Genocida, não!

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 janeiro 2022

A validade de um estudo científico só é autenticada depois de ele ter sido avaliado e abonado por um conjunto de reconhecidos cientistas da mesma área. É o que os ingleses chamam ‘peer review’.

Costuma-se traduzir essa expressão como ‘revisão por pares’, ‘revisão paritária’ ou até, um tanto desajeitadamente, ‘arbitragem’. A tradução flutuante vem do fato de não ser comum, entre nós, designar de “pares” os que exercem a mesma função ou os que pertencem à mesma categoria. Assim, qualquer tradução literal periga sair meio manca. Mas, pela atual tendência de integração de conceitos estrangeiros a nossa língua, a solução já foi encontrada: mantém-se a expressão inglesa, com casca e tudo.

A organização MedRxiv, cujo estranho nome se deve pronunciar “med-archive” (‘arquivo médico’) é um repositório online de preprints da área médica, clínica e de saúde. Preprint, como o nome sugere, é a publicação prévia de artigo científico ainda não validado pelos pares.

Agora vamos aos fatos. Alguns dias antes do fim de dezembro 2021, uma dezena de cientistas brasileiros assinaram, sob forma de preprint, um alentado estudo sobre a correlação entre vacinação, hospitalização e morte de maiores de 60 anos. A primeira constatação, como se imaginava, é de que a taxa de óbitos decresce à medida que a vacinação se generaliza.

Em seguida, os signatários do estudo valeram-se de fórmulas complicadas demais para serem descritas por não-iniciados como este escriba. O que interessa são as conclusões. E elas são comprometedoras para o governo brasileiro. O incrustado negacionismo gerado pela ignorância presidencial custou caro ao país. Em vidas humanas.

O estudo estima que milhares de idosos brasileiros foram salvos pela vacinação: um total de 75 mil, só no ano de 2021. Não fosse a vacina, esse contingente já não estaria mais entre nós. Essa é a parte decente da história. Em paralelo, há um lado bem mais sombrio.

Todos se lembram dos esforços envidados pelo capitão para frustrar – ou, pelo menos, retardar – a compra de vacinas anticovid. Baseados em análise dos dados e em cálculos atuariais, os cientistas chegam à conclusão de que, se a vacinação tivesse começado 8 semanas antes, 48 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Quarenta e oito mil mortes! Para efeito de comparação, essa hecatombe equivale à queda de 185 Boeings modelo 767 lotados, com 260 passageiros cada um, sem nenhum sobrevivente pra contar a história. Ou 4.800 desastres como o de Capitólio (MG), que ocupou as manchetes com suas 10 vítimas – um Capitólio por dia, durante 40 meses sem parar. Estamos falando apenas das mortes evitadas.

Muitos chamam Bolsonaro de genocida. Estão errados. Genocídio é palavra relativamente recente, criada nos anos 40 e oficializada por convenção da ONU de 1948. A definição é rigorosa: exterminação sistemática de um grupo humano por motivos de raça, língua, nacionalidade ou religião. É, portanto, limpeza étnica – um ato extremado levado a cabo por motivos religiosos ou por loucura.

Os atos de Bolsonaro não correspondem à definição. Sabe-se que ele não gosta de pobre, mas a negação da pandemia não causou morte só de pobres. Sabe-se que ele tem medo de “comunista”, mas o atraso na compra das vacinas não mandou só “comunistas” pro cemitério. Sabe-se que ele é misógino, mas a louvação da cloroquina não matou só mulheres.

Bolsonaro tem alguns parafusos soltos. Sua loucura é apimentada por ignorância, poltronice e preguiça – condimentos explosivos, mas que não chegam a configurar um genocida que se preze. Genocidas verdadeiros, não houve tantos assim. O século XX conheceu alguns dos grandes, tais como Hitler (Alemanha), Pol Pot (Cambodja) e Stalin (URSS). Há outros menos conhecidos. Por mais que tenha feito, nosso capitão não entra nessa categoria.

Genocídio requer método e planejamento, conceitos que não frequentam o universo mental de Bolsonaro. Ele não passa de um ser perturbado, atrasado, sem instrução, paranoico, que chegou à Presidência numa esquina da história que não se repetirá. Está mais pra patacão que pra genocida.

Os nomes da Alemanha

clique para ampliar

José Horta Manzano

Você sabia?

Na maioria dos casos, quando o nome de um país é “traduzido” em outras línguas, faz-se apenas uma adaptação gráfica e fonética para ficar em conformidade com o espírito da língua em questão.

No nosso caso, veja como fica o nome Brasil numa vintena de idiomas.

Inglês:      Brazil
Tcheco:      Brazílie
Esloveno:    Brazilija
Dinamarquês: Brasilien
Holandês:    Brazilië
Estoniano:   Brasiilia
Finlandês:   Brasilia
Francês:     Brésil
Lituano:     Brazilija
Russo:       Бразилия (Brazilia)
Alemão:      Brasilien
Grego:       Βραζιλία (Brasilía)
Eslovaco:    Brazília
Húngaro:     Brazília
Búlgaro:     Бразилия (Brazilia)
Italiano:    Brasile
Letão:       Brazīlija
Polonês:     Brazylia
Romeno:      Brazilia
Espanhol:    Brasil
Sueco:       Brasilien
Turco:       Brezilya

Como se vê, percorrem-se todas as notas, mas a base é uma só. Com quase todos os países funciona assim, adapta-se o nome original e pronto. No entanto há uma notável exceção: a Alemanha. Esse país é um caso à parte.

Diferentemente da maioria das nações europeias, a Alemanha não existia como país unificado até os anos 1870. Mas os povos que habitavam o território eram conhecidos desde a Antiguidade. Assim sendo, os vizinhos (tanto os mais próximos quanto os mais distantes) não esperaram até o século 19 para dar nome ao país que é hoje a Alemanha. Nas variadas línguas europeias, a região sempre teve um nome.

É que dois milênios atrás, tribos germânicas se espalharam pelo território europeu, num período de expansão conhecido como o das invasões bárbaras. O nome da tribo que entrou em contacto com cada região da Europa acabou por se estender ao nome do que seria a futura Alemanha unificada. Vamos explicar por alguns exemplos.

Os povos da Europa ocidental entraram em contacto com os Alamanes, uma das tribos germânicas. É por isso que deram o nome de Alemanha à região de onde provinham os invasores. Com pequenas adaptações, o nome permanece nas línguas da Europa ocidental (Alemanha, Alemania, Allemagne) e até na Turquia e na África do Norte (Almanya).

Os povos do Mar Báltico oriental conheceram os Saxões, outra tribo germânica. Até hoje, em finlandês e em estoniano (que, diga-se, são línguas irmãs), o nome da Alemanha é Saksa ou Saksamaa (=país dos Saxões).

Os povos da Escandinávia e os das regiões vizinhas à atual Alemanha acabaram adotando o nome que os alemães dão ao próprio país: Deutschland. Com adaptação fonética e gráfica, ficou Duitsland (Holanda), Tyskland (Escandinávia) e Tütschland (Suíça).

Já quem invadiu a região da atual Letônia e da Lituânia, muitos séculos atrás, foram os Valagodos (ou Vagotos), outra tribo germânica. Na língua desses dois países bálticos, a Alemanha, mesmo antes de se constituir como Estado unificado, já era chamada de Vacija (letão) e Voketija (lituaniano).

O nome da Alemanha nos países eslavos (Niemcy em polonês e Nemecko em eslovaco, por exemplo) tem origem curiosa. Provém de uma antiga raiz protoeslava que significa “mudo”. Não é que os povos bárbaros fossem mudos, mas simplesmente não falavam a língua local. Daí terem recebido esse cognome que perdura até os dias atuais.

No total, o mundo pode escolher entre 6 bases etimológicas para nomear a Alemanha – um recorde mundial. O mapa estampado acima é bastante esclarecedor. Cada cor corresponde a uma base etimológica.

Como se vê, além de ser nação rica, a Alemanha conta com rico repertório de nomes.

Acento, pra que te quero?

José Horta Manzano

Estadão
“As ações e omissões do governo Bolsonaro em apenas tres anos, particularmente nos dois ultimos, demandarão novos parametros de analise dos historiadores no futuro. Afinal, não ha mal maior ja infligido ao Pais pelo poder publico do que as mortes de milhares de pessoas em decorrencia da covid-19 que poderiam ter sido evitadas caso a desidia, o egoismo, a falta de compaixão e a incompetencia administrativa não fossem as marcas da atuação do governo federal no enfrentamento da crise sanitaria.”

Folha
“Do governo Jair Bolsonaro não se pode esperar nada senão tumulto e desinformação, como mostra a escandalosa nota tecnica produzida pelo Ministerio da Mulher, da Familia e dos Direitos Humanos. Como se o despauterio fosse pouco, o ministerio ainda incentiva que o Disque 100, canal governamental de denuncias de violações dos direitos humanos, seja usado por aqueles que não se vacinam para relatar “discriminações” sofridas —o que alem de deturpar o serviço pode vir a sobrecarrega-lo.”

Globo
“Era de esperar que, apos os obstaculos iniciais, muitos deles criados pelo proprio presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Saude, Marcelo Queiroga, a vacinação infantil no pais avançasse sem maiores sobressaltos. Mas não. Em algumas cidades, pais que levam os filhos aos postos de saude são surpreendidos com exigencias descabidas, como a obrigatoriedade de assinar um termo de consentimento, medida que contraria as normas do Ministerio da Saude e funciona como um desestimulo à vacinação.”

Os trechos acima foram extraídos de editoriais dos três principais jornais do país. O distinto leitor há de ter sentido que algo estava estranho. Pois foi de propósito. Eliminei todos os acentos, tanto os agudos (‘) quanto os circunflexos (^). O til ficou porque não é acento, é sinal gráfico que indica nasalização (e que pode coexistir com acento tônico, como na palavra ‘bênção’). O acento grave também ficou porque não indica sílaba tônica, mas a junção de dois aa, uma crase.

Agora vem a pergunta: alguém sentiu alguma dificuldade na leitura? Engasgou nalguma palavra, não entendeu um trecho, ficou na dúvida sobre algum significado? Acredito que não.

Costumo comparar nossa língua e sua multidão de acentos com outras que não têm nenhum. Como é que pode? Como é que um inglês ou um alemão se viram sem esses sinaizinhos? E os italianos que, afinal, têm uma língua latina, bastante próxima da nossa? Eles só usam o acento grave para indicar palavras oxítonas, mais nada.

Acho que, na próxima reforma ortográfica (que não deve demorar, visto que elas são tão frequentes entre nós), os sábios deveriam refletir sobre isso. Dá pra eliminar, fácil, 19 em cada 20 acentos agudos e circunflexos. Sem prejuízo da leitura ou da compreensão.

Antes da reforma de 1943, a norma brasileira da língua impunha pouquíssimos acentos. Se os antigos conseguiam se virar, por que é que nós, os modernos, somos obrigados a nos perder nessa selva de acentos – na maioria, desnecessários?

O terremoto

Correio Paulistano, sabbado 28 jan° 1922

José Horta Manzano

Você sabia?

No Brasil de antigamente, parece que a vida escorria mais lenta. Há razões objetivas para isso.

  • O clima era mais ameno. Não fazia calor como hoje. Basta conferir os registros meteorológicos.
  • As distâncias eram menores – refiro-me às que se percorriam habitualmente, de casa ao trabalho e vice-versa.
  • Havia menos gente. (Basta dar uma olhada na Wikipedia pra se inteirar do desenfreado crescimento populacional de vilas e cidades.)

Há também razões subjetivas.

  • Sem internet e sem telefone celular, o indivíduo não sentia a afobação de ter de estar ligado e antenado o tempo todo. A vida corria mais ‘relax’.
  • Sem a torrente de informação que nos invade atualmente, havia espaço para uns minutos de prosa com um conhecido, quando de encontro casual – sempre havia alguma novidade a contar (ou a ficar sabendo).

Este blogueiro tem especial prazer em dar uma espiada em jornais antigos. Uma leitura atenta da imprensa nos ensina muito sobre os costumes de cada época.

Este 28 de janeiro, faz exatamente 100 anos que os jornais comentaram o incrível acontecimento: a terra tremeu numa vasta região compreendendo grande parte do estado de São Paulo, o Rio de Janeiro e o sul de Minas. O raríssimo fenômeno acordou a população às 3h50 da madrugada do dia 27 de janeiro de 1922.

A linguagem pitoresca da época acrescenta uma nota poética aos acontecimentos. No Correio Paulistano, o subtítulo já informa que “A cidade despertou sobresaltada (sic)”. E continua: “o phenomeno foi observado em quasi todo o Estado de S. Paulo, em Minas e no Rio de Janeiro”. Em seguida, vem a notícia. Começa assim:

“Hontem, ás 3 horas e 50 minutos, S. Paulo presenciou um terremoto. Os que, por dever de officio ou inveterados habitos de noctivago, estavam acordados áquella hora tiveram opportunidade de assistir a um espectaculo bem raro e bem difficil de ser apreciado tão cedo neste privilegiado torrão da nossa terra immunizado pelas suas condições geologicas e geographicas contra todas as calamidades sismicas, tão frequentes em outros paises.”

Com um linguajar assim, o desabamento de alguns telhados fica até simpático. O sismo não deixou vítimas mortais, com exceção de um cidadão que, na linguagem da época, “morreu de susto”. (Há de ter tido o que hoje se descreveria como infarto ou parada cardíaca.)

Houve um outro cidadão que, assonado e assustado, achou que gatunos estivessem assaltando a casa. Catou a a garrucha e saiu atirando a esmo.

O presidente do estado, hoje chamado governador, tomou o estrondo por estampidos de arma de fogo, e imaginou que tivesse estourado uma revolução. É que revoluções eram corriqueiras à época. Os revoltosos atiravam de verdade e costumavam visar o palácio do governo. Hoje revoluções não passam de papo de internet. Quando os ‘revoltosos’ miram um prédio oficial, não é mais o palácio do governo, mas o STF. E as armas são fogos de artifício. Francamente, não se fazem mais revoluções como antigamente.

Um senhor, bastante assombrado, relatou ao repórter do Correio Paulistano que, sempre que morria alguma pessoa na família, ele recebia aviso de um espírito. Tendo sentido o tremendo abalo, saiu correndo de madrugada em direção ao telegrapho para pedir notícias dos seus.

Os boatos mais estapafúrdios correram pela capital paulista. Que haviam desabado casas e igrejas, que estátuas haviam despencado de fachadas, que havia mortos nos baixios do bairro do Brás. Nada disso se confirmou.

De manhã bem cedo, assim que o dia clareou, viram-se famílias inteiras a passear pela Rua Direita, felizes de constatar que as casas continuavam de pé e que não tinha ocorrido nenhuma catástrofe.

Consta que o último terremoto de que se tinha notícia havia ocorrido nos anos 1500, nos tempos do Padre Anchieta. Se o intervalo entre dois sismos for de 400 anos, não temos nada a temer. Daqui até o próximo, os tataranetos de nossos tataranetos já terão deixado este vale de lágrimas.

BREAKING NEWS: Deus não é mais brasileiro!

Myrthes Suplicy Vieira (*)


O Altíssimo convocou uma cadeia de rádio e televisão de urgência para um pronunciamento bombástico, retransmitido por todas as plataformas de streaming.

Com o rosto tenso e a voz embargada, começou dizendo:


“Quero informar que estou abrindo mão em definitivo do título de cidadão brasileiro. Como sabem todos, tenho o dom da ubiquidade e, portanto, posso assumir todas as nacionalidades ao mesmo tempo. Agrada-me que as pessoas me tratem como um dos seus, uma vez que isso sinaliza que habito seus corações. No entanto, não me parece mais adequado que um determinado povo queira sequestrar para sempre minha identidade só para si.

Aceitei a contragosto por muito tempo a falácia de que sou brasileiro. Na época, pareceu-me simpática a homenagem que me prestavam, já que minha mãe também é considerada nativa desse país miscigenado e gigante e foi inclusive aclamada sua padroeira. Além disso, queria deixar claro na ocasião que não é preciso demonstrar a sisudez e a formalidade dos povos do Velho Continente para ter acesso a mim. A descontração, a alegria e a espontaneidade típicas da cultura brasileira me cativavam e, confesso, me davam também a oportunidade de expandir meu domínio sobre todo o continente americano. Era, portanto, não só uma questão familiar mas também estratégica para minha igreja.

Parecia-me ainda uma justa retribuição por todos os privilégios que concedi ao Brasil. Dotei a terra brasiliense de múltiplos recursos naturais. Os brasileiros puderam contar sempre com uma abundância de água, terras férteis, sol o ano inteiro, ausência de cataclismos e vulcões. Os mais belos cenários naturais do mundo eu os plantei aqui. Permiti que a maior floresta tropical da terra aqui florescesse. Adornei estas terras com uma das floras e faunas mais exuberantes, coloridas e belas do mundo. Para habitar esse paraíso terrestre, escolhi um povo multifacetado, herdeiro dos melhores traços de caráter de três etnias fundamentais: brancos, índios e negros.

Imaginava que a harmonia entre o homem e a natureza nesse pedaço de chão tão generoso fosse durar para sempre, assim como a integração e a colaboração de todas as raças. Mas o que fizeram com tantos dotes? Escravizaram índios e negros, alijaram os mais pobres do usufruto dos bens derivados de seu próprio trabalho, destruíram todos os biomas escavando a terra para dela extrair ouro, pedras preciosas e minerais, como se não houvesse amanhã. Envenenaram os rios para acumular fortunas e, no processo, mataram de sede e de fome as populações ribeirinhas. Deixaram-se levar pela crença de que a destruição do patrimônio natural, humano e cultural em nome do progresso era prerrogativa dos seus governantes e de sua elite empresarial. Acreditaram que o bolo da economia só pode ser dividido depois de ter crescido e, por isso, não aprenderam a compartilhar. Não satisfeitos, zombaram de todos os seus vizinhos sul-americanos que enfrentavam uma história de escassez e de revoluções sangrentas.

Mais grave, imaginaram que minha ira diante de tanta insensibilidade e desumanidade seria aplacada se construíssem templos revestidos de ouro para minha adoração. Que tipo de ser abominavelmente vaidoso seria eu para deter meu braço de justiça em troca de luxo fútil? Alardearam que estou no comando de todas as operações que interferem na vida do homem e, blasfêmia, insinuaram que até mesmo eventuais desastres naturais, períodos de fome e seca, de crise política, degradação moral e desalento espiritual faziam parte de minha vontade soberana, caracterizando-os como forma de punição aos homens maus. Ora, mau seria eu se permitisse que o castigo fosse generalizado e atingisse quem não tem como se defender da cupidez dos homens poderosos que só querem perpetuar a injustiça social e a desigualdade.

Jamais me imiscuí em seus assuntos políticos, até porque cansei de dizer que meu reino não é deste mundo. Embora alguns de meus representantes na terra tenham por vezes tentado me associar a esta ou aquela força político-ideológica, nunca tomei partido nas disputas humanas por poder. Eu lhes concedi livre arbítrio justamente para que pudessem determinar o melhor rumo para suas vidas e para o da nação. E, muitas vezes, vocês escolheram seus líderes com base na miopia do rancor e do ressentimento pessoal, não na razão. Quando se deram conta de que haviam se colocado voluntariamente nas mãos de tiranos impiedosos, imploraram pela minha interferência e eu nada fiz. Esqueceram do comando bíblico: faze tua parte e eu te ajudarei.

Para minha suprema tristeza, seus dois últimos mandatários declararam terem sido escolhidos por mim. Inominável absurdo! Elegem inconscientemente o Anticristo de plantão e ainda me culpam? Repito: A Deus o que é de Deus, e a César o que é de César. Assumam responsabilidade por suas escolhas equivocadas de uma vez por todas. Pelo amor de Deus (no caso, eu mesmo), cresçam, amadureçam. Tenho mais o que fazer do que ficar cuidando de picuinhas humanas.

Tolerei por séculos esse estado de coisas, acreditando que as demonstrações de fé inabalável em mim e de resiliência da gente humilde brasileira bastariam para instaurar novos tempos de comunhão entre o povo e seus dirigentes. Mas o país do futuro promissor também não aconteceu nesse sentido. Ultimamente as coisas atingiram um patamar paroxístico que não posso mais tolerar. O ódio entre irmãos nunca esteve tão forte, a desigualdade nunca pareceu tão irreversível e a insensibilidade social de seus dirigentes jamais se mostrou tão despudorada. E tudo isso acontecendo ao mesmo tempo em que seus líderes políticos proclamam que o Brasil está acima de tudo e eu estou acima de todos. Será mesmo?

Como isso é possível se tudo o que fazem é repetir como um disco quebrado meu nome e o de meu filho Jesus, aceitando, ao mesmo tempo conviver com o mais dramático quadro de desamor ao próximo de que se tem notícia? Como fiz questão de deixar registrado na Bíblia no começo dos séculos, meu nome não pode ser pronunciado em vão. Entendam em definitivo que a salvação nunca vem de fora, que palavras e ações têm de coincidir para que as coisas mudem para melhor.

Compreensivelmente, não posso mais acobertar tanto desatino. Ontem, quando soube que seu ministro da Saúde – aquele mesmo que já foi até comparado a Herodes por precisar de um “número significativo” de mortes de crianças para tomar alguma ação prática de defesa de suas vidas – disse ter se inspirado na minha sagrada família para desenvolver um novo programa de saúde familiar, entendi que não há mais esperança de tudo mudar. A hipocrisia e o cinismo venceram. Mesmo sabendo e repetindo todos os dias que a verdade liberta, seus dirigentes optaram explicitamente pela desfaçatez, pelo perjúrio, pela ignomínia.

Se vocês dizem conhecer minha vontade e ainda acreditam que ela deve prevalecer, saibam que eu já não acredito na sua capacidade de superação do egoísmo, nem em seu amor por mim. Vocês decidiram livremente pelo pior dos caminhos e devem, portanto, percorrê-lo até o fim, sem mim.

Em bom português: Cansei, pra mim já deu. Fui, vazei. Hasta la vista, babies…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O presidente da Itália

Palazzo del Quirinale, Roma
Sede da Presidência da República Italiana

José Horta Manzano

A Itália é uma república parlamentar em que os representantes do povo se distribuem em duas Casas: a Câmara e o Senado, num sistema bicameral como o nosso. Como ocorre também aqui, os parlamentares italianos são eleitos pelo povo, em sufrágio universal e direto. A grande diferença no topo da organização do Estado está no modo de escolha e nas atribuições do presidente da República.

Na Itália, a eleição do presidente é indireta. O eleitorado elege seus representantes e, por sua vez, são estes que escolhem o presidente. Dessa forma, os partidos ganham importância, dado que cada parlamentar costuma acompanhar as diretivas partidárias. O presidente, que é o chefe do Estado, é escolhido pelos “grandes eleitores” – o conjunto de deputados, senadores e representantes dos governos regionais –, num total de 1009 votantes.

Estes dias está sendo eleito o novo chefe do Estado italiano. A presidencial italiana é bastante peculiar, na medida que não há candidatos. Nesse ponto, assemelha-se à eleição de um papa. Noves fora conciliábulos de corredor, não há campanha aberta. As papais e as italianas devem ser as únicas eleições em que não há candidatos inscritos. Pela Constituição, qualquer um pode ser escolhido desde que preencha três condições: ser cidadão do país, ter cumprido 50 anos de idade e gozar dos direitos civis e políticos.

Em princípio, a eleição parece realmente aberta a todos. No entanto, desde a instauração do regime republicano, ao final da Segunda Guerra, o presidente sempre foi escolhido entre os parlamentares, com muito poucas exceções. O desenrolar das eleições pode contar com um ou mais turnos. O número é ilimitado. Funciona assim. Nos três primeiros turnos, vence aquele que obtiver 2/3 dos votos. A partir do quarto turno, a maioria absoluta (50%) é suficiente. Vence quem tiver mais votos que todos os outros reunidos.

Houve (raríssimos) casos de um presidente ser eleito logo no primeiro turno. No outro extremo, a eleição mais demorada necessitou 23 turnos para um candidato chegar à maioria dos votos. Em geral, organizam-se dois ou três turnos por sessão parlamentar. Assim, o processo eletivo pode levar dias ou até semanas.

O presidente tem mandato de 7 anos. Seus poderes não são tão amplos, visto que o sistema é parlamentar. Ele é chefe do Estado, mas não do governo, que é exercido pelos parlamentares. Assim mesmo, o presidente está longe de ser figura decorativa, como em certas repúblicas parlamentares (Alemanha, por exemplo). Ele representa um “poder neutro”, independente do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Exerce um poder conciliador.

É o representante do país perante autoridades estrangeiras. Algumas de suas atribuições são: enviar mensagens à Câmara, autorizar a apresentação de projetos de lei, promulgar leis, determinar a realização de referendos, nomear o chefe do governo (em concordância com o Parlamento), nomear membros da Corte Constitucional, conceder graça e comutar penas. Há muitas outras.

Os três primeiros turnos da atual eleição já correram, e nenhum nome se destacou. Hoje começa a parte séria, a partir do 4° turno. Vamos ver quantos serão necessários.

Esse sistema de organização do Estado deve parecer exótico para o brasileiro, acostumado com um presidente onipresente e quase onipotente. Na minha opinião, a experiência parlamentarista valeria a pena de ser tentada em nosso país. Vejo, em princípio, duas vantagens.

Em primeiro lugar, sem ter de escolher presidente, o eleitorado escolheria seus representantes, deputados e senadores, com muito mais cuidado. Já seria um bom começo.

Em segundo lugar, desapareceria essa figura de “presidente super-homem” que decide tudo, que pode tudo, que manda em todo o mundo, que governa por decreto, que nomeia 20 mil funcionários comissionados, que se agarra ao poder, que imprime o ritmo ao país (em marcha acelerada ou em marcha à ré, dependendo do ocupante do cargo). Seja quem for o(a) presidente, a distorção será sempre a mesma: ter um indivíduo com tamanho poder entre as mãos não é bom para o país.

Quem sabe um dia, no futuro, o Brasil acorda e muda o regime. Quem viver verá.

Num país normal

Chamada da Folha de SP, 25 jan° 2022

José Horta Manzano

Num país normal, quem faz o orçamento é o povo através de seus representantes no Congresso. Até aí, o Brasil mostra que é país normal: o orçamento da União é elaborado pelos parlamentares.

Num país normal, montado o orçamento, ele é levado ao presidente, que tem o direito de modificá-lo e até de vetá-lo parcialmente. Até aí, o Brasil mostra que é país normal: o presidente exerce seus direitos constitucionais.

Num país normal, após ter sido examinado pelo presidente, o orçamento volta ao Parlamento. Os representantes do povo têm a última palavra: aceitam pacificamente os caprichos presidenciais ou batem pé firme e devolvem ao orçamento sua fisionomia inicial, aquela que tinha sido votada e aprovada.

À vista dos estragos causados às contas da nação pela mesquinharia eleitoreira do capitão, é agora que veremos se somos um país normal e se nossos representantes trabalham realmente em nosso favor. Vamos ver se derrubam os vetos do presidente. A conferir.

Rossini, Sánchez e Morgan

José Horta Manzano

O que é que o compositor italiano Gioachino Rossini, a bela atriz francesa Michèle Morgan e o atual primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez têm em comum? Nasceram todos num 29 de fevereiro, um dia peculiar.

Pessoalmente, não conheço ninguém nascido nessa data, um dia curioso, que só aparece no calendário a cada quatro anos. Dizem que, para a criança, pode ser um bocado perturbador. Na primeira infância, é tranquilo, visto que a mãe é quem decide o dia da festinha. Em anos não-bissextos, quando não há o dia 29, tanto pode escolher o 28 de fevereiro como o 1° de março.

É na adolescência que os problemas podem aparecer. Amigos e amigas têm um dia de aniversário todos os anos, enquanto o pobre nativo de um 29 de fevereiro não tem. Festa, pode até haver, mas não terá o mesmo sabor. Comemorar em outro dia deixa a impressão de estar invadindo território alheio.

Mais à frente, quando vem chegando a maioridade, o problema fica mais agudo. Sabe-se que quem é de 29 de fevereiro nasceu num ano bissexto. Dado que 18 não é múltiplo de 4, a maioridade chegará forçosamente num ano não-bissexto. Então, como é que fica? Na falta do dia 29, o indivíduo atinge a maioridade no dia 28 de fevereiro ou no 1° de março?

Isso tem implicações legais como a autorização para dirigir ou para frequentar locais proibidos para menores. Há situações piores. Suponhamos que, por desgraça, o sujeito se envolva numa situação dramática, em que possa até ser acusado de algum crime. Suponhamos ainda que isso ocorra justamente na noite de 28 de fevereiro para 1° de março. Como é que fica? Ele será tratado como menor ou como maior de idade?

Ok, entendo que o exemplo é bem forçado e que representa uma possibilidade em um milhão de ocorrer. Assim mesmo, a lei tem de prever todas as exceções possíveis.

Desconheço se a lei brasileira já se debruçou sobre o problema. Alguns poucos países já legislaram. No Reino Unido e em Hong Kong, determinou-se que a maioridade ocorrerá no dia 1° de março. Na Nova Zelândia, será no dia anterior, 28 de fevereiro.

Nos EUA, a prática generalizada – num raciocínio que me parece sensato – é a seguinte. Um ano completo tem 365 dias. Quem nasceu num 29 de fevereiro só completará o giro do calendário no dia 1° de março. (Em 28 de fevereiro, só terá vivido 364 dias desde o último aniversário, portanto, não completou o ano.)

Assim sendo, considera-se que os nascidos em 29 de fevereiro ainda têm 17 anos até a meia-noite do dia 28. Só completarão seus primeiros 18 anos de vida à zero hora de 1° de março do correspondente ano.

O distinto leitor conhece alguém de 29 de fevereiro? Então lembre-se que, mesmo que pareça esquisito, o mais lógico é dar-lhe os parabéns no 1° de março.

Aux armes, citoyens!

José Horta Manzano

A plataforma de notícias políticas Poder 360 informa que, nos três últimos anos, o valor das importações de armas de mão (pistolas e revólveres) mais que triplicou. É a Era Bolsonaro em todo esplendor.

Infelizmente, as estatísticas não informam qual é a porcentagem desse arsenal que foi parar em mãos de milicianos, do crime organizado e da pequena delinquência. Por furto, roubo ou até importação direta.

Também não temos estatísticas para confirmar se, com essa profusão de armas de fogo, o Brasil se tornou um país mais seguro e mais civilizado. Pessoalmente, aposto que não. Não sei o que acha o distinto leitor; quanto a mim, acredito que, se não ficou igual, piorou.

O clandestino do voo cargueiro

Comunicado da polícia holandesa
23 jan° 2022

José Horta Manzano

Para um indivíduo jovem e ágil, é bastante fácil penetrar no compartimento onde se aloja o trem de aterrissagem de um avião. Precisa subir na roda, escalar a haste metálica como quem trepa num coqueiro, e saltar no compartimento. Após a decolagem, com a roda recolhida, ainda há espaço de sobra para uma pessoa.

Dizem que jovem é inconsciente, mas alguns são mais inconscientes que a média. As estatísticas informam que, nos últimos 75 anos, 128 desajuizados decidiram se esgueirar pela pista do aeroporto, subir num compartimento de trem de aterrissagem e tentar assim escapar de uma vida de miséria para recomeçar em algum Eldorado europeu ou norte-americano. Desse contingente de aventureiros, 75% morreram de queda ou congelamento. A taxa de insucesso desse tipo de empreitada é tremendamente elevada.

De vez em quando, ocorre um milagre. Foi o que aconteceu, estes dias, com um homem do qual não se sabe, até o momento, nem nome nem origem. Num avião cargueiro proveniente da África da Sul, funcionários do aeroporto de Amsterdam (Holanda) descobriram um corpo inanimado no poço onde se aloja o trem de aterrissagem. É bom lembrar que Johannesburgo fica a mais de 10h de voo.

A polícia foi acionada. Num primeiro exame, tiveram a impressão de que o homem não estava morto. Acionaram os bombeiros. Confirmado o diagnóstico, o infeliz foi transportado para um hospital em estado de profunda hipotermia. A temperatura do corpo estava bem abaixo dos 37°C regulamentares, mas o indivíduo ainda respirava. Bem lentamente, quase imperceptivelmente, mas respirava. Neste domingo, continua internado, ainda inconsciente. Por incrível que possa parecer, é possível que se recupere. Vai levar tempo e ninguém sabe quais serão as sequelas.

Especialistas ensinam que, além de enfrentar atmosfera rarefeita em voo, os clandestinos têm de lidar com temperaturas de 50°C abaixo de zero. Quase nenhum deles chega ao destino com vida. Mas há (raros) casos em que a descida rápida de temperatura externa provoca perda de consciência e entrada num estado de hibernação. A temperatura corpórea cai e todo o metabolismo entra em letargia – incluindo a respiração. Deve ter sido o que ocorreu com o homem que chegou a Amsterdam.

O caso do clandestino do voo Johannesburgo-Amsterdam (parece nome de filme) há de atrair a atenção de certos milionários que chegam a pagar fortunas para serem congelados após o falecimento, não sem antes deixarem instruções para que os despertem assim que for encontrada cura para a doença que os matou.

Nosso clandestino, imagino, deve ser moço jovem, com uma vida inteira pela frente. Em casos assim, até que pode valer a pena arriscar. É mais difícil entender os que pagam para que o próprio cadáver seja congelado. Em geral, são pessoas idosas – milionárias, sim, mas entradas em anos. Ainda que a cura do mal que as matou fosse encontrada e que elas pudessem ser reanimadas e trazidas de volta à vida, não voltariam jovens. Teriam sempre os mesmos anos e estariam sujeitas às doenças de todos os velhos, exatamente como os demais mortais. Será que vale mesmo a pena?

Allende e Queiroga

José Horta Manzano


A observação de Mário Quintana (1906-1994) nunca perde a atualidade: “A gente pensa uma coisa, escreve outra, o leitor entende outra, e a coisa propriamente dita desconfia que não foi dita”. Neste sábado encontrei dois bons exemplos.


Chamada Estadão, 22 jan° 2022

Primeiro exemplo
Esta chamada está bem enrolada. Fala da neta de Allende (presidente do Chile de 1970 a 1973) e diz que ela “sofreu golpe pela ditadura militar”, o que evidentemente não corresponde à realidade.

Quando o golpe ocorreu no Chile, em 11 de setembro de 1973, a netinha do presidente ainda não tinha completado dois aninhos. Na verdade, quem sofreu o golpe foi o avô, Salvador Allende, que, aliás, morreu no mesmo dia. Suicidou-se? Foi induzido ao suicídio? Foi assassinado? A esperança de saber a verdade se esvai à medida que os personagens vão desaparecendo.

Tem mais. Salvador Allende não sofreu golpe “pela ditadura militar”. A ditadura só se instalou após sua morte. Se, por hipótese, ele tivesse resistido e repelido o ataque, ele teria sofrido golpe, mas a ditadura não teria se instalado.

Consertando:

“Neta de Allende, o presidente deposto por golpe militar, será ministra da Defesa.”

Fica melhor.

Chamada Folha, 22 jan° 2022

Segundo exemplo
Para o leitor medianamente informado, que já ouviu falar de Queiroga e Damares mas que não sabe das circunstâncias das tais visitas (quem visitou quem, quando e por quê), a chamada do jornal soa misteriosa. Fica a ideia de que há relação entre a vacina aplicada na criança e a visita dos senhores ministros.

Precisei refletir pra entender o que o estagiário queria dizer. Suponho que era isto:

“Após as visitas de Queiroga e Damares, Saúde confirma que vacina não deu reação em criança”.

Assim, depois de inverter a frase, fica claro o que o autor queria dizer. Do jeito que estava escrito, parecia que os visitantes podiam até ter causado alguma reação na pobre criança vacinada.

São ministros de Bolsonaro, é verdade, mas prefiro acreditar que uma simples visita rápida deles não tenha o poder de empipocar bracinhos infantis.

O jogo está feito?

José Horta Manzano

A mais recente pesquisa de intenção de voto para presidente, feita pelo Instituto PoderData, reflete a preferência do eleitorado entre uma paleta de quase dez candidatos – entre declarados e prováveis. Ela mostra, sem surpresa, o Lula bem à frente de Bolsonaro.

A continuar nessa curva ascendente em que já conta com 42% dos votos contra 28% do capitão, o Lula tem condições de reunir um total superior à soma de todos os adversários, o que lhe daria a vitória no primeiro turno.

O eleitorado masculino diverge vigorosamente do feminino. Quase metade das eleitoras (48%) têm intenção de votar no Lula, deixando Bolsonaro com somente 17% das preferências. Quem vir nesse placar o resultado das atitudes misóginas e sexistas do capitão não estará longe da verdade.

Já os homens preferem Bolsonaro. No seio do eleitorado masculino, o triunfo do capitão não é tão espetacular quanto o do Lula entre as mulheres, mas é significativo. O voto dos homens é de 41% para o ex-militar contra 35% para o ex-metalúrgico.

A divisão do Brasil em regiões é um tanto artificial, baseada em limites administrativos (divisas dos estados) e não em limites históricos e socioculturais. O norte do Paraná, por exemplo, é incluído na Região Sul, ainda que sua história e seu desenvolvimento sejam tardios com relação aos estados sulinos, e que seu povoamento se tenha feito a partir do estado de São Paulo. A mesma distorção surge no norte de Minas, zona que compartilha clima e tradições mais com o Nordeste do que com o sul do estado. Há outras distorções.

Isso dito, é o que temos. O levantamento mostra um Lula triunfante no Sudeste e no Nordeste, enquanto Bolsonaro ganha folgado no Norte. Na Região Sul e no Centro-Oeste, os dois empatam. Isso não é de bom augúrio para o atual presidente, visto que o Nordeste e o Sudeste são as regiões mais populosas. Quem ganhar nas duas tem boas chances de ser o próximo presidente.

No corte por escolaridade (fundamental, médio e superior), o Lula deixa Bolsonaro comendo poeira em todas as faixas. O mesmo ocorre no corte por faixas de renda: o capitão perde feio em todas.

Nestas alturas, resta a pergunta: por que, diabos, se dar ao trabalho de votar em outubro, se já se conhece o resultado?

Primeiramente, porque pesquisa pode até influir, mas o que conta é voto na urna – é o que reza a Constituição.

Segundamente, porque muita água há de passar sob as pontes do Norte, do Sul e das demais regiões daqui até lá. Por exemplo:


  • alguém pode adoecer (essa covid anda um perigo);

  • alguém pode falecer (pra morrer, basta estar vivo);
  • alguém pode ficar (ainda mais) gagá, que o Alzheimer não escolhe vítima;
  • alguém pode desistir (não duvide, que tudo é possível na vida);
  • alguém pode acertar no milhar na Paratodos ou vencer uma rifa e decidir se estabelecer nas Bahamas pelo resto da vida.

Enfim, não convém estourar champanhe nenhum por enquanto. Ainda resta a esperança de ver surgir um nome forte alternativo a esses dois fósseis que dominam as pesquisas atualmente. Em princípio, qualquer dos citados na pesquisa seria um caso a considerar.

Moro, Ciro, Doria, Janones, Vieira e Tebet podem não ser nenhuma Brastemp, mas, convenhamos, nenhum deles há de ser pior que Bolsonaro ou Lula.

Não deu pra esconder

Beber até cair

José Horta Manzano

As férias de Monsieur Blanquer
Entre o Natal e o ano-novo, estão aqueles dias meio mortos, enforcados, em que umas firmas fecham, outras não, muita gente vai p’ra praia, outros ficam no batente, todos têm vontade de se espichar numa rede, alguns conseguem.

Foi justamente naqueles dias, no domingo 2 de janeiro, que Monsieur Blanquer, ministro da Educação da França, concedeu entrevista por vídeo ao jornal Le Parisien. Detalhou as diretivas bastante severas que teriam de ser seguidas a partir da volta às aulas, assim que terminassem as férias escolares de ano-novo.

A reorganização da vida escolar, planejada às carreiras, não agradou nem a professores nem a alunos. Mas que fazer? São tempos de covid e todos têm de compreender que cada um deve fazer um pequeno sacrifício para o bem comum.

A ilha de Ibiza e sua fama
As Baleares são um arquipélago situado no Mediterrâneo a menos de 200km da costa espanhola. Tem 4 ilhas principais: Maiorca, Minorca, Ibiza e Formenteira. No verão, é visitado por multidões de turistas da Europa inteira, que chegam em abarrotados voos fretados. Maiorca e Minorca recebem principalmente turismo de famílias. Formenteira é pequena e menos frequentada. Já Ibiza tem fama particular: seus visitantes são jovens festeiros, muitos vêm da Inglaterra (mas de outras partes também), todos chegam com a firme intenção de beber até cair em plena rua noite adentro. Noite após noite. É a ilha do carnaval eterno e (muito) alcoolizado.

A hora de glória de Monsieur Macron
Daqui a menos de três meses, os franceses vão às urnas para as eleições parlamentares e presidenciais. Monsieur Macron, ainda que não oficialmente declarado, é candidatíssimo à reeleição. Numa feliz coincidência, neste semestre, é a França que está na presidência rotativa da União Europeia. Para um candidato à reeleição, não há vitrine mais poderosa do que ser, ao mesmo tempo, presidente da França e do Conselho da UE. Macron tinha previsto fazer comemoração solene em 19 de janeiro.

O abelhudo
O jornal francês Médiapart conta com uma equipe de jornalistas investigativos de excelente desempenho. O que esse pessoal descobre não está escrito no jornal – com o perdão do trocadilho infame. Descobriram que, no momento da entrevista por vídeo, Monsieur Blanquer (o ministro da Educação) estava justamente em… Ibiza. E a notícia, naturalmente, saiu no jornal. E os danadinhos não publicaram num dia qualquer: escolheram fazê-lo às vésperas da comemoração solene de Monsieur Macron. Só pra estragar a festa.

O burburinho
A notícia saiu. Os franceses, ranzinzas por natureza, não apreciaram nadinha. Tivessem dito que o ministro da Educação tinha estado de férias em Varsóvia, na Moldávia ou até nalguma localidade do interior do país, o caso teria passado em branco. Mas… em Ibiza?! Foi um escândalo. Embora, nesta época fria do ano, a ilhota espanhola esteja deserta, a simples menção de seu nome desperta no inconsciente coletivo um espetáculo de bebedeira coletiva e de devassidão. A população sentiu-se revoltada. “Enquanto nós temos de fazer sacrifício e nos adaptar a novas regras rigorosas, o ministro se esbalda em Ibiza?”

A contrição
Acuado, o ministro teve de se explicar no Parlamento, diante de todos os deputados. “Se eu soubesse, teria escolhido outro lugar pra passar aqueles três dias” – foi o que disse. Não adiantou muito. O descontentamento popular está estampado nas manchetes até hoje. O assunto continua nas conversas de elevador, de padaria e de salão de barbeiro. Consta que o presidente Macron subiu a serra, de tanta fúria. Não consta que tenha soltado palavrão; ele é recatado e só faz isso escondido no banheiro quando o barulho da descarga abafa o som.

Lembra algo
Toda semelhança com algum episódio ocorrido recentemente nas praias de Santa Catarina e estrelado pelo chefe de nosso Executivo terá sido coincidência fortuita.

De todo modo, tendo em vista a importância do cargo do francês (que é ministro) e do brasileiro (que é presidente), a importância da ocorrência não é de magnitude comparável. O nosso foi beeem pior.

Devastação: projeto de governo

Bernardo Mello Franco (*)

A Amazônia registrou o maior índice de desmatamento em dez anos. De janeiro a dezembro, a floresta perdeu 10.362 km² de mata nativa. Isso equivale a metade do território de Sergipe.

Os números foram divulgados na segunda-feira pelo Imazon. No mesmo dia, Jair Bolsonaro comemorou a redução de 80% nas multas aplicadas pelo Ibama. “Paramos de ter grandes problemas com a questão ambiental”, festejou.

O presidente transformou a devastação em política de governo. Trata a fiscalização como problema e a derrubada de árvores como solução. Sua cumplicidade com o crime ambiental é explícita. Grileiros, madeireiros e garimpeiros ilegais sabem que têm um aliado no Planalto.

(*) Bernardo Mello Franco é jornalista. Trecho de artigo publicado n’O Globo de 19 jan° 2022.

Ditadura “de esquerda” ou “de direita”

José Horta Manzano

Faz tempo que me pergunto como é possível um contingente de cidadãos darem crédito ao capitão e se disporem a votar nele.

Pra não deixar ninguém enciumado, me pergunto também como é possível que tanta gente acredite no Lula e se disponha a votar nele.

Depois dos males que esses dois já causaram no passado, no presente – e da ameaça que representam para o futuro do país –, não há mais o que provar. Não precisa fazer um desenho. Seja qual for dos dois, é desastre anunciado.

Com o antigo presidente, tivemos corrupção explícita e partição do país em categorias de indivíduos classificados conforme a cor da pele. É culpa dele se o Brasil caminha perigosamente para se transformar em república racialista, um tipo de sociedade em que cada habitante tem forçosamente de se encaixar numa etiqueta: ou é branco ou é negro, sem nuance. (Alguém pensou nos extremo-orientais?) Antes da ascensão do lulopetismo, nosso país era colorido; depois da passagem dos ‘barbudinhos’ pelo poder, retrocedemos à era do preto e branco.

Com o atual presidente, temos corrupção disfarçada de “orçamento secreto”, rachadinhas e partição do país em categorias de indivíduos classificados conforme a ideologia ou a religião. Bancadas religiosas no Congresso, presidente que se ajoelha diante de bispo autossagrado, orçamento secreto com bilhões distribuídos aos amigos do rei, presidente considerado persona non grata no mundo civilizado – estão reunidos todos os ingredientes da perfeita republiqueta de bananas.

Um dos dois apoia ditaduras sanguinárias ditas “de esquerda”; o outro apoia ditaduras sanguinárias ditas “de direita”. Se algum arguto leitor souber qual é a diferença entre uma ditadura “de esquerda” e uma “de direita”, que levante a mão. Ou que mande uma cartinha para a Redação.

Este blogueiro considera que qualquer ditadura é regime autoritário e liberticida que opera para transformar os habitantes em autômatos, gente sem criatividade, sem esperanças, sem ânimo, sem iniciativa e sem futuro. Quando se trata de ditadura, “de esquerda” ou “de direita” são etiquetas que não fazem sentido.

Que diferença há, no espectro político, entre um Hitler e um Stalin? O primeiro prometeu o paraíso a seu povo e o obrigou a ser massacrado sob bombas caídas do céu. O segundo prometeu o paraíso a seu povo e o obrigou a ser massacrado por tanques de guerra vindos do Oeste, sendo que os poucos cidadãos que sobraram foram despachados para o desterro na Sibéria.

Entre um Nicolas Maduro (Venezuela) e um Bashar El-Assad (Síria), quem é “de direita” e quem é “de esquerda”? E que diferença faz, se ambos condenam o próprio povo ao extermínio – um pela fome, o outro pelos gases asfixiantes?

Tudo o que o Brasil não precisa é de presidente apoiador de ditadura nem de presidente conivente com esse tipo de regime. Tanto Bolsonaro quanto o Lula propõem que o país continue eternamente mergulhado num passado de atraso.

E ainda tem gente que se dispõe a apoiar um ou outro desses dois. Como é que pode?

Avaliação

by Lezio Júnior, desenhista paulista

José Horta Manzano

Em numerosos momentos da vida, a gente é obrigado a provar que está apto para ser admitido em determinado círculo ou confraria. Em meu caso pessoal, a lembrança mais antiga que me ocorre é a da primeira comunhão. Antes de subir ao altar para abrir a boca e receber a hóstia, era preciso seguir um cursinho preparatório, que a gente chamava de Catecismo. Sem isso, nada de festa, nada de mesa de doces, nada de foto de fotógrafo e, principalmente, nada de hóstia.

Depois dessa, em muitas outras ocasiões tive, como qualquer cidadão, de demonstrar que estava preparado para a empreitada. Quem quer entrar na faculdade tem de ser aprovado num exame, seja qual for o nome que lhe atribuírem: Enem, vestibular ou outro. No mundo todo é assim. Curso superior não recebe qualquer um. O postulante tem de ser aprovado, seja pelo currículo escolar, seja por um exame de entrada.

Para assumir um emprego, o ritual é o mesmo. Currículo, entrevista, avaliação. Quer o processo se desenrole à antiga, com currículo batido à máquina em papel almaço e entrevistador cara a cara, quer decorra em modo covid, com troca de emails e entrevista por skype, o negócio é o mesmo: todo candidato entra num funil que só vai deixar passar os melhores.

E assim por diante. Candidatos a uma imigração, a um visto consular, a uma naturalização, a uma bolsa de estudos, a uma promoção passam necessariamente por uma seleção em que serão avaliados. Na hora de tirar carteira de motorista, por exemplo, ninguém escapa de passar pelo exame.

Já disse isso em outras ocasiões, mas quero repetir aqui. Digamos que o distinto leitor queira se candidatar a um emprego, seja ele de doutor ou de operário. Nenhum empregador o acolherá assim, de mão beijada, sem verificar sua aptidão para o cargo. Esse ritual não espanta ninguém. Todos nós o encaramos com naturalidade.

A cada quatro anos, é hora de escolher o presidente da República. A lei especifica certas condições para se candidatar. Idade, nacionalidade, filiação partidária estão entre elas. Mas não há nada que lembre, nem de perto nem de longe, um exame básico de avaliação, nem que fosse pra verificar se o indivíduo bate bem da bola.

Assim, quem pretende dirigir um Renault Kwid tem de passar obrigatoriamente por um exame de avaliação que ateste sua aptidão pra não sair por aí dando trombada e ameaçando a vida dos outros. No entanto, aquele que pretende dirigir o Brasil pode se candidatar sem problema, sem exame, sem avaliação. Se eleito (por um povo que não teve como avaliar sua aptidão), estará livre pra sair por aí dando trombada em Deus e o mundo e ameaçando a vida da população.

Esses problemas, que parecem piada, ocorreram na era Bolsonaro. O capitão saiu dando trombada e entrou em colisão com a China, a França, a Alemanha, a Noruega, a Argentina, o Chile, os países árabes. Com seu negacionismo destrambelhado, ainda ameaçou a vida da população brasileira. Aliás, não só ameaçou: executou a ameaça.

Até ontem, a instauração de um exame de avaliação de candidatos à Presidência da República podia parecer ideia de maluco, um atentado contra os costumes da República, uma exigência estapafúrdia e inútil. Agora, depois do furacão bolsonárico, tornou-se necessidade tangível.

Suas Excelências têm a obrigação urgente de completar a legislação. O futuro da nação não pode continuar desprotegido, refém do próximo populista desequilibrado que aparecer na esquina.

Uma prova de aptidão tem de ser exigida de todos os que se candidatarem a dirigir os 212 milhões de brasileiros. Pelo menos uma avaliação de saúde mental levada a cabo por um colégio de doutores qualificados.

Se tivéssemos tido um dispositivo desse tipo, o país não estaria sendo destruído por um destrambelhado. O Brasil não aguenta outro Bolsonaro.

Quer enganar quem?

São Jorge
padroeiro da Inglaterra, da Geórgia, de Veneza, de Barcelona

José Horta Manzano

Os cidadãos que aderem a uma comunidade neopentecostal são bem-intencionados. Costumo compará-los aos cristãos de dois milênios atrás, que, correndo risco de vida, seguiam os apóstolos e os profetas da nova fé.

Os primeiros cristãos não eram iluminados. Eram pessoas desgostosas da devassidão nos usos e costumes da época, que procuravam um caminho puro para a salvação da própria alma.

Essa fuga da depravação tem sido o motor de cisões, tanto no seio do cristianismo como em outras religiões. A Reforma – o grande cisma do cristianismo do século 16 – é bom exemplo.

Voltemos a nossos neopentecostais, mais conhecidos como evangélicos. As insistentes acusações de enriquecimento ilícito feitas a alguns bispos e apóstolos menos escrupulosos não devem ser estendidas aos fiéis. A cupidez de um autossagrado bispo não implica forçosamente a culpabilidade do rebanho. Além disso, tenho certeza de que nem todos os chefes são encharcados de avidez ou de cobiça.

Se os evangélicos aderiram em peso a Bolsonaro em 2018, foi justamente porque ele encarnava o herói puro e disposto a combater o bacanal em que se haviam transformado os altos círculos da República. Era um São Jorge descido dos céus, com lança e cavalo, pronto a aniquilar o mal, restaurar o bem e repor o país de volta nos trilhos. Em peso, votaram no capitão.

Pouco inteligente, o atual presidente acreditou (e, ao que parece, continua a acreditar) que uma imersão no Rio Jordão, uma genuflexão diante de um bispo evangélico e uma visita a um e outro templo bastassem para satisfazer a clientela neopentecostal. Incapaz de lidar com os conceitos de aparência e de realidade, o capitão não se dá conta de que seu comportamento não condiz com a simpatia que diz ter pela fé e pelos ideais do eleitorado evangélico.

Passear de jetski e dançar funk cercado de mulheres em trajes menores enquanto infelizes baianos e mineiros eram castigados por mortíferas enchentes foi atitude escandalosa para os brasileiros. Para o contingente de evangélicos que ainda conservavam um restinho de crença no ‘São Jorge’ caipira, foi ultrajante.

A torrente de palavrões que jorra da boca do presidente a qualquer tempo e em qualquer ocasião é ofensiva para ouvidos comuns. Para ouvidos evangélicos, há de ser nefanda, insuportável, abominável.

Não é surpreendente que cada nova pesquisa mostre a erosão da popularidade do capitão no segmento que um dia aderiu em peso a sua candidatura.

Os neopentecostais não são um bloco de parvos que nada escuta e nada enxerga além da palavra do pastor. Longe de serem extraterrestres, são gente normal, que leva vida normal, que age normalmente. Dormem, acordam, comem, trabalham, conversam, se deslocam, viajam, se informam como todos os demais.

Têm uma visão mais rigorosa do que deve ser o comportamento do homem na sociedade – e é aí que a porca torce o rabo. O comportamento do capitão está a anos-luz da fé que ele diz professar. Uma coisa não bate com a outra; e a dissonância é tão flagrante, que não escapa a ninguém.

A conclusão, não é difícil tirar. Três longos anos de Bolsonaro no topo da República nos ensinaram que o personagem é assim, não mudou até hoje, não mudará nunca. Será sempre boca-suja (muito suja!), mentiroso, não-confiável, vingativo, nepotista, ocioso. São defeitos que batem de frente com a fé evangélica. Fiel nenhum quer ter como dirigente máximo um indivíduo com defeitos de tal maneira contrários à sua doutrina.

A consequência é evidente. O capitão não engana mais ninguém. Para os que apostam na subversão, na violência e na anarquia, ele continua sendo o candidato ideal. Já o apoio dos evangélicos, atualmente em erosão, tende a se liquefazer.

Bolsonaro periga chegar à eleição com um balaio de votos ainda mais magro que hoje.

La crevette de Bolsonaro

José Horta Manzano

Aproveitando o gancho da mais recente hospitalização de Bolsonaro, Aitor Alfonso, cientista político franco-espanhol, publicou artigo na revista Slate. O texto, bem-humorado e repleto de trocadilhos, lembra os grandes deste mundo que foram vítimas de acidente devido a um alimento ou a uma bebida. Vamos lembrar alguns deles.

O bretzel de Bush
Faz exatamente 20 anos, o presidente Bush (filho), deitado no sofá, assistia a um jogo de fotebol americano. Displicente, pegou um bretzel – aquele biscoito seco e salgado, de forma trançada. Logo na primeira mordida, engasgou. O sufoco foi tamanho, que seu ritmo cardíaco sofreu baixa súbita e o presidente, atordoado, caiu de cara no chão. Perigou empacotar ali mesmo, mas teve sorte: escapou com um “galo” azul abaixo do olho esquerdo.

O curioso caso de Fidel Castro
O Líder Máximo da revolução cubana detém o record do número de tentativas de assassinato. Foram 638 atentados, todos gorados. Dificilmente essa marca será superada. Dezenas, se não centenas, dessas tentativas passaram pelos alimentos ou pelas bebidas. A CIA tentou por todos os modos, mas nunca conseguiu atingir o objetivo. Castro faleceu de causas naturais aos 90 anos.

O bolo do rei Adolfo da Suécia
O rei Adolfo Frederico, da Suécia, gostava muito de comer. Na terça-feira do carnaval de 1771, como preparação para enfrentar as privações alimentares que a Igreja impunha na Quaresma, ele fez uma refeição reforçada. Engoliu caviar, sopa de repolho, arenque, lagosta com chucrute – tudo regado a champanhe. Para terminar a refeição com um gosto açucarado na boca, o rei optou por uma bomba glicêmica. Comeu uma especialidade sueca chamada semla, que é servida somente no mardi gras (terça-feira de carnaval). O doce lembra um pouco nosso sonho de padaria, só que é recheado com marzipan e creme Chantilly. Um ou dois não dão dor de barriga a ninguém. Mas o rei comeu quatorze. Não deu outra: o estômago travou, ele sentiu-se mal e morreu de um AVC provocado por indigestão aguda. Os estudantes suecos o conhecem como o rei que morreu de tanto comer doce.

O copo d’água do filho do rei Francisco da França
O rei Francisco I, da França, estava em Lyon com os filhos, já adultos. Fazia um calor sevilhano daquele mês de agosto de 1536. Apesar disso, Francisco, o filho preferido do rei, resolveu fazer uma partida de jeu de paume (= jogo de palma, antepassado do tênis). Terminado o jogo, cansado e transpirado, o jovem engoliu duma vez um copo d’água gelada. Logo começou a passar mal, sentiu-se fraco e morreu dias depois. Naquele tempo, era impossível saber se a morte era acidental ou se a água continha veneno. Na dúvida, o rei acusou o infeliz que tinha trazido o copo. O homem foi condenado à morte.

O melão de Maximiliano da Áustria
Era janeiro de 1519. O arquiduque Maximiliano I, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, estava passando uma temporada de cura de saúde nos Alpes austríacos. Um dia, um bufê foi organizado em sua honra. O imperador bateu o olho nuns melões que estavam num canto da mesa. É bom lembrar que janeiro não é tempo de melão. Hoje em dia, qualquer fruta chega por via aérea em qualquer época do ano. No século 16, não era assim. Os melões que encantaram o arquiduque tinham sido conservados desde o verão anterior. Ele se jogou em cima das cucurbitáceas. Comeu tanto, que acabou sofrendo uma crise de apoplexia. Empacotou. Dizem que o pai dele, Frederico III, teria morrido por ter abusado da mesma fruta mais de vinte anos antes.

La crevette de Bolsonaro
Crevette, em francês, é nosso camarão. No capítulo bolsonaresco, o autor se diverte com o camarão não mastigado de Bolsonaro.

Ele deve ter sabido da explicação dada pelo médico, de pé ao lado do capitão, sobre o estrago que um camarão causou no tubo digestivo do capitão.

Fiquei escandalizado com a tartufaria daquela cena. Pergunto a meus botões: será que alguém está interessado nos detalhes da masticação, da deglutição e da digestão do presidente?

Falo em tartufaria ao constatar a hipocrisia dessa mise-en-scène. O Brasil está pouco ligando para o camarão assassino. O país quer que o capitão explique direitinho essa história de usar nosso dinheiro para montar um bilionário “orçamento secreto” com o objetivo de favorecer os amigos. Pouco nos importa saber dos soluços e dos engulhos presidenciais.

Molière e Machado

Jean-Baptiste Poquelin, dito Molière
(1622-1673)

José Horta Manzano

Não faz muito tempo, uma proposta, não me lembro de quem, causou escândalo. Sugeria que os livros de Machado de Assis fossem reescritos em linguagem moderna, compreensível para os brasileiros do século 21.

Os que ainda conseguem entender a obra de Machado tim-tim por tim-tim ficaram de cabelo em pé. Já os que pouco leem talvez nem tenham ficado sabendo da polêmica. Não sei se a ideia foi levada adiante.

Este 15 de janeiro marca o 400° aniversário de nascimento de Molière, ator e dramaturgo, o escritor de língua francesa mais conhecido no mundo todo. A importância dele para a cultura francesa pode ser medida pelo número de palavras que seu nome legou aos dicionários: moliérien (=molieriano), moliériste (=molierista), moliéresque (=molieresco), moliérisant (=molierizante), moliérophile (=molierófilo), moliéromane (=molierômano), moliérophobe (=molierófobo).

Nascido em 1622, Molière se exprimia no estilo de seu tempo, com todos o maneirismo e os rodopios característicos daquele início de reino de Luís 14. Suas peças de teatro, escritas em elaborados versos alexandrinos (de 12 sílabas), representam um requinte nas artes cênicas.

O problema é que, compostos quatro séculos atrás, seus versos são hoje de difícil compreensão. Se os eruditos se sentem à vontade no universo “molieresco”, o mesmo não ocorre com gente comum, especialmente os mais jovens. É uma pena o cidadão pagar a entrada e refestelar-se na poltrona do teatro pra passar duas horas ouvindo uma sequência de versos e rimas cujo significado muitas vezes lhe escapa.

Há atualmente um movimento, liderado por um temerário professor de literatura, que propõe a reescritura das peças “molieranas” traduzidas para a linguagem atual. A ideia, naturalmente, aborrece os poucos que ainda conseguem captar a verve e o humor de peças escritas há quatrocentos anos. Há também aqueles que, embora não sejam especialistas nos originais de Molière, respeitam a sacralização do grande autor e preferem que não se modifique nem uma vírgula.

Ainda que alguém se arriscasse a “traduzir” alguma peça para o francês moderno, seria difícil encontrar um editor que publicasse o resultado. Mais difícil ainda, se não impossível, seria convencer um teatro a permitir a montagem e apresentação da peça.

Uma outra ideia está no ar. É a tradução simultânea, a ser afixada logo acima (ou logo abaixo) da cena, como se faz para óperas. Talvez floresça, talvez não. Quando se tenta mexer em monstros sagrados, muita gente faz corpo duro, especialmente em países orgulhosos de seu patrimônio cultural, como a França.

No caso de Machado de Assis, a maior parte de sua obra foi escrita em prosa. É matéria para livro, não para o palco. Reescrever algum livro seu e publicá-lo no lugar do original me parece um sacrilégio, um atentado à memória do autor. Já uma edição “bilíngue”, em que o texto original seja cotejado com a “tradução” em linguagem atual não me parece uma afronta à glória do autor.

Se alguma obra de Machado já não tiver sido editada nesse formato, fica a ideia.

Como termina uma pandemia?

Epidemia de peste em Marselha, 1720
by Miquel Serre (1658-1733), pintor catalão

José Horta Manzano

A pandemia de covid-19 registrou um “paciente zero”. Trata-se de um senhor de Wuhan cujo nome não foi divulgado. Pela história oficial, o homem assegurou nunca ter frequentado o mercado de peixes da cidade, lugar de onde se imaginava que a doença tivesse escapado. Fica no ar a dúvida: será que, com o homem doente, quiçá entubado, alguém realmente lhe fez essa pergunta? O coitado morreu de covid num hospital local.

Botei “paciente zero” entre aspas porque a expressão não me parece adequada. Parto do princípio que o infeliz não era uma “não-pessoa”. Portanto, se ele realmente existiu, não pode ter sido o “paciente zero”, mas sim “paciente um”. Tradicionalmente, as listas de pessoas começam do n° 1, não do zero, pois não?

Bom, para o início da pandemia, já temos um lugar certo e um momento aproximado. Mas agora como é que vamos decretar o fim da pandemia? A quem cabe tomar essa decisão? Há um bocado de gente cogitando sobre o assunto.

A Espanha deu a largada antes dos outros. Segunda-feira passada, señor Pedro Sánchez, que é o primeiro-ministro (chamado lá de presidente del gobierno), deu longa entrevista a uma emissora de rádio.

Embora não tenha dito com todas as letras, ele deixou claro que seu governo tem a intenção de abandonar a noção de pandemia e passar a considerar a covid-19 como doença endêmica. Com isso, ela passará a ser enfrentada como se enfrenta a gripe de todos os invernos. Vacina e, eventualmente, máscara: sim. Confinamento, distanciamento social e restrições de circulação: não. Será uma “gripalização” da pandemia.

É curioso que um dirigente europeu dê esse passo solitariamente, sem concertação com os parceiros da União Europeia. Bem, convém lembrar que, entre o dizer e o fazer, há boa distância. Vamos ver como evolui a situação na Espanha. Por enquanto, não se tem notícia de reação pública de outros governos da UE.

Cada pandemia tem características próprias. As do passado eram mais violentas e matavam muita gente. Higiene precária, famílias numerosas aglutinadas em pequenos cômodos e ignorância quanto ao modo de transmissão explicam. Mas as velhas epidemias tinham seu lado positivo (se é que assim me posso exprimir): ficavam circunscritas a um território. As populações praticamente não circulavam, o que dificultava o alastramento.

A peste negra, que assolou a Europa no século 14, durou 5 anos, aniquilou entre 25% e 50% da população, o que desarticulou a economia e a geopolítica.

A gripe espanhola, a mais mortífera dos tempos modernos, se espalhou pelo mundo todo, durou apenas dois anos, mas pode ter ceifado entre 20 milhões e 50 milhões de vidas. É curioso notar que as vítimas mortais estavam concentradas na faixa de 20 a 49 anos de idade.

As epidemias mais recentes são menos violentas. A gripe asiática castigou durante ano e meio (1956-1957). Correu mundo rapidamente, mas mesmo assim teve tempo de levar 2 milhões a 3 milhões para o cemitério.

A gripe de Hong Kong, que surgiu em fins de 1968, matou pouco, mas circulou pelo planeta inteiro e deixou multidões acamadas.

Hoje temos a OMS (Organização Mundial da Saúde). Cabe a eles dar as diretivas básicas para a saúde do planeta. Foi a OMS quem decretou que a epidemia de covid-19 tinha se transformado numa pandemia. Pela lógica, caberá a eles a palavra final – aquela que o planeta aguarda ansioso: a pandemia acabou.

No Brasil, no entanto, não dependemos de nenhuma OMS pra nos guiar. Desde o começo de 2020, o capitão nos ensinou que “esse negócio daí não é tudo isso que dizem”. E arrematou afirmando que não passava de uma gripezinha.


No Brasil bolsonárico, pandemia, que é bom, não houve. Portanto, não faz sentido decretar o fim de algo que não existiu. Somos um país abençoado por Deus. E bonito por natureza.