Agora chega!

José Horta Manzano

A graça concedida por Bolsonaro a Silveira, seu correligionário e deputado, condenado pelo STF a mais de 8 anos de cadeia, põe em pauta um problema cabeludo.

As leis que regem as instituições da República foram e continuam sendo elaboradas para situações normais. Partiram do pressuposto que postos de responsabilidade são ocupados por gente equilibrada e bem-intencionada. Não estava previsto que, um dia, um personagem desequilibrado e mal-intencionado ocupasse o cargo maior.

Faz três anos que as aspirações autocráticas do capitão vêm submetendo a nação a sobressaltos e a uma pressão cada dia mais insuportável. Anestesiados, seus devotos perderam a faculdade de pensar por si mesmos. Deles, não há nada a esperar.

Os demais brasileiros, moldados por séculos de regime autoritário, não se dão conta de que estamos resvalando para uma autocracia personalística, aberração que não se via por aqui desde os tempos de Getúlio Vargas, destituído 77 anos atrás.

Bolsonaro está conduzindo o Brasil em marcha forçada para um regime de tipo putiniano – autocrático e personalista, duzentos e tantos milhões de homens e mulheres tributários dos caprichos de um desatinado.

A inação das Forças Armadas já denota surpreendente cumplicidade. Exceto uma voz discordante aqui, outra acolá, o silêncio do generalato soa, se não como indiferença, como tácita anuência.

O Congresso – corroído por cooptação desabrida, onerosa e abjeta – perdeu a capacidade de exercer sua função de representar os interesses da população.

O Supremo Tribunal Federal é a última barreira, o derradeiro cinturão de segurança que ainda mantém, bem ou mal, a coesão das instituições da República do Brasil.


A hora é mais grave do que parece à primeira vista.


A Amazônia desaparece ao ritmo de um campo de futebol por minuto. A madeira extraída criminosamente é oferecida a amigos do clã para negócios escusos. Os manguezais são postos à disposição dos amigos do rei. A Instrução Pública, entregue a “pastores” que trocam bíblias por barras de ouro, vai sendo carcomida pelas bordas.

Observe-se que nem o Lula, que está longe de ser um santo, ousou graciar correligionários condenados no mensalão.

O capitão tem de ser parado antes que destrua tudo. Sua destituição tem de entrar na ordem do dia. Ou deixa o poder já, ou deixa o poder já. Não há outra opção.

Como fazer? Os do andar de cima, que perigam perder o que têm se não agirem imediatamente, sabem como fazer.

O impedimento do presidente me parece uma solução. Motivos, há de sobra. Para a argumentação, temos excelentes juristas.

Agora chega!

Cai ou não cai?

José Horta Manzano

Entre nós, a queda de alto dirigente não é tabu. Só no estado do Rio de Janeiro, nos últimos 4 anos, 5 governadores foram presos: Sérgio Cabral, Pezão, Garotinho (ele), Garotinho (ela) e Moreira Franco. Afastado ontem pelo Tribunal de Justiça, doutor Witzel está a um passo do presídio de Bangu.

No Planalto, não tem sido diferente. Nos últimos 25 anos, 2 presidentes foram destituídos (Collor e Dilma) e 2 outros foram presos (Lula e Temer). Portanto, figurão afastado e/ou preso não é novidade.

Se doutor Bolsonaro conseguir se segurar até o fim do mandato sem ser derrubado com base nos preceitos constitucionais, estará dada a prova de que nossa República está de fato desamparada. Ficará (ainda mais) evidente que os integrantes do Congresso e do STF são, em maioria, gente de mesmo nível que o presidente. Ou são oportunistas que, por interesse pessoal, a ele se igualam – o que dá no mesmo.

Se doutor Bolsonaro conseguir se segurar até o fim do mandato sem ser derrubado por manifestações populares como as de 2013, que acabaram por mandar Dilma de volta pra casa, estará dada a prova de que somos todos bundões.(*)

(*) Não está nos hábitos deste blogueiro empregar aquele padrão de palavras que, antes de serem pronunciadas, exigem que se retirem as crianças da sala. Estou aqui citando literalmente o epíteto que o presidente pespegou aos que ousaram questioná-lo sobre atos suspeitos.

Para evitar impeachments

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 julho 2020.

Quem se lembra daquele presidente de Honduras, caricatura do típico caudilho latino-americano bigodudo, aquele señor que queria se tornar ditador? Zelaya era o nome dele. O moço fez travessuras. Percebendo que o país ia desandar, militares de alta patente não hesitaram. Mandaram tirá-lo da cama no meio de uma tépida madrugada tropical, sem direito a trocar de roupa: foi desterrado de pijama. Não se ouviu mais falar dele.

Evo Morales, da Bolívia, era outro que dava sinais cada dia mais inquietantes de que pretendia se instalar em definitivo no Palacio Quemado. Um belo dia, foi discretamente informado pelo Estado Maior do Exército de que não podia mais contar com apoio militar e que era melhor afastar-se. Renunciou na hora, embarcou num avião das Forças Aéreas Mexicanas e asilou-se na turística Acapulco. Com as acusações que lhe pesam nas costas, dificilmente pisará de novo os picos áridos e gelados do país natal.

No Brasil, também costumava ser assim. Washington Luís em 1930, Getúlio Vargas em 1945 e Jango Goulart em 1964 seguiram figurino de justiça expeditiva. Hoje o procedimento está mais civilizado. Assim mesmo, com duas destituições em 25 anos, a rotatividade continua acelerada.

Os constituintes de 1988 decerto não imaginaram que processos de destituição pudessem repetir-se com tal frequência. Prova disso é que, apesar de detalhista, a Carta Magna não regulamentou a matéria. Em pleno século 21, impeachments continuam arrimados numa lei sancionada de 70 anos atrás. Recorrer à destituição a cada vez que o chefe do Executivo escorrega é processo desgastante, que trava o andamento normal do país durante meses. A conduta errática da atual presidência – e o espectro de impeachment que a acompanha – devem despertar uma reflexão nacional sobre a oportunidade de instaurar-se o parlamentarismo.

Para quem receasse sentir-se órfão, consola saber que o regime parlamentar não prescinde necessariamente da figura presidencial. O presidente pode até continuar a ser eleito pelo voto popular. A diferença mais notável é a drástica diminuição de seus poderes. Em alguns poucos países, como França e Portugal, embora o governo seja exercido por um primeiro-ministro eleito pelo Congresso, o presidente conserva certas atribuições de Estado; pode, em certos casos, interferir na política externa. Na maioria dos países, nem isso. Presidente é figura representativa – quem governa, de fato, é o parlamento.

Mas, atenção! Para um regime desses funcionar, é essencial estreitar a relação entre eleitores e eleitos. No sistema atual, com parlamentares eleitos pelo voto proporcional, o divórcio é total: nem o eleitor sabe quem o representa, nem o eleito se sente compromissado com quem o elegeu. É a perfeita negação da democracia. É verdade que mexer nisso é como enfiar a mão num saco de caranguejos. Mas não há outro jeito: quando um sistema de governo começa a dar sinais de exaustão como nosso presidencialismo de coalizão (ou de cooptação ou de confrontação, como preferir), é chegada a hora de aperfeiçoá-lo.

O voto proporcional tem de ceder lugar ao voto distrital puro. É simples. Divide-se o país em 513 distritos de população equivalente, cada um correspondendo a um assento na Câmara. Cada distrito escolherá um representante – o SEU deputado – em eleição de dois turnos. Esse sistema tem numerosas vantagens. A campanha eleitoral sai muito mais barata, dado que os candidatos só apertam mãos e distribuem santinhos no interior do distrito no qual concorrem.

O eleitor saberá a qualquer momento quem é seu deputado, fato que lhe permitirá acompanhar o trabalho do eleito e cobrar-lhe as promessas. O sistema distrital tende a enxugar a dispersão de votos, deixando à míngua partidos de aluguel. Com o método distrital, sumirá também o candidato puxador de voto, aquela figura conhecida que, ao receber enorme votação, elege mais quatro ou cinco companheiros inexpressivos.

Com o presidente atual, sempre em equilíbrio precário entre lutas no interior do clã e problemas com a Justiça, toda mudança é improvável. No dia em que ele deixar a presidência, será chegado o momento. Não vai ser fácil vencer as resistências, mas vale a pena – o Brasil merece essa chance.

Pra ejectar o doutor

José Horta Manzano

Até casos que parecem incongruentes acabam clareando, veja só. Um deles está aqui.

Por um lado, pedidos de impeachment do presidente se empilham na lista de espera da Câmara dos Deputados. Por outro, doutor Bolsonaro continua atacando diariamente Rodrigo Maia, o presidente daquela Casa. Sabendo que cabe justamente a Rodrigo Maia decidir se põe ou não põe em pauta um pedido de impeachment, a primeira impressão é de que Bolsonaro pirou de vez. Afrontar aquele que lhe pode cortar o pescoço? Coisa de louco.

Ontem Bolsonaro se deixou filmar quando assistia a uma fala de Roberto Jefferson (lembra dele?), na qual o deputado cassado delata Rodrigo Maia, que estaria armando complô para chegar ao impeachment do presidente. Cheguei à conclusão de que a farsa estava grosseira demais pra ser verdadeira. Louco, ainda vá, mas louco a esse ponto… não é possível. Alguma coisa está errada.

Acho que encontrei a chave do mistério. Explico. Doutor Bolsonaro, que mamou nas tetas da Câmara durante 28 anos e tem certo conhecimento do funcionamento da Casa, percebeu que não há clima para impeachment neste momento. Coronavírus, confinamento, PIB desabando e aumento do desemprego impedem que um processo de destituição do presidente da República prospere. Bolsonaro sabe também que, se um processo de impeachment não tiver sucesso, ele sairá fortalecido e vacinado até o fim do mandato.

Portanto, paradoxalmente, o que interessa ao presidente é conseguir que Rodrigo Maia inicie imediatamente um processo de destituição – que certamente vai dar chabu. Pra conseguir isso, decidiu dar pedradas e flechadas diárias a fim de irritar o presidente da Câmara. Só isso explica o que o comportamento alucinante do doutor. (Se não for isso, só chamando o pessoal do hospício; e que venham com camisa de força.)

Resta torcer pra que Maia não caia na cilada. Que espere o momento favorável pra ejectar o doutor.

Bolsonaro, o insulto e a Macedônia

José Horta Manzano

Se o distinto leitor não sabe muito sobre a Macedônia do Norte, não há por que ficar encabulado: quase ninguém sabe nada. O minúsculo país, com dois milhões de habitantes e superfície menor que a do estado de Alagoas, é produto da explosão da antiga Iugoslávia. Sem saída para o mar, está encravado entre Grécia, Bulgária, Sérvia e Kosovo. Como se dizia antigamente, fica pra lá do fim do mundo.

Em média, doutor Bolsonaro costuma protagonizar um escândalo por dia. A maioria é para uso interno e não atravessa fronteiras. Alguns, no entanto, são de alcance internacional. O deste fim de semana, produzido sábado passado, é tipo exportação. Repercutiu forte na mídia europeia. Chegou até à longínqua Macedônia – uma façanha!

Reporter – Jornal online da Macedônia
Tradução da manchete: “Macron tem inveja de eu ter mulher melhor que a dele”- Bolsonaro insulta Brigitte por causa da aparência física

Aos que ainda não sabem e quiserem conhecer os detalhes sórdidos da história, aconselho consultar a mídia ou as redes. Aqui ou também aqui, por exemplo. Resumo: doutor Bolsonaro endossou um comentário, postado numa rede social, que zombava da aparência física de Madame Brigitte Macron, mulher do presidente da França. Se o pecado já é repugnante em si, é surrealista que um chefe de Estado tenha ousado cometê-lo. E é desesperador que esse chefe de Estado seja o presidente de nosso país.

Na França é, compreensivelmente, o assunto do dia. No resto da Europa, idem. Ai, senhor, que vergonha! Já tirei, faz anos, a bandeirinha verde-amarela que estava grudada no porta-malas do carro. Não são as molecagens desse presidente ignorante e malcriado que me farão içar de novo o pavilhão.

Ofensas como essa não se esquecem facilmente. Guerras já estouraram por menos que isso. Um dia, os brasileiros, mesmo não sendo diretamente culpados, acabarão pagando a conta. A não ser que se redimam destituindo o presidente. Porquoi pas? – por que não? De todo modo, o próximo não poderá ser pior. Ou?

Recolha

José Horta Manzano

Uma das lembranças que guardo da infância é a dos ônibus que circulavam com o letreiro «Recolhe». Nem iam ao destino habitual, nem voltavam ao ponto de partida. Aquela palavrinha informal, pura expressão de português caseiro, ia direto ao que interessava. Sem floreios. Quem recolhia? Recolhia o quê? Não tinha importância. A informação era despretensiosa mas eficaz. De um relance, a gente entendia que aquele veículo não estava de brincadeira. Não ia parar. Acontecia, de raro em raro, que o motorista – que a gente chamava então de ‘chofer’ –, condoído da sorte de quem esperava no ponto, desse uma paradinha camarada e embarcasse algum passageiro. O homem atropelava o regulamento mas fazia a alegria de quem se dispusesse a compartilhar aquela viagem ao repousante destino. «Recolhe»…

Não sei se ainda se veem ônibus com convite tão explícito ao descanso e ao adeus às armas como aqueles da minha infância. Espero que sim. Afinal, ônibus também são seres humanos, como diria o outro, e têm direito a um descansozinho.

Li estes dias que a ideia de uma versão moderna de recolhimento perpassa o Congresso. Não visa a mandar veículos para o descanso. Bem mais ambicioso, o objetivo é aposentar o próprio presidente da República. Recolhida ou recolha há de ter soado jeca para os ouvidos de nossos sofisticados parlamentares. Vamos banir esse jeito primitivo de falar, que diabos! O projeto fala em «recall». A realidade é a mesma, mas a palavra estrangeira soa tão melhor. Fica muito chique.

O objetivo é deixar cair um grão de areia na engrenagem da Presidência. Dessacralizá-la. Fazer que o ocupante não se sinta onipotente e blindado contra vento de boreste ou tempestade de bombordo. Em princípio, tudo o que possa levar o presidente a refletir é bem-vindo. O projeto em tramitação, no entanto, parece-me de difícil aplicação. Para lançar um plebiscito revocatório, será preciso colher um número de assinaturas equivalente a 10% dos votantes na eleição precedente. Parece pouco, mas estamos falando de mais de dez milhões de peticionários, uma enormidade! Fica no ar um problema complementar: quem é que vai atestar a veracidade de cada assinatura? Com base em quê? Como evitar assinaturas repetidas?

Nosso país não tem tradição plebiscitária. Não há um órgão depositário da amostra da assinatura de cada cidadão. Não temos um registro de residência dos habitantes. Não vejo como um voto popular revocatório possa um dia ser implantado. O bom e velho impeachment – que já serviu um par de vezes – ainda me parece o único caminho viável. A recolha de presidente por iniciativa popular direta vai ficar pra uma próxima vez.

Como desalojar Maduro

José Horta Manzano

De duas semanas pra cá, o drama venezuelano se exacerbou. Ao sofrimento diário de ter de encontrar comida para os filhos, juntou-se o medo de sair à rua e dar de cara com distúrbios violentos. Para o cidadão comum, o sofrimento ‒ que parecia ter chegado ao máximo ‒ piorou. Por ‘cidadão comum’, entendo os que não são militares, nem altos funcionários do regime, nem milicianos a soldo do governo, nem apaniguados de todo tipo.

Juan Guaidó, presidente da Assembleia, destituiu Maduro por conta própria e proclamou-se presidente provisório. Boa parte da população, cansada de guerra, deu apoio. Brasil, EUA e mais uma pancada de países latino-americanos aproveitaram pra desconhecer Maduro como presidente. Por seu lado, a União Europeia deu-lhe ultimatum marcando prazo de oito dias para convocar novas eleições. Caso assim não ocorra, a UE promete fazer coro com os que apoiam doutor Guaidó. Como respaldo, o ditador ainda conta com a Rússia mais um punhado de países, entre os quais alguns menos recomendáveis como Cuba, Irã, Turquia.

Se Maduro, aboletado no Palácio Miraflores, ainda posa de mandachuva, não é por abundância ou falta de apoio estrangeiro. No fundo, pouco importa a gesticulação de Washington, de Brasília ou de Bruxelas. Apesar das ameaças, os EUA continuam sendo o maior comprador do petróleo do país. Nenhum dos que apoiam Guaidó impôs boicote nem embargo comercial. Nem adiantaria. A razão da inamovibilidade do ditador, todo o mundo sabe, é o apoio que recebe da cúpula das forças militares. Enquanto durar essa sustentação, Maduro vai continuar no trono, ainda que a Venezuela continue a sangrar.

by Darío Castillejos, desenhista mexicano

E por que é que o apoio dos militares é inabalável? O fato de estarem no bem-bom não explica tudo. A fibra humanitária também conta. Um fato revelador, ocorrido este fim de semana, dá boa pista pra esclarecer a questão. Señor José Luis Silva y Silva, coronel da Guarda Nacional Bolivariana, é adido militar junto à embaixada da Venezuela em Washington. Agarrando sua coragem com as duas mãos, o militar fez defecção e renegou o compromisso de lealdade para com a corporação. Lançou nas redes sociais um pronunciamiento em que se põe à disposição de Guaidó, o presidente interino.

Na exposição de motivos, o coronel explicou que há militares que, como ele, gostariam de abjurar a fé bolivariana, mas hesitam por dois motivos. Caso trabalhem fora do país, temem pelas represálias que a família, que ficou na pátria, possa sofrer. Caso vivam na Venezuela e consigam escapar do país com a família, receiam não ser bem acolhidos, dado que estarão fugindo de uma ditadura que sustentaram por muitos anos.

Taí a razão: os militares, base de sustentação da ditadura, temem o que lhes possa acontecer caso Maduro seja destituído. Não é a cara feia de Brasil, EUA e outros países que vai abalar o pedestal. Nem a simpatia de Rússia, Cuba & alia que vai ajudar. Para fazer cair o ditador, garantias têm de ser dadas ao chefes militares. Internamente, doutor Guaidó, em primeiríssimo lugar, teria de acenar com anistia ampla, geral e irrestrita. Externamente, EUA ‒ em primeiro lugar ‒ mas também Brasil e os demais deveriam dar sinais de estarem dispostos a acolher, com simpatia, todo dirigente militar que deseje se expatriar com a família.

Enquanto os militares venezuelanos não enxergarem um futuro desanuviado, não deixarão de apoiar a ditadura. A agonia do regime e o calvário do povo hão de se espichar.

Pé torto

José Horta Manzano

Tem gente que é pé quente. De outros, a gente diz pé frio. Já PÉ TORTO é mais raro mas existe. Gente assim nem sempre tem final feliz.

Todos se lembram do instantâneo que colheu doutor Jânio Quadros, então presidente da República, em posição pra lá de incômoda, com os pés em posição bizarra, como se cada um quisesse seguir em direção oposta ao outro. Deu no que deu: pouco tempo depois, o homem pendurou os sapatos, desistiu da presidência e exilou-se em Londres.

Mais recentemente, assistimos a cena de teor semelhante. Foi quando doutora Dilma foi surpreendida ao examinar a posição dos pés desencontrados da chanceler alemã, dando a impressão da professora que confere se a aluna aprendeu a lição. A chanceler (ainda) não caiu, mas a professora já cumpriu seu destino. Foi apeada do salto alto. Caiu atirando mas caiu. Já no chão, continua disparando. Mas o destino é cruel. Os estampidos que ela provoca se atenuaram a ponto de hoje se confundirem com estalo de bombinha de São João.

Estes dias, foi a vez de doutor Temer. Um fotógrafo arguto colheu o figurão em posição assaz incômoda, que faz lembrar seus ilustres predecessores na linhagem dos pés tortos. A orientação dos pés exibida pelo presidente não é de bom augúrio.

Da inutilidade do vice ‒ 2

José Horta Manzano

Suponhamos que um casal se candidate a tomar um apartamento em aluguel. São aceitos, o marido assina o contrato e se mudam. Depois de alguns meses, surgem problemas devidos a um desvio de comportamento qualquer. Pode ser por falta de pagamento, por barulho excessivo, por litígio com vizinhos, por deixarem o cachorro fazer xixi no elevador, por terem brigas frequentes e escandalosas.

Tanto faz o motivo. No final de algum tempo e depois de algumas advertências, o resultado não pode ser outro: acabam sendo despejados. Rescindido o contrato, a permanência no apartamento não é permitida nem ao marido, nem à mulher, nem a filhos ou dependentes. Todos têm de deixar o imóvel. A esposa não pode alegar que a inadimplência era culpa do marido e que, doravante, ela assumirá o compromisso. Não é assim que funciona.

Por analogia, enxergo a presidência do país nos mesmos moldes. O casal (presidente e vice) se candidata. Vencem juntos a eleição. Assumem posto e funções. Depois de algum tempo, por um motivo qualquer, deixam de fazer jus ao cargo. No nosso caso, suponhamos que tenha sido por maquiagem das contas públicas, manobra que a lei pune com a perda do cargo.

Seguindo o rito constitucional ‒ que corresponde ao regulamento do condomínio ‒, o presidente da República é destituído, assim como o inquilino inadimplente foi despejado. Nesse ponto, surge uma bizarrice. O presidente se vai, mas o vice, embora tenha sido eleito em ‘dobradinha’ com ele, tem o direito de ficar. Está plantada a semente da confusão. Quem planta confusão colhe balbúrdia.

O distinto leitor sabe que, na minha visão, a figura do vice é perfeitamente dispensável. Aquela espécie de urubu à espreita de chegar seu momento é sombria, inútil e prejudicial. Mas, se fizerem questão de continuar copiando o modelo americano que determina que se tenha um vice à mão e pronto a assumir, que sejam especificadas as ocasiões em que lhe cabe tomar o assento do presidente.

Esqueçamos a ridícula passagem de poder feita a cada viagem internacional do titular. Isso é coisa do século 19, que hoje não faz mais sentido. O vice assumirá em caso de morte, renúncia, doença prolongada, incapacidade física ou mental do presidente. Doutora Dilma foi mandada embora por ter cometido crime de responsabilidade. No meu entender, doutor Temer deveria ter deixado o governo junto com a titular.

Como vice-presidente eleito na mesma chapa, ele era corresponsável. É inconcebível que tenha passado ileso pelo processo, como se nunca tivesse passado de figura decorativa, sem função. Afinal, o doutor tinha assumido a presidência frequentemente, a cada vez que a titular viajou ao exterior. E tinha assinado atos administrativos. E tinha segurado as rédeas do país. Se, ao sair a doutora, saíram todos os ministros e assessores, por que, diabos, ficou o vice?

E pensar que é tão simples resolver o problema da vacância do cargo. Quando um presidente se vai, organizam-se novas eleições e escolhe-se novo titular. Pronto. Pra que serve esse incômodo curinga guardado na manga? É carta marcada, que traz cheiro e gosto do presidente anterior. Foram eleitos na mesma chapa, pelos mesmos eleitores. E governaram juntos. Entraram juntos e assim devem sair.

Foi golpe?

José Horta Manzano

Ainda ontem comentei a deselegante, ostensiva e tendenciosa reação de alguns países ditos «bolivarianos» quando do pronunciamento que doutor Temer fez na tribuna da ONU em Nova York.

A grita dos bolivarianos não tem a ver com desinformação sobre o que se passa no Brasil. Sabem eles muito bem o que aconteceu, descobrem que perderam a boquinha e esperneiam. Dá pra entender.

midia-1O que nos deixa pasmos é ver que parlamentares de países civilizados, ainda hoje, continuem considerando que a destituição de Dilma Rousseff foi resultado de golpe urdido por elites enfurecidas. Fica-se a matutar como é possível que, com a profusão e a rapidez da mídia atual, ainda haja gente que não entendeu o processo constitucional e democrático que derrubou o governo.

Muitas vezes, mais vale varrer diante da porta de casa antes de ralhar contra a sujeira do vizinho. Antes de considerar que jornalistas internacionais não passam de esquerdistas ignorantes, vamos dar uma olhada na nossa própria sujeira. De onde é que esses estrangeiros tiram essas ideias? Será que se deixam impressionar por artistas brasileiros que repetem «Fora, Temer»? Devo dizer, en passant, que já vi dúzias de «Fora, Temer!», mas nenhum «Volta, Dilma!»

Houve até um grupo de atores brasileiros, escorado pelas benesses da Lei Rouanet, que ousou instrumentalizar a escadaria do Festival de Cannes para propaganda política, coisa que a mítica festa do cinema nunca tinha visto em 70 anos de existência.

midia-3Jornalistas estrangeiros podem não ter o conhecimento aguçado que o distinto leitor tem da tortuosa política brasileira, mas fique frio!… Os atores que brandiam cartazes em Cannes estavam apenas cumprindo tabela. Não são eles que hão de reforçar a convicção de que o impeachment tenha sido manobra golpista. A encenação ficou por conta da falta de recato dos que protestaram.

Há bem pior. Na noite de segunda-feira passada, a Câmara fez tentativa explícita de enfiar goela abaixo da nação uma anistia a parlamentares que se tivessem valido de caixa dois. Em outras palavras: anistia ampla, geral e irrestrita a todo o Congresso. De fato, podem-se contar nos dedos de uma mão os eleitos que respeitaram rigorosamente os preceitos do financiamento eleitoral legal.

midia-2Descoberta e denunciada a tempo, a tenebrosa transação não vingou. Mas a mídia nacional e internacional se encarregou de propagar. Se faltava uma demonstração de que o parlamento brasileiro é um ninho de corruptos, a manobra de segunda-feira se encarregou de varrer toda ambiguidade. Sim, nosso Congresso agiu como se bolivariano fosse.

Que ninguém reclame se, à vista de patuscadas desse quilate, o Brasil continue a ser visto como republiqueta de bananas. Para quem vê de fora, a estranha manobra reforçou a ideia de que o impeachment não passou de golpe palaciano, aplicado por parlamento corrupto contra uma presidente impoluta.

Quedémonos con lo bueno!

José Horta Manzano

É assim que dizem os espanhóis quando um acontecimento tem um lado bom e outro ruim. «Fiquemos com o que há de bom.» Vamo-nos contentar com o ganho. Depois, com calma, resolvemos o que ficou pendente. O mundo não vai acabar. Nada é perfeito. Às vezes, é preciso entregar os anéis pra salvar os dedos.

Nos últimos dias, por ocasião do julgamento da destituição da presidente, pelos senadores, assistimos a um espetáculo decente. Pelo menos formalmente, o desenrolar foi decente e civilizado. Surpreendentemente, o clímax que quase paralisou o Brasil dia 31 de agosto passou praticamente despercebido no exterior.

Senado federal 1Na maior parte dos países, crises envolvendo destituição de medalhões costumam resolver-se bem mais rapidamente. Meses atrás, quando o «rito» começou a se desdobrar, muito se falou e se escreveu sobre ele. À medida que o processo se arrastava, no entanto, o interesse da mídia internacional foi desmilinguindo.

A prova de que o resultado final não impressionou ninguém além de nossas fronteiras foi a repercussão quase nula do impeachment de dona Dilma. O jornal televisivo suíço, fonte-mor de informação da população, sequer abordou o assunto. Na França, os principais jornais não dedicaram mais que 15 segundos à ‘grande’ notícia. Fica a impressão de que, na cabeça de todos, o assunto já se havia esgotado e o mandato da doutora já estava cassado havia tempo.

Quanto a nós, apesar de termos conseguido o principal, continuamos a discutir sobre o accessório. Dona Dilma foi despachada mas não perdeu seus direitos políticos. E daí? Onde está o problema? Alguém imagina que ela venha a se candidatar à presidência em 2018? É possível que a moça tivesse dificuldade até em se eleger para a vereança de Porto Alegre.

Dilma 17O importante é que demos o passo maior para começar a desinfetar o mundo político brasileiro. A estrada é longa, o fim do caminho não está ainda à vista. O parlamento nacional não se transformou, como por magia, em parlamento escandinavo. Mas estamos no bom caminho.

A Constituição foi ferida? Eminentes juristas opinam que sim, enquanto outros doutores asseveram que não. A discussão, neste ponto, deixa de ser política e passa para o plano filosófico. Leis não podem prever tudo. Contradições existem. Em vez de nos dilacerar apoiando este ou aquele ponto de vista, concentremo-nos no principal.

Dos quatro presidentes eleitos pelo voto direto desde o retorno da democracia, dois foram destituídos. São percalços que revelam que o sistema está longe da perfeição. Na minha opinião, a reforma política é necessidade urgente. Gostemos ou não, temos de repensar os poderes e as atribuições do presidente da República.

Enquanto não chegamos lá, fiquemos com o lado bom. Nossos políticos, todos eles, desde presidente até prefeito de lugarejo, sabem hoje que, em caso de «malfeitos», o risco de serem apanhados e apeados é real e bem maior que poucos anos atrás. Podem até acabar atrás das grades. O medo, distinto leitor, é freio excelente.

Interligne 18h

Nota
Aos que aceitam o discurso da presidente, segundo a qual seus 54 milhões de eleitores foram espezinhados, lembro que os algozes ‒ Câmara e Senado ‒ representam a totalidade do eleitorado, ou seja, mais de 100 milhões de cidadãos, o conjunto do voto de todos os brasileiros. No frigir dos ovos, os parlamentares têm, em conjunto, legitimidade bem maior do que a doutora tinha. De cada quatro senadores, três preferiram cassar-lhe o mandato. Precisa mais?

Impeachment e quotas

José Horta Manzano

Artigo para o Correio Braziliense

No momento em que escrevo, o julgamento da destituição da presidente ainda não terminou. Seria desajuizado, portanto, asseverar qual será o resultado. Manda a prudência ser paciente e esperar o veredicto oficial. Só então conheceremos o sabor do molho que regará as mazelas nacionais pelos próximos anos.

Com impeachment ou sem ele, problemas gigantescos ‒ acumulados, não tratados e amplificados nestes tresvairados anos ‒ terão de ser enfrentados. Não há como escapar. Não é possível empurrar o futuro cada ver mais pra diante. Um dia, ele acaba chegando, e as bombas que não tiverem sido desarmadas perigam rebentar em nossas mãos. Os pavios estão acesos.

Os senadores têm, neste momento, grande poder e imensa responsabilidade. A decisão que o colegiado tomar não eliminará, por magia, as adversidades que nos afligem, mas certamente definirá o modo como serão abordadas. A sabedoria popular diz que não se deve trocar o certo pelo duvidoso. No entanto, quando o certo ‒ falo dos fatos e gestos políticos destes últimos anos ‒ é tão calamitoso, mais vale apostar no duvidoso. Há sempre uma chance de a coisa pública deixar de ser tratada tão indecorosa e tão catastroficamente.

Cena da Idade Média by Pieter Bruegel (≈1525-1569), artista flamengo

Cena da Idade Média
by Pieter Bruegel (≈1525-1569), artista flamengo

Dado que ainda não atravessamos o túnel do impeachment, quero usar este espaço para tecer considerações sobre a política de quotas. Aprendemos na escola que o feudalismo era o sistema social vigente na Europa medieval. Os manuais ensinam também que essa arquitetura social começou a se extinguir meio milênio atrás e que a Revolução Francesa assestou-lhe o golpe final.

Assim mesmo, no Velho Continente, sobrevivem marcas de estratificação social. Nações do norte vivem de maneira mais igualitária, com diferenças sociais pouco acentuadas. À medida que se caminha para o sul da Europa, desigualdades sociais tornam-se mais e mais visíveis. Portugal e os países da orla mediterrânea estão a anos-luz do igualitarismo escandinavo. A sociedade brasileira descende, em linha direta, desse sistema desigual. Herdou uma estrutura hierárquica que, embora não diga seu nome, guarda traços evidentes de feudalismo latente.

Privilégio é o modus operandi. A palavra não desmerece a etimologia: privilégio é lei privada. O que é vedado à massa dos cidadãos comuns pode ser tolerado quando praticado por personagens do andar de cima. Nosso país foi fundado ‒ e funciona até hoje ‒ com base em regras díspares e desequilibradas. De saída, o sistema começou torto, com a partilha da nova terra em capitanias distribuídas entre os amigos do rei. Faz quinhentos anos que a essência é a mesma.

Garante-se tratamento especial a presidiários conforme o grau de estudos de cada um. Doutores, ainda que condenados por crime pesado, terão direito a cela e a tratamento carcerário diferente do que se dispensa ao populacho. Deputados, senadores e outros eleitos do povo, ainda que acusados de crimes repugnantes, escapam à justiça comum. Serão julgados em foro especial, não misturados à plebe. Pois essa hierarquia entre castas de cidadãos, que nos parece perfeitamente natural, é inconcebível em países mais adiantados.

Faz já algum tempo que, numa tentativa canhestra de diminuir desigualdades, surgiram sistemas ditos de quotas. É solução perniciosa, em que se pretende curar um mal provocando outro. Tenta-se combater estragos causados por privilégios ancestrais criando… novos privilégios. Pior que isso, quotas são às vezes baseadas na raça do cidadão, conceito pra lá de vago entre nós.

Operários, obra de 1933 by Tarsila do Amaral (1886-1973), artista paulista

Operários, obra de 1933
by Tarsila do Amaral (1886-1973), artista paulista

A princípio, considerou-se que a autodeclaração racial bastasse para separar cotistas dos demais. Com o passar dos anos, a imprecisão inerente à própria definição de raça abriu brecha para falsas declarações. Ainda outro dia, um cidadão houve por bem apresentar numerosos laudos assinados por dermatologistas para demonstrar que, pelo critério de coloração de pele, podia ser enquadrado em determinada quota racial. O Itamaraty já criou um mui oficial Comitê Gestor de Gênero e Raça. Estamos pisando terreno minado, que evoca períodos sombrios da História. Comitês encarregados de controlar a raça de cidadãos existiam na Alemanha nazista, de nefasta memória.

Mais vale garantir a todos os cidadãos um padrão elevado de Instrução Pública. Nosso sistema de quotas nada mais é que confissão de fracasso da Educação Nacional. Para banir nossos renitentes resquícios de feudalismo, ainda temos longo caminho a percorrer.

Ranço colonizador

José Horta Manzano

Sob o título de «Ranço colonizador», o Estadão de hoje dá notícia, em editorial, de um manifesto lançado alguns dias atrás por 28 senadores franceses em defesa da presidente afastada, Dilma Rousseff. Em tom indignado, o quotidiano brasileiro se insurge contra a posição dos parlamentares estrangeiros, que abraçam a fantasia de pretenso golpe parlamentar urdido para derrubar a mandatária.

Editorial Estadão, 17 jul° 2016

Editorial Estadão, 17 jul° 2016

O título do panfleto francês já diz tudo: «Dilma Rousseff vítima de baixa manobra parlamentar». Acreditando que os signatários do libelo estejam mal-informados e desconheçam os fundamentos jurídicos que sustentam o processo de destituição da presidente, o Estadão dá verdadeira aula de Direito Constitucional brasileiro.

Nosso jornal gasta muita saliva com pouca comida. Basta arranhar com a unha para descobrir que, por debaixo do revestimento dourado , o metal é de qualidade duvidosa. Procurei saber um pouco mais sobre os comos e os porquês. O tal ‘manifesto’ passou absolutamente despercebido na França, só tendo sido publicado pelo parisiense Le Monde. Nem folhas de esquerda como Libération ou L’Humanité (órgão do Partido Comunista) deram eco ao abaixo-assinado. Nenhum outro quotidiano francês deu a menor importância.

Chamada de Le Monde, 13 jul° 2016

Chamada de Le Monde, 13 jul° 2016

Como achei estranho esse descaso, quis verificar quem eram os signatários. Afinal, o Senado francês, composto de 348 membros, é braço do Poder Legislativo. Fazendo as contas, notei que os 28 autores do texto representam apenas 8% do total de senadores. Desses 28, vinte são comunistas: formam o CRC ‒ Grupo Comunista Republicano e Cidadão. Os restantes são afiliados a grupos ecologistas. Um só dentre eles é conhecido por ter sido, anos atrás, apresentador de tevê. Os demais são estranhos ao grande público.

Cada jornal toma o caminho que lhe parece mais indicado. Não estou aqui para dar lições ao Estadão. Assim mesmo, cogito ergo sum ‒ não posso me impedir de pensar. Que René Descartes não me leve a mal.

Senado francês

Senado francês

Depois de cogitar um instante, cheguei à conclusão de que um quotidiano do porte do Estadão não deveria perder tempo com elucubrações de adeptos do pensamento único. Com tanta coisa mais importante em pauta, não vale a pena gastar esforço tentando dar aulas de democracia a gente que passou por lavagem cerebral. É muita vela pra defunto pouco.

Os cães ladram

José Horta Manzano

Quando a insistência é demasiada, a gente desconfia. Entre milhares de erros e de passos em falso cometidos pela dupla Lula/Dilma, com assistência de assessores duvidosos, está a facilitação da entrada da Venezuela no Mercosul. Um erro monumental.

Não é demais lembrar como se deu a entrada do novo sócio. As regras do clube estipulam que novos membros sejam obrigatoriamente aceitos pelos demais ‒ por unanimidade. No caso venezuelano, Brasil, Argentina e Uruguai já havia concordado. Último dos moicanos, o Senado paraguaio resistia. Entrava mês, saía mês, e nada de aprovarem a entrada de Caracas.

Mercosul 4À época, o presidente do país era Monsenhor Lugo. Rabo de saia, o eclesiástico era acusado de haver transgredido em repetidas ocasiões o voto de castidade. Libidinagem não costuma derrubar presidente; má gestão, sim.

Foi justamente por não tê-lo considerado capaz de continuar à frente do país que o congresso paraguaio o destituiu da presidência. O impedimento, embora tenha sido processado a toque de caixa, não feriu as disposições da Constituição paraguaia.

Doña Cristina Kirchner e doutora Dilma Rousseff não entenderam assim. Numa intromissão descabida em assuntos internos do país vizinho, argumentaram que a destituição do monsenhor tinha sido inconstitucional. De castigo, presentearam o Paraguai com um ano de suspensão do Mercosul.

País suspenso não é sinônimo de país excluído. Ainda que temporariamente impedido de participar dos debates rotineiros, o Paraguai manteve seu estatuto de membro fundador e de integrante do Mercosul. Toda decisão que exigisse unanimidade dos membros teria de contar com o voto guarani. Cristina e Dilma passaram por cima dessas miudezas. Valeram-se da suspensão para abrir a porta para a Venezuela. A porta dos fundos, na verdade.

Não ficou claro até hoje por que razão Brasil e Argentina se empenharam tanto para emplacar a Venezuela como sócia. Há quem alegue razões de ideologia. Fico de pé atrás. Nem Cristina nem Dilma nem os respectivos partidos são lá paradigmas em matéria ideológica. A aliança entre Lula e Maluf que o diga. A meu ver, embaixo desse angu tem carne. Conhecendo os protagonistas, é lícito desconfiar que a insistência se prenda a obscuras transações.

Mercosul 3Já emperrado por lutas intestinas, nosso infeliz Mercosul não precisava de um sócio malvisto por dez entre dez democracias do planeta. Não se pode dizer que o bloco tenha ganhado com a entrada do sócio problemático. A mais recente enrascada está acontecendo estes dias.

Em princípio, pelo sistema de rodízio, Caracas deveria assumir, pelos próximos seis meses, a presidência do Mercosul. O desconforto dos demais sócios é palpável. Entregar a presidência ao caudilho Maduro? Ninguém concorda. Reuniram-se em Montevidéu pra discutir sobre o assunto. A Venezuela não foi convidada. Assim mesmo, para aflição dos demais, a ministra de Relações Exteriores apareceu de surpresa.

Como em filme cômico, os enviados de outros países evitaram encontrá-la. Foi o retrato acabado de um bloco inerte, sem ação, sem importância, sem escapatória, sem futuro.

No fundo, no fundo, pouco importa que a presidência pro tempore seja exercida por este ou por aquele sócio. De qualquer modo, as discussões que se travam nessas cúpulas lembram aqueles cães que ladram sem se dar conta de que caravanas passam, avançam e progridem. Que continuem ladrando, tanto faz.

Fiz um gato

José Horta Manzano

Gato escondido 2As coisas, às vezes, acontecem na hora errada. Aliás, para coisas indesejadas, nenhum momento é propício. Pelas 11 da noite de ontem, quando costumo dar uma espiadinha na internet pra saber das novidades, não consegui entrar no primeiro site. Tentei um segundo, e nada. Depois do terceiro site fora do ar, tive de reconhecer que o sinal estava interrompido.

Aqui em casa ‒ como é comum por estas bandas ‒, eletricidade, televisão, telefone e internet são fornecidos pela mesma empresa. Como é a fiação? Não sei. Talvez venha tudo pelo mesmo buraco. Técnica, física, matemática e mecânica celeste nunca foram meu ponto forte. Fato é que ontem, de golpe, perdemos internet e telefone fixo. Por sorte, a eletricidade e a tevê continuaram firmes e fortes.

Na Suíça, depois do horário comercial, assistência técnica é tão difícil de achar como agulha em palheiro. A melhor notícia que o «serviço de emergência» da fornecedora conseguiu me dar é que um técnico entraria em contacto comigo na manhã seguinte. Tá.

Gato 1Que fazer? Nada. Panes aqui são muito raras, o que faz que a gente não esteja preparado para elas. Só pra dar uma pequena ideia, nenhuma casa tem caixa d’água. Nunca se ouviu falar nesse apetrecho. Armazenar água em casa, para um suíço, soa tão fora de esquadro como instalar sistema de calefação em Manaus.

Eis senão quando me vem à memória que, anos atrás, por razão que ora me escapa, chegamos a utilizar, por curto período, o sistema wi-fi do vizinho de parede. Com anuência dele, evidentemente. Na época, ele gentilmente nos forneceu a senha de acesso.

Gato escondido 16Aquela situação excepcional durou pouco porque logo tomamos assinatura internet e nunca mais utilizamos o sem-fio do vizinho. Só ontem, no momento da pane, a coisa me voltou à lembrança. O velho laptop que usávamos na época, embora já aposentado, não foi jogado fora. Aqui em casa, ninguém se lembrava mais da senha do vizinho mas… o velho computador de colo, que bobo não é, não se esqueceu. Como o vizinho é assinante de outra empresa, seu sinal estava perfeito.

Retirada temporariamente da aposentadoria que gozava no porão, a maquineta ressuscitou. Aparentemente orgulhosa de voltar à ativa, mostrou seriedade ao captar sem problema o sinal do vizinho, armazenado em sua inesgotável memória. É verdade que a velha maquininha é de uma lentidão à qual não estamos mais acostumados. Mas é sempre melhor que nada.

Graças a ela, pudemos assistir, ao vivo, à destituição do Lula. Não foi um lapso. Para mim, dona Dilma não passou de comparsa desastrada. Os escorraçados foram Lula & caterva.

Fiz um gato que valeu a pena.

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Observação
O vizinho de parede, a quem deixo aqui meu agradecimento, mantém o apartamento montado embora raramente esteja por aqui. Estes dias, por exemplo, está de viagem.

Só para terminar: depois de 12 horas, internet e telefone voltaram.

O verdadeiro golpe

José Horta Manzano

Em decisão monocrática, o deputado Maranhão, presidente interino da Câmara Federal, acaba de anular decisão tomada, semana passada, por seus pares. Foi aquela em que 367 dos 511 parlamentares presentes (72%) votaram pelo acolhimento do processo de destituição da presidente.

Fico com pena do deputado Maranhão. Ofendeu 72% de seus colegas. Irritou 90% de seus compatriotas. Importunou os 11 ministros do STF. Pra coroar, estimulou a turma de magistrados de Curitiba.

Senhor Maranhão dá mostra de falta de discernimento. Fez o que não devia. Ofender uns, irritar outros, importunar terceiros é perigoso.

Concordo que a turma de Curitiba não tem poder sobre deputados, dada a imunidade parlamentar. Mas cuidado, Maranhão, que eles podem transmitir sua folha corrida para o STF. Aí, a coisa vai ficar preta!

Agora güenta, Maranhão!

Carta à ONU e aos americanos

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Senhoras e senhores,

Antes de voltarem suas atenções para as considerações que nossa atual presidente deseja lhes apresentar para reflexão no dia de hoje, parece-me fundamental introduzi-los um pouco mais em detalhe à realidade brasileira. Para que lhes seja possível contextualizar com facilidade os fatos preocupantes que nossa mandatária pretende divulgar aqui, permitam-me guiá-los numa viagem conceitual pelo nosso país.

O Brasil não é um país para amadores. Turistas ocasionais podem se entreter e se deliciar com nossas belas paisagens, nosso clima tropical, nossa gastronomia diversificada, nosso multifacetado folclore e, principalmente, com nossa cultura de inclusão, conciliação, alegria e crença no futuro. Quaisquer que sejam seus interesses pessoais e visões de mundo, temos sempre a lhes oferecer um cardápio prolífico, generoso mesmo, de opções.

Já entender como nosso povo lida historicamente com sua realidade mais imediata – isto é, com seus desafios econômicos, sociais e políticos cotidianos ‒ é algo que requer uma robusta capacidade profissional de análise, capaz de contemplar com serenidade seus múltiplos aspectos conflitantes.

Dilma ONUCulturalmente nossos concidadãos se especializaram em extrair comédia de toda forma de tragédia. Como o próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud, já sugeria desde os primórdios do século 20, o senso de humor e os chistes podem ser considerados formas efetivas de se lidar com o mal-estar, já que “numa brincadeira, pode-se até dizer a verdade”.

Talvez o nonsense de nossa realidade não seja evidente de imediato para um estrangeiro que nos brinde com a honra de por aqui morar, mas certamente se revelará mais tarde diante dos contornos surrealistas de nossas leis “que pegam” ou não, de nossa forma de fazer justiça “pelo CPF e não pelo RG”, de nossos conceitos arraigados de que “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro” e que todo pai dos pobres acaba funcionando também como mãe dos ricos. Nossa tradição de fazer piada com tudo aquilo que, em tese, poderia deflagrar convulsão social em outros países é tão forte que já nos rendeu o epíteto de “país não sério”. Os acontecimentos políticos dos últimos meses ameaçam agora nos transformar no “país da piada pronta”.

Dilma Obama 2O traço mais marcante da cultura social brasileira é, sem dúvida, aquilo a que chamamos de “jeitinho”. Talvez em decorrência de nossa flexibilidade corporal, mental e psíquica, herança de nossos antepassados africanos, aprendemos a driblar toda e qualquer restrição legal, a contornar normas e jurisprudências, a acreditar que o atalho é a rota mais curta para chegar aonde queremos e livrar-nos de toda forma de punição. Ou, quem sabe, seja ele herdeiro direto da crença de que tudo em nosso país “acaba em pizza” – ou, melhor dizendo, da constatação de que, em última instância, a balança da justiça pende sempre para o lado mais empoderado da sociedade.

Por outro lado, nossa forma de lidar com a autoridade talvez seja a característica mais paradoxal de nossa cultura aos olhos de um estrangeiro. Podemos nos submeter a ela sem contestação e perdoar-lhe todos os desvios desde que ela seja hábil em nos fazer crer que tudo o que faz é para o nosso bem. Ao mesmo tempo, quanto mais irascível, arrogante e distanciada do nosso jeito simples de falar, mais ela será desqualificada através de nosso modo zombeteiro de enxergar as coisas sérias da vida. Expor o ridículo das pequenezas mentais de nossos governantes é nosso jeito peculiar de expô-los ao ridículo.

Assim sendo, senhoras e senhores, afianço-lhes que todos os aqui presentes disporão de farto material linguístico e comportamental ao longo do discurso de nossa mandatária-mor para aferir por conta própria e com total isenção de espírito a consistência racional de seus proclames. Devo alertá-los, no entanto, que é provável que a grandiloquência dos argumentos usados por assessores na composição da fala presidencial contraste e seja impactada negativamente pelos atropelos à lógica nas entrevistas que se seguirão ao pronunciamento oficial. Rogo-lhes que desconsiderem eventuais contradições em nome da manutenção dos laços de fraternidade que unem nossos povos.

¿ Por qué no te callas ?

Acredito sinceramente que sua experiência recente com as polêmicas geradas pelo candidato republicano às próximas eleições presidenciais americanas pode lhes servir de base segura para um julgamento sereno das implicações de aderir a este ou àquele lado de nossos atuais confrontos políticos. Se de todo lhes for humanamente impossível isentar-se da força do mantra “impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”, peço-lhes que experimentem se colocar emocionalmente na pele de comandados. Se e quando uma onda de indignação começar a se agitar em seus peitos, relembrem a reação do rei de Espanha às colocações agressivas do então líder máximo venezuelano e, em coro, refaçam sua indagação: “Por qué no te callas?”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Melhor que novela

José Horta Manzano

Hoje eu ia contar algumas particularidades curiosas do exército suíço. Atropelado pelos acontecimentos pátrios, deixo para uma próxima vez.

Provando que realmente faz jus ao mais alto cargo da Câmara, senhor Cunha mostrou empatia com o anseio de 90% dos brasileiros e, magnânimo, abriu as portas para o processo de destituição de dona Dilma. Foi gesto louvável de desprendimento.

Aliás, fez-me lembrar o adágio «alegria de palhaço é ver o circo pegar fogo». Ao dar-se conta de que estava cercado por todos os lados – ilhado em seu universo de mentiras desmascaradas, abandonado pouco a pouco por gente com quem imaginava poder contar, ameaçado de perder o cargo, o mandato e a liberdade, com fortuna confiscada –, o deputado jogou a última ficha.

Dilma 15Doravante, sua única (tênue) esperança é ver a tempestade se transformar em forte furacão, daqueles que carregam tudo. Se não vier o tufão, nosso rancoroso presidente da Câmara tem pouca esperança de sair incólume.

Os mais antigos hão de se lembrar da novela Vale Tudo, exibida 25 anos atrás. O Brasil parou durante os capítulos finais, quando todos queriam saber quem tinha matado Odete Reutemann(*). Curiosamente, o intuito do autor da obra era abrir o debate sobre um problema de sociedade. «Até que ponto vale ser honesto no Brasil?» – era a questão de fundo. A resposta clara não veio até hoje.

Como o distinto leitor há de imaginar, a notícia do iminente processo de destituição da presidente repercutiu na mídia mundial. Dou aqui uma coletânea.

(*) Talvez para evitar erros de pronúncia, os responsáveis decidiram grafar Roitman no lugar do original Reutemann.

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Chamada de The Guardian, Inglaterra

Chamada de The Guardian, Inglaterra

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Chamada de Le Figaro, França

Chamada de Le Figaro, França

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Chamada de Der Spiegel, Alemanha

Chamada de Der Spiegel, Alemanha

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Chamada de La Nación, Argentina

Chamada de La Nación, Argentina

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Chamada de Digi24, Romênia

Chamada de Digi24, Romênia

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Chamada de El Periódico Internacional, Catalunha, Espanha

Chamada de El Periódico Internacional, Catalunha, Espanha

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Chamada de Sveriges Radio, Suécia

Chamada de Sveriges Radio, Suécia

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Chamada de De Volkskrant, Holanda

Chamada de De Volkskrant, Holanda

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Chamada de El País, Espanha

Chamada de El País, Espanha

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Chamada de TVN24, Polônia

Chamada de TVN24, Polônia

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Chamada de Corriere della Sera, Itália

Chamada de Corriere della Sera, Itália

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Chamada de Observador, Portugal

Chamada de Observador, Portugal

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