Orbis terrarum novissima tabula in Brasilia facta

Mapa-múndi de Nicolaes Visscher, 1658

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 25 abril 2024

No ano de 1658, o cartógrafo e editor holandês Nicolaes Visscher publicou um planisfério de sua autoria intitulado “Orbis terrarum nova et accuratissima tabula” – Mapa novo e exato do globo terrestre. O mapa, que mostra nossa Terra distribuída por dois hemisférios, é verdadeira obra de arte, com cenas mitológicas desenhadas nos quatro cantos da folha. Os dizeres são em latim, que ainda era a língua das obras sérias, não destinadas ao povão mas a um público culto.

É interessante notar que a porção de América do Sul que mais tarde viria a ser nosso país é a terra mais central do globo. Aparece em destaque, bem no meio do mundo. Europa e América do Norte se encontram distantes do meridiano central. É compreensível que Visscher tenha decidido retratar dessa maneira o mundo então conhecido. À época, muitas terras situadas na região do Oceano Pacífico ainda estavam por descobrir, o que possibilitou ao cartógrafo amputar parte do Japão e da Austrália, regiões mal conhecidas que acabaram ficando fora do mapa. Hoje, nenhum profissional sério faria mais isso.

Duas semanas atrás, o IBGE revelou ao grande público, com estrondo, sua mais recente façanha: um mapa-múndi que, enfim, coloca o Brasil no lugar que lhe é devido – no centro do mundo! Nas palavras de Doutor Pochmann, diretor do Instituto, o costume de desenhar o planisfério com o Meridiano de Greenwich no centro não passa de “projeto eurocentrista de modernidade ocidental”. São palavras panfletárias, distantes do processo científico. Na Ciência de verdade, projetos diferentes não se excluem, se complementam.

Assim mesmo, vamos admitir que o tal “projeto eurocentrista de modernidade ocidental” existe e que o Meridiano de Greenwich são suas impressões digitais. Ainda assim, será ingenuidade acreditar que o fato de o Brasil impor a seus estudantes um planisfério em que o meridiano central foi empurrado com o cotovelo vá influir nos desígnios do planeta. A Terra vai continuar a girar e o Meridiano de Greenwich continuará aparecendo no centro dos mapas-múndi que não forem impressos pelo IBGE. Eis aí o tipo de protesto naïf e inútil, que só vai servir para confundir a cabecinha de nossos estudantes, que terão mais dificuldade em entender por que razão esse meridiano foi escolhido para iniciar a contagem das 24 horas do dia.

O alvoroço gerado pela publicação do novíssimo Atlas Geográfico Escolar do IBGE destoa da seriedade do objeto. Um atlas é coleção de conhecimentos, uma enciclopédia sócio-geográfica que tem direito a ser lançada com a reverência e o recato que lhe são devidos.

Nosso cartógrafo holandês do século XVII até que tinha direito de omitir terras ainda não exploradas. Tinha também o direito de cortar as terras distantes e pouco conhecidas em dois pedaços, aparecendo um de cada lado do planisfério. Nosso IBGE, herdeiro de 150 anos de tradição de seriedade, não tem mais esse direito. Quando preparamos um mapa do Brasil, toda a atenção tem de estar focada no Brasil, evidentemente. Já quando desenhamos um mapa-múndi, nosso horizonte tem de se alargar. Além do Brasil, temos de cartografar também o resto do mundo. Se não temos capacidade de fazer isso certinho, é melhor desistir e importar planisférios já prontos.

O Novíssimo Atlas Escolar do IBGE peca em diversos aspectos. Com o deslocamento do Meridiano de Greenwich de 30 graus a leste, a Austrália aparece cortada em dois pedaços. A China e a Rússia idem. O mesmo vale para a Indonésia. Detalhe: como integrantes do G20, nenhum desses 4 países há de apreciar a travessura de nossa Novissima Tabula. Tem mais: o Canal da Mancha é descrito como “Estreito de Dover” enquanto o Estreito de Malaca aparece como “Estreito de Málaca”. Outra pérola: as Ilhas Falkland (Malvinas), território britânico, são unilateralmente atribuídas à Argentina.

Numa prova de inconsistência, a “arte de deslocar o Brasil para fazê-lo entrar à força no centro do mundo” não contaminou toda a coleção de mapas-múndi guardados no site do IBGE. De meia centena de planisférios, somente uma meia dúzia foram redesenhados conforme a novíssima versão. Os demais continuam mostrando Greenwich no centro do mapa. Parece que nem o IBGE acredita em sua própria mágica.

No centro do mundo não se entra pela janela nem pela porta dos fundos. Se um dia o Brasil chegar lá, terá que passar pela porta da frente. E ser recebido com dupla ala de guardas de honra, emplumados e engalanados.

Quem pode, quem não pode

Chega um pouquinho mais pra lá!
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 29 março 2024

Num discurso pronunciado poucos dias atrás, Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, pisou com força no calo de muita gente. Atacou forte o primeiro-ministro de Israel. Com todas as letras, afirmou que, com os crimes que vem cometendo em Gaza, Benjamin Netanyahu “inscreve seu nome ao lado de Hitler, Mussolini e Stalin, como um nazista dos dias atuais”.

E não parou por aí. Garantiu que “ninguém jamais obrigará a Turquia a chamar o Hamas de organização terrorista”. Acrescentou ainda que a Turquia “conversa abertamente com os líderes do Hamas e os apoia com determinação”.

São poucos os líderes a poder pronunciar tais palavras sem que o mundo venha abaixo. Erdogan é um deles, e sabe que pode fazê-lo sem ser cobrado. O dirigente turco entendeu que a liberdade de palavra de um líder está ligada à importância de seu país no tabuleiro da política mundial. Há nações importantes pelo poder econômico, outras se impõem pelo arsenal atômico, há ainda países que, por sua posição geográfica, são estratégicos.

Antes de falar grosso, Erdogan manobrou paulatinamente para aumentar o peso de seu país. O território turco se assenta nas duas margens do Bósforo, o estreito por onde é obrigado a passar todo navio com destino ao Mar Negro.

Isso significa que toda a frota russa baseada naquelas águas tem de pedir licença à Turquia para transitar por ali, até poder largar âncoras em seu porto de armamento situado na margem russa do Mar Negro. A política externa de Erdogan torna seu país polivalente. Membro da Otan, a Turquia é próxima da Ucrânia, amiga da Rússia e inimiga de Israel. Numa hipotética futura mesa de negociação da paz na Ucrânia, a Turquia será um participante por assim dizer obrigatório.

Essa esperta ambiguidade da política turca, aliada à importância geográfica do país, faz que se releve boa parte dos exageros retóricos do presidente – que são basicamente destinados a seu público interno. Fecham-se os ouvidos para a comparação extravagante entre Netanyahu e Hitler, e fecha-se o olho para o apoio veemente e fraterno ao Hamas, grupo considerado por muitos como terrorista.

Nosso Lula nacional, depois de levar puxões de orelha por falas inoportunas e inapropriadas, parece ter mudado a espingarda de ombro. (Essa é a situação no momento em que escrevo; amanhã, ninguém sabe.) A importância estratégica do Brasil ainda não permite a nosso presidente sair por aí dando murros na mesa. Lula acaba quebrando os dentes a cada vez que se aventura por mares que não costumamos navegar.

Tudo indica que sua nova meta é assumir a liderança do “Sul Global”. O alvo está distante e o caminho será pra lá de árduo. Há sinais de que nossa sociedade está mudando. Um fato novo revelado pelo último Datafolha mostra que 10% dos entrevistados apontam a política externa de Lula como algo negativo. Isso é novidade. Política exterior nunca foi tema importante para o grande público no Brasil, sendo reservado, via de regra, para iniciados. Percebe-se que já não é assim.

Mas o que vem a ser esse tal de Sul Global? O nome é portentoso, deixando a impressão de que congrega todos os países ao sul do Equador, irmanados num interesse comum. Não é nada disso. Não passa de uma etiqueta. É um elenco de países díspares que se imagina não terem simpatia pelos Estados Unidos, país cuja hegemonia talvez os incomode. Assim, excluídos os EUA, a Europa e mais algumas antigas colônias britânicas, a etiqueta reúne em tese todos os países restantes.

O nome da etiqueta foi mal escolhido. China, Índia e Rússia – apesar de se situarem inteiramente no Hemisfério Norte, com a Rússia roçando até o Polo Norte – fariam parte do “Sul Global”. Vê-se que é uma congregação de interesses contrastados, às vezes divergentes e até antagônicos. São países que pouco têm a ver entre si. É esse Sul Global que Luiz Inácio tem intenção de liderar? Um Lula a liderar Putin, Xi Jinping e Modi?

O Brasil é um país lindo e cheio de promessas mas nossas potencialidades têm de ser desenvolvidas. Em vez de tentar liderar etiquetas ao redor do mundo, Lula deveria começar combatendo os males nacionais, pelo menos os mais evidentes e urgentes, como a dengue, a miséria, o massacre sistemático dos povos indígenas. Seria o melhor caminho para tentar recobrar a velha aura que murchou.

Um dia, o Brasil certamente será importante. Mas a estrada ainda é longa.

O insulto de Lula

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 21 fevereiro 2024

Fico imaginando a cena. Vejo um Lula que, apesar do incentivo de seus áulicos, hesita em puxar o gatilho. E a torcida: “Vai firme, Lula, não tem perigo, que o gatilho está travado!”. Depois de muita hesitação, Luiz Inácio por fim aperta o dedo com força. Desastre! O gatilho não estava travado, e o tiro sai, mortal.

Não sei até que ponto Lula se deixa influenciar por seu séquito empoeirado, de gente enrijecida e ideologizada mas orgulhosa da própria sapiência. Tanto faz, porque o autor do tiro é aquele que aperta o gatilho. Luiz Inácio será sempre pessoalmente responsabilizado pelo que diz.

Lula não é um caso único. O fenômeno é recorrente: homem público em viagem ao exterior faz às vezes declarações estranhas, contrastantes com a doutrina que deveria estar defendendo. Já assisti a episódios envolvendo diferentes líderes. Até Papa Francisco, no enlevo de ares estrangeiros, já deslizou.

Fato é que Lula já disse coisas de arrepiar o cabelo, pronunciou frases que contrastam com a neutralidade e a equidistância que a diplomacia brasileira tradicionalmente exibe diante de conflitos externos. Ele já se posicionou ostensivamente simpático a Putin e avesso à causa ucraniana. Já estendeu tapete vermelho para o ditador Maduro enquanto os demais líderes sul-americanos pisaram chão nu. As enormidades pronunciadas por Lula – especialmente quando em viagem ao exterior – são muitas. Não vale a pena elencá-las todas.

Holocausto é termo dos tempos bíblicos, de etimologia controversa, que nos chegou através do grego antigo. Na sequência dos malfeitos da Alemanha nazista, a palavra deixou o contexto da História da Antiguidade, ganhou H maiúsculo e passou a designar o massacre sistemático de judeus perpetrado nos campos de concentração da Segunda Guerra.

A política de genocídio nazista foi tão cruel e violenta que marcou os espíritos. Ninguém quer ver repetir-se o horror daqueles tempos. Tudo foi feito para banir a ideologia nazi-fascista da face da Terra. Na Europa, que assistiu de mais perto às atrocidades daqueles tempos, a legislação de numerosos países proíbe gestos, sinais e palavras que lembrem a barbárie: é proibido macaquear saudações nazistas ou exibir insígnias daqueles tempos.

Todo negacionismo da exterminação dos judeus nas câmaras de gás é ilegal. Um discurso feito em público, como o que Lula pronunciou, é passível de processo, quiçá de encarceramento. Nenhum dirigente no mundo, nem mesmo os aiatolás do Irã, piores inimigos de Israel, ousaram até hoje fazer a comparação que Lula fez – entre o exército israelense e as hordas nazistas.

O resultado da fala desastrada é a humilhação em dose múltipla. Lula é declarado “persona non grata” em Israel, sinônimo de “impedido de visitar”. Mais ainda: nosso presidente é instado a pedir desculpa por suas palavras. Nosso embaixador é tratado de ignorante e levado ao Memorial do Holocausto “para aprender o que os nazistas fizeram com os judeus nos anos 1940”.

Luiz Inácio teve direito a mais espinafradas. Israel Katz, ministro do Exterior de Israel, cuja família foi dizimada pelos nazistas: “A fala de Lula da Silva profana a memória daqueles que morreram no Holocausto”.

Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel: “Lula cruzou a linha vermelha. Suas palavras são vergonhosas e alarmantes. Trata-se de banalização do Holocausto e uma tentativa de prejudicar o povo judeu e o direito de Israel de se defender”.

Dani Dayan, presidente do Memorial do Holocausto: “Os comentários de Lula representam um antissemitismo flagrante e uma combinação ultrajante de ódio e ignorância”.

Yoav Gallant, ministro da Defesa: “Acusar Israel de perpetrar um Holocausto é um ultraje abominável”.

Até Yair Lapid, líder da oposição, se manifestou: “Os comentários de Lula demonstram ignorância e antissemitismo”.

Registre-se que, nessa derrapada fenomenal, dizer que a fala “foi tirada de contexto” não vai funcionar. Essa desculpa, comum no Brasil, não vale lá fora.

Lula da Silva parece ter incorporado a ‘síndrome de ser pária’ de Bolsonaro. É curioso como sempre escolhe o lado errado da História. Fica com Putin e despreza a Europa; apoia ditadores e desdenha a democracia; apoia o povo palestino e odeia o povo israelense.

É extremamente preocupante. Um Lula em perceptível processo de envelhecimento, que se aplica a tornar públicas suas convicções pessoais, é um risco na cerzidura de nossa esgarçada democracia, tarefa para a qual foi eleito.

Do jeito que vai, ele está-se tornando o melhor cabo eleitoral de nossa estridente e folclórica extrema-direita.

Terceira Guerra Mundial?

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 25 janeiro 2024

Sir Winston Churchill foi o líder que conduziu a Grã-Bretanha à vitória na Segunda Guerra Mundial. Em 1945, encerradas as hostilidades, candidatou-se à reeleição como Primeiro Ministro mas seu povo retribuiu com pesada ingratidão: não o reelegeu. Decerto amargurado, Churchill aceitou com alegria o convite que lhe fez Harry Truman, presidente dos EUA, para visitar o país no ano seguinte.

Naquela época, forasteiro vindo de longe costumava fazer estada de vários dias. Sem saber direito como preencher o tempo em que o inglês estava de visita, o presidente Truman convidou-o para comparecerem juntos a uma cerimônia em Fulton, explicando que Missouri era seu estado natal, uma linda região. Churchill, ainda ressentido com a ingratidão dos britânicos, teve gosto em aparecer ao lado do presidente americano.

Cidadezinha do Meio-Oeste americano, Fulton nunca tinha vivido um evento histórico como o daquela primavera. E nunca mais voltaria a presenciar nada de tal importância. Ninguém imaginava que ali, num acanhado instituto de ensino, o visionário inglês havia de traçar as fronteiras do novo mundo que estava surgindo.

Naquele 5 de março de 1946, Sir Winston fez um de seus mais famosos discursos: “From Stettin in the Baltic, to Trieste in the Adriatic, an iron curtain has descended across the continent” (De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o continente). O pronunciamento entrou para a História como o “Discurso da Cortina de Ferro”.

De fato, nenhuma expressão mais adequada poderia ter sido inventada para descrever a linha de demarcação entre o mundo capitalista, capitaneado pelos EUA, e o mundo comunista, que orbitava em torno da União Soviética. A expressão Cortina de Ferro entrou para o vocabulário comum e permeou os 50 anos seguintes. Foram décadas durante as quais o mundo viveu à beira de uma guerra nuclear entre Washington e Moscou, um conflito que, tivesse estourado, poderia ter significado a extinção da vida no planeta.

Mas a guerra, como se sabe, não aconteceu. A humanidade roçou a beira do abismo, como em 1960, quando um avião espião americano foi abatido sobre território soviético. Ou então quando da crise dos mísseis russos instalados na ilha de Cuba, em 1962. Embora EUA e União Soviética tivessem, cada um, arsenal capaz de aniquilar a vida no planeta, a temida guerra não aconteceu.

A explicação está justamente na potência bélica dos adversários. O fato de Washington e Moscou disporem ambos de força terrível não aumentou o risco de guerra. Pelo contrário, o temor reverente que mutuamente se inspiravam, de certa forma, os igualou. Cada uma das duas potências estava ciente de que, se ousasse atacar, a resposta viria, devastadora.

De uns anos para cá, temos visto forte expansão do poderio chinês. O incremento das forças chinesas, porém, não tem diminuído o potencial bélico dos EUA, que permanece no patamar em que sempre esteve. A Rússia, que não conseguiu quebrar a espinha da vizinha Ucrânia em dois anos de guerra, mostra falta de vigor no corpo a corpo, mas continua dona do maior arsenal atômico do planeta.

Bem recentemente, chegam informações de que o Irã está prestes a se inscrever no clube das potências atômicas, que o Japão já possui tecnologia para mandar foguete à Lua, que os mísseis dos guerrilheiros Houthis (Iêmen) já conseguem causar danos a navios de passagem, que a Otan acaba de organizar os mais importantes exercícios militares conjuntos desde o fim da Guerra Fria, que o Irã lançou estes dias seu primeiro satélite de órbita elevada, que a Europa dobrou seu orçamento militar.

Muitos entendem que esses sinais de rearmamento são preocupantes, mas acredito que não devemos nos deixar dominar pelo pânico. O crescimento bélico da China, do Irã e de outras praças não tem de ser encarado necessariamente como sinal de agressão iminente. O mais provável é que funcione como contrapeso, como força dissuasora, exatamente como funcionou o potencial atômico dos grandes adversários durante a Guerra Fria. A mensagem tende a ser: “Não se meta comigo porque eu também estou carregando quatro pedras no bolso”. Um mundo com potências bem armadas pode ser a receita do equilíbrio.

“Si vis pacem, para bellum”. Se queres a paz, prepara a guerra – o adágio latino emana de milenar sabedoria.

Fim de ano, Lula e extrema direita

Hidra de Lerna
monstro de múltiplas cabeças da mitologia grega

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 30 dezembro 2023

As pesquisas de opinião revelam um Lula da Silva que vai se segurando apesar de um tropeção aqui ou ali. Ao final de um ano de mandato, sua popularidade não parece ter sofrido desgaste significativo. Entre outras razões, estão duas especificidades.

Por um lado, o turbilhão de fatos políticos nacionais gira com tanta velocidade que as ocorrências não têm tempo de se fixarem na retina. Cada notícia empurra e apaga a anterior, só permitindo que dramas chocantes permaneçam no ar por algum tempo a mais. Por outro lado, Luiz Inácio já deu amplas provas de ser do gênero “político teflon”, aquele em quem manchas e desdouros não grudam, desaparecendo logo.

Até aqui, falamos do Brasil insular, um país cujos habitantes acreditam que, circundados por fronteiras herméticas, vivem isolados do mundo. Na vida real, não é assim. As aves que aqui gorjeiam, trinam por lá também. Frases que Lula costuma tirar do bolso do colete ao dar palpite sobre graves assuntos internacionais podem passar despercebidas ao público brasileiro, mas fazem as manchetes no exterior. E acabam nos prejudicando a todos.

A acolhida fidalga e despropositada que Luiz Inácio, ao tomar posse, ofereceu ao ditador da Venezuela pregou um susto nas chancelarias estrangeiras. Os conceitos fora de esquadro que ele declamou sobre a guerra na Ucrânia e o conflito na Palestina fizeram murchar sorrisos em velhos admiradores estrangeiros. O anúncio, feito durante a recente COP de Dubai, do ingresso do Brasil na Opep+ mostrou que a extravagância de Lula é irrefreável, podendo confinar com a incongruência.

Ao final deste primeiro ano de governo Lula 3, numerosos líderes estrangeiros que muito esperavam dele tornaram-se desconfiados e precavidos. O troco já começou a chegar. Veja-se a maneira nada sutil com que Emmanuel Macron torpedeou o acordo UE-Mercosul. Vai longe o tempo em que o francês se deixava filmar exclamando “Lula, mon ami!”. A fraterna amizade parece não ter resistido aos percalços do primeiro ano de mando lulista.

Talvez por estar ressabiado, Lula abdicou de se expor em duas recentes ocasiões. Primeiro, ao declinar de saudar o ucraniano Zelenski no aeroporto de Brasília, quando este fez escala técnica a caminho de Buenos Aires para a posse de Milei. Segundo, ao recusar-se a viajar até a ilha caribenha em que os presidentes da Venezuela e da Guiana bambeavam entre guerra e paz.

Visto do exterior, Luiz Inácio termina o ano menor do que começou. É pena, mas é constatação inescapável: o Brasil entra em novo período de refluxo, enquanto o mundo lá fora continua a girar. Esse nosso negacionismo oficial é difícil de explicar.

Dez dias atrás, a Assembleia-Geral da ONU pôs em votação uma resolução condenando a violação de direitos humanos na Ucrânia invadida. A Europa inteira (até a Hungria!) aprovou. Nossos vizinhos Uruguai, Chile e Argentina também. O Brasil se absteve, preferindo fazer companhia ao Iraque, ao Vietnã, à Indonésia, à Etiópia e a outros recalcitrantes. O Itamaraty não se dá conta de que, quando o sofrimento humano está em jogo, seja onde for, a politicagem tem de se curvar e dar passagem à empatia. É doloroso constatar que um governo que se diz progressista cede a ideologias mortas e enterradas, e passa por cima de valores essenciais do humanismo.

Daqui a uma semana, o triste 8 de janeiro de 2023 completará um ano. Alguns veem nessa data o ato final da ópera, com a morte simbólica dos protagonistas. Antes fosse, mas é bom não facilitar. A hidra extremista tem múltiplas cabeças, cada uma representando um público diferente. Libertários, evangélicos, “anticomunistas”, sebastianistas, ultraegoístas, novos-ricos, racistas – cada um deles está associado a uma das cabeças. Embora se desconheçam entre si, esses grupos contribuem, quiçá sem se dar conta, para a perpetuação do extremismo. A existência de tantos ramos disparates explica a resiliência da direita extrema que, em nosso país, é nutrida por um em cada quatro eleitores.

Portanto, olho! Não é hora de baixar a guarda. Se nossa política externa declina, continuemos vigilantes ao que fermenta dentro de nossas fronteiras, que a hidra, embora sonolenta, continua viva.

Feliz ano novo a todos!

O cantil

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 24 novembro 2023

Outro dia, uma moça bonita e jovem viajou horas pra chegar ao Rio. Estava realizando o sonho de assistir ao vivo a um show de sua cantora preferida. Mas o destino foi cruel. O tempo tórrido, o estádio lotado, a atmosfera abafada e a falta d’água foram além do que a jovem podia suportar. Ela sentiu-se mal e, em que pese o rápido atendimento médico, perdeu os sentidos e não os recobrou mais.

O fato fez as manchetes da imprensa, se esparramou pelas redes, despertou comoção. Morte de pessoa jovem comove sempre. Rapidamente se descobriu que os organizadores do evento haviam proibido que o público entrasse com água para consumo próprio. Assim que a notícia correu, um dos primeiros a se manifestar foi nosso ministro da Justiça. A chamada de importante jornal carioca online informou que “após morte de jovem, Dino manda shows permitirem garrafas de plástico e água grátis”.

Ao dar a ordem, Sua Excelência perdeu belíssima oportunidade de incitar a população a abandonar o uso de recipientes plásticos descartáveis. Na era dramática que vivemos, de aquecimento global e mudança climática, toda diminuição no consumo de derivados do petróleo são bem-vindas. Bastava ele ter dito “Vou liberar a venda de água nos estádios, mas aconselho a cada um trazer sua própria água no cantil!”.

Fora do Brasil, está cada dia mais comum ver pessoas carregando um cantil com água para consumo próprio. Estudantes, ciclistas, trilheiros a pé, gente a passeio e cidadãos conscientizados são costumeiros do hábito de levar sua garrafinha d’água. Sai mais barato que água comprada, faz bem ao bolso e à natureza. É a generalizada consciência ecológica, que ainda não temos.

Para decepção dos negacionistas climáticos, fenômenos atmosféricos têm se tornado cada vez mais extremos e mais frequentes desde que entramos no novo milênio. Incêndios florestais na Sibéria, temperatura saariana na Inglaterra, inundações devastadoras no Rio Grande do Sul, furacões com ventos de 300 km/h, sensação de 60 graus no Rio – são eventos extremos que se multiplicam e preocupam autoridades e governos do mundo inteiro. A Austrália acaba de regulamentar a acolhida, como refugiados climáticos, dos habitantes de Tuvalu, país independente do Oceano Pacífico que vai pouco a pouco sumindo sob as águas.

Em outras partes do mundo, a população – os jovens especialmente – estão cientes de que o problema maior do planeta não está na política rasteira, nem nas guerras, nem nas alianças. A ameaça principal que paira sobre a humanidade é o desregramento climático. A situação que se antevia para 2050 já chegou, quase vinte anos adiantada.

No Brasil, até poucos anos atrás, não se sabia o que era um ciclone extratropical. Hoje, o fenômeno tem assolado o sul do país e ceifado vidas. Só este ano, já vieram dois desses eventos. A exorbitante onda de calor que nos atingiu este mês veio fora dos padrões. Sua extensão, sua força e sua duração escapam aos parâmetros. Praticamente o território nacional inteiro foi assolado.

A população brasileira tem de ser conscientizada para as mudanças climáticas, que nos anunciam um futuro complicado. Em vez de anunciar subsídios para quem comprar carro com motor a explosão, como fez o governo este ano, a ênfase tem de ser posta no paulatino banimento do petróleo e na adoção da energia limpa. Ao oferecer prêmio para o povo sair por aí envenenando o ar que respira, o governo está fazendo exatamente o oposto do que deveria.

Dizem que a orquestra do Titanic continuou tocando enquanto o navio afundava. É verdade que os músicos nada podiam fazer para evitar o naufrágio. Nós podemos. Portanto, não vamos ficar tocando flauta. A catástrofe planetária já começou, mas ainda temos tempo de amenizar o estrago. Compete a nosso governo investir em propaganda institucional para levar a informação a todos. Cabe também às autoridades desenhar um programa para implementar todos os conselhos de bom senso que ajudem a população a modificar seus hábitos.

Se os habitantes de um pequeno país adotarem comportamento amistoso com relação à natureza, será boa ideia, mas de pouco impacto. O Brasil tem território vasto e população importante. Se os brasileiros se conscientizarem de que cada um pode agir em favor da natureza, será um movimento de grande alcance. No fundo, a natureza somos nós. Chega de fomentar nossa própria perdição.

Por que há guerras?

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 28 outubro 2023

Apesar de soar meio infantil, a pergunta “Por que há guerras?” também pode ser feita pelos adultos que somos. Por que é que o Homo sapiens continua a escolher o tacape para resolver suas pendengas? Em princípio, a parafernália de que hoje dispomos para nos comunicar deveria ser suficiente para os humanos se entenderem e resolverem conflitos pelo diálogo. É desconcertante constatar que, na hora agá, ainda se opta pela força bruta.

Para nós que, do outro lado do oceano, vivemos distantes do palco dos acontecimentos, essa guerra entre Israel e o Hamas não faz sentido. Por que razão o braço armado do partido Hamas lançou um ataque terrorista e sangrento contra civis israelenses? Imaginavam varrer o país do mapa com foguetes imprecisos, tomada de reféns e golpes de facão?

Tampouco faz sentido os israelenses sufocarem e invadirem a Faixa de Gaza com forças de terra, mar e ar. Pretendem varrer todos os gazeus do mapa a rajadas de metralhadora? No burburinho das vielas, como vão reconhecer os terroristas? Vão abordar cada homem e exigir que prove não ser membro do Hamas?

Como se vê, visto daqui, esse morticínio não faz sentido, por nos parecer dar voltas em torno da questão sem resolvê-la. Fica a impressão de que, por mais que haja matança e destruição, os combates hão de se esgotar um dia e a situação regredirá ao “statu quo ante bellum”, ou seja, ao ponto exato em que estava antes da guerra. Terá sido um enfrentamento inútil.

Os observadores situados longe de Israel e da Palestina não estão necessariamente familiarizados com os fluxos e refluxos da política da região, que funciona na base do ódio mútuo, difuso, antigo e encruado. Isso faz que os espectadores esporádicos que somos não captemos a realidade do terreno, o que nos leva a dar nosso apoio a este ou àquele lado seguindo considerações subjetivas e alheias ao contexto.

Uma vista d’olhos nas análises publicadas estes últimos dias em importantes veículos da imprensa internacional confirma a coexistência de apreciações disparates, que variam muito, sempre baseadas em critérios distantes da realidade local.

O Financial Times considera que “a corrida do Ocidente para dar respaldo a Israel corrói o apoio que os países em desenvolvimento dão à Ucrânia”. Em suma, os esforços feitos durante quase dois anos para convencer países mais pobres a apoiar a Ucrânia estariam sendo jogados no lixo em poucas semanas. O Brasil é apontado como um dos que levantaram objeções ao apoio a Israel.

Outros veículos, como Le Monde, vão pela mesma trilha. O diário francês sublinha a sinuca em que se meteram os países do dito “Sul Global”, que não sabem mais a qual dos lados dar seu apoio. O hong-konguês South China Morning Post ressalta que o presidente Ramaphosa, da África do Sul, apareceu outro dia numa manifestação pública portando nos ombros uma faixa com as cores da Palestina. Outros órgãos da mídia evidenciam detalhes, contudo sem roçar o cerne da questão.

Uma análise do historiador israelense Yuval Harari, publicada no Washington Post e repicada em diversos veículos internacionais, me parece particularmente sagaz. Harari está convencido de que o Hamas, ao desencadear essa guerra, sabia muito bem o que estava fazendo e aonde pretendia chegar. A organização terrorista não tem interesse na paz, visto que só tem chance de sobreviver se a região se mantiver em estado permanente de beligerância.

O objetivo maior do Hamas é destruir Israel e estabelecer na região um califado regido pela xaria, o direito islâmico. Com o ataque de 6 de outubro, venceu batalhas importantes. Ofuscou a guerra na Ucrânia e desviou as atenções do planeta para a região palestina. Abriu nova clivagem entre as nações, que ora se dividem entre as que apoiam Israel e as que defendem a causa palestina.

Nesta altura dos acontecimentos, já temos algumas certezas. A normalização das relações entre Israel e a vizinhança árabe, encetada havia meses, entra em hibernação. A sensação de relativa segurança que reinou estes últimos anos em Israel se dissipou. A paz na região está mais distante do que nunca.

Por que há guerras? A resposta é complicada, mas uma coisa é certa: o pogrom lançado pelo Hamas marcou os espíritos e vai ecoar por décadas.

Dupla cidadania

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 9 outubro 2023

Cheguei a cruzar com alguns imigrantes que, tendo deixado para trás a desesperança de uma Europa arrasada por guerras incessantes, aportavam por estas bandas em busca de um futuro melhor. Naqueles anos 1960 e 1970, os que chegavam já não eram numerosos como os que vieram nos primeiros anos do século 20; é que, com o boom econômico europeu, oportunidades locais foram se abrindo para a juventude, e as migrações transatlânticas foram aos poucos se esgotando.

A década de 1980 marcou o ponto de inflexão das correntes migratórias entre Europa e Brasil. Na mesma medida em que cada vez menos europeus vinham tentar a sorte em nossa terra, cada vez mais conterrâneos nossos ousavam lançar-se à aventura de fazer as malas e partir sem passagem de volta.

A cada período de crise nacional, o contingente dos que se vão tende a engrossar. Crise, entre nós, é o que não falta, a começar pela tragédia da hiperinflação que, por mais de uma década, aniquilou o poder do dinheiro e afetou justamente os que menos possuíam. Desde aquela época, cada vez mais gente tem pensado em ir-se embora – quem pôde, já se foi. O aumento exponencial da criminalidade também tem encorajado a decisão de candidatos à emigração.

Pelos cálculos do Itamaraty, há hoje 4,6 milhões de brasileiros vivendo fora do país. Se esse contingente formasse um estado, ele se situaria pelo meio do ranking nacional: o Brasil tem 15 unidades federativas que não atingem essa população. Trata-se de um número considerável de conterrâneos, aos quais os sucessivos governos nem sempre souberam (ou quiseram) dar a devida importância.

O dinheiro que os expatriados enviam à família significa importante aporte de moeda forte. As entradas anuais já beiram os 3,5 bilhões de dólares (R$ 17,4 bi). Há que lembrar que não se trata de investimento especulativo, daquele que hoje entra, amanhã vai-se embora. É dinheiro bem-vindo, gerado fora do país, que acaba injetado no circuito econômico nacional: lucro líquido e certo.

A reatividade é o próprio da lei. Em princípio, a legislação não cria o fato, antes, reage a uma realidade pré-existente ou pressentida. Nossa legislação está há décadas preparada par regular a atribuição da nacionalidade a estrangeiros que manifestem o desejo. No entanto, o crescente movimento de brasileiros se transferindo para o exterior pegou nosso legislador de surpresa.

Todo cidadão que deixa o país de origem tem a intenção de retornar um dia, mas a vida nem sempre corre como cada um imaginava. Vem o casamento, vêm os filhos, o tempo vai passando e a volta definitiva às origens vai ficando problemática. Enquanto isso, o Brasil continuava apegado a uma legislação de cunho pseudopatriótico, que, sem dizê-lo, trata emigrantes como verdadeiros traidores da pátria.

Por décadas, a aquisição de nova cidadania esteve praticamente vetada aos brasileiros. Os que ousassem fazê-lo, arriscavam a perda do passaporte nacional. Essa rigidez da visão da nacionalidade mostrava o pouco traquejo internacional de um legislador cuja vivência nesse campo raramente vai além de alguma rápida vilegiatura pelo sul da Florida.

Essa falha está sendo sanada. Uma PEC aprovada estes dias, ora em tramitação final para promulgação, corrige uma distorção herdada dos tempos trevosos do “Brasil: ame-o ou deixe-o”. A partir do momento em que a nova redação do Art° 12 da Constituição estiver em vigor, o cordão umbilical da nacionalidade acompanhará todos os expatriados brasileiros. E sua descendência. A aquisição de nova cidadania não mais será sancionada.

Além de reconhecer a forte mobilidade do mundo atual, a resposta dada pela PEC é solução de bom senso. O mundo dá voltas. Não é impossível que, no futuro, a baixa natalidade transforme o Brasil em importador de mão de obra. Se assim for, já teremos nova geração de brasileirinhos nascidos e formados no exterior, com experiência internacional, com noções de língua portuguesa e, ainda por cima, com a cidadania brasileira no bolso. Prontos para ingressar no mercado nacional de especialistas.

Dá gosto ver uma alteração da Lei Maior que corrige injustiças passadas, tira muita gente da clandestinidade e ainda abre boas perspectivas para o futuro.

Do you speak English?

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 26 agosto 2023

Faz tempo que a era bolsonariana está nos acréscimos, mas parece que o juiz esqueceu de apitar o fim do jogo. Para quem imaginou que, virado o calendário para 2023 o capitão desceria do palco, o desagrado está sendo enjoativo. Apupado e alvejado por ovos e tomates, o capitão continua sob os holofotes. O espetáculo das joias traficadas é tão palpitante que está ofuscando outros fatos nacionais tão ou mais importantes que as vilezas bolsonáricas.

Muitos anos atrás, quando este blogueiro cumpria a escolaridade obrigatória, aprendíamos quatro línguas: Português, Inglês, Francês e Latim. O Português, língua oficial, tinha carga horária mais consistente. O Inglês e o Francês se justificavam por sua importância nas relações internacionais de então. Já o Latim contribuía para o aprendizado de nossa língua.

Nas décadas seguintes, o ensino de línguas foi seguidamente podado. Foi-se o Latim, foi-se o Francês. Só sobrou um inglesinho um tanto precário. Armou-se turbilhão vicioso e descendente: com a baixa de qualidade no ensino, professores receberam formação precária; uma vez formados, transmitiram o que tinham aprendido.

Com a chegada de Lula 3.0, certas distorções do governo anterior começam a ser desfeitas. Fora, escola militarizada! Fora, todos esses sinais que remetem à verticalidade de um mando único! Xô, aliciamento juvenil estilo Hitler-Jugend!

A nova bússola merece aplausos, só que o diabo se esconde nos detalhes. Sem alardeio, o Ministério da Educação anunciou seu plano geral. No capítulo línguas, o texto traz uma formulação sutil que tende a informar que o objetivo é acabar com o estudo do Inglês – a ser substituído pelo… Espanhol.

O pretexto é um malabarismo ensaboado: nosso país é cercado de vizinhos que falam espanhol. Seria argumento a considerar, não fosse enganoso. Como se sabe, desde o início do povoamento, lusos e castelhanos nunca se bicaram, e cada um viveu voltado para sua respectiva metrópole. Tirando zonas fronteiriças, é pequeno o contacto entre brasileiros e vizinhos. Quando há, o “portunhol” faz milagres. As relações entre vizinhos nunca se deixaram entravar pela barreira da língua.

O que o governo não diz é que, atrás da proposta de banir o inglês, está o velho ressentimento, herdado dos tempos da Guerra Fria, que manda lançar mão de qualquer artimanha para combater o imperialismo do malvado Tio Sam. O banimento do inglês está na mesma linha que a proposta de Luiz Inácio de substituir o dólar por qualquer outra moeda no comércio internacional.

O que Lula não percebe é que ele se meteu numa luta assimétrica. A luta pela substituição do dólar por outra moeda é combate de estilingue contra tanque de guerra. Nas trocas internacionais, o peso do Brasil é pequeno. Toda agitação lulopetista nesse campo será esforço desperdiçado.

No ensino, substituir o Inglês pelo Espanhol só prejudicará os brasileirinhos. No exterior, com o inglês, o brasileiro poderá se virar em qualquer lugar do mundo. Unicamente com o espanhol, não irá muito longe.

Na internet, então, o domínio da língua inglesa é acachapante. Estatísticas deste mês, que levam em consideração os 10 milhões de sites mais consultados, informam que mais da metade deles são escritos em inglês. São exatamente 53,6% enquanto o espanhol se contenta com 5,3%. Isso corresponde a uma página em espanhol para dez em inglês. Não há ressentimento lulopetista que possa alterar essa realidade. Para pesquisa, informação, estudo ou diversão, o consulente terá 10 vezes mais chance de ser bem servido em inglês do que em espanhol.

O inglês se tornou de facto a língua franca planetária. Quem quiser se comunicar com um fornecedor (ou um cliente) da Europa, da Ásia, da África ou da Oceânia terá obrigatoriamente de fazê-lo em inglês. Ou na língua local do correspondente, exercício complicado quando não se fala coreano ou vietnamita.

O espanhol dificilmente somará pontos no currículo, ao passo que o inglês é cada vez mais exigido. Profissões para as quais português antes bastava hoje exigem domínio ou bons conhecimentos de inglês.

Está na hora de a empoeirada doutrina lulopetista se sacudir. Será bom o governo entender que o que está em jogo não é a permanência ou não do Tio Sam no comando – o que se quer é formar brasileirinhos preparados para ter sucesso no mundo difícil e competitivo que os espera. Ainda dá tempo.

O chuchu de cada um

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 29 julho 2023

Em 1939 Carmen Miranda embarcou para os Estados Unidos. No horizonte, já assomavam sinais ameaçadores da guerra que estava para estourar. Para os serviços americanos de inteligência, estava fora de questão que o Brasil, país mais importante da América Latina, se alinhasse com as ditaduras nazi-fascistas.

Junto a outros esforços para cativar nossa simpatia, o governo de Washington decidiu importar uma artista brasileira com potencial de mostrar ao público americano uma faceta atraente e simpática de nosso país, e, ao mesmo tempo, levar os brasileiros a se orgulharem do sucesso de uma compatriota nos EUA.

A escolha recaiu sobre Carmen Miranda e ela viajou. Um ano depois de ter deixado o Brasil, voltou para apresentações no Rio de Janeiro. Não se sabe ao certo a razão – talvez por pura inveja –, a recepção a ela foi pouco calorosa. Um diz-que-diz pérfido chegou a espalhar que a artista, depois de um ano fora, tinha ganhado dinheiro mas perdido o ritmo e a graça.

Luiz Peixoto e Vicente Paiva compuseram então o samba “Disseram que eu voltei americanizada” especialmente para ela. A letra repele veementemente toda “americanização” e termina: “Enquanto houver Brasil, na hora das comidas, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”.

Chuchu (ou maxixe) é legume popular. Na cabeça de pobre, “rico não come chuchu” (embora nem sempre seja verdade). O fato é que, lançada a música, Carmen logo recuperou os fãs ressabiados. O povão voltou a se identificar com a cantora, que, mesmo enricada, continuava comendo chuchu.

Antes de chegar à Presidência, o jovem Jânio Quadros teve ascensão fulgurante. Em pouco mais de dez anos foi vereador, deputado estadual, prefeito, deputado federal e governador. Desde muito cedo, frequentou palácios, recepções e banquetes. Na base de seu eleitorado, porém, estavam pessoas simples, de parco poder aquisitivo. Não ficava bem que imaginassem o “político que varria a bandalheira” levando vida de rico, longe do quotidiano das massas.

Para desfazer essa impressão, Jânio sempre cuidou sua aparência quando discursava em comício. Vinha desgrenhado e com caspa no ombro. Lá pelas tantas, tirava do bolso um sanduíche de mortadela já mordido e explicava ao auditório que não tinha tido tempo de almoçar (ou jantar, conforme o caso). Era sua maneira de mostrar que continuava comendo chuchu.

Logo no início de sua gestão, Jair Bolsonaro foi um dia apanhado comendo lagosta com um embaixador estrangeiro. Em 2021, enquanto brasileiros empobrecidos substituíam carne por ovo, foi fotografado exibindo a embalagem do prato de resistência de seu almoço daquele Dia das Mães: picanha de R$ 1.799 o quilo. Pegou mal.

Decerto aconselhado por algum assessor, o então presidente resolveu mostrar humildade. Um dia, deixou-se filmar enquanto comia, junto a uma barraquinha de rua, uma porção de frango com farofa. Com as mãos, sem talher. Era sua maneira de dizer que continuava comendo como o povão. Só que, desastrado, emporcalhou-se todo, espalhando farofa na calça e na calçada. A emenda ficou pior que o soneto. Seu chuchu não convenceu.

No quesito viagens internacionais, Lula 3 começou a todo vapor. Em seis meses, tinha visitado uma dúzia de países distribuídos por três continentes. Um luxo. Mas o partido em que ele militou a vida toda (PT) prega, em teoria, um mundo de desigualdades sociais aplainadas. Assim, não fica bem o presidente, só porque presidente é, ser recebido por figuras principescas, participar de banquetes e comer do bom e do melhor sem ao menos trazer um pratinho de doces para os catadores.

Um assessor mais atento – ah, esses assessores! – talvez tenha chamado a atenção do chefe para esse contrassenso. Luiz Inácio resolveu remediar. Ao retornar de recente viagem à França e à Itália, queixou-se publicamente das refeições que lhe costumam oferecer no exterior. Disse que, quando viaja, não tem ocasião de comer do que gosta, na quantidade que lhe apraz. Afirmou que, nos banquetes, “as porções são minúsculas”, é “tudo pequenininho”, não tem uma” bandejona pra gente se servir”. Dia seguinte, a mídia francesa e a italiana não perdoaram a gafe.

É interessante perceber que as quatro figuras aqui descritas encontraram na comida o escudo contra acusações de elitismo. Esses quatro não devem ser os únicos. O mundo é vasto e cada um tem sua maneira de dizer que adora comer chuchu.

Infância e celular

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 24 junho 2023

Uma cidadezinha irlandesa chamada Greystones, situada não longe de Dublin, foi recentemente palco de uma decisão conjunta entre prefeito, vereadores e pais de alunos. De comum acordo, resolveram proibir o uso de celular para crianças antes da escola secundária. Isso significa que, antes dos 12 – 13 anos, nenhum aluno escolarizado no município terá acesso ao aparelho. Não há penalidade prevista, visto que o cumprimento da resolução será de responsabilidade dos próprios pais.

Entre os objetivos principais, está a proteção dos pequeninos que sofrem atos de humilhação (bullying) provocados por alunos maiores ou mais fortes. Esse acosso, como se sabe, é amplificado pelo uso das redes sociais e pode chegar a perturbar gravemente a saúde mental das pequenas vítimas. Com a proibição de celular, esse problema diminui drasticamente. De quebra, fica também banido o acesso dos mais jovens a redes do tipo TikTok, que os enfeitiçam e os tranformam em robôs. As autoridades irlandesas estão propensas a adotar a medida de Greystones como política nacional.

Neste mês em que Paradas LGBT são organizadas mundo afora, o instituto Ipsos anunciou os resultados de uma pesquisa sobre o tema. É bom lembrar que Ipsos é o terceiro maior instituto de pesquisa de mercado do mundo, com 18 mil funcionários e presença em 90 países.

Para essa análise, mais de 22 mil entrevistas foram feitas em 30 países incluindo o Brasil. O objetivo era apurar a visibilidade dos integrantes da comunidade LGBT em cada país individualmente, assim como seus índices de aceitação (ou rejeição) nas diferentes sociedades. O relatório final traz muitas informações interessantes, algumas já esperadas, outras surpreendentes.

Uma constatação é curiosa: o Brasil é o campeão da sinceridade. À pergunta “Em qual das seguintes categorias você se encaixa”, seguida de diversas opções não hétero (homossexual, bissexual, pansexual, omnissexual, assexual), 15% dos brasileiros entrevistados declararam se encaixar em categoria não hétero e não cis. Nenhum outro país tem tanta gente que se autodeclara nessa categoria. Na França, são 10% da população e na Argentina, 8%. Na Polônia são 6% e no Peru apenas 4% dos habitantes.

Essa disparidade entre países deixa uma interrogação no ar. Pessoalmente, não acredito que possa haver tanta diferença, com um Brasil que conta com três vezes mais LGBTs que um Peru, um Japão ou uma Polônia. Não vejo por que razão seriam tantos aqui (ou tão poucos lá). Acredito que boa parte da discrepância deva ser posta na maior ou menor dificuldade que os nativos de cada povo sentem na hora de revelar a própria sexualidade. É possível que no Brasil, apesar dos pesares, nos sintamos menos reprimidos, logo, mais despachados.

Uma constatação é, no mínimo, inquietante. O estudo ventila o total de indivíduos autodeclarados LGBTs e os classifica por faixa etária. O quadro mostra que 4% dos Baby Boomers (nascidos entre 1948 e 1964) estão na categoria LGBT. Na Geração X (1965-1980), há 6% de LGBT. Nos Millennials (1981-1996), são 10%. Finalmente, entre os jovens da Geração Z (1997+), espantosos 18% se declaram LGBT.

Não sei para você, mas para mim parece discrepância exagerada. O estudo informa que há, entre os menores de 25 anos, quase 5 vezes mais LGBTs que entre os mais velhos. A divergência é tão grande que faz supor efeito tribal fomentado por veículos tais como TikTok & semelhantes. A pré-adolescência é idade complicada, em que a personalidade está se construindo. Os muito jovens não estão necessariamente preparados para resistir ao canto da sereia.

Talvez fosse boa ideia acompanhar com atenção a aplicação da política irlandesa e cogitar sua eventual implementação em nosso território. É verdade qie o brasileiro é por natureza indisciplinado e propenso a burlar regulamentos. Assim mesmo, não custa tentar. A proibição geral, no fundo, ajuda os pais, que deixam de ser aqueles “chatos” que negam celular ao filho. A desculpa é incontornável: “Não posso te dar. É a lei!”.

Que tal adotar a ideia irlandesa para preservar a evolução mental de nossa criançada?

Ecos do G7

José Horta Manzano

Artigo publicado no Correio Braziliense de 27 maio 2023


“Nós, os líderes do Grupo dos Sete (G7), […] estamos tomando medidas concretas para apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário em face da guerra ilegal de agressão da Rússia.”


Essas são as primeiras palavras do comunicado final da cúpula do G7, havida recentemente em Hiroshima. O longo texto, firmado pelos dirigentes das democracias que integram o grupo, se estende por 19.000 palavras distribuídas em 66 tópicos. A abrangência do documento é vasta: valores comuns, não proliferação de armas nucleares, tensões na região indo-pacífica, economia global e dezenas de outros pontos. Assim mesmo, a menção à “guerra de agressão da Rússia” em primeiríssimo lugar mostra a importância que ela assumiu aos olhos das democracias mais maduras.

O Brasil, em nome de sabe-se lá que doutrina, está em dissonância com a unanimidade exibida pelas três dezenas de países que compõem o dito “Ocidente”. Em março passado, comentando decisões estabanadas do governo brasileiro, uma agência de notícias comentou: “Nas últimas semanas, o Brasil de Lula enviou uma delegação à Venezuela, recusou-se a assinar uma resolução da ONU condenando as violações dos direitos humanos na Nicarágua, permitiu que navios de guerra iranianos atracassem no Rio de Janeiro e recusou-se a enviar armas para a Ucrânia, em guerra com a Rússia”. Como se vê, depois do calamitoso quadriênio Bolsonaro, o Brasil é escrutado com atenção.

Quanto à guerra na Ucrânia, Lula permanece mergulhado num negativismo obstinado, incapaz de enxergar a realidade cristalina: a Ucrânia, país independente, livre e soberano, foi brutalmente invadida por tropas russas, em guerra de conquista territorial. Parece que Luiz Inácio (e assessores) são os últimos que resistem a admitir isso. Nosso presidente insiste em enroscar-se com declarações tiradas do bolso do colete. Já disse que “a decisão pelo conflito foi tomada por dois países”, um descalabro. Referindo-se à Crimeia, já declarou que “a Ucrânia, também, não pode querer tudo”, outra barbaridade. “Não cabe a mim decidir de quem é a Crimeia ou o Donbas”, declarou um Lula esquecido de que o Brasil foi um dos primeiros, trinta anos atrás, a reconhecer a Ucrânia, dentro de suas fronteiras oficiais.

Luiz Inácio persiste em apregoar sua crença num mundo multipolar, sem potência dominante. Sua guerra particular contra o dólar americano mostra isso. Quer Lula goste ou não, sua sonhada utopia está cada dia mais longe. A impressionante evolução da China, impensável vinte anos atrás, embaralhou as cartas do jogo mundial. Os EUA não estão em declínio, apesar do que Lula da Silva possa almejar. A Rússia, essa sim, tem decaído. Portanto, não é preciso consultar uma bola de cristal para saber como será o equilíbrio de forças nas próximas décadas: teremos a volta da guerra fria – que já aponta na esquina. De um lado, a China e seus aliados; de outro, os Estados Unidos e o “Ocidente”.

O país de Putin, empobrecido, desprestigiado e privado de projeção internacional, será fatalmente atraído para a órbita da China, país do qual está se tornando vassalo. Sem o amparo chinês, a Rússia teria enorme dificuldade para sobreviver. Essa nova e previsível divisão do equilíbrio mundial entre dois polos (EUA e China) está por trás da intensa movimentação da diplomacia comercial mundial destes últimos anos. Países de peso territorial, populacional e econômico estão sendo cortejados. Está aí a razão do convite de participação estendido a Brasil, Vietnã, Indonésia, União Africana, Coreia do Sul e outros.

Lula já deu um grande passo ao declarar, em discurso oficial no G7, que o Brasil condena a violação do território da Ucrânia. Por fim, um posicionamento menos inquietante. O bom senso informa que nosso país, por sua história, língua e cultura, faz parte do mundo ocidental. Por mais que respeitemos a civilização chinesa e a russa, não descendemos de lá. A árvore genealógica de nosso povo nos prende ao mundo atlântico, na encruzilhada África, Europa e América.

Lula e o Itamaraty precisam reconhecer que um país invadido por tropas estrangeiras tem o direito (e o dever) de se defender. Ajudá-lo a repelir o invasor não é “tomar um lado”; é respeito ao direito internacional.

Presidente! Deixe de lado a vaidade de ser aquele que pôs fim à guerra – quimera que não se realizará. Mostre empatia para com os infelizes ucranianos e reponha o Brasil nos trilhos da civilização! O futuro vai lhe agradecer.

O capital de simpatia de Luiz Inácio

Visite a Rússia
Antes que Putin visite você

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 29 abril 2023

Não há que reclamar. Em certos aspectos, o passar do tempo tem sido benéfico a Luiz Inácio da Silva. Aquela barba escura e aquele cabelo farto dos jovens anos branquearam e rarearam, conferindo-lhe aspecto de um Papai Noel bonachão ao qual só falta o roupão vermelho. A natural fragilidade de um homem de quase 80 anos enternece os olhares, induz ao respeito e refreia a agressividade de todo interlocutor. O fato de ter-se casado em idade madura com uma senhora jovem e sorridente passa a impressão de estar de bem com a vida, o que é muito positivo.

No entanto, esses fatos são cosméticos: modificam a aparência sem bulir na essência. No fundo, Lula não mudou nem um tico. Continua empacado em algum ponto do século passado, num tempo em que era de bom tom execrar os Estados Unidos e tudo que orbitasse em torno do “grande irmão”.

De lá pra cá, o mundo mudou muito. A União Soviética desapareceu. O urso siberiano já não encarna o “perigo comunista”. Putin, o líder que se senta hoje no trono que um dia foi de Stalin, alarma o planeta, sim, mas não pelo comunismo. Decidido a restaurar o império tsarista, invadiu a Ucrânia numa guerra de conquista territorial. Com palavras agressivas, em que a ameaça de guerra nuclear é insinuada com insistência, o susto agora é outro: as falas de Putin anunciam o Armagedom.

Refestelado nas poltronas macias do Planalto ou do avião presidencial, a milhares de milhas do palco das atrocidades que Putin está provocando, nosso presidente não está em condições de sensibilizar-se com a tragédia que abala a Europa e angustia o mundo. Dificilmente um brasileiro comum será capaz de apontar a Ucrânia num mapa-múndi. Um Lula atarantado com o acúmulo de problemas internos não há de ter tempo para se informar sobre um drama que não o afeta. Esse fato, aliado a falhas de sua assessoria, está criando a dificuldade que Luiz Inácio tem de se inteirar dos comos e porquês desse conflito alucinante que já matou meio milhão, aleijou outro tanto e deslocou 10 milhões de ucranianos.

Para meio bilhão de europeus, a importância do que está acontecendo na Ucrânia é de outra magnitude. Berlim, a capital da Alemanha, está a apenas 800 km de Lviv (Ucrânia). Zurique (Suíça) está mais perto de Kiev (Ucrânia) do que São Paulo está de Brasília. Mesmo Portugal, que é o país europeu mais distante da Ucrânia, não está tão longe assim: a distância entre Lisboa e Lviv é menor que a distância entre Belém e Florianópolis. É essa proximidade trágica que alimenta o temor dos europeus. Foi ela que deu um solavanco nos princípios de defesa do continente. Países antes despreocupados acordaram para o novo perigo vindo do Leste. Suécia e Finlândia aderiram à Otan. Alemanha dobrou seu orçamento militar. Todos os demais países aumentaram suas despesas com defesa. Todos cederam parte de seu arsenal à Ucrânia para ajudar a conter a agressão russa. Os europeus sabem que, se o urso siberiano não for detido agora, eles podem bem ser as próximas vítimas.

É, até certo ponto, compreensível que nosso presidente não consiga se compenetrar da premência de ajudar a infeliz Ucrânia a enxotar os russos de seu território. Assim mesmo, é bizarro que sua veia socialista e universalista não lhe tenha despertado compaixão para com a sorte das vítimas do surreal ataque conduzido pelo autocrata de Moscou.

Prefiro acreditar que Luiz Inácio esteja mal informado do que se passa nessa Europa que acreditava ter atingido a paz permanente. Prefiro supor que, ao dizer que “quando um não quer, dois não brigam”, Lula estivesse apenas distraído da gravidade de suas palavras. Reduziu a agressão russa a uma briga de moleques de rua.

Lula guarda o trauma das vaias que recebeu no Maracanã, na abertura dos Jogos Panamericanos de 2007. Desde então, tem evitado situações em que possa ser alvo de manifestação de desapreço. Os protestos que enfrentou na Assembleia Portuguesa esta semana devem tê-lo feito refletir.

É bom que ele se emende e nunca mais volte a tratar o meio milhão de mortos da guerra na Ucrânia como variável de ajuste. O que está dito, está dito. Com algumas frases infelizes, Lula minou o imenso capital de simpatia de que gozava na Europa. Antes de recobrá-lo, ainda há de ouvir muito protesto. Daqui por diante, é bom refletir antes de falar. O próximo escorregão pode ser fatal para o resto de apreço que a Europa ainda lhe dedica.

Brazil: too big to fail

Brazil: too big to fail

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 25 março 2023

Nos anos 1980, firmou-se a expressão “too big to fail” – grande demais para falir. A frase lembra que certas empresas, em razão de seu porte, não devem ser abandonadas quando enfrentam tempos difíceis. Grandes bancos são expostos a esse risco. Quando a situação de um deles periclita, o governo costuma socorrer rápido, para acalmar o mercado e evitar contaminação sistêmica.

A débâcle do Crédit Suisse, semana passada, é exemplo de um banco “too big to fail”. Fosse abandonado na tempestade, o segundo estabelecimento bancário suíço teria falido em poucos dias por não ser capaz de estancar a sangria de depósitos que se avolumava desde a semana anterior. O governo suíço pressionou o maior banco do país a encampar o concorrente em apuros. Sem isso, estaria armado o cenário de uma crise planetária como a de 2008.

Países não são empresas. Um país que deixa de pagar suas dívidas torna-se inadimplente mas não irá à falência. Por mais que ele esteja no vermelho, sua infraestrutura, suas riquezas naturais e seu povo não vão desaparecer. Portanto, seu ativo excederá sempre seu passivo.

Curiosamente, o verbo inglês “to fail” tanto significa “falir” como “falhar”. É aí que ouso um jogo de palavras complicado em inglês mas cristalino em nossa língua: Um país nunca será grande demais para “falir”, mas pode ser grande demais para “falhar” (‘too big to fail’ em ambos os casos). O Brasil se enquadra nessa afirmação, por ser grande e importante demais para se permitir falhar em suas obrigações perante o conjunto das nações. Sob pena de perder importância, o Brasil tem de garantir seu lugar no tabuleiro mundial.

Nestes últimos 20 anos, entra governo, sai governo, nossa diplomacia não parece entusiasmada para ver o Brasil assumir o lugar que lhe cabe no seio das nações. O antigo presidente Bolsonaro ousou elevar ao posto de ministro de Relações Exteriores um personagem isolacionista, que se alegrou em relegar nosso país ao papel de pária. Nos governos petistas, política externa se resumia a bravatas e a calotes a organismos internacionais, justamente àqueles em que almejamos assumir cadeira permanente. Ignoraram o velho adágio: “Não há bônus sem ônus”.

Não se refaz a História, mas nunca é tarde pra corrigir a rota. O mundo que se desenhou com o desmoronamento da União Soviética pareceu, num primeiro momento, apontar para um universo unipolar, com uma única superpotência. A fulgurante ascensão da China e a invasão da Ucrânia, entre outros fatores, deram o sinal do fim do recreio. Nosso país, que não é uma república de bananas, tem de entender que a brincadeira acabou. Foi-se o tempo em que se podia propor resolver conflitos internacionais com um simples jogo de futebol. A orquestra agora toca pra valer, e é bom não perder o compasso.

Faz um ano que a Rússia invadiu a Ucrânia, impondo uma guerra de conquista territorial a uma Europa que pensava haver esconjurado a guerra. A União Europeia, que é uma das três maiores potências comerciais do mundo, foi profundamente transformada por essa guerra. A aparição de um inimigo comum despertou a solidariedade e empurrou países neutros para a Otan, uma aliança militar. Gastos militares explodiram, até em países antes pacifistas. Fluxos do comércio internacional estão dramaticamente modificados pelas sanções.

Essa realidade não pode ser minimizada por nosso governo. Nossa “doutrina de não intervenção” tem de ser mais que política de fachada. Se nos abstemos de intervir em assuntos internos de outro país, a coerência nos obriga a condenar toda intervenção de um país em outro – mormente quando for invasão militar. Toda barbaridade tem de ser repelida com veemência.

Nosso governo tem feito movimentos erráticos e contraditórios. Mas nosso país conta. Não podemos fazer como se não tivéssemos nada a ver com o peixe. Que Putin não vale um saco de fertilizante, é ponto pacífico. O que o mundo espera de nós é uma posição civilizada de clara rejeição à agressão russa, que já matou centenas de milhares de inocentes, mandou 8 milhões para o exílio e continua destruindo o país. A retirada das tropas russas é pré-requisito para qualquer início de diálogo.

Nosso país não é um grotão. Nossa força econômica, nossa massa populacional e nossa tradição humanista nos autorizam a soltar a voz para condenar todo crime contra a Humanidade. É o que o mundo espera de nós, e não podemos falhar: “Brasil is too big to fail”.

O passaporte italiano do Jair

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 25 fevereiro 2023

Como se dizia antigamente, “Continua o sucesso da novela ‘Quando é que ele volta?’, em cartaz há dois meses e seguida do Oiapoque ao Chuí!” A bolsa de apostas está fervendo. Há quem acredite que a volta do capitão será semana que vem; outros juram que ele só retorna em abril; há até quem pense que ele vai acabar fixando residência num paraíso fiscal pra nunca mais voltar.

No vaivém dos capítulos, de vez em quando alguém se lembra de que o ex-presidente e os filhos têm direito a recuperar a nacionalidade italiana. Dois de seus filhos, surpreendidos outro dia na porta da representação italiana em Brasília, não esconderam a razão de estarem ali: tentavam acelerar o processo de reconhecimento de nacionalidade, trâmite que se arrasta há tempos. (Dado o acúmulo de pedidos, processos podem levar anos.)

Entrevistado alguns dias atrás, um senador da República Italiana alegou desconhecer qualquer pedido de reconhecimento de cidadania feito por Jair Bolsonaro. A declaração passou a falsa impressão de que a recuperação da nacionalidade italiana é individual, e que cada membro de uma mesma família tem de abrir seu próprio processo. Não é exatamente assim que funciona.

O objetivo final do processo de reconhecimento de cidadania é a inscrição do requerente na “Anágrafe”, registro italiano em que estão inscritos todos os cidadãos do país. Os fatos civis da população – nascimentos, casamentos, divórcios, óbitos – são todos registrados ali. É um registro civil com “fio condutor”, ou seja, parte do princípio que todo recém-nascido se integra numa linhagem. Uma consulta à Anágrafe permite apurar a árvore genealógica de cada cidadão desde a instituição do registro civil, no século 19.

No caso dos que emigraram no passado, o fio se interrompe. Embora os descendentes nascidos no exterior continuem com direito à nacionalidade italiana, o fato de não estarem registrados na Anágrafe os impede de tirar documentos. No fundo o objetivo do processo de recuperação da cidadania é transcrever certidões estrangeiras de nascimento, casamento e óbito na Anágrafe do município de origem.

A condição para as transcrições é o respeito à ordem das gerações. Jair Bolsonaro é bisneto do último antepassado que figura nos registros italianos. Para ser inscrito, terá de apresentar as certidões que o ligam a essa pessoa, ou seja, documentos de seus bisavós, de seus avós, de seus pais e os seus próprios. Seguindo a lógica, a inscrição de seus filhos – já solicitada por eles – só será possível depois da inscrição de todos os antepassados, incluindo o próprio Jair Bolsonaro.

É aí que mora o truque. É irrelevante o capitão ter ou não ter solicitado a recuperação de sua cidadania. Pela lógica do “fio condutor”, quando seus filhos estiverem inscritos na Anágrafe, ele já figurará automaticamente nesse registro, ainda que nunca tenha solicitado. Isso lhe permitirá tirar o passaporte italiano. Em resumo: inscrito algum dos filhos, o pai também estará inscrito.

Cabe agora uma consideração. A subida de Giorgia Meloni ao cargo de primeira-ministra da Itália levou apreensão aos países vizinhos. Suas antigas demonstrações de apreço por Mussolini, Putin, Trump e Bolsonaro deixaram os demais membros da União Europeia ressabiados. Para limpar a própria imagem e escapar à repulsa inspirada por seus heróis, la Meloni decidiu desradicalizar seu perfil. Abjurou a antiga fé no fascismo, renegou Trump, denunciou Putin, condenou Bolsonaro. Um dia depois da visita de Biden a Kiev, foi de romaria encontrar o presidente Zelenski e anunciar reforço na ajuda militar italiana.

Agora, que a primeira-ministra deixou de assustar o mundo, a última coisa que ela deseja é criar problemas para si mesma e para seu país. Caso o processo de reconhecimento da cidadania de qualquer um dos rebentos de Bolsonaro chegue ao fim, o capitão estará automaticamente inscrito na Anágrafe e apto a receber seus documentos. A essas alturas, ele pode muito bem decidir homiziar-se no país, o que causaria um problema espinhudo caso o Brasil (ou algum tribunal internacional) resolvesse requerer sua extradição.

É de crer que o processo de recuperação de cidadania dos bolsonarinhos não chegue ao fim tão já.

A democracia resiste

by Marcos “Quinho” de Souza Ravelli (1969-), desenhista mineiro

 

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 28 janeiro 2023

Há sinais de recuperação da democracia ao redor do globo. Embora tímidos, acanhados e quase imperceptíveis, apontam para o lado positivo. Vamos a alguns deles.

A China, entre os países importantes, é o que tem o regime mais controlado e hermético, apesar de ser mais autoritário que comunista. Na comparação, a vida na Rússia – país onde até o vocabulário do cidadão é escrutado pra vigiar que nunca associe o nome ‘Ucrânia’ à palavra ‘guerra’ – parece solta e jovial.

Pois foi essa China que nos deu, no fim do ano passado, inesperada mostra de que o rigor das regras sociais pode ser afrouxado pela pressão popular. Quase três anos de confinamento estrito, por motivo de covid, estavam fazendo mal à economia e, sobretudo, à população. Parece que a transmissão dos jogos da Copa do Mundo deu origem à ira popular. A visão de estádios cheios de gente sorridente e sem máscara foi a gota d’água. Manifestações de indignação se alevantaram nas metrópoles chinesas, com coro de “Fora, Xi Jinping!” – afronta insuportável. Poucos dias bastaram para o rigoroso regime de “covid zero” ser abolido.

No Irã, faz meses que a população manifesta seu desagrado com o rigor da ditadura dos aiatolás. O triste destino de uma jovem que morreu enquanto detida pela polícia da moralidade pelo motivo de não usar direito o véu obrigatório foi o estopim da revolta popular. Dia após dia, a obstinada e corajosa juventude iraniana manifesta nas ruas sua insatisfação com o regime. A dura repressão já deixou centenas de cadáveres, mas a ira da população tem se mostrado à altura da mão pesada do governo. Em mais de quarenta anos de regime teocrático, é a primeira vez que o povo se queixa com tal intensidade. Pode bem ser o primeiro passo para a queda da ditadura.

Nos EUA, o campo antidemocrático liderado por Donald Trump sofreu profundo revés nas eleições de “mid-term”. Quando todos já se resignavam de assistir a uma arrasadora onda de eleitos trumpistas, o eleitorado democrata deu um sobressalto e limitou as perdas. A volta do bilionário à Presidência ficou um pouco mais problemática.

Na Itália, a primeira-ministra Giorgia Meloni vem se saindo melhor que o figurino. Ao assumir a chefia do governo, abjurou Mussolini e o fascismo, regime pelo qual havia demonstrado simpatia no passado. Juntou-se aos demais países da Otan e deu seu apoio ao envio de armas para que os ucranianos defendam seu território contra o invasor russo. Em uma palavra, a Signora Meloni civilizou-se. Fez desaparecer o lado assustador da extrema-direita. Caminha na boa direção.

No Brasil, as últimas semanas de 2022 e as primeiras deste ano foram turbulentas. Jair Bolsonaro, quando presidente, passou anos prevenindo o distinto público de que, se não fosse reeleito, se insurgiria contra o resultado das eleições. Numa preparação do que estaria por vir, chegou a avisar, ao corpo diplomático lotado em Brasília, a vulnerabilidade de nossas urnas eletrônicas.

Quando as eleições chegaram e o capitão foi derrotado, forte apreensão tomou conta da população não fanatizada. E agora? Será que o perdedor nos condenará a regredir a uma era de botas na calçada e brucutus no asfalto?

Em outros tempos, talvez a pólvora tivesse assumido o protagonismo e o país tivesse de novo mergulhado nas trevas. Numa mostra de que o horizonte nacional já está desanuviado de aventuras desse tipo, Bolsonaro emburrou, enclausurou-se no palácio e lá ficou dois meses – calado para o público externo, mas certamente ativíssimo na preparação do sonhado golpe.

O resto, todo o mundo sabe. Bolsonaro fugiu, e o 8 de janeiro viu o “Exército da Loucura” em ação. Quebraram vidros, mas não quebraram a lealdade de uma maioria de fardados responsáveis. Derrubaram peças de arte, mas não derrubaram a Lei Maior. Subiram no alto de palácios, mas não atingiram o topo do poder. O Brasil balançou mas não cedeu.

Agora, o espetáculo que nos proporcionam um ex-presidente homiziado no exterior, invasores rastaqueras na cadeia e financiadores acuados traz uma lufada de ar puro a nossa nação. É a prova de que, na hora agá, nossa democracia não se rompeu.

Poderia ter sido pior

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 31 dezembro 2022

Virada de ano é o momento de dar uma parada, olhar pra trás, olhar pra frente e buscar, na euforia efêmera do espocar dos fogos, ânimo pra seguir adiante.

Cada um tem a idade que tem, não há como evitar. Se fosse um carro, este escriba, que já rodou mundo, contaria muitos quilômetros no odômetro. Me lembro dos ensolarados anos 60 e 70, quando o futuro nos pertencia e um fusquinha era nosso objeto de desejo. Mas os anos passaram e o panorama mudou. As cidades brasileiras se estufaram e engoliram, em congestionamentos crônicos, nossos ingênuos objetos de desejo. Quanto ao futuro, já nem temos certeza de que nos pertença. Entre crise climática, pandemia e ameaça nuclear, nem sabemos se futuro haverá.

Constato, consternado, que nosso fluxo migratório se inverteu. Meio século atrás, o número dos que escolhiam o Brasil para se estabelecer e recomeçar a vida era muito superior ao de brasileiros que se iam. Na atualidade, cresce a cada ano o contigente de brasileiros desiludidos, que abandonam nosso país em busca de um futuro melhor em outras terras. O país do futuro já não atrai aquele mundaréu de gente e já não cativa nem seus próprios cidadãos. Dá dó assistir impotente a essa fuga de braços e de cérebros, gente que, no futuro, só voltará para as férias.

Hoje à meia-noite (se o mundo não acabar daqui até lá), teremos tirado o pé de 2022, um ano agourento. No nível mundial, a invasão da Ucrânia nos fez retroceder oito décadas a um período em que Herr Hitler, julgando que faltasse Lebensraum (espaço vital) a seus súditos, armou suas tropas e invadiu países soberanos. Era um tempo que, até outro dia, todos acreditávamos superado, morto e esconjurado. Putin nos ensinou que nenhuma verdade é eterna e que não convém baixar a guarda.

Essa ressurgência da guerra tem infligido horrores ao povo agredido. Até países que, embora distantes da cena bélica, dependem dos grãos ucranianos estão em estado de insegurança alimentar. Assim mesmo, os russos poderiam até ter invadido algum país da Otan, o que acenderia o braseiro de uma guerra mundial. Felizmente, não o fizeram. No fundo, poderia ter sido pior.

Nosso capitão, que vive hoje seu último dia de mandato, foi outro que aprontou. Não chegou a cogitar invadir o Paraguai nem recuperar o Uruguai, mas um dia ousou ameaçar os Estados Unidos (!), explicando a Biden que “Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”. Mas, para alívio de nossas angústias, ficou no blá-blá. Não despachou tropas em direção ao grande irmão do Norte. Veja você que, no fundo, poderia ter sido pior.

O negacionismo científico do presidente, que tinha se manifestado já no estouro da pandemia com a sonegação de vacina e oxigênio, continuou firme e adentrou 2022. Verbas foram negadas a tudo o que, de perto ou de longe, estivesse no campo da ciência. Universidades federais e bolsistas viram sua dotação fortemente diminuída ou até suprimida. Talvez o capitão tenha tido ganas de mandar fechar universidades em todo o território nacional e acabar de vez com esses “perigosos ninhos de comunistas”. Não o fez. Veja você que, no fundo, poderia ter sido pior.

O golpismo, característica inerente ao capitão, manteve-se empinado. A cada ocasião que lhe pareceu propícia, Bolsonaro avivou a chama. Jamais deixou cair a peteca. A ideia fixa que o atormenta desde os tempos da caserna não enfraqueceu. Queria porque queria dar um golpe de Estado. No caso dele, seria um “autogolpe”, variante tipicamente latino-americana já testada por numerosos governantes de nossa região. Talvez por não se sentir escorado pelas Forças Armadas, Bolsonaro não ousou ir às últimas consequências. Tivesse ido, estaríamos vivendo um caos que a imaginação mais fértil não consegue avaliar. Veja você que, no fundo, poderia ter sido pior.

De susto em susto, de tranco em tranco, de solavanco em solavanco, chegamos ao fim de um ano que não deixará saudades. Amanhã acordaremos aliviados por ver o fim de um ciclo atroz, mas também apreensivos por ver a volta de Luiz Inacio ao poder. Nós, os que escrevemos sobre política nacional, baixaremos enfim a arma. Mas Lula que se cuide: nossa metralhadora é rotatória. Que ele não bobeie, se não “vai ter pólvora”.

Feliz ano novo a todos.

O público e o privado

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 26 novembro 2022

Monsieur Pierre Maudet é um político suíço. Talentoso, aos 33 anos já era prefeito de Genebra. Poucos anos depois, chegou ao posto máximo de seu cantão, o de presidente do Executivo colegiado. Muitos já vislumbravam para o jovem prodígio um posto de primeira gandeza no plano federal.

Em 2015, ele aceitou convite do príncipe herdeiro de Abu Dabi para passar três dias no emirado. Durante a visita, Maudet encontrou-se com dirigentes do país, inclusive com o emir. O episódio passou despercebido até que, três anos depois, o MP de Genebra abriu inquérito sobre o passeio. Queria saber se a viagem era privada ou de cunho político.

Monsieur Maudet jurou que tinha sido viagem de lazer com despesas pagas de seu próprio bolso. Mas nosso mundo digital não perdoa: tudo fica gravado e a verdade acaba vindo à tona. O inquérito prosseguiu e acabou descobrindo que o político estava mentindo: ele tinha viajado a convite do emir – e com todas as despesas pagas, inclusive o voo em primeira classe.

A carreira do promissor político estancou. Foi expulso do partido. O Tribunal Federal, última instância judiciária do país, acaba de confirmar sua condenação definitiva. Ele é culpado de ter aceitado favores indevidos, pouco importando a existência ou não de contrapartida aos mimos recebidos.

Outro dia, Lula da Silva, nosso presidente eleito, tomou a iniciativa de ir ao Egito para a Cúpula do Clima. Embarcou no jato particular de um empresário. O detalhe incômodo é que este último, enroscado na Lava a Jato, fez acordo de delação e devolveu 200 milhões ao erário.

A imprensa sentiu o cheiro de queimado. Indagado, o presidente eleito não se mostrou constrangido e informou com candura: “Não pedi o avião, foi ele quem me ofereceu. Não foi empréstimo, foi carona.”. Em outros tempos ou em outras terras, esse passo em falso teria potencial de ofuscar a totalidade do mandato, podendo até justificar o impedimento do recém-eleito.

Mas não estamos em outros tempos nem em outras terras. Em nosso leniente Brasil, em geral dá-se um jeito. Assim mesmo, há momentos em que fica difícil dar jeitinho. Os destituídos Collor e Dilma estão aí para provar. Assim como os condenados na Lava a Jato. E também os bolsonaristas enredados na justiça. Lula que tome cuidado.

O novo presidente vai governar num cenário diferente do de mandatos anteriores. Em vez de parlamentares bonachões, terá diante de si uma oposição do tipo “quatro pedras no bolso e faca entre os dentes” – uma espécie de PT ao quadrado, feroz, pronto a agarrar qualquer pretexto para tocar trombone e bater panela. Não terá a vida fácil.

Com razão ou não, a imagem de Lula no papel de chefe de quadrilha está cristalizada na mente de muitos eleitores. A justiça julgou, penas foram purgadas, mas o estigma ficou. Se todo homem público tem de escolher com atenção as pedras em que pisa, Lula tem de tomar cuidado redobrado, que há muita gente de olho em seu primeiro escorregão.

Na equipe de transição, já há um grupo de trabalho para o combate à corrupção. A preocupação com o tema é louvável. A ideia deveria ser levada adiante, quiçá com a criação de uma secretaria permanente. No entanto, por mais que uma secretaria cuide de apontar e coibir casos de corrupção, ela será sempre consituída de funcionários subordinados ao governo. No frigir dos ovos, temos funcionários do governo que tentam controlar o próprio governo. Como se sabe, certas verdades costumam ser edulcoradas para agradar ao chefe.

O ideal será que essa secretaria seja complementada por um Observatório da Corrupção, organismo independente, composto de conselheiros maduros e de ilibada reputação. Podem ser juristas, ex-juízes, ex-parlamentares, professores, cientistas, empresários, gente de bom senso. É vital que não sejam remunerados. Farão trabalho voluntário e serão apenas ressarcidos de despesas. Só um controle externo como esse tem o poder de chegar direto à Presidência, sem preocupação de agradar ou desagradar ao chefe.

O Observatório da Corrupção seria o órgão adequado para convencer o presidente a não mais mesclar o público com o privado, como na viagem ao Egito. Contra uma oposição feroz, todo cuidado é pouco.

Carta ao vencedor

José Horta Manzano

O último páreo corre amanhã. Depois de quatro intermináveis semanas, chegou a hora do vamos ver. Com a respiração suspensa, o Brasil palpita à espera do resultado. Hoje, véspera do Dia D, não temos ainda o placar final, mas tudo indica que deve ser apertado. Não serão muitos pontos de porcentagem a separar o vencedor do derrotado.

Oito anos atrás, escrevi, neste mesmo espaço, carta aberta à presidente Dilma Rousseff, que acabava de ser reeleita. Desta vez, achei interessante dar um salto no escuro. Escrevo minha cartinha ao novo presidente antes mesmo de conhecer seu nome. Vamos lá.


Senhor Presidente,

Antes de mais nada, deixo aqui minhas felicitações pela vitória. A meu juízo, foi o pleito mais emocionante desde a eleição de Tancredo Neves – que foi indireta mas carregada de suspense e simbolismo.

Meus parabéns vão a vosmicê, mas também ao perdedor. O fato de terem chegado à final embalados por dezenas de milhões de votos há de ser lisonjeira para ambos. Quando se pensa que, quatro anos atrás, um dos finalistas de hoje era um apagado parlamentar do baixo clero enquanto o outro estava fora do jogo político por motivo de prisão, a caminhada de ambos foi excepcional.

Vosmicê, senhor Presidente, vai encontrar um país partido em dois. É lugar comum dizer que é hora de unir, não de separar – só que, desta vez, o sulco é profundo. É urgente agir antes que o fosso vire um cânion intransponível. Já faz vinte anos que o sulco começou a ser cavado; os últimos quatro anos só fizeram alargá-lo. Esses rachas podem comprometer até nossa integridade territorial. Não se brinca com essas coisas.

Não é hora de procurar culpados, é hora de agir. A continuar como está, a combinação de divergências religiosas com desnível sócio-econômico periga armar uma bomba-relógio desregulada que vai explodir a qualquer momento. Não tenho certeza de que isso seja boa notícia para o governo, seja quem for o presidente. Convulsão social nem sempre segue o itinerário que se gostaria. Em geral, costuma se voltar contra o poder.

Num país de desigualdades sócio-econômicas abissais como o Brasil, programas de redistribuição de renda não são meros truques eleitoreiros – são necessidade absoluta para a sobrevivência de dezenas de milhões de conterrâneos. Seja qual for sua orientação ideológica, senhor Presidente, é indispensável dar prosseguimento a eles. O que pode (e deve) ser acrescentado é uma porta de saída, um objetivo, um incentivo, uma meta. Todo beneficiário tem de sentir que, em troca do auxílio, deve algo ao poder público. Pouco importa o valor da contrapartida, o que interessa é incutir a ideia de troca: “recebo, mas tenho que dar”.

O Brasil é grande, mas está longe de ser uma ilha autossuficiente pairando acima das querelas do mundo. Estamos inseridos na economia global, seja qual for o credo de nosso governante. Atitudes sectárias e clivantes do tipo “ênfase nas relações Sul-Sul” ou “reforço de laços com governantes de direita” são contraproducentes. Nosso país tem de se abrir ao mundo. Seu destino é muito mais amplo do que o encruamento em que se encontra.

Como repetia o General De Gaulle, nações não têm amigos, têm interesses. O presidente do Brasil, dado o imenso poder que lhe confere a Constituição, tem de se compenetrar desse fato. Não o fazendo, nossas trocas comerciais vão se ressentir e nossa imagem no cenário internacional vai continuar desbotando.

Daqui a meio século, senhor Presidente, não estaremos mais aqui, nem vosmicê nem eu. Cidadão desimportante, me contentarei com uma lápide de pedra barata. Já vosmicê estará nos livros de história. Sua memória poderá ser exaltada ou pisoteada, dependendo de seus atos e palavras nos próximos quatro anos. Quando, no futuro, se referirem a vosmicê, será melhor que digam “aquele que fez o Brasil decolar” ou “aquele que fez o país empacar de vez”?

Receba meus votos de sucesso.

Tout ça pour ça?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 24 setembro 2022

“Tout ça pour ça” é expressão que os franceses utilizam para indicar que um grande esforço deu resultado pífio. Tudo isso pra isso?

Bolsonaro botava fé na ida à Inglaterra para o funeral de Elizabeth II. Assim que a nota de falecimento chegou, postou na rede um texto enigmático em que elogiava a falecida e explicava: “porque não foi apenas a rainha dos britânicos, mas uma rainha para todos nós”. O sentido da frase não ficou claro. De que maneira teria ela sido uma rainha para todos nós? Talvez fosse apenas uma tentativa canhestra de saudar uma personalidade importante. Quase todo o mundo tinha simpatia pela rainha da Inglaterra; de lá a considerá-la “nossa rainha”, há uma boa distância. Ficou esquisito.

Seu comitê de campanha julgou que estar presente na cerimônia fúnebre seria ótima oportunidade para dar ao bom povo a ilusão de ter um presidente influente, aceito nos altos círculos da governança planetária, enfronhado com os grandes deste mundo. O decreto de luto nacional de três dias saiu rápido, em edição extra do Diário Oficial. Note-se que o Brasil não é integrante do Commonwealth e que Bolsonaro, diferentemente de Lula, FHC e Dilma, nunca se encontrou com a rainha.

Ficou a incômoda impressão de que o luto decretado tinha um fundo interesseiro. O presidente pareceu estar pedindo para ser convidado para o funeral. Até os ladrilhos da Abadia de Westminster sabiam que nem todos os dirigentes do planeta seriam convidados. Sabia-se que ninguém que pudesse criar constrangimento receberia convite. Mas… e Bolsonaro? Ele já criou caso com tanta gente! Charles III é fervoroso militante da causa climática, enquanto nosso presidente milita pelo fim da floresta amazônica. É lícito crer que foi o receio de não ser convidado que impeliu o capitão a ser tão obsequioso.

Deu certo. O convite veio, com direito a cumprimentar o rei. O soberano não concedeu mais que um minutinho a cada dirigente estrangeiro, mas o importante é que Bolsonaro conseguiu ser retratado ao lado dele. Na foto, o capitão parece sorridente demais para um encontro com quem acabava de perder a mãe. Deu tapinha no ombro do rei, numa intimidade inusitada, gesto lesa-majestade. Mas a foto saiu. Vai ajudar na eleição da semana que vem? Que acredite quem quiser.

Bolsonaro pernoitou na residência de nosso embaixador. Ruidosa recepção matinal defronte à sacada o esperava, preparada por apoiadores paramentados como manda o figurino: todos de amarelo, alguns enrolados no lindo pendão da esperança. Na hora, levei um susto ao imaginar que nossos compatriotas que moram no Reino Unido fossem todos bolsonaristas. Por ingenuidade ou malícia, o capitão pareceu achar a mesma coisa. Tanto é que, sentindo-se elevado às nuvens, fez discurso de improviso. Inflamado, acusou antecipadamente o TSE de fraude caso ele não vença no primeiro turno.

Após reflexão, percebi que minha primeira impressão estava errada. Nós, brasileiros do exterior, não lemos todos pela mesma cartilha. Aqueles que vociferaram na tranquila manhã londrina, em pleno período de luto e recolhimento nacional, não eram representativos da colônia brasileira. É que os não bolsonaristas – lulistas, ciristas, tebetistas, abstencionistas – aproveitaram o feriado para dormir até mais tarde. Iam lá se expor à violência gratuita de devotos ensandecidos? Ainda não enlouqueceram.

Dois dias depois, no discurso de abertura dos trabalhos na ONU, o capitão teve grande oportunidade de redimir-se. Mas subiu ao púlpito e não decepcionou: leu um texto com algumas platitudes e muitas inverdades. Descreveu um Brasil de folheto turístico, de deixar o País das Maravilhas com inveja. Achei até que, ao final da fala, a plateia se fosse levantar em peso para precipitar-se ao consulado do Brasil para solicitar um visto de permanência. Conhecendo o capitão, ninguém se levantou.

Ao fim e ao cabo, Bolsonaro perdeu excelente oportunidade de dar uma trégua aos eleitores que pretende conquistar. Desaparecer do cenário por alguns dias teria sido bom para sua campanha, visto que não proferiria as habituais ofensas que freiam sua subida nas pesquisas. Só que, mesmo no exterior, ele persistiu em deteriorar a própria imagem. Foi jogo de resultado zero.

Tout ça pour ça? Manda outra, capitão! Com essa, vosmicê deu com os burros n’água.