O garrote

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 novembro 2012

Quem já tomou injeção na veia sabe o que é um garrote. Desde que deixou de ser utilizado para o cruel suplício de condenados, o termo designa o cadarço que susta momentaneamente o afluxo de sangue à veia a ser puncionada.

Andei pensando que boa parte de medidas oficiais tomadas com alarde acabam por revelar-se operações para inglês ver, como diria o outro. Como tiros de festim, são ações espalhafatosas, impactantes, feitas para impressionar a galeria. No entanto, teóricas e inconsequentes, essas medidas envelhecem mal e acabam tornando-se mais daninhas que benfazejas. Não passam do que os franceses chamam effet d’annonce, a promessa de mudanças radicais feita quando se sabe que tudo vai continuar como estava. Se não ficar pior.
O garrote
Esses ― vá lá o termo ― embustes envoltos numa aura de generosidade prosperam nestas plagas, mas não são exclusividade nossa. Governos e mandachuvas de todos os quadrantes lançam mão de estratagemas vários para entorpecer temporariamente populações inflamadas.

Tomemos um exemplo forasteiro. Diferentemente do que acontece em outros países europeus, poucos suíços vivem em casa própria. A maioria mora de aluguel. E não é de hoje: essa especificidade helvética vem de longe, do tempo em que as cidades começaram a atrair camponeses pobres e sem meios de adquirir sua própria vivenda. Bancos, grandes empresas e fundos de pensão tornaram-se, aos poucos, os principais proprietários do parque imobiliário.

Como corolário, o grande número de inquilinos fez surgir uma poderosa associação de defesa de seus interesses. Com o tempo, esse grupo adquiriu importância suficiente para pressionar autoridades e incitá-las a adotar leis de proteção aos inquilinos. Uma das mais percutentes é o enquadramento dos aluguéis.

A não ser em casos absolutamente excepcionais, o senhorio suíço não tem o direito de valer-se de uma troca de inquilinos para aumentar o aluguel do imóvel. O valor pago pelo locatário anterior tem de ser mantido, é de lei. Uma vez fixado o aluguel inicial ― e há normas rigorosas para isso também ― ele não poderá mais ser alterado, a não ser nos raros casos previstos em lei. Poderá ser indexado, mas não aumentado. Dito assim, até parece vantajoso para os locatários. Mas toda moeda tem duas faces.

Afugentados pelas rígidas restrições, os investidores vêm evitando, ano após ano, aplicar no mercado imobiliário. Quando se investe, é natural esperar um retorno razoável. Pouco investimento significa poucas construções novas. Ao fim e ao cabo, o mercado imobiliário vai sendo estrangulado. Até aqueles que poderiam, em tese, comprar seu próprio imóvel, fazem as contas e chegam à conclusão de que é preferível continuar sendo inquilinos. De qualquer maneira, o aluguel não aumentará. Então, por que se privar?

Nessa história toda, quem sai perdendo é justamente aquele que se pretendia proteger. O jovem recém-chegado à maioridade não encontra onde morar, por mais que procure. Construções novas são alugadas a peso de ouro, enquanto imóveis antigos já estão todos irremediavelmente ocupados.

Está aí o exemplo de uma legislação que surtiu efeito diametralmente oposto à intenção inicial. Ao invés de proteger o locatário, o feixe de leis restritivas acabou por prejudicá-lo. O mercado foi garroteado.

Tomemos agora um exemplo brasileiro e atual. Novas disposições legais obrigam estabelecimentos de ensino a reservar quotas para alunos oriundos de determinadas categorias da população.

Deixemos, por um instante, a vertente ideológica e filosófica do fato. Ideólogos estão aí justamente para ideologizar. Aos filósofos, cabe filosofar. Não invadamos terreno alheio. Sem pretender julgar a pertinência dessa curiosa seleção de alunos por padrões outros que a habitual meritocracia, antevejo aí, a médio prazo, um efeito perverso.

Como procederão os responsáveis pela contratação de profissionais dentro de, digamos, 10 anos? Os postulantes que provierem dos extratos da população que ora se imagina proteger perigam ter seus currículos automaticamente descartados. O beneficiário do sistema de quotas, ainda que estiver plenamente capacitado a assumir e bem desempenhar a função à qual se candidata, arrisca-se a passar o resto da vida à sombra do estigma e da rejeição que acreditava haver esconjurado. Malgrado sua nobre intenção, a norma das quotas terá sido medida traiçoeira.

O garrote utilizado na injeção endovenosa é transitório. Desata-se, e ele sai de cena. O currículo de um profissional é para a vida. Estaremos garroteando o futuro de uma parte significativa de nossos jovens?