Para evitar impeachments

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 julho 2020.

Quem se lembra daquele presidente de Honduras, caricatura do típico caudilho latino-americano bigodudo, aquele señor que queria se tornar ditador? Zelaya era o nome dele. O moço fez travessuras. Percebendo que o país ia desandar, militares de alta patente não hesitaram. Mandaram tirá-lo da cama no meio de uma tépida madrugada tropical, sem direito a trocar de roupa: foi desterrado de pijama. Não se ouviu mais falar dele.

Evo Morales, da Bolívia, era outro que dava sinais cada dia mais inquietantes de que pretendia se instalar em definitivo no Palacio Quemado. Um belo dia, foi discretamente informado pelo Estado Maior do Exército de que não podia mais contar com apoio militar e que era melhor afastar-se. Renunciou na hora, embarcou num avião das Forças Aéreas Mexicanas e asilou-se na turística Acapulco. Com as acusações que lhe pesam nas costas, dificilmente pisará de novo os picos áridos e gelados do país natal.

No Brasil, também costumava ser assim. Washington Luís em 1930, Getúlio Vargas em 1945 e Jango Goulart em 1964 seguiram figurino de justiça expeditiva. Hoje o procedimento está mais civilizado. Assim mesmo, com duas destituições em 25 anos, a rotatividade continua acelerada.

Os constituintes de 1988 decerto não imaginaram que processos de destituição pudessem repetir-se com tal frequência. Prova disso é que, apesar de detalhista, a Carta Magna não regulamentou a matéria. Em pleno século 21, impeachments continuam arrimados numa lei sancionada de 70 anos atrás. Recorrer à destituição a cada vez que o chefe do Executivo escorrega é processo desgastante, que trava o andamento normal do país durante meses. A conduta errática da atual presidência – e o espectro de impeachment que a acompanha – devem despertar uma reflexão nacional sobre a oportunidade de instaurar-se o parlamentarismo.

Para quem receasse sentir-se órfão, consola saber que o regime parlamentar não prescinde necessariamente da figura presidencial. O presidente pode até continuar a ser eleito pelo voto popular. A diferença mais notável é a drástica diminuição de seus poderes. Em alguns poucos países, como França e Portugal, embora o governo seja exercido por um primeiro-ministro eleito pelo Congresso, o presidente conserva certas atribuições de Estado; pode, em certos casos, interferir na política externa. Na maioria dos países, nem isso. Presidente é figura representativa – quem governa, de fato, é o parlamento.

Mas, atenção! Para um regime desses funcionar, é essencial estreitar a relação entre eleitores e eleitos. No sistema atual, com parlamentares eleitos pelo voto proporcional, o divórcio é total: nem o eleitor sabe quem o representa, nem o eleito se sente compromissado com quem o elegeu. É a perfeita negação da democracia. É verdade que mexer nisso é como enfiar a mão num saco de caranguejos. Mas não há outro jeito: quando um sistema de governo começa a dar sinais de exaustão como nosso presidencialismo de coalizão (ou de cooptação ou de confrontação, como preferir), é chegada a hora de aperfeiçoá-lo.

O voto proporcional tem de ceder lugar ao voto distrital puro. É simples. Divide-se o país em 513 distritos de população equivalente, cada um correspondendo a um assento na Câmara. Cada distrito escolherá um representante – o SEU deputado – em eleição de dois turnos. Esse sistema tem numerosas vantagens. A campanha eleitoral sai muito mais barata, dado que os candidatos só apertam mãos e distribuem santinhos no interior do distrito no qual concorrem.

O eleitor saberá a qualquer momento quem é seu deputado, fato que lhe permitirá acompanhar o trabalho do eleito e cobrar-lhe as promessas. O sistema distrital tende a enxugar a dispersão de votos, deixando à míngua partidos de aluguel. Com o método distrital, sumirá também o candidato puxador de voto, aquela figura conhecida que, ao receber enorme votação, elege mais quatro ou cinco companheiros inexpressivos.

Com o presidente atual, sempre em equilíbrio precário entre lutas no interior do clã e problemas com a Justiça, toda mudança é improvável. No dia em que ele deixar a presidência, será chegado o momento. Não vai ser fácil vencer as resistências, mas vale a pena – o Brasil merece essa chance.

O golpe que não ousa dizer seu nome

José Horta Manzano

Quando a figura folclórica de Abraham Weintraub(*) começou a funcionar como ministro da Educação, todos ficaram de pé atrás. Quando o homem apareceu num filminho feito em casa, dançando de guarda-chuva aberto, quem ficou boquiaberto fomos nós. Quando ele – que é ministro encarregado da Instrução Pública! – escreveu «insitar» em lugar de «incitar», misturou Kafka com cafta e confundiu 500 mil com 500 milhões, o descrédito com a solidez de sua cultura aumentou.

A partir daí, seu percurso universitário foi esmiuçado e alguns passaram a cercar de ‘urubus’ seu diploma. Para alguns, tornou-se «economista», entre aspas, tão baixo é o nível de conhecimentos que demonstrou. Ganhou direito a epítetos vários – mentecapto, por exemplo. Em resumo, o homem deu mais uma vez a prova de que, quanto mais profunda for a ignorância, maior será a arrogância. São qualidades que andam de mãos dadas. Ignorante de verdade é aquele que não sabe que é ignorante, o que explica sua desenvoltura.

Ontem, 15 de novembro, foi dia em que os brasileiros, todos os anos, comemoram um fato histórico. Chama-se Proclamação da República. No fundo, ninguém está muito preocupado com o significado dessa expressão; o que interessa mesmo é que é dia feriado. Melhor ainda quando cai grudado num fim de semana.

Embora a independência do Brasil tenha sido proclamada às margens do riacho Ipiranga, dizemos sempre Dia da Independência, nunca ‘Proclamação da Independência’. Por que é que não diríamos simplesmente Dia da República – como Dia do Índio, dia disto ou dia daquilo? Meu palpite é que a história oficial procura, com essa pomposa «proclamação», escamotear o fato verdadeiro acontecido em 15 de novembro de 1889: um golpe militar, revolução de palácio sem consulta ao povo nem participação dele.

Não tivesse ocorrido o golpe de 1889, não teríamos tido presidentes. As figuras de destaque teriam sido parlamentares, deputados, senadores, primeiros-ministros. Nunca teríamos tido um Lula, nem uma Dilma, muito menos um Bolsonaro. Alguém imagina um Congresso consagrando doutor Bolsonaro como primeiro-ministro? Um regime parlamentar exige – como seu nome indica – integrantes que parlamentem, que discutam, que demonstrem, que convençam, que provem a que vieram. Tudo isso foi jogado no lixo com o golpe que não ousa dizer seu nome e que nos condenou ao mesmo atraso dos demais vizinhos latino-americanos.

Se falei do bizarro ministro da Educação, foi porque, num raríssimo momento de lucidez histórica, soltou, em seu pedregoso palavreado, um tuíte que condena o golpe que derrubou o monarca hereditário e o substituiu por mandantes eleitos, pondo-lhes nas mãos poder exagerado e abrindo caminho para descalabros como um presidente chamado Jair Bolsonaro. Numa monarquia parlamentar, um indivíduo de poucas letras jamais seria guindado ao posto de ministro da Educação. Senhor Weintraub não atinou com a incongruência.

Como se vê, até mentes primitivas têm seus momentos de discernimento. É pena que sejam raros como morte de papa.

(*) Weintraube é como os alemães chamam um cacho de uvas.

Dupla carreira política

José Horta Manzano

Você sabia?

Não é todo dia que a gente vê homem político fazendo carreira em dois países, evento pra anotar em livro de história. É o que está pra acontecer com Monsieur Manuel Valls, o poliglota que está inscrevendo peculiar percurso político.

O pai dele, espanhol de Barcelona, emigrou para a França quando moço. Lá conheceu a moça com quem viria a se casar, uma suíça italiana. Trocadas as alianças, continuaram vivendo na França. Quando estava pra chegar o primeiro filho, o pai fez questão de que a criança, como ele, viesse ao mundo em Barcelona. Dito e feito, foram de férias à Espanha e lá nasceu o menino Manuel.

Manuel Valls, antigo primeiro-ministro da França

Logo de cara, o moço já tinha duas nacionalidades: a espanhola por parte de pai, e a suíça por parte de mãe. Cresceu na França, país do qual requereu a cidadania assim que completou 20 anos. Esse colecionador de nacionalidades teve ainda a chance de aprender quatro línguas na infância, idiomas que consegue manejar à perfeição: o espanhol, o catalão, o italiano e o francês. Bagagem e tanto!

Jovem ainda, filiou-se ao Partido Socialista Francês e ingressou na política. Foi prefeito, deputado e até primeiro-ministro do país de adoção. Chegou a ser pré-candidato à presidência da república, mas não conseguiu vencer as primárias. Com a débâcle de seu partido estes últimos anos, o homem ficou à deriva, com um mandato de deputado mas sem perspectiva de ocupar postos importantes. É muito pouco pra político ambicioso.

Que não seja por isso. Já faz uns seis meses que ele está em campanha para a prefeitura de Barcelona, sua cidade natal. Na França, poucos acreditavam que desse o passo. Mas parece que Monsieur Valls ‒ agora Señor Valls ‒ está mesmo decidido. Se conseguir, será um dos raros espécimes políticos a ter feito carreira em dois países.

Para a Catalunha em geral e para Barcelona em particular, seria muito bom se o antigo primeiro-ministro francês vencesse a corrida para a prefeitura. Numa província em que o ódio corrói as relações entre independentistas e unionistas, é bem-vinda a presença de um prefeito aberto ao mundo e desprovido de visão sectária.

Frase do dia — 325

«Entendo o seu interesse, mas é melhor que essas coisas ‒ esses colóquios ‒ sejam claros, francos e confidenciais.»

Malcolm Turnbull, primeiro-ministro da Austrália.

A frase foi pronunciada durante coletiva de imprensa, em resposta a um jornalista que pedia detalhes sobre a conversa que o mandatário australiano acabava de ter com Mr. Trump.

Um pouco mais cedo, Donald Trump havia declarado que o colóquio com o líder australiano foi o pior dos quatro bate-papos telefônicos que teve hoje com líderes mundiais. Parece que Mr. Trump, com a delicadeza que lhe é peculiar, bateu o telefone na cara do interlocutor.

Como se vê, o novo presidente americano continua acentuando a insegurança jurídica no país e ampliando sua coleção de desafetos. Fora das ditaduras, presidentes desaforados não costumam terminar o mandato. Vimos esse filme no Brasil recentemente.

Plebiscitos e seus perigos

José Horta Manzano

Em política, quanto mais frequentemente se vota, melhor é. Foi levantada, faz pouco tempo, a ideia de fazer coincidir todas as eleições brasileiras, de maneira a convocar o eleitorado somente uma vez a cada quatro anos. O pretexto é baratear campanhas. A meu ver, é bobagem grossa. Quando se deixa passar muito tempo entre duas votações, permite-se que excessiva pressão se acumule na cabeça de cada eleitor. Esse represamento tende a sair todo de uma vez, como estouro de boiada.

Voto frequente é excelente válvula de escape. Faz tempo que os suíços se deram conta disso. Genebrinos e zuriquenses são chamados às urnas três, quatro ou mais vezes por ano. A cada vez, exprimem opinião sobre vários assuntos. O povo tem, assim, a impressão de que sua vontade está sendo levada em conta e cumprida.

plebiscito-1Espaçar votações é perigoso, é faca de dois gumes. Convocar raros plebiscitos e referendos é ainda pior. O risco é o eleitor não responder à pergunta que lhe é feita, mas deixar-se dominar pela cólera ou pela antipatia que sente pelo governo como um todo. Outro perigo é abrir as portas para a ascensão de políticos populistas, daqueles que dizem o que o eleitor quer ouvir, acenando com soluções simplistas para problemas complexos.

Mesmo na alta política, muita gente fina já caiu nessa cilada. De Gaulle, o homem público mais respeitado pelos franceses, foi vítima de um plebiscito convocado por ele mesmo. O assunto era pouco importante, mas o povo, descontente, disse «não», derrubando o presidente.

No Reino Unido, David Cameron convocou o eleitorado a se exprimir sobre a permanência do país na União Europeia. Era quase certo que o eleitorado votaria pelo statu quo. Infelizmente, o povo votou com o fígado, e o «não» destronou o primeiro-ministro, instaurou o Brexit e levantou problemas cabeludos para a nação.

Ontem mesmo, em referendo, os italianos negaram apoio ao mandatário Matteo Renzi. O voto negativo não significou rejeição às reformas ‒ nove entre dez italianos, de qualquer maneira, não entenderam bem o que estava em jogo. No fundo, o voto serviu para exprimir desagrado com a lentidão com que o país tenta se safar da crise que o vem esmagando há anos.

brexit-3Diferentemente do que apregoam populistas, da experiente francesa Madame Le Pen à desastrada ex-presidente Dilma Rousseff, plebiscito nem sempre responde à pergunta formulada. Mostra o humor predominante naquele preciso instante. É arma perigosa. Atira-se no que se vê e atinge-se o que não se havia visto.

Para que a democracia representativa funcione, é essencial escolher políticos bem-intencionados, honestos, instruídos e dignos. No Brasil, nunca foi fácil encontrar esse tipo de homem público. Hoje em dia, está-se tornando impossível. Às vezes, dá vontade de jogar tudo pro espaço e começar de novo.

“Uma mulher desagradável”

José Paulo Cavalcanti Filho (*)

Calma, leitor amigo. Como dizia Chopin: “não me compreenda tão depressa”. Já dava para suspeitar que se trata de Dilma. Só que a frase do título não é minha, tanto que está entre aspas. É de Pedro Passos Coelho, ex-primeiro-ministro de Portugal. Está no novo livro de José António Saraiva ‒ Eu e os Políticos – lançado no último fim de semana em Portugal e já esgotado.

Saraiva, por quase 30 anos diretor do Expresso, o mais importante semanário de Lisboa, aproveitou a intimidade com políticos importantes da terrinha para entregar amantes, desafetos e indiscrições. Sonho com algo assim no Brasil de hoje. Iria ser divertido.

Dilma e Pedro Passos Coelho

Dilma e Pedro Passos Coelho

Ao ver esse livro nas vitrines, lembrei curiosa historinha que se conta no interior de Pernambuco. Fala de um poeta popular que escreveu cordel com título Os Canalhas de Gravata. E não vendeu nada. Foi quando um espertinho comprou toda a edição e pôs, com caneta, um acento no último “a”. Passou a ser Os Canalhas de Gravatá.  Vendeu tudo. Rápido. Na feira de Gravatá, claro. Afinal, todos temos curiosidade em saber os podres dos outros, sobretudo políticos. É algo universal.

Voltando ao livro de Saraiva, no capítulo dedicado ao antigo primeiro-ministro Passos Coelho, consta que, para ele, Dilma é «mulher presunçosa, arrogante, desagradável, roçando a má educação». Em seguida, refere gafes que ela cometeu por lá.

Como a que se deu na reunião ibero-americana de Cádiz (Espanha) em novembro de 2012, quando Dilma passou horas conversando com o presidente de Portugal, Cavaco Silva, em espanhol(!). Comenta Passos Coelho: «Como se não soubesse quem ele era. Cavaco estava estupefato, sem saber o que fazer: Dilma era presidente do Brasil havia dois anos e não o conhecia?».

Noutra ocasião, Dilma comunicou que visitaria oficialmente o país em 10 de junho (de 2013). E não, como se poderia esperar, para se juntar às comemorações do Dia de Portugal. Qualquer diplomata em princípio de carreira sabe que qualquer outro dia, em função das festas, seria melhor que aquele. É como se alguma autoridade estrangeira quisesse reunir-se com o presidente do Brasil em 7 de setembro na hora do desfile. Um vexame. Tiveram de arrumar, de última hora, helicópteros para recebê-la. Passos Coelho diz, em tom de galhofa: «Inventamos uma cimeira que não existiu, pois ela não vinha preparada para isso».

Pedro Passos Coelho e Dilma

Pedro Passos Coelho e Dilma

Fosse pouco, assim que saiu do avião, Dilma decidiu reunir-se com membros do PS, partido que fazia dura oposição ao governo. O que equivaleria, por aqui, a visitar Lula ou Rui Falcão antes de reunir-se com Temer. O governo luso ficou arreliadíssimo. Enquanto Dilma, nem aí. E aproveitou para degustar, logo depois, um bom bacalhau no restaurante Eleven. Feliz.

Também, amigo leitor, tendo Marco Aurélio «top-top» Garcia como assessor diplomático, ia querer o quê?

(*) O recifense José Paulo Cavalcanti F° (1948-) é advogado. Foi ministro da Justiça durante a presidência Sarney. É membro da Academia Pernambucana de Letras.

Aqui se faz, aqui se paga

José Horta Manzano

Costuma-se dizer que um mal nunca vem sozinho. Sei não, mas parece que o destino é realmente brincalhão. As «brincadeiras» ‒ nem sempre de bom gosto ‒ são cíclicas, como uma linha ondulada. Tem horas em que a gente se sente no topo da onda, com um bocado de coisas boas acontecendo. O chefe dá um aumento, o médico informa que os preocupantes exames deram resultado negativo, o vizinho barulhento se muda. E tem, infelizmente, aquela temporada em que más notícias se acumulam.

Poucos anos atrás, no auge da popularidade e sabendo que não poderia concorrer a um terceiro mandato, o Lula sonhava com a presidência do Banco Mundial ou, por baixo, com o secretariado-geral da ONU. Por seu lado, o Nobel da Paz já lhe parecia praticamente garantido, estava no papo. Pelo menos, era voz corrente entre os cortesãos do andar de cima.

sinusoidal-1Desgraçadamente… a vida é cruel. As coisas são como são e nem sempre como gostaríamos que fossem. Nosso guia, aquele que, garboso, já passeou de carruagem ao lado da rainha da Inglaterra, está no baixo da curva. Ou no fundo do poço, se preferirem. No curto espaço de 24 horas, três notícias pesadas lhe caíram direto no cocuruto.

Dia 6 de outubro, uma pancada. O sorridente senhor Guterres, que já foi primeiro-ministro de Portugal, foi sacramentado como secretário-geral da ONU. Assume as novas funções dia 1° de janeiro. Nosso taumaturgo pode dar adeus àquele trono.

A segunda pancada ‒ essa doeu! ‒ veio no mesmo dia. Foi a decisão do STF de «fatiar» acusações de corrupção. Deixo a explicação dos pormenores para especialistas, que o assunto é meio complicado. Trocando em miúdos, fica a certeza de que nosso guia, pelo menos nesse caso específico, escapou de Curitiba mas caiu direto no tribunal maior. Condenado ali, não terá a quem apelar: é direto pro xilindró.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Se não bastasse a decepção de ver, ao mesmo tempo, a ONU escapar-lhe das mãos e as grades se aproximarem, recebeu outra paulada no dia seguinte. O presidente da Colômbia ‒ que insolência! ‒ acaba de ser anunciado como o ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2016. Justamente o presidente Santos!

O distinto leitor há de se lembrar que certos “assessores” do Lula levaram anos tentando dar uma mãozinha à guerrilha colombiana. De repente, vem um pouco conhecido presidente do país vizinho e, como quem não quer nada, acaba com o conflito de meio século! Que bordoada, Lula!

Assim são as coisas, que fazer? Resta a nosso demiurgo esperar por um convite para presidir o Banco Mundial. Nada é impossivel, mas acho que vai ser difícil. Ainda que escape da cadeia, o homem não tem inglês fluente.

Arma secreta

José Horta Manzano

Heroi 1Todo país guarda memória de algum dirigente excepcional, daqueles que só aparecem uma vez por século. Refiro-me a gente da estirpe de um Winston Churchill, de um Otto von Bismarck, de um Abraham Lincoln ou de um Charles de Gaulle. O Canadá também teve o seu. Foi o Primeiro-Ministro Pierre Elliott Trudeau (1919-2000).

Dotado de grande simpatia e de espírito vivo, Trudeau segurou as rédeas de seu país em duas ocasiões, totalizando 15 anos. São de sua lavra algumas pérolas oratórias. Certa ocasião, em discurso no Clube de Imprensa de Washington, soltou uma preciosidade curta, grossa e irretocável. Referindo-se aos Estados Unidos, disse:

Interligne vertical 3Interligne vertical 3«Living next to you is in some ways like sleeping with an elephant. No matter how friendly and even-tempered is the beast, one is affected by every twitch and grunt.»

Ser vizinho seu é como dormir com um elefante. Por mais amistoso e manso que seja o animal, a gente sente cada movimento e cada grunhido.

Fazia alusão, naturalmente, ao descomunal peso demográfico, econômico, militar e político do vizinho. Os dois países são separados (ou unidos, como queira) por quase 9000km de linha demarcatória, a mais longa fronteira do planeta entre duas nações.

Fronteira 1Embora a gente nem sempre se dê conta, o Brasil assume, na América do Sul, o papel do elefante. Com população e peso econômico equivalente ao de todos os hermanos reunidos, nosso país é observado com crescente atenção pelos vizinhos. Nossos sobressaltos nacionais extrapolam fronteiras.

A edição online deste domingo do espanhol El País aponta exatamente para essa influência que, o mais das vezes, nos passa despercebida. Se mensalões, petrolões e recessões nos deixam apreensivos, o mesmo sentimento de insegurança atravessa cerrados, pampas, pantanais e florestas para incomodar outros povos.

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

Nossos vizinhos – uns menos, outros mais – sentem inquietação. Para a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, as trocas comerciais com o Brasil são de importância vital. Se bambearem, eles estarão em apuros.

Nossos vizinhos de inclinação autocrática e populista – ou «bolivariana», como eles preferem – andam angustiados com os desdobramentos da Lava a Jato. La Paz, Caracas e Quito sabem que o regime que vêm tentando implantar há anos não sobreviverá a uma guinada brasileira em direção à civilização. Se o Brasil conseguir aperfeiçoar sua democracia, o regime autoritário de alguns vizinhos definhará.

Manif 3A marca deixada pelo presidente americano Richard Nixon (1913-1994) não é positiva. No entanto, em pelo menos uma ocasião, o chefe de Estado pronunciou palavras proféticas. Em 1971, já vislumbrava a crescente e inevitável influência de nosso País quando disse que «para onde for o Brasil, irá a América Latina».

Está aí, companheiros! Não estamos sós! Além-fronteiras, também se repete a partição entre «nós & eles». De um lado, há os que torcem pelo soerguimento da economia brasileira, objetivo que só pode ser atingido depois de varrida a bandalheira que nos tem martirizado. De outro lado, há os que rezam para que nada mude, pois são beneficiários diretos do statu quo.

Quanto aos de fora, que torçam, que rezem, que façam novena ou trezena, de pouco adiantará. O futuro do Brasil está contido na arma que só se concede aos nacionais: o voto.

Titubeação

José Horta Manzano

Janio 2O passo original foi dado mais de 50 anos atrás pelo então presidente da República, o pranteado Jânio da Silva Quadros. Ficou na história como símbolo de vacilação e de irresolução. A aventura do presidente, por sinal, não durou muito: logo renunciou ao mandato. Na sequência, foi despachado rapidinho pra Londres e, durante décadas, não se ouviu falar do homem. Ah, tempos beatos em que anjos caídos se calavam!

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Numa inspirada charge, o desenhista Roque Sponholz comparou o espírito confuso e desnorteado de Jânio à insegurança de dona Dilma. Cada um a seu tempo, foram ambos obrigados a enfrentar terrível situação de cego em tiroteio. A história dirá se a solução do problema da atual mandatária terá de passar, obrigatoriamente, pela renúncia.

Dilma MerkelEstes dias, Frau Merkel veio de visita a dona Dilma. Vendo as duas assim, sorridentes e coloridas, a gente até poderia imaginar que disputassem um concurso de elegância à la garçonne. A um olhar mais atento, a conclusão se impõe: nossa mandatária ensina à chanceler alemã a maneira correta de demonstrar vacilação.

A la garçonneQuanto a renunciar, Frau Merkel não corre esse risco. Muito pelo contrário: é ela quem acaba de constringir o primeiro-ministro da Grécia à renúncia.

A pose esboçada diante de dona Dilma tem o mesmo valor que os três passos de dança dados pelo Príncipe de Gales, tempos atrás, numa quadra de escola de samba. É só pra contentar fotógrafo.

A escapada do ministro

José Horta Manzano

Estadio 3Sábado passado, em Berlim, teve lugar a final da Liga dos Campeões, campeonato que congrega os mais prestigiados times europeus de futebol. Os finalistas eram o espanhol Barcelona – grande favorito – e o italiano Juventus. O jogo, retransmitido ao vivo para meio mundo, prendeu a atenção de europeus, africanos, mongóis e patagões.

Gente fina veio de longe para assistir ao vivo. A procissão de visitantes incluiu o primeiro-ministro da França, Manuel Valls. Convém ressaltar que Monsieur Valls é francês naturalizado. Nasceu espanhol – barcelonês, para ser mais exato.

Caso pouco comum, o homem tem três nacionalidades: herdou a cidadania espanhola do pai, a suíça da mãe e, para coroar, tornou-se francês por naturalização. É perfeitamente quadrilíngue. Domina o espanhol, o catalão, o italiano e o francês. O Barça é seu time do coração, todo o mundo sabe disso.

Mesmo inconfesso, ficou claro que o objetivo da visita relâmpago a Berlim era assistir ao jogo. Monsieur Valls não foi sozinho: deu carona a dois de seu filhos adolescentes. Hoje em dia, como sabe o distinto leitor, não se consegue esconder mais nada. No dia seguinte, a notícia estava no jornal, no rádio, na tevê, nas redes sociais.

Manuel Valls

Manuel Valls, primeiro-ministro da França

Políticos da oposição não deixaram escapar a ocasião. Unanimemente, condenaram a largueza do primeiro-ministro, acusado de fazer turismo em família à custa do contribuinte. É verdade que cada viagem num avião Falcon do governo movimenta grande número de colaboradores, técnicos, seguranças e custa uma nota preta, coisa de quatro mil euros por hora. Sem contar o combustível.

Acuado, Monsieur Valls pediu socorro a Michel Platini, que preside a Uefa – a organizadora do campeonato. Monsieur Platini confirmou que o primeiro-ministro tinha viajado a Berlim a seu convite. Não funcionou. Na França, a grita só fez aumentar. Nesta quarta-feira, a mídia não falava em outra coisa. Uma providência tinha de ser tomada para apagar o incêndio.

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Monsieur Valls decidiu vir a público fazer seu mea-culpa. Não pediu desculpas, mas fez pronunciamento contrito e apaziguador. Disse que, se fosse possível voltar no tempo, não refaria a viagem. Prometeu ressarcir o erário do valor da passagem dos filhos: 2500 euros.

Pronto, pode-se virar a página. Malfeito confessado é malfeito (quase) perdoado.

Fiquei pensando no petrolão. Fiz as contas, comparei, pesei e… achei melhor pensar em outra coisa. Pra evitar ficar deprimido. Afinal, a primavera está tão linda, as árvores com folhas novas, os passarinhos cantando. Uma beleza.

Os amigos de meus amigos

José Horta Manzano

Lula e Socrates 1José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa é homem político português. Formado em engenharia em Portugal, tem mestrado em ciências políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris. Foi secretário-geral do Partido Socialista Português e chegou ao posto maior: foi primeiro-ministro de seu país durante seis anos – de 2005 a 2011.

Atropelado pela Operação Marquês, investigação de escândalo político-financeiro que tem pontos comuns com nosso mensalão, foi preso em novembro do ano passado. É suspeito de corrupção, fraude fiscal e lavagem de dinheiro – crime ao qual nossos amigos lusos dão o nome charmoso de branqueamento de capitais.

Já faz quatro meses que o político caído em desgraça se encontra em prisão preventiva à espera de julgamento. Por quatro vezes, seus advogados interpuseram, sem sucesso, pedido de habeas corpus. Semana que vem, um quinto tentamento será analisado pela magistratura.

Em outubro de 2013, José Sócrates tinha lançado seu livro A confiança no mundo, um ensaio político. O semanário português Sol revelou que o antigo primeiro-ministro teria comprado, por intermédio de laranjas, 98% dos exemplares da edição em poucos dias, garantindo, assim, o êxito da obra.

Lula e Socrates 2É difícil comprovar, de cabo a rabo, a veracidade da afirmação. Livrarias não costumam pedir que clientes declinem sua identidade . Mais que isso, comenta-se, à boca pequena, que os milhares de exemplares teriam sido comprados com dinheiro desviado de estatais.

Não há que se diga: mais vale desviar dinheiro de estatais para compra de livros do que para guarnecer contas bancárias em paraísos fiscais. Se bem que… parte do dinheiro dos livros acaba voltando ao bolso do autor, que pode depositar a pecúnia onde bem entender.

Para garantir o sucesso de seu livro, José Sócrates pediu a Lula da Silva que assinasse(*) o prefácio. O nome do antigo presidente do Brasil aparece, com destaque, na capa. Ambos – Sócrates e Lula – estavam presentes na sessão de autógrafos, realizada em 23 de outubro de 2013.

Lula e Socrates 3O registro de visitas do Estabelecimento Prisional de Évora, do qual o antigo primeiro-ministro é inquilino há quatro meses, não foi franqueado ao público. Assim mesmo, poucos acreditam que nosso antigo presidente da República tenha levado seu abraço solidário ao companheiro encarcerado. Se lá esteve, nosso recatado guia não permitiu que a informação vazasse.

Interligne 18g

(*) A Televisão Portuguesa Internacional apresenta um interessante programa, toda sexta-feira, chamado Sexta às nove. O desta semana contou a história da rapidíssima e suspeita venda do livro. É da simpática apresentadora do programa a expressão “José Sócrates pediu a Lula da Silva que assinasse o prefácio”. Evitou dizer escrevesse. É compreensível.

La legge è uguale per tutti

José Horta Manzano

As aventuras de Signor Pizzolato renderiam um bom romance de suspense com toques de surrealismo. Quem sabe até, um dia, as peripécias serão levadas à tela.

Tribunal 5Que é esse senhor? Ora, falo daquele mensaleiro que, usurpando a identidade de um parente já falecido, fugiu para a Itália para escapar à punição. Imaginando-se mais esperto que o resto da gangue, virou as costas para os demais, desertou na calada e se foi para o que imaginava fosse porto seguro.

Deu-se mal. Caçado, foi encontrado e encarcerado. Trancaram-no em regime fechado mais tempo que os comparsas instalados na Papuda. Durante esse tempo, comeu menos feijão, mas macarrão não lhe há de ter faltado.

Num primeiro momento, a justiça italiana negou a extradição solicitada pelo Brasil, em decisão que desagradou a promotoria e o governo brasileiro. Entraram ambos com recurso, que acaba de ser julgado. A corte suprema de Roma, em decisão definitiva, cassou a decisão das instâncias inferiores. Estatuiu que o réu é passível de extradição.

Tribunal 6Exatamente como no Brasil, o decreto de reexpedição do condenado tem de ser assinado pelo chefe do governo – que pode, em teoria, graciar o extraditando. Pessoalmente, acredito que signor Matteo Renzi, o primeiro-ministro, não se oporá à decisão do tribunal maior.

A parte surrealista vem embutida no relato do embate entre a promotoria e os defensores do réu. Pizzolato alegou que escapara do Brasil para «salvar a vida». Sabemos todos que seus parceiros não só foram bem tratados na prisão, como também transformaram o cárcere em sala de visitas e em balcão de negócios.

Justiça 5Para reforçar o irrealismo, numa confissão espontânea da injustiça social que impera no País, as autoridades brasileiras garantiram que o condenado «receberá tratamento melhor que os demais presos».

Tem mais. Diante dos juízes da corte de Roma, os advogados contratados pelo Brasil afirmaram que, como os companheiros condenados no mensalão, Pizzolato «fará parte de uma categoria de presos aos quais está assegurado o total respeito da lei e de seu conforto».

A conclusão se impõe: no Brasil, nem todos os presos têm direito ao respeito nem acesso a condições de conforto. A estratificação socioeconômica não se extingue à porta da penitenciária.

Interligne 18bPS1:
Todo tribunal italiano assegura, em letras garrafais afixadas à vista de todos, que «La legge è uguale per tutti» – a lei é igual para todos.

PS2:
Recomendo aos distintos leitores dar uma espiada em meu artigo Vamos jogar golfe? É boca livre. Foi postado um ano atrás e trata das peripécias de signor Pizzolato.

Frase do dia — 211

«Ninguém está acima da lei. É esta a primeira base de qualquer sociedade livre. A prisão de um indivíduo poderoso, seja ele banqueiro ou político, é um momento de força da sociedade.

Quando não há escândalos é que as coisas estão mal. Uma sociedade livre define-se pela abundância de escândalos – as ditaduras é que não os têm.»

Henrique Raposo, cronista do periódico luso Expresso, ao comentar a prisão de José Sócrates por suspeita de fraude fiscal. Sócrates foi primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011.

Para o Brasil de novembro de 2014, a frase cai como luva.

Abobrinhas

José Horta Manzano

Em declaração pra lá de incoerente, Arnaud Montebourg ― o explosivo ministro da Economia da França ― reclamou, este fim de semana, que a política econômica do país está «no rumo errado» e que tem de ser redirecionada.

Imaginem: um ministro que fala mal de sua própria política! Diante do escândalo, a situação ficou insustentável. Na segunda-feira de manhã, o país ficou sabendo que o primeiro-ministro tinha apresentado sua demissão ao presidente da República. Com isso, todos os ministros foram exonerados.

Blabla 2O presidente pediu ao primeiro-ministro que permaneça no cargo. Estão, os dois juntos, alinhavando o novo ministério. Amanhã saberemos quem são os escolhidos. É forte a probabilidade de o ministro afrontador não fazer parte do novo grupo.

No Brasil, se pegasse a moda de dispensar ministro que diz bobagem, não sobraria muita gente em torno de dona Dilma.

Empurrando a culpa

José Horta Manzano

Lado A
Dois anos atrás, François Hollande ganhou de Nicolas Sarkozy e foi eleito presidente da França. O sistema político francês ― a meio caminho entre o presidencialismo e o parlamentarismo ― dá grande poder ao presidente, mas impõe que ele nomeie um primeiro-ministro, que, por sua vez, deverá receber o voto de confiança da assembleia. É cargo que funciona como fusível: está na linha de frente para receber choques. Quando queima, é substituído.

Jean-Marc Ayrault

Jean-Marc Ayrault

Ao ser eleito, Hollande concedeu o posto de primeiro-ministro a um amigo de muitos anos, Monsieur Ayrault. Mas os tempos são difíceis, com estagnação econômica e taxa de desemprego nas alturas. Indústrias abandonam o território para se instalar em país de mão de obra barata. Como resultado, a popularidade de Hollande baixou a níveis jamais registrados para um presidente.

Faz poucos dias ― como lhes contei em post de 27 de março ― realizaram-se eleições para prefeito em todos os municípios do país. O povo não perdeu a ocasião de mostrar seu descontentamento: o partido do presidente levou uma surra nas urnas. Os socialistas perderam a prefeitura de dezenas de cidades importantes.

Em países civilizados, certas regras do jogo democrático, embora apenas consensuais e não escritas, costumam ser respeitadas. Quando um figurão não tem mais o apoio popular, melhor dizer adeus e ir-se embora. Foi o que fez Monsieur Ayrault, o primeiro-ministro. Fechadas as urnas, contados os votos e constatada a lavada, convocou a imprensa. Em breve discurso diante das câmeras, assumiu pessoalmente a inteira responsabilidade pelo insucesso. Dia seguinte, apresentou sua demissão ao presidente da República. E se foi.

Lado B
Estamos todos assistindo, estes dias, a espetáculo consternante proporcionado por dona Dilma. Diante da evidência de que houve «irregularidades» ― para usar palavra gentil ― nos negócios da Petrobras nos EUA durante sua gestão, vem ela com a versão 2.0 do conhecido «eu não sabia de nada».

Petrobras 3Não contente de confessar sua ignorância sobre o que se passava na empresa que estava sob sua guarda, vai mais longe: desce à baixaria de acusar um subordinado. «A culpa é daquele ali, ó! Eu sou boazinha, gentil, reta e proba ― jamais faria uma coisa dessas. Assinei sem ler! Fui traída!»

Para uma antiga revolucionária, que se vangloriou de jamais ter denunciado um companheiro, nem sob tortura, cai mal. Para quem ocupa o cargo maior da República, cai pior ainda. Um pouco de dignidade não lhe faria mal.

Não se exige a verdade integral, mesmo porque talvez nem ela a conheça. Que dê a desculpa que lhe parecer mais conveniente, mas que, pelo menos, não entregue o companheiro. Coisa feia.

Francamente, não se fazem mais revolucionários ― nem revolucionárias ― como antigamente.

Quem tem medo de povo?

José Horta Manzano

A Noruega é uma monarquia parlamentar. O rei é chefe do Estado, com funções meramente simbólicas. Como a rainha da Inglaterra e outros monarcas modernos, o rei da Noruega não interfere na vida política. Representa a base, o cimento que mantém a sociedade unida. Os políticos vêm e vão, dependem de confirmação periódica pelo voto. No final, acabam passando. Já o monarca permanece, firme e forte, até que abdique do trono ou que exale o último suspiro. O governo é exercido pelo parlamento e chefiado pelo primeiro-ministro.

Falando em eleições, a Noruega se prepara para renovar os 169 membros de seu parlamento. Entre 1° de julho e 6 de setembro, os cidadãos têm o direito de votar por antecipação. Os que preferirem podem deixar para votar no último dia, 9 de setembro.

Noruega

Noruega   –   clique para ampliar

O país conta com dois partidos políticos principais que congregam, juntos, cerca de 60% dos votos. Uma meia dúzia de partidos menores compartilham o resto. O vencedor virá, com certeza, de um dos dois partidos majoritários. Neste momento, as pesquisas indicam empate entre os dois candidatos principais. Um deles é justamente o atual primeiro-ministro, Jens Stoltenberg.

Sabemos todos que a sociedade escandinava está entre as mais igualitárias do planeta. Nesse campo, a norueguesa sobressai. Ninguém por lá está interessado em títulos. O tratamento de respeito correspondente a «o senhor/a senhora» foi abolido já faz muitos anos. Todos se chamam usando a mesma palavra: Du. Senhor Fulano ou Senhora Sicrana são fórmulas do passado, que hoje fariam sorrir. Nem em cartas comerciais de cerimônia se deve dar título ao destinatário. Quando não se conhece a pessoa e se tem de ser formal, escreve-se o nome e o sobrenome. E basta.

Dito isso, Jens Stoltenberg, o sorridente primeiro-ministro, é candidato a suceder a si mesmo. Quis saber de perto o que o povo pensava dele e de seu governo. Chegou à conclusão de que cabeleireiros e taxistas são profissionais que costumam recolher declarações íntimas e espontâneas de muita gente em pouco tempo. Dado que não leva jeito para cabeleireiro, decidiu exercer a função de taxista por um dia inteiro.

Noruega

Noruega   –   clique para ampliar

Vestiu o uniforme, pendurou o crachá de rigor, enfiou óculos escuros para disfarçar, e pôs mãos à obra. Aproveitou para filmar os acontecimentos (*) com uma câmera discreta. A oportunidade era excelente para matar dois coelhos de uma só cajadada: ficar a par dos comentários da população e fazer seu marketinguezinho a preço de ocasião.

Acertou na mosca. Ainda não se sabe se o vídeo o terá ajudado a ganhar alguns votos, mas o fato é que fez sucesso planetário. Foi repercutido da Islândia até o Bangladesh.

Como deve ser bom viver num país onde o primeiro-ministro pode sair à rua sem proteção e, principalmente, sem medo de povo, de agressões ou de vaias.

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(*) Assista ao vídeo, que vale a pena. São menos de 3 minutos.

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As malandragens de lá e as de cá

José Horta Manzano

Em todo país civilizado, leis votadas pelo parlamento têm de ser sancionadas pelo chefe do Estado. Em muitos países, o Estado é chefiado por um presidente. No reino da Bélgica, o rei é o chefe do Estado. Uma nova lei só passa a valer depois de assinada por ele.

Em 1990, por lá reinava o mui católico Balduino I, fervoroso praticante de sua religião. O parlamento do país, após anos de debates, acabava de aprovar uma lei autorizando o aborto sob certas condições.

Rei Balduíno da Bélgica

Rei Balduíno da Bélgica

O rei, diametralmente oposto a essa resolução, recusou-se a sancionar o texto e pediu ao Primeiro-Ministro que encontrasse uma saída legal para o impasse. Uma solução que conciliasse as convicções íntimas do soberano com o anseio dos cidadãos.

O jeito foi recorrer a um artigo constitucional raramente invocado. O Conselho de Ministros constatou que o rei se encontrava na impossibilidade de exercer suas funções. Seus poderes foram então transferidos ao Primeiro-Ministro, que sancionou a lei controversa. Pouco tempo depois, o rei foi declarado apto a reinar. E voltou ao trono.

Há quem discuta até hoje se o recurso a esse subterfúgio foi realmente legal. No fundo, no fundo, não foi. O espírito do legislador ao incluir aquele artigo na Constituição do país tinha em mira um eventual afastamento físico do rei ― uma longa viagem, por exemplo ―, ou um caso de doença.

Seja como for, o rei mostrou ser um homem de convicções, um espírito reto. Embora apegado a princípios um tanto démodés, Balduíno era homem de elevada estatura moral.

Esse episódio, longe de causar celeuma, rendeu-lhe admiração e respeito. Sua popularidade cresceu vertiginosamente entre os súditos.

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Um acontecimento que lembra o caso de Balduíno teve lugar estes dias no Brasil. Nestes tempos estranhos em que estádios passam a chamar-se arenas, o caso passou praticamente despercebido.

Assim mesmo, jornais têm falado de um obscuro senhor Afif, homem político que, no limite da legalidade, carrega dois chapéus. Sem a menor cerimônia, apresenta-se como vice-governador do Estado de São Paulo ou como 39° Ministro da República, ao sabor das circunstâncias.

Com o coração empedrado pelos contínuos escândalos que têm sacudido a República estes últimos 10 anos, os brasileiros não deram muita atenção ao fato. Perto de tantas revelações mais escabrosas, essa duplicidade de funções concentradas num só indivíduo não é de fazer corar ninguém.

Dilma Rousseff e Afif Domingos

Dilma Rousseff e Afif Domingos

Mas a lei não autoriza essa farra. Nosso amigo terá de escolher, mais dia, menos dia, se usa este boné ou aquele. Não será possível continuar muito tempo cavalgando duas montarias.

Edificante reportagem do Estadão de 8 de junho nos informa que o senhor Afif agiu como o rei Balduíno. Surpreendido pela perspectiva de uma repentina ausência do governador, que se preparava para uma viagem ao exterior, tinha de assumir suas funções de vice. Mas só poderia fazê-lo se renunciasse ao cargo de ministro. Que fazer?

Uma saída à belga foi encontrada. Publicou-se às pressas uma edição extra do Diário Oficial ― à custa do contribuinte, evidentemente ― para anunciar a demissão do ministro. Isso abriu-lhe o caminho para assumir o posto de vice.

É verdade que lembra o caso de Balduíno. Mas, convenhamos, a motivação do senhor Afif é ― sejamos comedidos ― menos nobre.