Fronteira entre os pés e a cabeça

Hôtel Franco-Suisse
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José Horta Manzano

Você sabia?

Muitas das fronteiras entre o Brasil e os países vizinhos cruzam zonas escassamente povoadas, notadamente na região amazônica. Uma linha demarcatória tanto pode seguir cursos d’água – caso em que será dita «fronteira natural», como pode ser representada por divisor de águas ou por traçado artificial riscado num mapa. Neste caso, teremos uma «fronteira seca».

Fronteiras secas costumam ser assinaladas por balizas plantadas no solo. Antigamente, eram de pedra. Hoje em dia, é mais comum o concreto. A elas dá-se o nome de marcos divisórios ou geodésicos.

No Brasil, certos trechos de fronteira contam com balizas bastante espaçadas, uma aqui, outra quilômetros adiante. No fundo, tanto faz, que pouca gente passa de um lado para o outro. Na Europa, dada a densidade da população, fronteiras são demarcadas com bastante rigor.

Marco divisório suíço

O Tratado de Dappes, acertado em 1862 entre a França e a Suíça, delimita com precisão um trecho da fronteira entre os dois países na região dos Montes Jura. O acordo, concluído em dezembro daquele ano, ficou programado para entrar em vigor em fevereiro do ano seguinte.

Um certo Monsieur Ponthus, proprietário de um terreno no povoado de La Cure, ficou sabendo que seu lote seria atravessado pela nova fronteira. Aproveitou-se do intervalo e, pelas caladas e às pressas, erigiu imóvel provisório bem em cima da linha. A intenção era de contrabandear chocolate, tabaco e bebidas alcoólicas.

Assim que o tratado entrou em vigor, a construção era fato consumado – e com porta dos dois lados da fronteira, faz favor. E assim foi ficando. Com o tempo, os sucessores do esperto cavalheiro ampliaram o imóvel e o transformaram em hotel-restaurante. O estabelecimento funciona até hoje.

Alguns quartos do hotel oferecem ao hóspede a curiosa possibilidade de dormir com a cabeça na Suíça e os pés na França. Ou vice-versa. Na escada que leva ao segundo andar, o 7° degrau marca a fronteira entre os dois países. Alguns asseguram que a linha verdadeira passa pelo 13° degrau. A controvérsia persiste.

O hotel e a fronteira

Durante a Segunda Guerra, com a França ocupada pelo exército alemão enquanto a Suíça permanecia neutra, a singularidade do local deu margem a uma movimentação sui generis. Além do contrabando habitual, inúmeros judeus perseguidos pelos nazistas conseguiram escapar entrando pelo lado francês e saindo do outro lado, já na Suíça, onde os alemães não podiam intervir. Dizem que outros fugitivos seguiram o mesmo caminho – paraquedistas ingleses entre eles. É verdade que não durou muito tempo. Militares alemães logo se deram conta do vazamento e condenaram portas e janelas do lado francês. Depois de tudo emparedado, ninguém mais passou.

Impávido, o Hôtel Franco-Suisse continua lá até hoje. Nestes tempos modernos, sem os controles de antigamente, a alfândega é relíquia de outras eras.

O imóvel representa um quebra-cabeça administrativo tanto para a França quanto para a Suíça. A situação é tão intrincada que Paris e Berna preferem empurrar com a barriga e deixar como está. Não vale a pena travar batalha judicial por tão pouco.

Publicado originalmente em 6 jul° 2015.

Perigo por 100 anos

Bomba da Segunda Guerra não explodida encontrada em canteiro de obras

José Horta Manzano

Na quarta-feira 11 de maio, Herr Olaf Scholz, o chanceler alemão (sucessor de Angela Merkel) fez uma declaração um tanto desanimadora.

Começou lembrando que “Todos os que vivem na Alemanha sabem que as bombas que caíram durante a Segunda Guerra Mundial continuam a ser encontradas até hoje e que os alertas continuam”.

Na sequência, foi ao ponto principal e fez uma advertência: “Portanto, é bom a Ucrânia ir se preparando desde já para enfrentar durante 100 anos as consequências desta guerra”.

E completou: “Sabe-se que guerras dessa magnitude deixam consequências de longo prazo. Todas as bombas que estão sendo lançadas agora ficarão muito tempo no solo”.

Um bocado deprimente, a observação do chanceler é desalentadora mas pertinente. Em todos os países europeus que sofreram bombardeios na última guerra mundial, volta e meia se encontra uma bomba enterrada – às vezes profundamente. São artefatos que caíram de um avião, não explodiram, ficaram enterrados, mas, ao menor descuido, podem explodir.

França, Inglaterra, Bélgica, Itália, Holanda – além da própria Alemanha – são países que sofrem até hoje consequências de bombardeios intensos. A guerra terminou faz 77 anos, mas o risco continua elevado.

O grande perigo surge quando se faz uma escavação urbana – para erguer edifício, construir metrô, enterrar cabos elétricos, instalar tubulações. Se uma grande bomba é descoberta, equipes de desminagem são chamadas. As autoridades mandam evacuar os quarteirões adjacentes e os profissionais cuidam de desarmar o artefato.

Calcula-se que o subsolo de Berlim contenha cerca de 3000 artefatos não explodidos. Os berlinenses caminham sobre um barril de pólvora. Infelizmente, acidentes ocorrem. São relativamente raros, mas o risco está sempre presente.

Numa Alemanha cujo território ainda está recheado de bombas que não explodiram e permanecem enterradas, aconteceu um drama recentemente. Foi em dezembro passado, num canteiro de obras perto da estação ferroviária de Munique. As escavadeiras roçaram numa bomba de 250kg, que explodiu e deixou 4 feridos. Até o tráfego ferroviário teve de ser interrompido.

Muitas gerações futuras de ucranianos continuarão correndo o risco de viver sobre um solo minado. E não há nada que o cidadão comum possa fazer. O que está feito, está feito – as bombas e os mísseis não explodidos estão lá e lá vão continuar.

Daqui pr’a frente, a quantidade só pode aumentar. O futuro depende dos neurônios desequilibrados de uma pessoa só: Vladímir Putin.

Nunca ninguém imaginou que um homem sozinho pudesse tomar a humanidade inteira como refém.

Observação
Quando fala em “100 anos”, até que o chanceler alemão está sendo otimista. Se hoje, quase 80 anos depois do último bombardeio, Berlim ainda esconde 3 mil bombas no subsolo, a conta não fecha. Os netos dos bisnetos das crianças ucranianas de hoje ainda estarão pisando em bombas.

Trilha com sabor de chocolate

José Horta Manzano

Você sabia?

Os suíços sentem muito orgulho por seu país não ter sido invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. Afinal, excluindo um minúsculo trecho que a separa do Principado do Liechtenstein, a Suíça estava completamente cercada por nações em guerra. Tinha (ainda tem) fronteira com a Alemanha, a Itália, a França (ocupada pela Alemanha) e a Áustria (anexada à Alemanha). No país helvético, muita gente atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Toblerone de verdade

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se receava que viesse nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, seus ouros, suas obras de arte e suas joias. Mais ainda: um lugar superconveniente para eventuais encontros secretos e confabulações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje faz parte da História. Como diz o outro, «Depois que aconteceu, qualquer um é profeta; difícil mesmo é adivinhar o futuro». Naqueles anos 1930, um bafo de guerra soprava no continente, embora ninguém soubesse de que lado nem com que força viria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones, hoje utilizada para caminhadas a pé

A inteligência militar planejou um complexo sistema de defesa. Naqueles tempos, a referência mais próxima era a Primeira Guerra (1914-1918), durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de pacíficas casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era – e ainda é – uma linha de 10km de blocos de concreto que impossibilitam a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 blocos monstruosos de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose: janela com cortina falsa

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. A guerra acabou faz muito tempo. A Suíça não foi invadida. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Quem é que vai arrastar aqueles imensos blocos? E o que fazer com eles depois? Assim, foram deixados onde estavam e, aos poucos, acabaram se tornando atração turística. Uma trilha própria para caminhadas a pé serpenteia por quilômetros, dentro da floresta, ao longo da barreira de concreto. É conhecida hoje como o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada.

Publicado originalmente em 28 nov° 2013.

O guia

José Horta Manzano

Neste 8 de maio, a Europa celebra o 75° aniversário da rendição da Alemanha, que marcou o fim da Segunda Guerra em terras europeias. Para ver o término definitivo do conflito, seria preciso esperar a capitulação(*) do Japão, que só ocorreria quatro meses mais tarde.

Estes dias, visto que a epidemia de covid-19 arrefece, rádios e tevês voltam a transmitir programação habitual. Entre outras emissões, mostram filmes, relatos e debates sobre as semanas que antecederam o fim da guerra.

Ainda que hoje seja difícil acreditar, o regime nazista fanatizou toda a população da Alemanha. O mais fanático de todos era o Führer (=Guia) Adolf Hitler. Convencido de ser Deus na Terra, estava certo de que, sem ele, o povo alemão não sobreviveria. Para manter-se no comando supremo, estava disposto a sacrificar o povo – como de fato fez. A destruição do país só foi suspensa quando não havia praticamente mais nada a destruir.

Apesar de sentir um calafrio, não pude me impedir de comparar a situação da Alemanha de 1945 com a do Brasil de 2020 – resguardadas as devidas proporções, naturalmente. São momentos em que o povo se encontra sob o jugo de um tirano de poucas letras, fanático, autoritário e surdo a todo chamamento da razão. Ambos os ‘guias’, tanto o alemão quanto o brasileiro, sacrificariam o próprio povo em defesa de seus interesses pessoais.

Para sorte nossa, a comparação pára por aqui. A Alemanha, descuidada, havia conferido todos os poderes a seu guia; quando se deu conta de que caminhavam para o desastre, era tarde demais. O Brasil, para nosso alívio, tem instituições que condividem o poder com o ‘guia’; em outras palavras : temos rédeas pra domar os ardores do potro chucro.

(*) Costuma-se usar as palavras capitulação e rendição como sinônimas. No duro, não são sinônimas perfeitas.

Capitulação é rendição condicional. O exército que perdeu entrega as armas amparado por um acerto feito previamente com o vencedor. Esses acordos costumam ter cláusulas – capítulos –, daí o verbo capitular. Foi o que aconteceu entre os EUA e o Japão em 1945.

Rendição incondicional é a expressão que se usa quando não há acordo. O perdedor simplesmente entrega as armas porque já não tem força suficiente para impor condições. Foi o que aconteceu em 1945 entre a Alemanha e as potências vencedoras.

Trilha dos toblerones

José Horta Manzano

Você sabia?

Os suíços sentem muito orgulho por seu país não ter sido invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça ― cercada por Alemanha, Itália, Áustria (anexada pela Alemanha) e França (ocupada por tropas de Berlim) ― não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. A maioria do povo atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Toblerone de verdade

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se imaginava poder vir nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, suas obras de arte, seus objetos de valor. Mais ainda: um lugar onde se podiam organizar eventuais encontros secretos e manter conversações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje faz parte da História. Como diz o outro, «depois do fato consumado, é fácil ser profeta». Difícil mesmo é adivinhar o que está por ocorrer. No final dos anos 30, um bafo de guerra soprava no continente, mas ninguém sabia de que lado nem com que força chegaria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones – hoje utilizada como trilha para caminhada a pé

A inteligência militar planejou um sistema de defesa. A referência mais próxima era a Primeira Guerra, durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era ― e ainda é ― uma linha de 10km de blocos de concreto para barrar a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 monstros de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Viraram atração turística. Trilhas próprias para caminhadas a pé serpenteiam por quilômetros, dentro da floresta, ao longo da barreira de concreto. É hoje o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose
Janela com cortina falsa

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada. Incluí algumas imagens dos bunkers disfarçados de chalé e dos toblerones.

Publicado originalmente em 28 nov° 2013.

 

A única arma

José Horta Manzano

A sobriedade ‒ qualidade esplêndida ‒ é um dos atributos que mais dignificam um homem político. É marca certeira daquele que tem confiança nos próprios gestos e palavras. É traço distintivo dos que não precisam vociferar nem ameaçar. Ah, como tem feito falta ultimamente…

No Brasil, o que se vê é deprimente. Ex-presidentes berrando ameaças sem conseguir alinhavar pensamentos nem dizer coisa com coisa. Deputados, senadores, magistrados e integrantes de altas esferas dando pronunciamentos agressivos, ofensivos, intimidantes. Quanto menos têm a dizer, mais gritam. É sintomático.

Não só no Brasil é assim. Outras partes do mundo sofrem do mesmo mal. Os Estados Unidos, por exemplo, já estão há um ano sendo presididos por um senhor cuja qualidade principal não é exatamente o comedimento. Ainda estes últimos dias, mostrando que não se dá conta da fragilidade do equilíbrio que rege o balé das nações, tornou pública sua decisão de transferir a embaixada americana em Israel de Tel-Aviv a Jerusalém.

Muçulmano
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Em si, a mudança de endereço não altera uma palha na borbulhante situação da região. Cada contendor continuará a seguir o caminho de sempre. O ódio mútuo que nutrem permanecerá, nem maior nem menor. No fundo, quem mais tem a perder com o estrepitoso anúncio do presidente parlapatão são os EUA.

Ao pôr-se deliberadamente à margem do resto do mundo, contribuem para o isolamento do próprio país. Espicaçam, de resto, a animosidade de que já são objeto de parte de muita gente. Ao demonstrar parcialidade, demitem-se do papel de mediadores privilegiados e favorecem o aumento da importância política de outros atores. Um furo n’água.

Pode-se apreciar ou não o antigo presidente Barack Obama. Ninguém pode negar, no entanto, a sobriedade e o comedimento do homem, virtudes que espalham tranquilidade e confiança. Ao deixar a presidência, Mister Obama se propôs a não intervir nem comentar os atos do novo presidente. Mas Mister Trump é parada dura. Nem quem tem sangue de barata consegue aguentar calado.

Faz alguns dias, Obama deu palestra num encontro em Chicago. Sem citar nem uma vez o nome do sucessor, disparou flechas em sua direção. Lembrou que a democracia não deve ser considerada direito adquirido automático e imutável. Para despertar a consciência do auditório, usou a imagem de um hipotético salão de baile na Viena do final dos anos 1920. A magia da música levava a acreditar que o rodopio dos casais era sem fim, uma felicidade perpétua. Ninguém podia prever que, dali a poucos anos, a democracia desapareceria e a hecatombe da guerra ceifaria 60 milhões de vidas.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

A advertência do ex-presidente americano vale para o Brasil. Que ninguém tome o atual período democrático por garantido e eterno. Basta muito pouco para fazer o país resvalar ladeira abaixo. No andar de cima, há muita gente fazendo o que pode para enterrar a Lava a Jato a fim de escapar da cadeia. No andar de baixo, ainda há muito ingênuo achando que é muito engraçado votar no Tiririca, no Eneas ou no Cacareco. É a receita do cruz-credo.

Acordai, cidadãos! Temos uma única arma: o voto. Se soubermos manejá-la com engenho, temos uma chance de nos salvar. Uma só.

De castigo

José Horta Manzano

Você sabia?

A Segunda Guerra deixou a Europa arrasada. Quando acabou, em 1945, a destruição era geral. Não tinha sobrado pedra sobre pedra. Cansada de guerra, tratou de construir uma estrutura que garantisse a paz. De lá pra cá, se guerras houve, estouraram em países que não faziam parte da União Europeia, como na antiga Iugoslávia. Fora esses enfrentamentos periféricos, o continente sossegou. Passou a resolver diferendos na mesa de negociações, não mais na boca do canhão.

Nem sempre tinha sido assim. A história do Velho Continente, desde a antiga Grécia, foi marcada por interminável sucessão de guerras, enfrentamentos, ataques, invasões, ameaças. Ao sabor das batalhas, fronteiras mudavam de lugar, impérios desapareciam, outros surgiam. Como aprendemos na escola, nosso país, na época colonial, chegou a sentir os efeitos dessas reviravoltas europeias.

Rei Felipe V, da Espanha

De fato, uma crise de sucessão na Coroa portuguesa deu origem à junção forçada dos reinos de Espanha e de Portugal. Esse período de sessenta anos (1580-1640) é conhecido na Espanha como União Ibérica, enquanto é chamado em Portugal de Domínio Espanhol. Questão de ponto de vista. Logo, o Brasil, terra lusitana naquela altura, tornou-se colônia hispânica por seis décadas. Hola, hermanos!

Uma guerra de sucessão entre os Bourbons e os Habsburgos corria solta no comecinho dos anos 1700. Tinha tido origem quando um rei da Espanha morreu sem deixar descendência. Uma batalha decisiva ocorreu em 1713 na região de Valencia, na cidadezinha de Xátiva. O enredo é demais complicado, e não vale a pena descer aos pormenores. A memória coletiva dos habitantes guarda gosto amargo dos massacres de que os antepassados foram vítimas. O ressentimento contra os Bourbons perdura até hoje.

Rei Felipe V, da Espanha

Acontece que a Casa de Bourbon continua até hoje no trono espanhol. O atual rei, Felipe VI, pertence a essa dinastia. Em Xátiva, hoje com 30 mil habitantes, há um museu de arte que abriga pinturas. Entre os quadros, há um que retrata o rei Felipe V, aquele que reinava na época da batalha de 1713. Artisticamente, não é nenhuma obra-prima, mas representa justamente o detestado opressor, fato que incomoda os nativos.

Nos anos 1950, o diretor do museu era um señor mais ousado que seus antecessores. Um dia, tomou a decisão de pendurar o quadro de cabeça para baixo. Está até hoje nessa posição. Ficou combinado que só voltará à posição original no dia em que um de seus descendentes pedir desculpas pelo massacre que os antepassados cometeram contra a cidadezinha.

Até hoje, nenhum dos reis da Espanha aquiesceu ao pedido. Para surpresa de visitantes do museu que não conhecem a história, o quadro continua de ponta-cabeça.

Profissões desaparecidas ‒ 2

José Horta Manzano

Será que o distinto leitor conhece a palavra italiana «sciuscià»? Pronuncia-se ‘’chuchá’’. A história é interessante. Em 1943, em meio à Segunda Guerra, soldados americanos desembarcaram no sul da Itália para expulsar os alemães que ocupavam o país. Aos poucos foram ganhando terreno até reconquistar o país inteiro em 1945.

Um bom contingente militar ficou estacionado em Nápoles. Naqueles tempos conturbados, a miséria era grande. Crianças perambulavam pelas ruas à cata de alimento. Os soldados americanos, que tinham onde comer e dormir, sentiam pena daquele povo sofrido. Propunham então aos adolescentes que lhes engraxassem as botas pra ganhar algumas moedas. Com gestos apontando o calçado, perguntavam: «Shoeshine?» ‒ lustra o sapato?

Os ouvidos napolitanos, não habituados à língua inglesa, adaptaram a expressão à própria fonética. Deu sciuscià (= chuchá). A palavra ficou conhecida em virtude de ter sido título de filme dirigido por Vittorio de Sica em 1946. Em italiano padrão, o nome do ofício é «lustrascarpe» ‒ lustrador de sapato, correspondente a nosso engraxate. Nestes últimos setenta anos, muita coisa mudou na Itália e na Europa. Aos poucos, os «lustrascarpe» foram minguando. A profissão está hoje em via de extinção.

Nadando contra a corrente, o diretor da secção de Palermo (Sicília) da Confederação Italiana dos Artesãos teve a ideia de ressuscitar o ofício. Abriu concurso para 15 engraxates. Para sua surpresa, apareceram 75 candidatos entre os quais muitos com diploma universitário. A crise anda feia.

A Confederação selecionou 15 deles com base na motivação de cada um e na fé que botavam no projeto. Estes dias, ofereceu aos eleitos uma formação de cinco dias, dada por um antigo especialista no assunto. Se é pra fazer, melhor fazer como manda o figurino. Os aprendizes se familiarizam com as características de cada tipo de couro, com o uso da graxa e com a manipulação das escovas. Têm de adquirir o automatismo dos gestos.

Depois disso, receberão um primeiro kit grátis, com o material necessário para o bom profissional. Em seguida, poderão alugar, por 50 euros/mês, um dos quinze pontos designados pela prefeitura. Mais tarde, se acharem que vale a pena, podem até comprar o ponto. Para tanto, terão de desembolsar 500 euros.

Os selecionados estão entusiasmados com a perspectiva de trabalhar e ganhar a vida. Esperam engraxar uma média de 10 pares de sapato por dia, o que lhes renderá entre 30 e 50 euros a cada jornada de trabalho. Pelos padrões locais, não é nenhuma fortuna, mas é sempre melhor do que continuar desempregado.

Medalhistas indignos

José Horta Manzano

Imagine o distinto leitor que houvesse uma edição dos Jogos Olímpicos a cada três meses, num total de quatro por ano. Perderia toda a graça, não? Tudo o que é demais perde importância e acaba cansando. Uma das lindezas da Olimpíada é a rarirade. Quanto mais espaçadas as edições, maior será a expectativa.

Em pleno embalo gerado pela participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, nasceu a Ordem do Mérito Aeronáutico. Exército e Marinha já tinham criado insígnias honoríficas para homenagear seus benfeitores. A Aeronáutica não podia ficar atrás. Um decreto-lei de novembro de 1943, assinado pelo ditador Getúlio Vargas, criou a condecoração. O propósito era distinguir personalidades ‒ militares ou civis ‒ que tivessem prestado serviços relevantes às Forças Aéreas.

Ordem do Mérito Aeronáutico 1Nos primeiros tempos, os agraciados foram poucos, quase todos militares. Durante os primeiros vinte anos, apenas 50 cidadãos, em média, receberam a medalha a cada ano. Já nos anos 1970, a condecoração foi distribuída a perto de 140 pessoas por ano. Entre 1980 e 1994, o número de premiados subiu para 215 anuais. A era FHC, de 1995 a 2002, manteve a média de 220 agraciados por ano.

Já não era pouca gente, mas o Lula fez melhor. Durante seus oito anos no Planalto, outorgou a medalha a 313 cidadãos por ano, 42% a mais do que na era FHC. Doutora Dilma, então, promoveu verdadeira “socialização” da condecoração. Durante seus cinco anos de mandato, 490 pessoas receberam a distinção anualmente, num aumento de 56% com relação ao governo de nosso guia.

Entre os que tiveram direito à honra no governo Dilma, estavam os notórios heróis do povo brasileiro José Dirceu e José Genoino, personagens que, como sabemos todos, prestaram inestimáveis serviços à nação e à Aeronáutica em especial. Faça-me o favor! Tem limite pra tudo.

Genoino e DirceuUm decreto do ano 2000, bem anterior à atribuição da medalha a nossos heróis, regulamenta a atribuição da honraria. Um de seus artigos determina que serão excluídos da Ordem agraciados que tiverem sido condenados pela justiça brasileira por crimes contra o erário ‒ entre outros. Os «heróis» se enquadram nesse caso.

Durante o governo da doutora, enquanto o lulopetismo ainda parecia poderoso, o alto comando da Aeronáutica hesitou e fez cara de paisagem. Preferiram descumprir um preceito legal a desagradar a turma do andar de cima. A distinção dos dois condenados foi vergonhosamente mantida.

Com o governo titubeante da doutora escorrendo pelo ralo, o Comando da Aeronáutica decidiu agir. Por meio de portaria publicada semana passada no Diário Oficial da União, os medalhistas indignos foram excluídos da Ordem. A justiça tarda mas não falha.

Diário Oficial da União, 18 ago 2016

Diário Oficial da União, 18 ago 2016

Nem todoas as doze mil pessoas agraciadas desde que a Ordem foi criada hão de ter sido benfeitoras das Forças Aéreas. É plausível que, desde o começo, compadrio e corporativismo tenham influído na escolha de comendadores, oficiais e cavaleiros. Em outros termos: tem muito lixo aí. Com tantos membros, já faz tempo que a Ordem anda meio chinfrim. É como Olimpíada quatro vezes por ano.

Mas é fato que o caso de nossos dois «heróis» ‒ caídos, julgados, condenados e presos ‒ passou dos limites. Não se podia deixar como estava. A justiça às vezes pode tardar, mas, um dia, acaba golpeando.

Passeatas e manifestações

José Horta Manzano

Tive, faz muitos anos, um chefe inglês. Espirituoso, cultivava aquele humor britânico fino e levemente irônico. Quando via um grupinho de funcionários conversando no corredor, costumava dizer: “More than two together is mutiny”(*) ‒ mais de dois juntos é motim. Era seu jeito de dizer “chega de blá-blá-blá, vamos trabalhar”. A referência a um termo militar devia ser resquício da Segunda Guerra, quando tinha combatido na Birmânia.

Motim 1Durante os anos de chumbo que o Brasil atravessou, principalmente na década de 70, reuniões eram proibidas. Como todo regime ilegítimo, a ditadura brasileira sabia que não podia mais contar com o apoio da maioria da população. Em virtude disso, temia a agregação de forças adversárias. Ao exagerar na repressão a concentrações populares, tentava reprimir toda insurreição.

Escrita quando o cadáver da ditadura ainda não havia esfriado, a atual Constituição fez questão de exagerar no sentido oposto. No que tange a reuniões, foi magnânima: liberou geral. O Inciso XVI do Artigo 5° reza assim:

Cabeçalho 5Embora a intenção fosse tranquilizar o bom povo e transmitir sensação de segurança e liberdade, o texto é problemático. Ao determinar que cidadãos podem se reunir independentemente de autorização, deixa implícito que a autoridade não tem poder de proibir reuniões. É desprendimento exagerado. De que serve avisar previamente se a manifestação não pode ser proibida?

Todo país civilizado permite reuniões, passeatas, manifestações, comícios ‒ demonstração do vigor da democracia. No entanto, toda atividade que se desenvolva temporária ou permanentemente no espaço público tem de ser sujeita a autorização. O fato de ter ‘intenção’ pacífica não é garantia de que a manifestação se desenrolará tranquilamente. O fato de os participantes não portarem arma não impede que depredem o bem comum ou que transformem bancos de jardim em armas.

Manif 2O texto legal diz que uma reunião não se pode realizar no mesmo local onde outro agrupamento já tiver sido convocado. Pois bem, suponhamos que aconteça: o grupo A anuncia às autoridades que vai-se manifestar no mesmo lugar onde o grupo B prevê reunir-se. Tendo em vista que reuniões não podem ser proibidas, a autoridade estará em palpos de aranha. Poderá apenas sugerir ao grupo que escolha outro local. E torcer pra que o pedido seja atendido.

Manif 4Admitamos outra possibilidade. Um coletivo de cidadãos informa as autoridades que vai trancar a Avenida Paulista (ou a Avenida Rio Branco no RJ, ou qualquer outra avenida brasileira de tráfego intenso) às 18h de um dia de semana. Será manifestação pacífica e sem armas. Que pode fazer a autoridade? Pelo texto constitucional, nada. Pode observar o congestionamento de longe, impotente, enquanto dezenas de milhares de cidadãos que nada têm a ver com o peixe são cerceados em seu direito de ir e vir.

A meu ver, o inciso que regulamenta reuniões em local público deveria ser revisitado. Todo ajuntamento, ainda que pacífico e sem armas, deve ser sujeito à aprovação da autoridade competente. Não nos esqueçamos que o ente nebuloso a que chamamos ‘autoridade’ nada mais é que uma das faces da representação popular.

Interligne 18c

Etimologia
(*) Mutiny (=motim, amotinamento) vem do verbo francês mutiner, hoje raramente utilizado. A origem mais provável é o verbo latino movere (=mover) por uma presumida forma intermediária movita.

Fronteira entre os pés e a cabeça

José Horta Manzano

Você sabia?

Marco divisório francês

Marco divisório francês

Muitas das fronteiras entre o Brasil e os países vizinhos cruzam zonas escassamente povoadas, notadamente na região amazônica. Uma linha demarcatória tanto pode seguir cursos d’água – caso em que será dita «fronteira natural», como pode ser representada por divisor de águas ou por traçado artificial riscado num mapa. Neste caso, teremos uma «fronteira seca».

Fronteiras secas costumam ser assinaladas por balizas plantadas no solo. Antigamente, eram de pedra. Hoje em dia, é mais comum o concreto. A elas dá-se o nome de marcos divisórios ou geodésicos.

No Brasil, certos trechos de fronteira contam com balizas bastante espaçadas, uma aqui, outra quilômetros adiante. No fundo, tanto faz, que pouca gente passa de um lado para o outro. Na Europa, dada a densidade da população, fronteiras são demarcadas com bastante rigor.

O Tratado de Dappes, acertado em 1862 entre a França e a Suíça, delimita com precisão um trecho da fronteira entre os dois países na região dos Montes Jura. O acordo, concluído em dezembro daquele ano, ficou programado para entrar em vigor em fevereiro do ano seguinte.

Um certo Monsieur Ponthus, proprietário de um terreno no povoado de La Cure, ficou sabendo que seu lote seria atravessado pela nova fronteira. Aproveitou-se do intervalo e, pelas caladas e às pressas, erigiu imóvel provisório bem em cima da linha. A intenção era de contrabandear chocolate, tabaco e bebidas alcoólicas.

Assim que o tratado entrou em vigor, a construção era fato consumado – e com porta dos dois lados da fronteira, faz favor. E assim foi ficando. Com o tempo, os sucessores do esperto cavalheiro ampliaram o imóvel e o transformaram em hotel-restaurante. O estabelecimento está lá até hoje.

Hôtel Franco-Suisse clique para ampliar

Hôtel Franco-Suisse
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Alguns quartos do hotel oferecem ao hóspede a curiosa possibilidade de dormir com a cabeça na Suíça e os pés na França. Ou vice-versa. Na escada que leva ao segundo andar, o 7° degrau marca a fronteira entre os dois países. Alguns asseguram que a linha verdadeira passa pelo 13° degrau. A controvérsia persiste.

Marco divisório suíço

Marco divisório suíço

Durante a Segunda Guerra, com a França ocupada pelo exército alemão enquanto a Suíça permanecia neutra, a singularidade do local deu margem a uma movimentação sui generis. Além do contrabando habitual, inúmeros judeus perseguidos pelos nazistas conseguiram escapar entrando pelo lado francês e saindo do outro lado, já na Suíça, onde os alemães não podiam intervir. Dizem que outros fugitivos seguiram o mesmo caminho – paraquedistas ingleses entre eles. É verdade que não durou muito tempo. Militares alemães logo se deram conta do problema e condenaram portas e janelas do lado francês. Depois de tudo emparedado, ninguém mais passou.

Impávido, o Hôtel Franco-Suisse continua lá até hoje. Nestes tempos modernos, sem os controles de antigamente, a alfândega é relíquia de outras eras.

O imóvel representa um quebra-cabeça administrativo tanto para a França quanto para a Suíça. A situação é tão intrincada que Paris e Berna preferem empurrar com a barriga e deixar como está. Não vale a pena travar batalha judicial por tão pouco.

Rapidinha 30

José Horta Manzano

«Para se preservar, Dilma celebrou o 70° aniverário do fim da Segunda Guerra em lugar fechado e protegido. Antes dela, o último chefe de Estado a ficar em lugar fechado e protegido em evento ligado à Segunda Guerra chamava-se Adolf Hitler.»

Historinha entreouvida por aí.

A caixinha mágica

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 7 mar 2015

Caixa 1Minha avó, genuíno produto do século 19, nasceu antes do rádio, do avião e do automóvel. Mal e mal chegou a conhecer a televisão. Costumava contar uma história fantástica que tinha ouvido quando criança. Falava de um rei de conto de fadas que possuía uma caixinha mágica. Aproximando o ouvido do estojinho, o monarca podia escutar tudo o que acontecia no reino, inclusive as conversas de todos os súditos. Um prodígio.

Radio 4«Era o rádio!» – explicava-nos a velhinha, extasiada de ter assistido à transmutação da caixa mágica em objeto real. Até o último suspiro, a velha senhora acreditou firme que, com a radiodifusão, a humanidade tinha atingido o apogeu em matéria de comunicação e de encurtamento de distância.

Estava enganada, como hoje sabemos. Ainda havia muito pela frente. Vieram os satélites artificiais e, com eles, a banalização da telefonia intercontinental. Aviões a jato converteram expedições dificultosas em escapadinhas de fim de semana. Os complicados «cérebros eletrônicos» de antanho evoluíram: onde antes exigiam local vasto e exclusivo, cabem hoje no bolso de qualquer mortal. Calculadora de supermercado tem poder superior ao dos gigantescos ancestrais.

Carro 3Veja só como era. Uma explosão, atribuída a enorme meteoro, sacudiu a Sibéria em 1908. A rebentação destruiu a floresta num raio de 20 quilômetros e danificou aldeias a léguas dali. De trem, a notícia levou alguns dias para chegar aos ouvidos do tsar, na capital do império. Precisou mais algumas semanas para o mundo ficar sabendo. Para arrematar, a primeira expedição de inspeção científica ao local só foi organizada vinte anos mais tarde. Era essa a velocidade com que notícias se alastravam.

O mundo mudou. O andamento se acelerou. A assombrosa rapidez com que zilhões de gigabaites se disseminam a cada segundo tem facilitado a vida de muitos – mas conturbado a existência de outros. Quem pouco ou nada tem a esconder aprecia o ritmo frenético de redes sociais, uotisaps & congêneres. Já pra quem prefere a discrição… todo cuidado é pouco. O ambiente está ficando perigoso.

Qualquer cidadão dotado de bom senso concorda que o Brasil atravessa etapa periclitante. Se a vertiginosa circulação da informação não é causa única, tem contribuído para agravar.

Apito 1Já não se pode mais ter confiança em nada nem em ninguém. Câmeras, grandes e pequenas, estão por toda parte. Você pode estar sendo filmado e gravado pelo próprio cidadão com quem está confabulando – um microaparato pode-se dissimular no nó da gravata ou até no botão do colarinho.

Um magistrado toma emprestado por alguns minutos um carrão apreendido, só pra sentir o gostinho de sentar-se ao volante de um bólido, e pronto: já foi filmado, gravado e denunciado. Um apuro!

Camera 1Um figurão, no inocente intuito de conhecer a cotação do dólar, chama um doleiro amigo, e pronto: já caiu na boca do povo. Uma impropriedade!

Um obscuro funcionário dum banco de Genebra, ao levar no bolso um trivial pendrive carregado com dados financeiros de seleta clientela, incendiou a banca e mandou para o espaço o secular segredo bancário suíço. Uma iconoclastia!

Nossa presidente já disse mais de uma vez que nunca antes neste país se haviam investigado tantos crimes. Tem razão. Primeiro, porque nunca se tinha visto cachoeira de malfeitos tão caudalosa. Segundo, porque a linha que antes apartava os bastidores do picadeiro está cada dia menos nítida. Francamente, já não se pode mais nem delinquir em paz.

Computador 8O que tem salvo figurões, medalhões e magnatas – por enquanto! – é o fato de o cenário andar muito concorrido. Os envolvidos são pletora, e o palco está lotado. Tudo o que é demais cansa. Chegado ao ponto de exaustão, o cidadão, vencido pela apatia, vai-se tornando blasé, indiferente.

Mas deixe estar. Mais dia, menos dia, esse deprimente espetáculo do petrolão, em cartaz já faz um ano, há de chegar ao fim. Alguns comparsas serão irremediavelmente condenados, nem que seja para exemplo. Já os capangas-mores – alguém duvida? – escaparão. Impedimento da presidente? Nem pensar. Não interessa a ninguém, e a emenda pode sair pior que o soneto.

Big Brother 1O petrolão terá sido marco divisório entre o velho Brasil e o novo. Deverá desestimular a corrupção, assim como a Segunda Guerra baniu conflitos globais.

Nepotismo, compadrio e corporativismo sempre existirão, é inelutável. Mas, convenhamos, candidatos à delinquência em escala industrial serão muito cuidadosos da próxima vez. Onde antes não havia risco, hoje há. Big Brother veio pra ficar.

Nostalgia imperial

José Horta Manzano

A derrubada do Muro de Berlim, em novembro de 1989, deu a largada para o desmonte da União Soviética. Dois anos mais tarde, o processo estava concluído. A URSS, que havia pairado como assombração sobre metade do planeta durante 70 anos, expirou.

Foi um susto. Nem o mais pessimista dos soviéticos nem o mais optimista dos ocidentais teria imaginado, meia dúzia de anos antes, que tal desenlace fosse viável. De lá pra cá, foram caindo, um por um, símbolos e clichês que compunham, em nosso inconsciente coletivo, o modo de vida soviético.

Desapareceram as filas de desamparados clientes à porta de supermercados desabastecidos. Estátuas de Lenin e de Stalin foram desatarraxadas do pedestal. Os russos ganharam o direito de ir e vir ― inclusive ao exterior. As cidades cujos nomes homenageavam figurões comunistas foram rebatizadas: Leningrado recobrou seu nome originário, São Petersburgo.

Como em outras metrópoles que perderam um império, flutua no ar de Moscou uma certa nostalgia do bom tempo que se foi. É sentimento de mesma natureza que aquele que portugueses, ingleses, franceses cultivam. Uma ufania saudosa «do tempo em que éramos importantes».

O sintoma mais visível é o apego a relíquias que reavivam a glória passada e dão a impressão de que ela ainda perdura. Cada um dos antigos impérios faz isso à sua maneira.

Parada militar em Moscou, 9 maio 2014

Parada militar em Moscou, 9 maio 2014

A cada ano, no dia 9 de maio, os russos comemoram com garbo a vitória na Segunda Guerra. Têm razão, afinal, o conflito ceifou a vida de mais de 20 milhões de cidadãos soviéticos, perto de 15% da população. Foi hecatombe de proporções bíblicas.

Observando as imagens do desfile comemorativo deste ano, notei que os brasões não só mencionam a guerra, mas também conservam os símbolos do Estado soviético da época.

O dístico que celebra a vitória (Победа) é encimado pela sigla CCCP (Союз Советских Социалистических Республик = URSS).

O emblema que comemora a Guerra Patriótica (Отечественная Война) leva ao centro a foice e o martelo entrecruzados, símbolo do antigo regime comunista.

Transposto ao cenário brasileiro, seria como se, numa parada comemorativa da vitória de nosso exército na Guerra do Paraguai, os desfilantes marchassem à sombra da bandeira do Imperio do Brazil.

É curioso.

Retorno de investimento

José Horta Manzano

Universidade de Salamanca

Universidade de Salamanca

A participação americana na Primeira Guerra marcou o début do país na cena internacional, até então dominada pelos grandes impérios europeus com destaque para Reino Unido e França.

Com sua intervenção decisiva na Segunda Guerra, os EUA reafirmaram sua preeminência bélica, econômica e política. Para que um ganhe, é preciso que outro perca ― assim funciona o mundo. À ascensão dos Estados Unidos, correspondeu forte degradação da influência dos impérios.

Como corolário ao aumento do prestígio dos EUA, a língua inglesa cresceu em importância. A projeção da língua francesa, que reinava solitária nos contactos diplomáticos e comerciais até o início do século XX, começou a definhar. E o inglês foi, pouco a pouco, tomando seu lugar.

Universidad Salamanca 1Os anos 1960 ― e a descolonização da África ― cuidaram de dar o golpe de graça na antiga preferência pelo francês. De lá pra cá, a língua inglesa se firmou como veículo de comunicação internacional em todas as áreas. Até no campo diplomático, onde, durante séculos, teria sido inimaginável exprimir-se em idioma que não fosse o francês. Nosso passaporte é um bom exemplo. Até os anos 1970, vinha escrito em português e em francês. Em seguida, o inglês forçou passagem.

Hoje em dia, o inglês é de facto a língua internacional. Quando duas pessoas não se entendem, é com naturalidade que recorrem ao inglês. No mundo atual, quem não conhece a língua dominante está arriscado a passar ao largo de muita coisa interessante. De tanto perder capítulos, periga não entender mais a novela.

Tudo o que eu disse aqui acima parece uma evidência, não é mesmo? Não para todos. Alguns anos atrás, a estreita franja ideológica ― um dos componentes da constelação de quereres que nos governa ― «detectou» declínio da potência americana.

Chapéu acadêmico

Chapéu acadêmico

Cheios de satisfação, nossos gurus profetizaram então que a língua inglesa sairia logo de cena. Era tremendo erro estratégico, mas a ignorância disseminada entre os medalhões do andar de cima fez que todos dessem de ombros e acatassem o raciocínio.

Ato contínuo, nosso messias anunciou que, daquele momento em diante, o ensino da língua espanhola seria privilegiado em detrimento do inglês. Quanta ingenuidade! Não se deram conta de que a potência americana não é o único sustentáculo da popularidade mundial da língua de Shakespeare. A simplicidade da gramática, a singeleza da conjugação verbal, a riqueza do vocabulário contam tanto (ou mais) que a força dos EUA para garantir ao inglês um longo reinado.

Equivocou-se quem apostou na derrocada da língua inglesa. Daqui a alguns anos, a juventude brasileira vai-se dar conta do logro. Mas nem tudo é perdido. Tem quem lucrou com essa trapalhada.

A Universidade de Salamanca (Espanha), uma das mais antigas do planeta, acaba de outorgar título de doutor honoris causa a nosso messias. Essa honraria é conferida por merecimento. A nosso antigo presidente, o colegiado de doutores de Salamanca atribuiu o mérito de ter contribuído para a educação da população brasileira(!). Em particular, foi levado em conta que, sob sua égide, foi implantado o ensino obrigatório da língua espanhola.

Interligne vertical 5Quod natura non dat, Salamantica non præstat.

O que a natureza não dá, Salamanca não empresta.

Refrão enunciado em latim. Sugere que, sem o talento natural, o estudo não tem nenhuma serventia. Quanto a mim, continuo acreditando que estudo faz muita falta.

Incongruência

José Horta Manzano

Ninguém jamais saberá dizer com exatidão quantos mortos deixou a Segunda Guerra (1939-1945). Estimativas situam a quantidade de vítimas entre assustadores 50 milhões e 70 milhões de pessoas. Foi o conflito mais mortífero que o planeta já conheceu.

Até o Brasil, posto que não tenha travado batalha em seu próprio solo, deplorou por volta de duas mil vítimas: mil militares da Força Expedicionária (FEB) enviada à Itália e mais mil civis massacrados em ataques de submarinos alemães contra navios de cabotagem da marinha mercante nacional junto às costas brasileiras.

Dieudonné M'bala M'bala

Dieudonné M’bala M’bala

Certos países da Europa Oriental chegaram a perder ¼ de sua população, uma monstruosidade. A Europa ficou profundamente marcada. Até hoje, passados quase 70 anos, ainda se fala da guerra como se tivesse terminado anteontem.

Milhares de homens, mulheres, anciãos e recém-nascidos foram sumariamente exterminados pelo simples fato de serem judeus ou ciganos. É tão estarrecedor que nós, que não vivemos aquela época, temos dificuldade em conceber que atos tão ignóbeis possam ter sido cometidos por seres humanos.

Essa perseguição racial foi pra lá de traumatizante. Em consequência, muitos países europeus inseriram em sua legislação dispositivos destinados a sufocar no nascedouro toda e qualquer manifestação racista. Na França, atos ou palavras que possam ser enquadrados como incentivo ao ódio racial são passíveis de processo criminal.

Uma coincidência interessante une três dos ditadores protagonistas da última guerra. Há uma dose de estrangeirice em todos eles.

Hitler, ao nascer, era súdito do Império Austro-Húngaro. Tornou-se alemão por naturalização.

Stalin tampouco nasceu russo, mas georgiano. Não precisou naturalizar-se, dado que a Geórgia ― hoje país independente ― era, à época, território pertencente ao Império dos Tsares.

Mussolini nasceu italiano, mas viveu anos da juventude como emigrante em terra estrangeira. Morou na Suíça, onde, aliás, seu espírito turbulento deixou marcas.

É curioso observar a frequência com que rebeliões, revoltas ou simples escândalos são protagonizados por pessoas cuja história de vida diverge da maioria.

A conflagração que abalou a França em maio 1968 era norteada por um estrangeiro (Daniel Cohn-Bendit). A política externa dos EUA foi conduzida, de 1969 a 1977, por Heinz (Henry) Kissinger, americano naturalizado. O atual ministro dos Negócios Interiores da França ― cargo preeminente ― nasceu em Barcelona e emigrou ainda criança: Monsieur Vals é hoje francês naturalizado.

Dieudonné M'bala M'bala

Dieudonné M’bala M’bala

Os brasileiros, que já têm suficientes problemas internos, não devem estar muito preocupados com escândalos estrangeiros. Há um que está sacudindo a França já faz alguns dias. Está sendo causado por Dieudonné, um humorista que já está deixando de fazer rir. Alguns já o qualificam abertamente como ativista.

Nascido em 1966, Dieudonné M’bala M’bala é filho de pai africano da República dos Camarões e de mãe francesa. No começo de carreira, fazia graça, que é o ganha-pão de todo comediante. De uns tempos para cá, sabe Deus por que, decidiu enveredar pelo caminho perigoso do antissemitismo. Considerando-se que o homem é afrodescendente ― como diriam no Brasil ―, é surpreendente.

Suas piadas e seus esquetes adquiriram tons sombrios de estímulo ao ódio racial. Há quem goste ― há gosto para tudo. Mas 70% dos franceses desaprovam. O governo resolveu agir: proibiu seus espetáculos. Os advogados do humorista invocaram a liberdade de expressão e conseguiram liminar para o show de 9 de jan°. A Justiça contra-atacou argumentando que, em vista do sério risco de perturbação da ordem pública, o espetáculo estava definitivamente anulado.

Foi uma primeira vitória. Mas o artista, que tem apresentações já programadas para os próximos meses, pretende contestar a proibição de cada espetáculo, um por um. Temos pela frente batalhas jurídicas a perder de vista.

A mim me choca ver um profissional do riso fazer graça ― e ganhar a vida ― tripudiando sobre a desgraça alheia. Além de ser contrário à lei, é comportamento indigno. Mais que isso, que um triste espetáculo antissemita seja concebido e estrelado por um afrodescendente, é, no mínimo, grotesco.

Algumas manifestações da imprensa francesa estão aqui:
Le Nouvel Observateur
Les Echos
Le Monde

A trilha dos toblerones

José Horta Manzano

Você sabia?

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Os suíços sentem muito orgulho por não terem tido o país invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça ― cercada por Alemanha, Itália, Áustria (anexada pela Alemanha) e França (ocupada por tropas de Berlim) ― não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. A maioria do povo atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Toblerone de verdade

Toblerone de verdade

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se imaginava poder vir nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, suas obras de arte, seus objetos de valor. Mais ainda: um lugar onde se podiam organizar eventuais encontros secretos e manter conversações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje é História. Como diz o outro, «depois do fato consumado, é fácil ser profeta». Difícil mesmo é adivinhar o que está por ocorrer. No final dos anos 30, um bafo de guerra soprava no continente, mas ninguém sabia de que lado nem com que força chegaria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones – hoje utilizada como trilha para caminhada a pé

A inteligência militar planejou um sistema de defesa. A referência mais próxima era a Primeira Guerra, durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era ― e ainda é ― uma linha de 10km de blocos de concreto para barrar a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 monstros de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Viraram atração turística. Trilhas próprias para caminhadas a pé serpenteiam por quilômetros ao longo da barreira de concreto. É hoje o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose
Janela com cortina falsa

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada.

O segredo é a alma do negócio

José Horta Manzano

Nosso governo insiste em provar seu amadorismo. Faz questão de que o mundo saiba que o Brasil ― o mesmo Brasil que pretende fazer parte do primeiro escalão das nações ― não dispõe de serviços de inteligência. O raciocínio dos que nos governam é simples, quase simplório: não temos inimigos, portanto, a quem interessaria espionar-nos?

Espionagem by Cam - Ottawa Citizen

Espionagem
by Cam – Ottawa Citizen

Segundo essa filosofia de boteco, ou «cês tá com nóis» ou «cês tá contra nóis». É certo que não estamos em guerra (militar) contra ninguém, daí a dedução lógica: «eles tá tudo com nóis». E pronto. Pra que gastar dinheiro com proteção de dados? Mais vale utilizar melhor as verbas que escaparem do roubo e da corrupção. Que sejam investidas para angariar votos e para garantir o pirão aos comensais de sempre.

Com o devido estardalhaço, dona Dilma anunciou neste domingo a implantação de um sistema nacional de email criptografado. Com isso ― acredita ela ― as autoridades estarão a salvo de toda espionagem. Duas perguntas ficam no ar.

A primeira: por que razão o governo esperou que a porta fosse arrombada para só então pensar em botar tranca? A segunda: que é que faz crer aos luminares do Planalto que os novos sistemas garantirão a inviolabilidade das mensagens?

Vasques 1

Espionagem
by Edgar Vasques, desenhista gaúcho

O fato de não se terem prevenido contra espionagem reafirma ― se necessário fosse ― o despreparo de um governo cujo objetivo único é a conservação do poder. Dado que o empenho em autofortalecer-se preenche todos os minutos dos dirigentes, é compreensível que não lhes sobre tempo para cuidar do funcionamento do País, ocupação para a qual foram escolhidos. O salário que lhes pagamos é justamente destinado a sustentar uma equipe que zele pelo País. Assim deveria ser, pelo menos.

Quanto à crença de que um sistema de criptografia seja suficiente para proteger segredos oficiais, devo concluir que bom-senso e um pouquinho de cultura histórica andam fazendo uma falta danada aos que ocupam os mais altos postos de nossa hierarquia política. Se dona Dilma se tivesse interessado em saber o que já foi tentado no campo da dissimulação de mensagens ― desde o tempo dos pombos-correio até hoje ― seus pronunciamentos seriam menos bombásticos e mais humildes. Melhor até que nem se pronunciasse.

Enigma ― máquina de criptografar

Enigma ― máquina de criptografar

No começo dos anos 20, matemáticos alemães desenvolveram uma máquina eletromecânica, a superfamosa Enigma, destinada a encriptar comunicações. Uma versão reforçada foi preparada, sob encomenda do governo nazista, especificamente para comunicações militares. A criptagem da Enigma era reputada inviolável.

Pois hoje sabemos que um trio de matemáticos poloneses conseguiu quebrar o código da máquina alemã. E fizeram isso já antes de a Segunda Guerra estourar! Assim, graças àqueles pré-históricos hackers, os britânicos já tinham sido informados com antecedência sobre o ataque «de surpresa» que a Alemanha desferiria à Polônia, dando início à guerra mundial. Naturalmente, todos aparentaram surpresa, de modo a deixar que os alemães acreditassem que suas mensagens continuavam indevassadas.

Códigos, cifragens, criptogramas são feitos para serem quebrados. Todo Estado dotado de serviços de inteligência sabe disso.

Non è mai troppo tardi

José Horta Manzano

Quando conheci a Itália, faz quase meio século, a elevada proporção de analfabetos ainda destoava de vizinhos culturalmente comparáveis, como a França ou a Alemanha. A escolaridade já então era gratuita e obrigatória, naturalmente. No entanto, as duas guerras mundiais e as privações causadas por elas tinham contribuído para a persistência de bolsões de pobreza e de analfabetismo.

Se, dez anos depois do fim da Segunda Guerra, as crianças já estavam todas sendo alfabetizadas, ainda sobravam muitos adultos que não tinham tido a sorte de frequentar carteiras escolares. Pelo final dos anos sessenta, o governo da península decidiu resolver o problema. Implantou um programa de alfabetização de adultos chamado Non è mai troppo tardi, nunca é tarde demais.

Dado que a imensa maioria dos lares já possuía um televisor, o programa foi concebido sob forma de ensino à distância, com uma emissão televisiva diária, de segunda a sexta. Fez muito sucesso. Em 1968, considerou-se que o objetivo tinha sido atingido e o sistema foi descontinuado.

Estes dias, li a notícia de que a prefeitura de São Paulo decidiu conceder incentivos — isenção de alguns impostos e alívio de outros encargos fiscais — às firmas geradoras de empregos que vierem a se estabelecer numa determinada região da cidade. Lembrei-me daquelas velhinhas enrugadinhas que eu via na Itália tantos anos atrás, todas vestidas de preto, segurando um lápis entre os dedos calejados e hesitantes, num esforço para aprender a ler. Non è mai troppo tardi.

Velhinhos aprendendo by Salvatore Malorgio

Velhinhos aprendendo
by Salvatore Malorgio

Ao abrir mão de certas entradas fiscais, o que a prefeitura de São Paulo está fazendo é o que executivos municipais, estaduais e, sobretudo, federais tradicionalmente negligenciam: planejamento.

Não conheço o programa em seus detalhes, mas não é difícil entender que a perda momentânea de receita será compensada por alguma vantagem futura. No caso em pauta, o ganho pode-se ligar à mobilidade urbana, dado que grande contingente populacional já reside na região visada pela prefeitura.

Governante que se preza é aquele que cuida do planejamento em vez de dedicar seu tempo a preparar a própria reeleição e a tentar perenizar-se no poder. Os tempos em que, ignorante, o grosso da população servia de massa de manobra e se contentava com migalhas está acabando. Os anos que passam vão-se encarregando de desembaçar a vista do brasileiro. Lentamente, ele vai aprendendo a distinguir quem é e quem não é digno de ocupar algum cargo executivo.

A parte mais sensível do corpo humano, como sabemos todos, é o bolso. Prêmios e castigos monetários, incentivos e agravantes fiscais, enfim, tudo o que mexe com a carteira costuma surtir efeito.

Pouco mais de um ano atrás, o Correio Braziliense publicou um artigo meu sobre a importação de médicos — parece incrível, já faz mais de ano que se fala nisso! Para mitigar o problema da má distribuição dos esculápios no território brasileiro, eu propunha que se passasse pelo bolso, isto é, que se concedessem incentivos fiscais aos recém-formados. O artigo não está online no CB, mas, caso alguém se interesse, vai encontrá-lo no site da Rede Nacional de Advogados e também no site Direito Médico, Odontológico e da Saúde.

Oxalá o exemplo paulistano possa ser entendido e, o que é mais importante, imitado por prefeitos, governadores e — principalmente — pelo governo federal.

Nunca é tarde demais para planejar. O futuro, como diria sabiamente o Conselheiro Acácio, ainda está por chegar.

Mundo, mundo, vasto mundo

José Horta Manzano

Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso. É o que se costumava dizer para sublinhar traços que diferenciam os povos.

A globalização está aí. Hoje em dia, o mundo parece cada vez menor. Pode-se comprar camembert legítimo no Brasil. Qualquer bom supermercado europeu vende farinha de mandioca, maracujá e cachaça. Há restaurante especializado em sushi até na Bósnia. Na Mongólia ou em Uganda, basta dispor de uma parabólica ― uma «paranoica», como dizia o outro ― para captar Telesur, a televisão bolivariana. ¡Que felicidad, hermanos!

Mas essas mudanças, no fundo, são de fachada. Raspando a superfície, descobre-se que a casca é fininha. Abaixo dela, o miolo é bem mais resistente e detesta mudanças.

Nos costumes políticos, por exemplo. Em tempos idos, o Partido dos Trabalhadores chegou a expulsar afiliados que ousaram mostrar algum sinal de insubmissão a ditames superiores. Hoje, isso não impressiona mais ninguém, muito pelo contrário.

Não é raro ver deputados e outros eleitos bandearem-se do partido A ao partido B, que os acolhe braços abertos. Ficha limpa? Ficha suja? Processo nas costas? Condenação judicial? Pouco importa ― quem liga mais para essas picuinhas? Nestes tempos estranhos em que antigos «virtuosos» tomam a benção de Maluf, os valores andam um bocado turvos. O fato é que está cada dia mais difícil ser expulso de um partido no Brasil.

Torre Eiffel

Torre Eiffel

Já na França, outra roca, outro fuso. Por lá, ainda vale o velho adágio: bobeou, dançou. O site da televisão pública francesa dá hoje seis conselhos aos políticos que quiserem evitar ser expulsos de seu partido. Comparando a visão que se tem da política na França com a que se tem no Brasil, parece que estamos falando de um outro planeta.

Os conselhos são:

Interligne vertical 71) Não fazer a saudação nazista ― aquela com o braço direito estendido à frente do corpo.

2) Não minimizar os crimes da Segunda Guerra.

3) Não atacar as etnias minoritárias na França.

4) Não apoiar o partido Frente Nacional (extrema-direita).

5) Não se candidatar quando o partido tiver escolhido outro nome em sua circunscrição.
Nota: Os deputados franceses são eleitos por voto distrital puro.

6) Não fraudar a receita.

Cada conselho faz alusão a alguma expulsão ocorrida em tempos recentes. Mundo, mundo, vasto mundo.

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