto, por mais que uma secretaria cuide de apontar e coibir casos de corrupção, ela será sempre consituída de funcionários subordinados ao governo. No frigir dos ovos, temos funcionários do governo que tentam controlar o próprio governo. Como se sabe, certas verdades costumam ser edulcoradas para agradar ao chefe.

O ideal será que essa secretaria seja complementada por um Observatório da Corrupção, organismo independente, composto de conselheiros maduros e de ilibada reputação. Podem ser juristas, ex-juízes, ex-parlamentares, professores, cientistas, empresários, gente de bom senso. É vital que não sejam remunerados. Farão trabalho voluntário e serão apenas ressarcidos de despesas. Só um controle externo como esse tem o poder de chegar direto à Presidência, sem preocupação de agradar ou desagradar ao chefe.

O Observatório da Corrupção seria o órgão adequado para convencer o presidente a não mais mesclar o público com o privado, como na viagem ao Egito. Contra uma oposição feroz, todo cuidado é pouco.

A origem da receita

José Horta Manzano

Você sabia?

Quem vai ao médico, nos dias de hoje, não se dá conta de que a regulamentação da profissão ― em terras europeias e americanas ― é relativamente recente.

Da Idade Média até o século XIX, a arte de curar foi exercida por corporações disparates, tais como: homens de igreja, barbeiros, boticários, tira-dentes, curandeiros, charlatães, feiticeiras.

Prescription 2

A Revolução Francesa, entre outros feitos, tornou a sociedade consciente de que certas práticas ancestrais reclamavam por normatização. O sistema métrico, por exemplo, é fruto daquela época. Até então, havia um rosário de unidades de medida ― de peso, de capacidade, de tamanho. Pés, polegadas, quintais, braças, arrobas variavam de uma região a outra.

A Revolução, assim como normalizou as unidades de medida, apontou para a necessidade de sistematizar outros atos e procedimentos que cada um costumava, até então, executar a seu modo. A regulamentação de certos ofícios começou naquela época.

A valorização das profissões da área de saúde ― medicina, cirurgia, farmácia ― gerou, como corolário inevitável, o rebaixamento de curandeiros e feiticeiras. Barbeiros passaram a dedicar-se unicamente à pilosidade de seus clientes, deixando sangrias e extrações dentárias para profissionais habilitados.

Olho de Horus

Olho de Horus

Embora já fosse adotada esporadicamente desde o século XVII, ganhou força aquela marca de que uma receita tinha sido prescrita por um profissional. Tratava-se de um R barrado ― este aqui: .

Está em uso até nossos dias. É muito provável, distinto leitor, que o médico que cuida de sua saúde tenha guardado o que lhe ensinaram na escola e continue a marcar suas receitas com o símbolo distintivo da corporação. Preste atenção da próxima vez.

De onde vem essa, digamos assim, logomarca? Pois parece que a origem é incrivelmente longínqua. Contam que as raízes descem até o Egito antigo. O R barrado seria a transliteração, se assim podemos nos exprimir, do hieroglifo que simbolizava o olho esquerdo de Horus, um dos deuses da mitologia egípcia.

Olho de Horus

Olho de Horus

Por que o olho esquerdo? Ih, é uma história complicada, com briga entre deuses, assassinato, esquartejamento, muito sangue. Pra resumir, saiba-se que, numa luta entre Seth e Horus, o olho esquerdo deste último foi arrancado e picado em 64 pedaços. Toth, o deus da ciência e da medicina, foi quem conseguiu dar jeito de recompor o despedaçado olho de Horus.

Seja como for, é surpreendente que milhares de médicos ao redor do planeta encabecem suas prescrições, talvez sem o saber, com símbolo forjado milênios antes de nossa era.

Publicado originalmente em 22 agosto 2014.

Bicicleta

Danas, jornal sérvio

José Horta Manzano

Os torcedores sérvios amanheceram zonzos, com cara de quem teve pesadelos à noite. A imprensa local não perdoou. O artigo ilustrado com a foto de Pixie (o técnico da seleção sérvia) mostra o estado de espírito que reinou no pós-jogo:

“Uma imagem, mil palavras: a reação de Pixie após a bicicleta de Richarlison diz mais do que tudo”.

Prognóstico

Corriere della Sera, 24 nov° 2022

José Horta Manzano

“O líder da direita [Bolsonaro] contabilizou o apoio de Neymar e fez duas promessas: “Eu vou ganhar as eleições e ele, a Copa”. A primeira aposta frustrou-se. Quanto à segunda, hoje começa o baile.

E se, no final, a seleção que mais títulos já recebeu na história devesse chegar de novo ao topo, provavelmente Lula vai esquecer a brincadeirinha de Neymar e vai abraçá-lo como um filho predileto. Porque essa é a democracia, e sobretudo esse é o futebol (não somente) no Brasil.”

A passos largos

Pastor Sargento Isidório

José Horta Manzano

Pode-se dizer que o Pastor Sargento Isidório, deputado federal, é a versão baiana do catarinense Cabo Daciolo – lembra dele? Ambos são exemplos vivos dos valores que sustentam o bolsonarismo: têm um pé na hierarquia militar e outro no movimento neopentecostal. São ambos pastores evangélicos.

Até aí, nada de mais. Este é um país democrático, em que cada cidadão é livre de escolher o caminho que prefere seguir, desde que não confronte a lei.

Mais insistente que seu colega catarinense, o baiano Isidório tem se mostrado ativo em apresentar projetos de lei destinados a dar peso legal a suas convicções religiosas. Sua mais recente façanha leva a data de ontem, 23 de novembro. Conseguiu a aprovação de uma lei que proíbe alterações na Bíblia.

O artigo único do texto veda “qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento em seus capítulos ou versículos, sendo garantida a pregação do seu conteúdo em todo território nacional.”

Parlamentares manifestaram preocupação com as imprecisões da nova lei. Qual é o texto-base que não pode mais ser modificado? Nova tradução do aramaico será proibida? Quem julgará se esta versão é melhor que aquela (ou vice-versa)?

Tirando o aspecto folclórico do episódio, que mais parece piada de mau gosto, minha preocupação é outra. O Brasil, como sabemos, é um país laico, o que significa que nenhuma religião será oficialmente apoiada nem entravada. Todo cidadão é livre de exercer sua fé (ou de não exercer nenhuma), desde que se mantenha dentro dos limites legais.

O Art. 19 da Constituição veda expressamente à União, às unidades federativas e aos municípios “estabelecer relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas”. O texto que acaba de ser aprovado fere claramente esse dispositivo, visto que legisla em matéria fora de sua competência. Fixar parâmetros de qualidade para a Bíblia equivale a legislar sobre a altura da batina de padres católicos ou sobre duração de cultos evangélicos. Um descabimento.

É surpreendente que, por um lado, a lei tenha sido aprovada e, por outro, que a oposição não tenha alçado veementemente a voz. Resta ao presidente de algum partido mais esclarecido (espero que haja alguém) apresentar ao Supremo uma ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade. Essa lei não resistirá ao escrutínio de nossa Corte Constitucional.

Se ninguém fizer nada e a lei entrar em vigor, terá sido dado mais um grande passo na consolidação de nossa teocracia tropical.

Tampar x tapar

José Horta Manzano

Já devo ter falado deste assunto mas não custa repetir. Na linguagem descontraída de todos os dias, uns tampam os ouvidos, outros tampam a panela, há ainda quem tampe a boca, como na chamada do jornal.

Na língua culta, que os jornais deveriam respeitar, precisa tomar cuidado. Tampa-se o que tem tampa. Tapa-se o que não tem.

Portanto:

Tampar a panela
Tampar a caixa de bombons
Tampar a lata de lixo
Tampar o vidro de geleia

mas

Tapar os ouvidos
Tapar um buraco
Tapar o Sol com a peneira
Tapar a boca.

Foi o que fez o time alemão na hora da foto do jogo: todos taparam a boca.

Alô alô, marciano

José Horta Manzano

France-Info é canal de informação contínua pertencente ao conglomerado de emissoras públicas da França. Pode ser captada pela tevê, pelo rádio e pelo site online.

No site do canal, pode-se ver uma notícia desconcertante, vinda de Porto Alegre:


“Apoiadores de Jair Bolsonaro pedem aos extraterrestres que ‘salvem’ o país”.


Acompanha um vídeo de alguns segundos mostrando uma roda de gente, todos devidamente paramentados de verde-amarelo, cada um com seu celular em cima do cocuruto.

Cada integrante do estranho rodeio mantém seu telefone virado pra cima em modo farolete. Todos cantam uma melopeia que não consigo identificar enquanto abanam a mão sobre a tela do telefone na intenção de mandar mensagens ao espaço.

É um arremedo dos sinais de fumaça que índios americanos emitiam em filmes de caubói, lembra? Só que os sinais dos índios eram ritmados e coerentes, e transmitiam um recado, enquanto os de Porto Alegre são desconexos.

France-Info descreve a cena como surreal e explica que ôvnis teriam sido avistados no céu da capital gaúcha estes últimos tempos, o que explica o assanhamento dos participantes do bizarro rito encantatório.

Rezas, simpatias e superstições geralmente se fazem em ambiente apropriado, seja em casa, na igreja, no terreiro ou no templo – longe de olhares infiéis. É assaz raro ver demonstração pública de tamanha credulidade. Eu não duvidaria de que, entre os participantes, haja até algum que acredite na mágica. É de uma ingenuidade comovente.

Deu zebra

Jogo do bicho

José Horta Manzano

Nesta terça-feira, surgiu a primeira zebra da Copa 22: a Argentina, forte candidata ao título, foi derrotada pela Arábia Saudita, uma das equipes mais fracas do campeonato.

Jornais argentinos online estão arrasados. São páginas e páginas de desconsolo, com entrevistas, análises, comentários, lamúrias. Dá pra entender.

Mas é bom não tripudiar em cima dos hermanos. De criança, a gente já tinha a sabedoria de dizer que quem cospe para cima recebe o cuspe de volta na cabeça. Vai que o Brasil pega a República dos Camarões ou a Sérvia em dia inspirado – como é que fica? Pode dar zebra pra nós também.

Falando em “dar zebra”, sabe de onde vem essa expressão? Pois vem do jogo do bicho. O sistema é baseado num quadro de 25 animais, que vão da avestruz à vaca. A zebra não aparece entre esses bichos.

Quando Dona Maricotinha procura a vizinha pra saber o resultado do sorteio de hoje, pode ouvir em resposta: “Deu gato na cabeça”, “Deu águia”, “Deu o burro”. Mas jamais ouvirá “Deu zebra”, porque esse simpático animal listrado não faz parte do jogo.

Portanto, utiliza-se a expressão “dar zebra” quando algo não dá certo, quando o resultado é inesperado, imprevisto, difícil de acreditar, completamente fora de eixo.

Perdeu, mané

Eduardo Affonso (*)

Preocupado com a saúde mental do país, O GLOBO levou o Brasil a quatro renomados psicanalistas. Os diagnósticos estão lá, na página 29 da edição de domingo passado (13 de novembro): psicose, luto, autossabotagem, idealização, desilusão.

O Brasil ouviu, elaborou, racionalizou, introjetou, fechou uma gestalt, teve um insight e resolveu ouvir uma quinta opinião. Procurou Pai Dudu da Gamboa, que incorpora Freud, Jung, Reich e Lacan em seu terreiro – e volta e meia faz previsões imprevisíveis aqui, nesta coluna.

Acomodado no divã depois de um rápido banho de descarrego (não por falta do que descarregar, mas premido pelo tempo lógico), o Brasil desandou a falar de seu maior complexo: a irrefreável vocação para matar o pai, Portugal (começando pela língua) e se amasiar com a mãe África (uma relação ambígua de orgulho e preconceito). E, claro, do trauma recente:

– Tenho medo do desamparo, de passar o resto da vida como um sem-teto.

– Sem teto de gastos… – interpreta Freud.

– Sim. Foram quatro anos ao relento, e tudo indica que os próximos quatro também serão a céu aberto.

Reich sugere que o Brasil se solte mais, deixe de lado essa obsessão com censura e controle da mídia, invista no desbloqueio das armaduras psíquicas e das estradas.

– É que eu estou numa fase de transição. Não de gênero, mas de um mito para outro.

Jung lembra que foi para o Brasil que ele desenvolveu, postumamente, o conceito de “inconsequente coletivo”. Algo que se manifesta nas camadas mais epidérmicas da psique – quando milhões de pessoas se enrolam na bandeira para pedir que uma ditadura venha salvar a democracia. Ou outras tantas concordam em dar um cheque em branco a um notório perdulário para que ele as proteja da bancarrota.

– Impulsos sadomasoquistas – pontifica Freud. Vamos fazer associações livres…

– Ok. Faz o L, alea jacta est, jactância, Lava-Jato, Vaza-Jato, compra de jatos suecos, jato da FAB com cocaína, jet ski, viagem em jatinho de empresário condenado…

Freud faz anotações. Lacan faz um trocadilho. Darwin baixa, do nada, sente o clima e avisa que volta quando a situação tiver evoluído.

– Tenho tido pesadelos, doutor: eu sou um navio, e vem um iceberg desgovernado na minha direção. Ou uma Ponte Rio-Niterói, não sei bem. Os filhos do capitão brincam com o leme, achando que aquilo é um manete de videogame.

– Esse pesadelo vai acabar, já já…

– Sei que vai, mas já comecei a ter outro: agora eu sou um avião, e a mulher do piloto quer um lugar na cabine de comando. Sem contar que vivo me debatendo em falsos dilemas. Dividir o bolo ou esperar o bolo crescer? Economia ou saúde? Responsabilidade fiscal ou social?

– Você precisa fortalecer seu Ego liberal, equilibrando as demandas do Id de esquerda e as imposições do Superego de direita.

– É que metade de mim está em negação, se recusando a aceitar a mudança. A outra metade quer mudar, mas para voltar a ser o que já foi. Doutores, será que eu perdi o rumo, o bonde, o juízo?

Reich e Jung se entreolham, desolados. Lacan murmura algo incompreensível. Freud explica:

– Perdeu, mané.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Die Mannschaft

Avião da Mannschaft (a Seleção Alemã)

José Horta Manzano

A Copa 2022 tem mostrado as belezas do país anfitrião, o Catar: rios de dinheiro, prédios futuristas, residências suntuosas, carros de alto luxo, metrô novo em folha, ruas rigorosamente limpas.

Mas toda moeda tem seu lado B. Por trás da fachada de país acolhedor, vão chegando notícias do elevado nível de intolerância que permeia a sociedade catari.

Todos os que exercem funções subalternas são imigrantes permanentes ou temporários. Apesar das negativas oficiais, sabe-se que são maltratados e explorados.

Pessoas do espectro LGBT não são toleradas: são proscritas. O regime controla até mensagens passadas por internet a fim de perseguir, prender e espancar todos os que se enquadram nesse perfil. Para viver livremente sua sexualidade, a pessoa gay, lésbica, bi, trans & alia só tem um remédio: deixar o país e exilar-se no estrangeiro.

A Alemanha decidiu dar uma alfinetada no regime monolítico e intolerante. O avião que levou a Mannschaft (a Seleção Alemã) ao Catar foi pintado com a frase “Diversity Wins”A diversidade vence.

Não há esperança de que esse protesto isolado consiga desencruar uma sociedade que enricou mas não aprendeu a se abrir para o mundo. Mas cada gesto, por singelo que seja, vai levando uma pedra à construção da ponte que um dia permitirá aos cataris se liberarem das regras medievais que os oprimem.

Cultura inútil – 1

José Horta Manzano

Falando de novela de tevê, você às vezes não acha que 180 capítulos é muita coisa? Parece interminável, não é? Dá até impressão de que estão enchendo linguiça.

Pois console-se. Na França, acaba de terminar uma novela de televisão chamada Plus belle la vie (Mais bonita a vida). A trama se passava num bairro imaginário da cidade de Marselha e narrava o quotidiano e as idas e vindas de seus habitantes, gente comum.

Agora, segure-se: a particularidade é que a novela durou 4.665 capítulos (!) e ficou no ar durante 18 anos – de 2004 até 2022. Quem dá mais?

Use e abuse

A periferia de SP paramentada para a Copa 2022

José Horta Manzano

A fim de esconjurar o sequestro das cores nacionais levado a cabo por indivíduos que acreditavam ser mais brasileiros que os demais, chegou a hora de nos reapropriarmos de nosso verde-amarelo.

Xô para esses sebastianistas abatidos com a derrota do ídolo! Que continuem abraçando quartel e cantando o hino para pneu, se preferirem. Quanto a nós, vamos cantar o hino, mas é com a Seleção.

Vamos em frente. Para quem gosta, a Copa começa amanhã (e pra quem não gosta, também). Tudo com muito verde-amarelo. Verde-amarelo alegre e legítimo, não essas cores fajutas que já vêm com gosto de intolerância, desilusão e lágrimas.

Falando nisso, hoje é Dia da Bandeira. Viva nosso lábaro estrelado!

A longa espera até a posse

José Horta Manzano

Se faço bem as contas, é a segunda vez, em quatro anos, que concordo com alguma opinião de Jair Bolsonaro.

A primeira foi quando ele, logo em começo de mandato, extinguiu a regra de mudar a hora duas vezes por ano alternando hora de inverno e hora de verão. Estudos já demonstraram que o ganho em economia de energia é desprezível, e que os transtornos são mais importantes. Manter esse sistema é uma extravagância desnecessária.


Bolsonaro se queixa de longa espera para a posse de Lula


Faz sentido a reclamação do capitão quanto ao longuíssimo intervalo entre a eleição e a tomada de posse. Neste momento ele está saboreando o famoso “café frio” (ou requentado, que dá no mesmo). Oficialmente, é ainda presidente, mas, na realidade, já não manda. Quase todos os figurões que lhe faziam a corte se bandearam para bajular o novo chefe. Para um sujeito que já tem tendência à depressão, deve ser insuportável. Nessa hora, todas as doenças aparecem.

A França, que é vigorosa democracia, não impõe esse suplício a seus presidentes. Este ano, por exemplo, Macron se candidatou à reeleição e venceu. O voto se deu em 24 de abril. Menos de três semanas depois, em 14 de maio, ele já tomou posse da Presidência. Se a França consegue fazer uma transição em três semanas, por que o Brasil não conseguiria?

Se o Brasil seguisse o sistema francês, Lula estaria sendo empossado hoje, sábado.

Nossa regra de deixar dois meses de espera entre a eleição e a posse vem do tempo em que precisava contar um mês só para a apuração. Hoje não é mais assim; o resultado vem no mesmo dia. Portanto, dá pra aparar, cortar um mês e ficar com um só.

As manifestações de bom senso por parte do capitão são tão raras, que vale a pena tomar nota.

Se forem mudar a regra, que aproveitem o embalo e tirem essa cerimônia de transmissão de faixa do dia 1° de janeiro. É um dia incômodo. Convidados estrangeiros têm de tomar um avião de véspera, largar a família e passar o réveillon em voo. Francamente, tem lugares mais agradáveis pra festejar a entrada do ano.

A Copa do Catar

Em Copas passadas, um jogo Suíça x Brasil trazia muita gente à Fan Zone de Genebra

José Horta Manzano

A decisão de confiar ao Catar a realização da Copa do Mundo 2022 foi tomada exatamente 12 anos atrás. Naquela época, muita gente desconfiou que havia algo estranho nessa atribuição. O país anfitrião era pequeno demais, sem tradição futebolística, com estádios fora das normas, desértico na paisagem, infernal no clima. Não fazia sentido.

Ficou a impressão de que havia corrido muito dinheiro para compra de votos numa assembleia que descartou os EUA e escolheu o pequeno país. Apesar dos murmúrios, porém, ninguém se revoltou a ponto de sair em passeata pelas avenidas das grandes capitais mundiais. O tempo foi correndo e parecia que todos tinham se acostumado à ideia.

Só que mais de dez anos se passaram, o mundo mudou, certos fatos não são mais visto pelo mesmo ângulo. Este ano, à medida que a data do início da Copa se aproximava, os protestos começaram a surgir e a se encorpar.

Para acolher a Copa, o Catar construiu 6 estádios novos e renovou 2 antigos, stuados a um pulinho de distância uns dos outros. Não existem operários cataris. A mão de obra é exclusivamente constituída de estrangeiros oriundos de países pobres: indianos, paquistaneses, filipinos.

As condições de trabalho se aproximam da escravidão, com jornadas de 12 horas sob sol de 50°, alojamento em dormitórios sem conforto, passaporte retido, proibição de mudar de emprego, condições de segurança lastimáveis. Observadores internacionais calculam que, durante a construção dos estádios, os acidentes de trabalho tenham causado centenas, talvez milhares de mortes.

Alguns dos estádios novos são inteiramente fechados e contam com ar condicionado, ideia considerada aberrante pela consciência ecológica que cresceu nesta última década nos países mais avançados.

Em decorrência do verão escaldante, a Copa teve de ser adiada. Em vez de programar os jogos para o verão do Hemisfério Norte (junho/julho), como tinha sido feito desde as primeiras Copas, a Fifa atrasou o campeonato para novembro e dezembro. Isso acabou perturbando os campeonatos nacionais, que deveriam estar a todo vapor a estas alturas. Assim mesmo, os torcedores enfrentarão tardes de 30° nos estádios – daí a decisão de instalar ar condicionado.

De uns seis meses para cá, a opinião pública mundial finalmente acordou. É verdade que covid-19, guerra na Ucrânia e outros problemas graves tinham ocupado a cena e a Copa foi relegada a segundo plano. De uns seis meses para cá, a Copa entrou na pauta.

  • Por um lado, estão as suspeitas de cooptação e corrupção para a atribuição da Copa ao Catar;
  • Por outro, está a aberração de instalar ar condicionado no deserto, fato que, além de ser um desperdício, contribui para aumentar as emissões de gás de efeito estufa;
  • Pra coroar, está o horror de um regime escravagista e medieval, em que os humildes são maltratados e relações homossexuais são punidas com 7 anos de cadeia.

Por essas razões, manifestações de repulsa têm pipocado por toda a Europa. Há quem garanta que não assistirá a nenhum jogo dessa Copa, afirmação difícil de ser fiscalizada. Há figurões, futebolistas e não-futebolistas, se manifestando e denunciando os podres da Copa 2022.

O boicote mais visível vai ficar por conta da anulação de numerosas “fan zones”, aqueles imensos telões montados em praça pública para mostrar os jogos a milhares de fãs acomodados em roda, como num cinema ao ar livre. Paris, Bruxelas, Berlim já anunciaram que não haverá fan zones este ano. Grandes cidades francesas e suíças apoiam o boicote no mesmo tom: nada de telões.

Acho apreciável que o distinto público manifeste sua reprovação, só que ela chega demasiado tarde. A hora de reclamar era em 2010, assim que o Catar foi escolhido, antes da construção dos estádios e da morte dos operários. Perdeu-se o momentum.

Dinheiro grosso

José Horta Manzano


Todas as polícias do Brasil tentam descobrir quem está financiando os acampamentos de bolsonaristas inconformados.


Imagine só: levantar de manhã num feriado, sair de casa, fazer corrente humana em roda de um quartel, beijar o muro, ajoelhar, rezar, implorar os céus – arre! Tudo isso dá fome. Até no universo paralelo, barriga ronca.

Sem problema! A dois passos dali, estão as barraquinhas de comes e bebes. Tudo é grátis, com a condição de o freguês estar vestido a rigor, isto é, de verde-amarelo. Quem não tiver camiseta da seleção, basta se enrolar na nossa bandeira.

A única cor banida é o vermelho: nem um detalhe da indumentária deverá ostentar essa cor maldita. Para evitar mal-entendidos, mulheres ruivas são aconselhadas a prender o cabelo e cobrir a cabeça com um boné. Se o boné for do tipo “Trump for president”, melhor ainda. Pra prevenir processos por discriminação, pessoas de tez morena serão toleradas.

Dia sim, outro também, pipocam notícias da descoberta de um site, quiçá na dark web, que estaria sendo usado para difundir informações sobre os pontos de ajuntamento de protestatários. Descobre-se um site aqui, um canal youtube ali, um grupo de zap-zap acolá, mas nunca se chega ao(s) verdadeiro(s) mandante(s). Só se encontram bagrinhos.

Repare nos cartazes expostos na ilustração. “Café do Povo Grátis” e “Lanche Grátis” indicam boca-livre, tudo de graça. Repare nas barraquinhas. Não são surradas nem puídas como as barracas de feira-livre. São uniformizadas e novinhas.

Para sustentar uma quermesse desse porte, é preciso ter: atendentes em cada barraca; cozinheiros e copeiros que preparem os lanches; compradores que cuidem do abastecimento e da compra dos petrechos necessários; faxineiros que se encarreguem de limpar fogões e utensílios; carregadores que tragam a comida até cada barraquinha.

Como se sabe, todo trabalhos merece salário. Todo esse pessoal não passa os dias trabalhando pela glória de sabe-se lá quem. Têm de ser remunerados. É aí que se encontra o gargalo. Para o distinto leitor e para mim, que não somos especializados em espionagem, seria difícil descobrir quem está por trás desse apoio. Para a polícia, são outros quinhentos.

Os corpos de polícia são formados (e estão aparelhados) para seguir pistas. Partindo dos funcionários que trabalham nas barraquinhas, não há de ser difícil chegar aos fornecedores, e dai aos verdadeiros financiadores. Que são os autores intelectuais do delito de apoio às manifestações golpistas.

Essas manifestações parecem organizadas demais para serem fato espontâneo. Há dinheiro grosso por detrás. Descobrir o dono, não parece difícil.

Equipe efêmera

José Horta Manzano

Na noite de 30 de outubro, quando foi declarado vencedor, Lula sacou do bolso de trás um discurso de meia hora, com começo, meio e fim. Disse tudo o que tinha de ser dito, agradeceu, louvou, prometeu e comoveu. Um pronunciamento daqueles não se improvisa. Vê-se que foi fruto de profunda reflexão, de erros e acertos, de trabalho conjunto, de polimento. A preparação há de ter consumido dias, talvez semanas.

Vencida a corrida presidencial, veio o momento de anunciar a composição da equipe de transição, que funcionará até o fim do ano, num total de 61 dias.

Considerando que o discurso de vitória foi montado com antecedência e com tanto zelo, seria de esperar que o esqueleto da equipe de transição também já estivesse planejado.

A realidade mostra que não era bem assim. Já se passaram 17 dias, e a montagem da equipe ainda não terminou. A cada dia, aparecem nomes novos. Sem estar totalmente formada, a equipe não tem como funcionar. Falta articulação. É como um veículo que, para rodar, precisa estar completo – se faltar uma roda, não anda.

Será que a intenção dos escolhidos é realmente delinear a ossatura da futura governança? Está mais parecendo um convescote entre companheiros, uma vitrine de vaidades do tipo: “Tchau, mãe! Ói eu aqui!”.

Vamos ver se conseguem terminar a montagem daqui até o Natal. Se conseguirem, ainda sobra uma semana pra trabalhar, entre Natal e o réveillon.

Espaguetes flutuantes

Gregório Duvivier (*)


Tenho muito orgulho dos espaguetes flutuantes que içamos como um toldo sobre algumas vogais


Tenho, ainda hoje, uma tristeza irremediável por termos perdido o trema. Não durmo tranquilo desde que linguistas sequestraram cinquenta tremas sem pensar nas consequências.

A linguiça, por preguiça, passou a soar como que enguiçada. Os pinguins hoje parecem sequelados sem seus pinguinhos. Perceba que coincide: desde 2009 temos delinquido com mais frequência. Perdoem se estou monotremático.

Torço pra que nunca tirem de nós o til – patrimônio imaterial da nossa língua. Sei que os hispânicos põem o til sobre o N, mas podem passar uma vida inteira em terra lusa sem dizer um simples não. Conseguem, no máximo, um “náo”.

Os franceses tentam e sai “non”, os americanos emitem um “nawm”. Me enche de orgulho saber que o mais poliglota dos alemães ou o mais empedernido dos britânicos jamais alcançará o fonema que qualquer criança brasileira de dois anos de idade pronuncia, de boca cheia, 30 vezes por dia em sua palavra predileta: não.

O til, não sei se já perceberam, já foi um N que passou pra outro plano, e hoje está no céu. É sério. O português matou muitos N intravocálicos do espanhol, mas o fantasma continua ali. Antes de “hermano” virar “irmão”, virou “irmano”, com o N grafado acima das outras letras, flutuando entre o A e o O. Com a pressa na grafia, o N foi virando uma minhoca, um topete, uma onda, uma assombração.

Podemos ter esquecido mas ele está lá, levitando, como uma potência na matemática, elevando vogais à potência N. Daí a dificuldade dos gringos em compreendê-lo. Nosso til evoca uma letra que ao mesmo tempo está e não está. É quântico, como o gato (ou o cão) de Schrödinger (esse trema não caiu).

Me orgulho muito desses espaguetes flutuantes que içamos como um toldo sobre algumas vogais, mudando drasticamente o significado das palavras. O estrangeiro que pedir um “páo” com queijo pode ter uma péssima surpresa – da mesma forma que não recomendo que ele peça pra pôr seu “páo” na chapa.

As palavras com til têm a magia das coisas imensas, irresistíveis ou temerárias. Avião, feijão, paixão, revolução, dragão, coração. Basta tirar o “ão” e elas ficam banais. Perdem seus poderes. Ninguém teria medo de andar de “ávio”. Não dá água na boca um caldinho de “feijo”. Não são demais os perigos desta vida pra quem tem “paixa”. Ninguém sai de casa pra fazer uma “revoluça”. Um “drago” não cospe fogo algum. Um “vulco” não cospe lava. Imagina que tristeza ter, no fundo do peito, um “coracinho”.

(*) Gregório Duvivier é ator e escritor.