Crime perfeito

Folha de SP, 14 maio 2023  –  clique para ampliar

José Horta Manzano

Quando os criminosos que desviam nosso dinheiro são exatamente os que têm o poder de se conceder autoanistia, é sinal de que a criminalidade nacional se elevou ao mais alto patamar. É um círculo vicioso, infernal e sem esperança.

De trás pra diante

José Horta Manzano

Os fatos da vida costumam fluir numa direção dada. Em princípio, as coisas evoluem do começo em direção ao fim, não ao contrário.

Me lembro de um filme engraçado – O curioso caso de Benjamin Button –, estrelado por Brad Pitt e Kate Blanchett, lançado no Brasil em 2009. Contava a história de um indivíduo que nascia velhinho e, conforme passavam os anos, ia aos poucos rejuvenescendo até morrer sob a forma de um recém-nascido. Uma vida de trás pra diante, em suma.

No cinema, pode tudo. Na vida real, é mais usual os fatos fluírem do começo em direção ao fim.

O percurso das palavras não escapa a essa lógica. Diferentemente do que muita gente imagina, não são os dicionários que inventam ou dão vida a palavras novas. O caminho é exatamente inverso: é só depois de surgirem e de se popularizarem que as palavras entram para o dicionário. O “pai dos burros” não faz mais que registrar expressões e termos já consagrados pela fala popular.

Pois tem gente que acha que é possível inverter a lógica. Em vez de seguir o caminho habitual uso popular → dicionário, tentam arrevesar para dicionário → uso popular.

Explico melhor. Fiquei sabendo de uma campanha lançada por SporTV e Pelé Foundation. A intenção é pressionar os dicionários a registrarem Pelé como palavra comum (substantivo e adjetivo). Sem-cerimônias, os autores da petição dão até as acepções que gostariam de ver registradas:

1. Maior que todos os outros.
2. Referência de grandeza.
3. Inigualável.
4. Sinônimo de excelência.
5. Único.

E enumeram as razões que embasam a escolha de Pelé:

1. Maior de todos
2. É considerado o maior brasileiro de todos os tempos
3. Uma lenda e recordista de gols e títulos
4. Foi responsável por parar uma guerra na África
5. Possui títulos e medalhas além do futebol

Que Pelé foi um grande jogador, quiçá o melhor do mundo, ninguém discute. Que marcou gols e ganhou títulos e medalhas, me parece natural, visto que jogava como atacante. Agora, que tenha sido “o maior brasileiro de todos os tempos”, eu diria que a concorrência é rude. Com tantos heróis e heroínas que povoam nossa história, pode ser que haja alguma controvérsia.

Mas o mais curioso nessa campanha é tentarem inverter a ordem natural das coisas. Não é comum a gente consultar o dicionário para, só em seguida, começar a usar uma palavra nova. É o contrário que costuma acontecer. Assim, me pergunto qual seria a utilidade de um verbete Pelé (pelé, na verdade).

No dia em que o termo entrar de verdade na linguagem corrente, pode deixar: dicionaristas hão de introduzi-lo na próxima edição. Não precisa nem de abaixo-assinado.

Tem boi na linha

José Horta Manzano

Lá pelo fim dos anos 1950, foi lançado o filme nacional “Tem boi na linha”, estrelado por Zé Trindade. Era uma chanchada – comédia leve e despretensiosa filmada em estúdio sem cenas externas, produzida com orçamento modesto.

Perto de minha escola, havia um cinema. Pela janela escancarada, dava pra ver o que estava passando: “Tem boi na linha”. Na fachada, o letreiro em letras enormes. Ao ler o nome do filme, nosso professor de Português, um mestre rigorista, escandalizou-se. Não entendia como tinham ousado pôr no título um linguajar tão vulgar. No seu entendimento, tinha de ser “Há boi na linha”. Outros tempos.

Lembrei do caso estes dias ao ler a notícia de caranguejos que atravessaram a pista do aeroporto de Vitória do Espírito Santo e causaram momentânea interrupção de pousos e decolagens. Primeiro, um avião avisou à torre que “um monte” de caranguejos estavam na pista. Ato contínuo, a torre deu ordem de arremeter a um aparelho prestes a pousar.

Inspecionada a pista, descobriu-se que havia um só caranguejo. O crustáceo foi retirado e a movimentação de aviões pôde reiniciar. No avião que teve de arremeter, os passageiros foram informados do que tinha acontecido e riram muito, achando a situação engraçadíssima.

A Prefeitura de Vitória informou que o aeroporto se encontra próximo a um manguezal, o que propicia o aparecimento de algum “intruso” na pista. A meu ver, a informação foi dada pelo avesso. O manguezal já estava lá havia milênios quando o aeroporto foi construído. Os intrusos, portanto, são os humanos, não os crustáceos. Foram os homens que invadiram território alheio sem pedir licença.

A Prefeitura esclareceu ainda que estamos no período de reprodução dos caranguejos – época chamada “andada”. É quando, seguindo o próprio instinto, se deslocam todos na mesma direção, para copular no lugar adequado. Se o Brasil já tivesse chegado a um bom nível de consciência ecológica, a reação dos passageiros não teria sido tão hilária. O fato de ter sobrado só um caranguejo na pista pode indicar que o grosso da colônia já tinha atravessado.

Não tenho condições técnicas de aconselhar os responsáveis pelo aeroporto, mas acredito ser possível abrir uma passagem para os caranguejos. Por cima da pista não se pode, mas por debaixo, um túnel, quem sabe. Não custa dar uma mãozinha para perpetuar a espécie e evitar acidentes na pista.

No mundo todo, pistas asfaltadas e linhas de trem formam barreira intransponível para a passagem de animais (grandes e pequenos). Para evitar mortandade pelas estradas, cada ponto crítico vem recebendo solução adequada.

 

Passagem para ursos sobre via espressa
Alberta, Canadá

 

 

Passagem para tartarugas sob estrada de ferro
Kobe, Japão

 

 

Passagem para caranguejos sobre estrada de rodagem
Christmas Island, Austrália

 

 

Passagem para cervos sobre via expressa
Picardia, França

 

 

Surrealismo

José Horta Manzano

No tempo em que anúncio se chamava reclame e jornais eram impressos em preto e branco, o anunciante tinha de espremer a imaginação para tornar a mensagem marcante. Não havia chegado a era de consumo. Os anúncios se limitavam a apregoar objetos úteis, do dia a dia. Boa parte deles promoviam remédios.

A ausência de cor exigia expressividade no desenho. Para ilustrar uma propaganda de fortificante, a imagem mostrava um indivíduo magro, esquelético, descarnado, exageradamente subnutrido.

A ilustração de uma loção para cabelo trazia uma figura feminina com cabelos compridíssimos, chegando à cintura.

O Elixir Doria (marca registrada!), que se apresentava como “o rei dos preparados para estomago figado, intestinos”, deu preferência a uma ilustração surrealista, como se pode ver na imagem acima. Intui-se que o senhor bem-posto do desenho tenha engolido um carneiro (ou um bode) inteiro, começando pelas patas, só faltando a cabeça e os chifres.

O desenho é tão assustador, que fica no ar a pergunta: será que algum paciente se animou a correr à “pharmacia” pedir esse elixir?

O Elixir Doria foi anunciado na segunda metade dos anos 1930. É interessante que, com 80 anos de antecedência, mencionasse o nome de dois políticos de nossos dias: João Doria e Michel Temer.

De fato, Doria aparece já no nome do remédio. E um “não a Temer” está visível entre os chifres do bode (ou carneiro).

De aluguel

Jornal O Globo, 12 março 2023

José Horta Manzano

Em matéria de desculpa esfarrapada, Madame Bolsonaro parece ter absorvido os costumes do clã em que se enxertou. Pensando bem, isso é importante para alguém que almeja dar continuidade aos passos do esposo impedido. É o que fez, 50 anos atrás, Isabelita Perón, ao assumir a Presidência da Argentina na sequência do falecimento de Juan Domingo Perón, seu marido.


“Estou morando de aluguel”


Convenhamos que há desculpas melhores para quem quer se livrar do estorvo de ter que cuidar de filhotes que estraçalham chinelos e fazem xixi pela casa toda.

“Meu apartamento é pequeno demais, um verdadeiro apertamento. Cachorrinho novo precisa de espaço” – seria aceitável.

“Estou levando uma vida extremamente agitada e não me sobra tempo pra paparicar filhotinhos que precisam de muita atenção” – também seria plausível.

“Meu marido já não mora no Brasil e isso me obriga a viajar frequentemente. Não gosto de deixar os bichinhos com cuidadores” – seria demonstração de coração sensível.

“Não gosto de animais. Detesto ter bicho em casa. Os que eu tenho já me dão dor de cabeça suficiente” – seria desculpa violenta, combinando com o espírito bolsonárico. Muita gente vibraria.

Há ainda uma bacia de pretextos cabíveis, basta pensar cinco minutos.

Agora, dizer que não pode ficar com as crias porque está morando de aluguel? Tremenda falsidade. E tremenda falta de imaginação.

Se morar de aluguel e ser tutor de bicho de estimação fossem realidades incompatíveis, haveria poucos cachorrinhos e gatinhos de família.

Ultraprocessados: não se aproxime!

Chamada do jornal O Globo, 27 fev° 2023

José Horta Manzano

Fiquei intrigado e preocupado com essa chamada do jornal O Globo. Eu sabia que produtos ultraprocessados eram nocivos, mas nunca imaginei que fossem perigosos a esse ponto. Quer dizer então que basta “residir em áreas repletas desses locais” para sofrer risco aumentado de sofrer um AVC? A doença entra em nosso corpo por osmose? Barbaridade!


Naturalmente, estou brincando. Entendi o raciocínio do autor. Quem escreveu a chamada parte do princípio que todo cidadão é como rolha em alto-mar: vive ao sabor das ondas e ao capricho dos ventos, e vai para onde for levado.

Ninguém é capaz de controlar suas pulsões. O artigo sugere que, se resido num lugar rodeado de ofertas de refeições rápidas, adeus cozinha! Aposento panelas e frigideiras e passo a me alimentar unicamente de “junk food”.

Por essa lógica, vou viver de porcariada tipo cachorro-quente, quibe, pizza e hambúrguer. Sou apresentado como criatura incapaz de decidir com a própria cabeça, pronto a me deixar subjugar pela luz das barraquinhas e o colorido das vitrines.

Com toda naturalidade, o autor da chamada enxerga a vida em sociedade como um gigantesco efeito manada: disparou um, vão todos atrás.

Se assim é o mundo moderno, me sinto deslocado.

Pare o planeta, que eu quero descer!

A mudança do capitão

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José Horta Manzano

A imprensa publicou este flagrante do carregamento dos pertences do capitão (clique na imagem para ampliar). Os jornais descrevem como “mudança” do presidente, mas eu acredito que seria mais apropriado falar em “despejo”, que é a palavra adequada para o caso de alguém ser impedido de ficar, e sair de má-vontade.

Noto alguns detalhes curiosos. O objeto que está para subir no caminhão deve ser bem pesado, visto que há seis carregadores atarantados em torno, com ar de conjecturarem sobre o melhor modo de operar.

Note que o objeto não está saindo da residência presidencial (Alvorada), mas do Palácio do Planalto, centro nevrálgico do Executivo, onde fica o escritório do presidente, o gabinete do ódio e onde despacham os generais palacianos.

Pelo jeitão, se objeto não for um desconhecido mumificado, há de ser uma estátua representando uma figura humana em tamanho real. Estátua? Saindo do escritório presidencial? Como assim? Será que o capitão estaria subtraindo parte do patrimônio nacional, como Lula já fez no passado?

Pode ser que seja uma estátua de propriedade de Bolsonaro, trazida por ele para enfeitar sua sala. Ué, mas até as emas de Brasília sabem que Bolsonaro odeia a arte! Coisa mais esquisita.

Ouriços tchecos em Kiev

Suponho que a Presidência conte com uma governanta ou com um funcionário encarregado de controlar tapetes, quadros, mobiliário e outras obras de arte. Se o objeto misterioso tiver sido “tomado emprestado por descuido”, a verdade deve aparecer da próxima vez que fizerem o inventário. Por enquanto, fica o mistério.

Outro detalhe interessante é a proteção antitanque de guerra, aquela fileira de “ouriços tchecos” que se estendem de borda a borda da rampa. Inventados pouco antes da Segunda Guerra, esses dispositivos de aço espesso e resistente são de grande eficácia em situação de batalha urbana. Impedem a passagem de todo veículo leve ou pesado e até de tanques de guerra.

Na rampa do Planalto, estão pintadinhos de branco, que é pra evitar chocar alguém. Quem terá mandado instalar? O presidente quase ex-presidente ou o ex-presidente quase presidente? Ao subir a rampa, dia 1° de janeiro, será que Lula & acompanhantes vão ter de saltar por cima desses obstáculos? Vai ser um espetáculo pra lá de gracioso, não percam!

Pra vocês verem quanto uma foto despretensiosa pode nos revelar. Basta observar.

Licence to kill

License to kill – Autorização para matar

José Horta Manzano

Arthur Lira, presidente da Câmara, corre pra fazer aprovar com rapidez uma PEC visando a transformar automaticamente ex-presidentes da República em senadores vitalícios.

A PEC propõe proibir ex-presidentes de voltar a concorrer a cargos eletivos, mas garantir que continuem para sempre cobertos pela imunidade presidencial.

Digam o que disserem, pra mim esse negócio é verdadeira autorização para delinquir. Daqui para a frente, todo presidente será intocável pelo resto da vida, ainda que tenha cometido crimes e barbaridades iguais aos de Bolsonaro ou até piores.

Se o projeto vingar, Bolsonaro estará tranquilo pelo resto de seus dias. E Lula pode trambicar de novo com sítio em Atibaia, triplex no Guarujá ou lingotes de ouro nas Bahamas, tudo com garantia de impunidade até seu último dia de vida.

É sério ou estão brincando? Afinal, que país é este?

Fronteira entre os pés e a cabeça

Hôtel Franco-Suisse
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José Horta Manzano

Você sabia?

Muitas das fronteiras entre o Brasil e os países vizinhos cruzam zonas escassamente povoadas, notadamente na região amazônica. Uma linha demarcatória tanto pode seguir cursos d’água – caso em que será dita «fronteira natural», como pode ser representada por divisor de águas ou por traçado artificial riscado num mapa. Neste caso, teremos uma «fronteira seca».

Fronteiras secas costumam ser assinaladas por balizas plantadas no solo. Antigamente, eram de pedra. Hoje em dia, é mais comum o concreto. A elas dá-se o nome de marcos divisórios ou geodésicos.

No Brasil, certos trechos de fronteira contam com balizas bastante espaçadas, uma aqui, outra quilômetros adiante. No fundo, tanto faz, que pouca gente passa de um lado para o outro. Na Europa, dada a densidade da população, fronteiras são demarcadas com bastante rigor.

Marco divisório suíço

O Tratado de Dappes, acertado em 1862 entre a França e a Suíça, delimita com precisão um trecho da fronteira entre os dois países na região dos Montes Jura. O acordo, concluído em dezembro daquele ano, ficou programado para entrar em vigor em fevereiro do ano seguinte.

Um certo Monsieur Ponthus, proprietário de um terreno no povoado de La Cure, ficou sabendo que seu lote seria atravessado pela nova fronteira. Aproveitou-se do intervalo e, pelas caladas e às pressas, erigiu imóvel provisório bem em cima da linha. A intenção era de contrabandear chocolate, tabaco e bebidas alcoólicas.

Assim que o tratado entrou em vigor, a construção era fato consumado – e com porta dos dois lados da fronteira, faz favor. E assim foi ficando. Com o tempo, os sucessores do esperto cavalheiro ampliaram o imóvel e o transformaram em hotel-restaurante. O estabelecimento funciona até hoje.

Alguns quartos do hotel oferecem ao hóspede a curiosa possibilidade de dormir com a cabeça na Suíça e os pés na França. Ou vice-versa. Na escada que leva ao segundo andar, o 7° degrau marca a fronteira entre os dois países. Alguns asseguram que a linha verdadeira passa pelo 13° degrau. A controvérsia persiste.

O hotel e a fronteira

Durante a Segunda Guerra, com a França ocupada pelo exército alemão enquanto a Suíça permanecia neutra, a singularidade do local deu margem a uma movimentação sui generis. Além do contrabando habitual, inúmeros judeus perseguidos pelos nazistas conseguiram escapar entrando pelo lado francês e saindo do outro lado, já na Suíça, onde os alemães não podiam intervir. Dizem que outros fugitivos seguiram o mesmo caminho – paraquedistas ingleses entre eles. É verdade que não durou muito tempo. Militares alemães logo se deram conta do vazamento e condenaram portas e janelas do lado francês. Depois de tudo emparedado, ninguém mais passou.

Impávido, o Hôtel Franco-Suisse continua lá até hoje. Nestes tempos modernos, sem os controles de antigamente, a alfândega é relíquia de outras eras.

O imóvel representa um quebra-cabeça administrativo tanto para a França quanto para a Suíça. A situação é tão intrincada que Paris e Berna preferem empurrar com a barriga e deixar como está. Não vale a pena travar batalha judicial por tão pouco.

Publicado originalmente em 6 jul° 2015.

Descontrole emocional

José Horta Manzano

De criança, era comum a gente ouvir dizer que “homem não chora”. É possível que mães e avós dissessem isso só para fazer o menino parar de encher a paciência.

A sabedoria popular ensina que “os extremos se tocam”. Bolsonaro e Lula são opostos em muitos aspectos mas têm pontos em comum. Um deles é o hábito (compulsão?) de chorar em público.

Volta e meia, um deles deixa lágrimas escorrerem, às claras, de preferência diante de uma plateia, sob a luz dos holofotes. Não têm ar de se envergonharem, antes, parecem orgulhosos da façanha.

Alguém já imaginou um líder de verdade chorando em público? Biden? Putin? Macron? Xi Jinping? Boris Johnson?

São coisas nossas.

A passos largos

Pastor Sargento Isidório

José Horta Manzano

Pode-se dizer que o Pastor Sargento Isidório, deputado federal, é a versão baiana do catarinense Cabo Daciolo – lembra dele? Ambos são exemplos vivos dos valores que sustentam o bolsonarismo: têm um pé na hierarquia militar e outro no movimento neopentecostal. São ambos pastores evangélicos.

Até aí, nada de mais. Este é um país democrático, em que cada cidadão é livre de escolher o caminho que prefere seguir, desde que não confronte a lei.

Mais insistente que seu colega catarinense, o baiano Isidório tem se mostrado ativo em apresentar projetos de lei destinados a dar peso legal a suas convicções religiosas. Sua mais recente façanha leva a data de ontem, 23 de novembro. Conseguiu a aprovação de uma lei que proíbe alterações na Bíblia.

O artigo único do texto veda “qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento em seus capítulos ou versículos, sendo garantida a pregação do seu conteúdo em todo território nacional.”

Parlamentares manifestaram preocupação com as imprecisões da nova lei. Qual é o texto-base que não pode mais ser modificado? Nova tradução do aramaico será proibida? Quem julgará se esta versão é melhor que aquela (ou vice-versa)?

Tirando o aspecto folclórico do episódio, que mais parece piada de mau gosto, minha preocupação é outra. O Brasil, como sabemos, é um país laico, o que significa que nenhuma religião será oficialmente apoiada nem entravada. Todo cidadão é livre de exercer sua fé (ou de não exercer nenhuma), desde que se mantenha dentro dos limites legais.

O Art. 19 da Constituição veda expressamente à União, às unidades federativas e aos municípios “estabelecer relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas”. O texto que acaba de ser aprovado fere claramente esse dispositivo, visto que legisla em matéria fora de sua competência. Fixar parâmetros de qualidade para a Bíblia equivale a legislar sobre a altura da batina de padres católicos ou sobre duração de cultos evangélicos. Um descabimento.

É surpreendente que, por um lado, a lei tenha sido aprovada e, por outro, que a oposição não tenha alçado veementemente a voz. Resta ao presidente de algum partido mais esclarecido (espero que haja alguém) apresentar ao Supremo uma ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade. Essa lei não resistirá ao escrutínio de nossa Corte Constitucional.

Se ninguém fizer nada e a lei entrar em vigor, terá sido dado mais um grande passo na consolidação de nossa teocracia tropical.

Alô alô, marciano

José Horta Manzano

France-Info é canal de informação contínua pertencente ao conglomerado de emissoras públicas da França. Pode ser captada pela tevê, pelo rádio e pelo site online.

No site do canal, pode-se ver uma notícia desconcertante, vinda de Porto Alegre:


“Apoiadores de Jair Bolsonaro pedem aos extraterrestres que ‘salvem’ o país”.


Acompanha um vídeo de alguns segundos mostrando uma roda de gente, todos devidamente paramentados de verde-amarelo, cada um com seu celular em cima do cocuruto.

Cada integrante do estranho rodeio mantém seu telefone virado pra cima em modo farolete. Todos cantam uma melopeia que não consigo identificar enquanto abanam a mão sobre a tela do telefone na intenção de mandar mensagens ao espaço.

É um arremedo dos sinais de fumaça que índios americanos emitiam em filmes de caubói, lembra? Só que os sinais dos índios eram ritmados e coerentes, e transmitiam um recado, enquanto os de Porto Alegre são desconexos.

France-Info descreve a cena como surreal e explica que ôvnis teriam sido avistados no céu da capital gaúcha estes últimos tempos, o que explica o assanhamento dos participantes do bizarro rito encantatório.

Rezas, simpatias e superstições geralmente se fazem em ambiente apropriado, seja em casa, na igreja, no terreiro ou no templo – longe de olhares infiéis. É assaz raro ver demonstração pública de tamanha credulidade. Eu não duvidaria de que, entre os participantes, haja até algum que acredite na mágica. É de uma ingenuidade comovente.

Dinheiro grosso

José Horta Manzano


Todas as polícias do Brasil tentam descobrir quem está financiando os acampamentos de bolsonaristas inconformados.


Imagine só: levantar de manhã num feriado, sair de casa, fazer corrente humana em roda de um quartel, beijar o muro, ajoelhar, rezar, implorar os céus – arre! Tudo isso dá fome. Até no universo paralelo, barriga ronca.

Sem problema! A dois passos dali, estão as barraquinhas de comes e bebes. Tudo é grátis, com a condição de o freguês estar vestido a rigor, isto é, de verde-amarelo. Quem não tiver camiseta da seleção, basta se enrolar na nossa bandeira.

A única cor banida é o vermelho: nem um detalhe da indumentária deverá ostentar essa cor maldita. Para evitar mal-entendidos, mulheres ruivas são aconselhadas a prender o cabelo e cobrir a cabeça com um boné. Se o boné for do tipo “Trump for president”, melhor ainda. Pra prevenir processos por discriminação, pessoas de tez morena serão toleradas.

Dia sim, outro também, pipocam notícias da descoberta de um site, quiçá na dark web, que estaria sendo usado para difundir informações sobre os pontos de ajuntamento de protestatários. Descobre-se um site aqui, um canal youtube ali, um grupo de zap-zap acolá, mas nunca se chega ao(s) verdadeiro(s) mandante(s). Só se encontram bagrinhos.

Repare nos cartazes expostos na ilustração. “Café do Povo Grátis” e “Lanche Grátis” indicam boca-livre, tudo de graça. Repare nas barraquinhas. Não são surradas nem puídas como as barracas de feira-livre. São uniformizadas e novinhas.

Para sustentar uma quermesse desse porte, é preciso ter: atendentes em cada barraca; cozinheiros e copeiros que preparem os lanches; compradores que cuidem do abastecimento e da compra dos petrechos necessários; faxineiros que se encarreguem de limpar fogões e utensílios; carregadores que tragam a comida até cada barraquinha.

Como se sabe, todo trabalhos merece salário. Todo esse pessoal não passa os dias trabalhando pela glória de sabe-se lá quem. Têm de ser remunerados. É aí que se encontra o gargalo. Para o distinto leitor e para mim, que não somos especializados em espionagem, seria difícil descobrir quem está por trás desse apoio. Para a polícia, são outros quinhentos.

Os corpos de polícia são formados (e estão aparelhados) para seguir pistas. Partindo dos funcionários que trabalham nas barraquinhas, não há de ser difícil chegar aos fornecedores, e dai aos verdadeiros financiadores. Que são os autores intelectuais do delito de apoio às manifestações golpistas.

Essas manifestações parecem organizadas demais para serem fato espontâneo. Há dinheiro grosso por detrás. Descobrir o dono, não parece difícil.

Equipe efêmera

José Horta Manzano

Na noite de 30 de outubro, quando foi declarado vencedor, Lula sacou do bolso de trás um discurso de meia hora, com começo, meio e fim. Disse tudo o que tinha de ser dito, agradeceu, louvou, prometeu e comoveu. Um pronunciamento daqueles não se improvisa. Vê-se que foi fruto de profunda reflexão, de erros e acertos, de trabalho conjunto, de polimento. A preparação há de ter consumido dias, talvez semanas.

Vencida a corrida presidencial, veio o momento de anunciar a composição da equipe de transição, que funcionará até o fim do ano, num total de 61 dias.

Considerando que o discurso de vitória foi montado com antecedência e com tanto zelo, seria de esperar que o esqueleto da equipe de transição também já estivesse planejado.

A realidade mostra que não era bem assim. Já se passaram 17 dias, e a montagem da equipe ainda não terminou. A cada dia, aparecem nomes novos. Sem estar totalmente formada, a equipe não tem como funcionar. Falta articulação. É como um veículo que, para rodar, precisa estar completo – se faltar uma roda, não anda.

Será que a intenção dos escolhidos é realmente delinear a ossatura da futura governança? Está mais parecendo um convescote entre companheiros, uma vitrine de vaidades do tipo: “Tchau, mãe! Ói eu aqui!”.

Vamos ver se conseguem terminar a montagem daqui até o Natal. Se conseguirem, ainda sobra uma semana pra trabalhar, entre Natal e o réveillon.

Lembra do “brienfing”?

José Horta Manzano

Parece que faz um século, mas aconteceu quatro meses atrás. Foi quando um desesperado capitão convocou o corpo diplomático acreditado em Brasília para revelar-lhe que nosso elogiado sistema eleitoral era disfuncional e fraudulento.

Todos hão de ter duvidado da sanidade mental do presidente. Disfuncional mesmo é um sujeito que venceu todas as nove eleições de que participou dizer que o sistema é aberto a fraudes. Coisa de desequilibrado.

Presidentes ignorantes, corruptos, populistas, mentirosos, incapazes, já tivemos. Mas a história não assinala nenhum que tenha convocado o corpo diplomático acreditado em Brasília para falar mal do Brasil. Fico imaginando os termos que cada embaixador utilizou no relatório enviado a seu respectivo governo. É melhor nem ficar sabendo. De vergonha, basta o que o capitão disse em público.

Na ocasião da palestra oferecida por Bolsonaro aos embaixadores, o telão erguido ao lado do orador dizia que a palestra era um “brienfing”. A palavra utilizada me pareceu ofensiva e presunçosa. No original, designa uma reunião em que o discursante dá instruções aos que assistem. Para coroar, foi mal grafada. Por ignorância ou desleixo, enfiaram um “n” onde não devia estar. O correto é “briefing”.

Francamente, ignorância e desleixo parecem estar incrustadas no universo bolsonarista. A foto acima foi tirada num desses acampamentos organizados diante de quartéis. De novo, maltrataram uma palavra da língua inglesa. “Freedom” (=liberdade) aparece mal grafada.

Quem bolou o texto julgou que palavra terminada em “m” parece brasileira, não inglesa. Deve ser por isso que tascou um “n” no fim. Fica com ar mais estrangeiro. É como alguns “Willian” que há por aí.

Antigamente se dizia que “quem não tem competência, não se estabelece”. Parece que o ditado já não vale.

Os estreantes

Chamada da Folha de São Paulo

José Horta Manzano

Em desastrada declaração feita nos anos 1970, Pelé – nossa glória nacional – afirmou que “brasileiro não sabe votar”. De lá pra cá, a fala do camisa 10 é volta e meia citada.

As eleições de 2020 deixaram a impressão de que Pelé estava totalmente enganado. Dois anos atrás, candidatos ligados ao bolsonarismo sofreram forte derrota. Parecia até que os brasileiros tinham aprendido a votar e que o pesadelo estava chegando ao fim.

Passaram-se dois anos e chegaram as eleições de 2022. Para a Presidência, no primeiro turno, apenas 33% do eleitorado votou no capitão, o que mostrou estabilidade ou até queda em sua aprovação.

No turno inicial, ele teve muito menos votos que em 2018, quando tinha alcançado a marca de 46% do eleitorado. Isso mostra que, apesar de barulhentos e arruaceiros, os bolsonaristas não representam hoje mais que 1 em cada 3 eleitores. Até aqui, tudo dominado.

O problema surge quando se lê uma notícia como essa que a Folha publicou:


40% dos estreantes na Câmara foram alvo de ação ou investigação


De cada dez estreantes, quatro não chegam envoltos em perfume de santidade. As suspeitas que pesam sobre eles variam entre calúnia, mau uso de recursos públicos, estelionato e homicídio.

E olhe que são estreantes, iniciantes, calouros! Dá pra imaginar como estarão daqui a alguns meses, quando estiverem formados, treinados, com diploma de parlamentares experientes?

João Baptista Figueiredo, último presidente do período militar, era mestre em declarações bruscas, pesadas, ofensivas, um nobre precursor do estilo bolsonárico. Como o atual presidente, não escondia o imenso desprezo que sentia pelo povo. Entre outras barbaridades, disse um dia, referindo-se aos brasileiros: “povo que não sabe nem escovar os dentes não está preparado para votar”.

Se, por milagre da física quântica, Figueiredo se levantasse da tumba e lesse a chamada estampada no alto deste artigo, era capaz de dizer: “Eu não falei?”.

Birds of a feather

Sites de namoro no Brasil:
“Por favor, não me diga que você é de esquerda, você é bonita demais pra ser esquerdista.”

 

José Horta Manzano

Em 1969, Jorge Ben compôs e Wilson Simonal cantou “País Tropical”, aquela que dizia:

Moro
Num país tropical
Abençoado por Deus
E bonito por natureza

Desde aquela época, a expressão “bonito por natureza” tornou-se uma daquelas frases feitas, citadas a todo momento em relação a nosso país tropical. A expressão não chocou ninguém, muito pelo contrário: encantou. É que combina com a imagem que nos fazemos de nosso Brasil cheio de encantos mil.

Sempre aprendemos que em nossa terra de sol e de música reinavam a paz e a concórdia. Aprendemos também que em certas regiões do mundo, esquecidas pelo Altíssimo, os habitantes viviam em pé de guerra, parte da população jogada contra a outra parte.

Sabemos que na Irlanda do Norte católicos e protestantes se odeiam, e que volta e meia entram em conflito. Houve embates sangrentos até os anos 1990. De lá pra cá, as tensões arrefeceram, mas as brasas continuam quentes e podem se inflamar a qualquer momento.

Outra coisa que sabemos é que, em certos países do Oriente Médio, como o Líbano, a população vive dentro de bolhas confessionais. Homem de família muçulmana não se casa com mulher de religião cristã. Na segunda metade do século 20, o país já foi castigado por uma guerra mortífera de origem religiosa que durou dez anos.

Na Índia, o fosso divisório passa entre hinduístas e muçulmanos. Os dois grupos não se bicam. Dado que são bem minoritários no país, os muçulmanos são frequentemente atacados pelos hinduístas, majoritários. Misturar-se? Não passa pela cabeça de ninguém.

Quanto a nós, até outro dia tínhamos certeza de viver num país abençoado por Deus e, ainda por cima, bonito por natureza. Isso foi até outro dia. Depois do desastre lulopetista e da catástrofe bolsonárica, o panorama mudou. O distinto leitor há de ter notado. Mas fique sabendo que até a mídia estrangeira já se deu conta.

A revista francesa Notre temps (Nosso Tempo) traz uma reportagem sobre o surpreendente caso brasileiro. Para espanto de seus leitores, revela qual é a primeira pergunta feita por usuários de aplicativos de namoro – aqueles em que cada um procura a alma gêmea. Logo no primeiro contacto, antes de dar bom-dia, a pergunta é: “Você vai votar em quem?”. Vale também a variante: “Você é de esquerda ou de direita?”.

Usuários entrevistados explicam não ter vontade de perder tempo com uma pessoa com ideias políticas diferentes das suas. Há até quem já declare suas preferências políticas logo no perfil, descartando assim todo mal-entendido.

Parece que alguns aplicativos vão mais longe. Já se especializam em usuários de direita (ou de esquerda), numa tendência “private club” à moda dos aristocráticos ingleses. Os frequentadores desses sites pensam todos da mesma maneira, o que evita perguntas inúteis e potencialmente agressivas.

Não sei você, mas eu acho essa situação lastimável. Recuso-me a considerar que esse estado de coisas seja fruto de um “progresso” qualquer. Ao contrário, parece-me uma regressão, uma involução. Mostra que, tendo perdido a capacidade de conviver com diferentes, aspiramos a viver num mundo de iguais, onde todos têm as mesmas ideias, gostam das mesmas pessoas, detestam as mesmas coisas, pensam do mesmo jeito.

Pôxa, que monotonia, não lhes parece? É uma vida monacal, sem sal e sem sabor.

O nome do movimento

O inglês diz:
Birds of a feather flock together.
Pássaros de mesma plumagem se aninham juntos.

Os franceses dizem:
Qui se ressemble s’assemble.
Quem se parece se ajunta.

Os italianos preferem:
Dio li fa e poi li accoppia.
Deus os faz e depois os junta.

Quanto a nós, temos algumas expressões correspondentes:
Os semelhantes se atraem.
Cada qual com seu seu igual.
Uma vaca reconhece a outra.

Mas melhor mesmo é dizer: Vade retro, vida besta! Xô!

De uniforme ou sem?

by Alberto Benett (1974), desenhista paranaense

José Horta Manzano

Não sei como anda a moda vestimentária da juventude no Brasil. Aqui onde vivo, as cores desapareceram: todos (ou quase todos) os jovens se vestem de preto. Dos pés à cabeça. Minto – é só das canelas à cabeça. O calçado escapa à ditadura do luto. É a única peça que dá um pouco de cor à silhueta.

Quando este escriba era jovem, o uso era o inverso do que é hoje. O sapato é que era obrigatoriamente preto, enquanto a roupa era livre. Era uma época mais colorida, com camisas estampadas, calças de todas as cores imagináveis. Só o calçado era uniformizado. Não usar sapato preto era pecado tão grave quanto ir a um baile de formatura de smoking e sandália de dedo.

Não sei de onde terá vindo essa ideia de cada um tentar afirmar a própria personalidade vestindo-se todos de urubu.

Enfim, se estão felizes assim, melhor pra eles.

O dia do voto está chegando. Os eleitores sairão de casa e, se não forem incomodados por algum assalto ou bala perdida, entrarão na cabine de votação. Cabine, daquelas de cortininha, é modo de dizer; nestes tempos de penúria, a cabine é virtual. Virou um minibiombo de papelão.

Aos que, distantes de corpo e alma da pátria-mãe, vêm me pedir orientação sobre os candidatos, dou meu conselho. E não esqueço de acrescentar um ponto primordial: o cuidado com a indumentária.

O risco não é grande, mas no exterior também há grupelhos exaltados e até violentos. São, em geral, pupilos do capitão – veja-se o que aconteceu em Londres, diante da residência do embaixador, quando da estada de Bolsonaro. Aquela gente mostrou aos ingleses o grau de incivilidade que a passagem do capitão pela Presidência provocou.

Aconselho a todos evitar vestir-se de vermelho no dia de votar. Touros selvagens se excitam com essa cor e podem tentar dar chifrada. Por seu lado, é bom evitar também a cor amarela. Ninguém é santo, e não é impossível que algum apóstolo inflamado do demiurgo de Garanhuns saque a peixeira.

Nesta época do ano, em que camisetas já foram lavadas, dobradas e empilhadas no fundo do armário, estamos todos de agasalho pesado, que costuma ter cores menos vibrantes. É raro ver capote vermelhão; mais raro ainda é ver abrigo amarelo. Assim mesmo, todo cuidado é pouco.

A gente se espanta e se solidariza com as infelizes mulheres iranianas que estão sendo massacradas por saírem de casa sem o véu islâmico. Ao mesmo tempo, não nos damos conta de que em nosso país, a sinistra função de Polícia de Costumes foi delegada a todos os cidadãos. Os mais desvairados estão sempre prontos a despachar para o Pronto Socorro os que não rezam pela sua cartilha. Para o Pronto Socorro ou para o outro mundo.

Veja quanto regredimos!

Vias de fato

Sempre alerta, a mídia europeia não deixou passar a refrega

José Horta Manzano

“Vagabundo”, “covarde”, “canalha” e “tchutchuca do Centrão” – foram as palavras amáveis dirigidas ao capitão por um “youtuber de direita”, seja lá o que isso queira dizer. Na atualidade, todo cidadão faz obrigatoriamente jus a uma etiqueta a especificar se ele é do bem ou do mal, de Jesus ou de Belzebu.

Em tempos mais gentis que o atual, os epítetos lançados ao presidente seriam inadmissíveis, inconcebíveis. No entanto, desde que Bolsonaro vestiu a faixa, a civilidade foi pro espaço. Hoje em dia, nem aqueles palavrões cabeludos que a gente tinha vergonha de pronunciar chocam mais. Que saiam da boca de um cidadão qualquer ou até do presidente da República(!), o efeito é nulo. Nenhum frisson. Expressões de calão entraram para a conversa corriqueira.

Assim mesmo, é menos comum assistir-se à cena de um presidente se atracar fisicamente com um cidadão pelo motivo de ter escutado qualificativos que não lhe agradaram. Já fiquei sabendo de coronéis e deputados que se comportaram assim. De um presidente, principalmente quando está em campanha de reeleição, é mais raro.

Pensando bem, as palavras utilizadas pelo rapaz refletem a pura verdade. Nua, crua e sem retoques. “Vagabundo”, “covarde”, “canalha” e “tchutchuca do Centrão” é excelente resumo da personalidade presidencial. Ou não?

Mas dá pra entender a razão pela qual o capitão se sentiu tão à vontade pra rodar a baiana no meio da rua. Em primeiro lugar, o interlocutor era baixo e franzino. Em seguida, Bolsonaro estava rodeado daqueles agentes tamanho leão de chácara. Nessas condições, até eu me aventuraria a abordar fisicamente o “ofensor”.

Queria ver se a macheza seria a mesma caso os seguranças não estivessem ali e o “youtuber de direita” fosse do tamanho daquele deputado anabolizado, aquele que foi condenado à masmorra e salvo pela graça presidencial. Não tenho certeza de que Sua Excelência encararia, peito aberto.

Se eu fosse o youtuber agredido, não hesitaria em dar parte na polícia por ter sido vítima de vias de fato – em reação desproporcionada a mera interpelação verbal.

O paladar

José Horta Manzano

Pequim está fortemente empenhado em demonstrar sua tese de que Taiwan, a “província rebelde”, é parte histórica da grande nação chinesa e que um dia há de ser reintegrada à pátria-mãe. Para reforçar a posição de seu governo, a senhora Hua Chunying, porta-voz do Ministério Chinês de Relações Exteriores, tuitou:

“Em Taipé (capital de Taiwan), há 38 restaurantes que vendem ravioli de Xantum (província chinesa) e 68 que vendem talharim de Xanxi (outra província chinesa). O paladar não mente! O filho desgarrado há tantos anos voltará à pátria.”

Por mais que o governo de Pequim gostasse, não é possível controlar integralmente a internet. O Tweeter, por exemplo, escapa à censura. Os internautas aproveitaram e comentaram com ironia:

“Quer dizer então que o monte de McDonald’s que temos em Pequim informam que somos todos historicamente americanos?”