Vou ficar bem quando f**** com o Moro

José Horta Manzano

Logo de entrada, vamos relevar o palavreado de botequim (em linguagem moderna: passar pano). No passado, o Lula costumava escorregar de vez em quando, mas Bolsonaro elevou o calão à categoria de linguajar oficial do Planalto.

A pérola que o Estadão destaca na chamada reproduzida acima foi solta pelo presidente em extensa entrevista concedida à TV Brasil 247, rodada em pleno Palácio do Planalto.

As tristezas e as mágoas que persistem no coração do presidente são legítimas. O ressentimento que ele guarda contra o juiz que o condenou é compreensível. O Lula tem direito de desabafar com família e amigos. Já falar disso ao grande público é outra coisa.

Quando o presidente revela a todos os brasileiros a sede de vingança que lhe rói a alma, comete uma imprudência e dá um tiro no pé. Sem obter vantagem nenhuma.

A imprudência é a ameaça velada externada contra um hoje senador da República. Não sei que tipo de ameaça se esconde por trás do termo f****, mas coisa boa não é. Se amanhã algo feio acontecer com Moro, muitos olhares hão de se voltar contra Lula.

O tiro no pé é mais grave. Logo no discurso de vitória proferido na noite do segundo turno, Lula prometeu governar para todos os brasileiros (os que votaram nele e os demais) e que era hora de restabelecer a “paz entre os divergentes”. Agora, ao revelar publicamente que carrega um desejo de vingança tão entranhado, o presidente contradiz o lindo pronunciamento inicial e mostra que tudo não passava de palavras vazias escritas por algum discurseiro a soldo.

Ao fim e ao cabo, Lula:

  • mostra uma incômoda proximidade com o antigo presidente, aquela verborragia pesada que muitos gostariam de esquecer;
  • traz de volta o nós x eles, ao alargar o fosso entre dois campos políticos;
  • revela uma faceta inquietante de sua personalidade: tem espírito vingativo.

Além de tudo, Lula perde mais do que ganha. Se a eleição fosse hoje, uma fala desastrada como essa poderia fazê-lo perder sua estreita margem de votos e entregar a vitória ao adversário.

A eleição não é hoje, mas a impressão de ser um presidente rancoroso fica.

Os sucessores

José Horta Manzano

Essa foto sorridente foi tirada estes dias. Embora nenhum dos onze personagens apareça envolto na bandeira nacional, o fato de carregarem uma foto do antigo presidente – de faixa presidencial e tudo – deixa supor que sejam bolsonaristas. De alto coturno, sem dúvida, mas bolsonaristas.

Se não, vejamos. A ausência de diversidade do grupo é típica dos seguidores do capitão. É o retrato de um Brasil uniforme, que só existe nos sonhos deles, bem longe do Brasil real. Na foto, são onze homens e nenhuma mulher. São todos brancos sem mistura. Tirando um ou outro, estão todos na força da idade – nem muito jovens, nem muito velhos.

Estão todos bem alimentados, sem exagero. O infalível personagem que simboliza o atirador anabolizado, primitivo e supertatuado também aparece. O onipresente filho n° 03 também está lá. Dos onze participantes, cinco ostentam pelos faciais, que lhes acentuam a imagem de virilidade. O personagem anabolizado é justamente o mais barbudo, sabe-se lá por que motivo. Por alguma razão pessoal, os demais dispensam essa marca de masculinidade.

É curioso que a confraria tenha julgado necessário exibir uma foto do ex-presidente fugido. Mostrar retrato de pessoa viva é raro. É mais comum ver grupos ostentando a foto de um ente querido que já não está mais neste mundo. Quando eu era jovem, por exemplo, me lembro que nossas fotos de família eram tiradas contra uma parede onde estava pendurado um retrato do avô falecido décadas antes.

A inserção da foto do capitão é enigmática. Não ficou clara a mensagem que o grupo quis passar. Tudo depende da disposição de espírito dos confrades. Há diversas possibilidades.

Disposição de espírito branca
“Somos apóstolos do capitão e ele continua sendo nosso guia. Aqui está a prova.”

Disposição de espírito amarela
“Nosso mestre está no momento fora do ar, mas ele volta logo. Ele é este aqui, ó!”

Disposição de espírito laranja
“Bolsonaro iniciou a ascensão da extrema direita. Agora, com ele ou sem ele, vamos seguir em frente.”

Disposição de espírito vermelha
“OK, ele está politicamente morto e talvez não volte nunca mais. Mas não estamos tristes, não, pelo contrário. Repare no nosso sorriso!”

O imperador africano

Sagração de Bokassa 1°

José Horta Manzano

O século 19 marcou o apogeu da colonização da África pelas potências europeias. No final do século, o continente estava fatiado e repartido entre poucos países colonizadores. França e Inglaterra detinham a parte do leão. Os ingleses controlavam boa parte da costa Leste, enquanto os franceses mandavam no Oeste – aquela protuberância rombuda da África, que se projeta no Oceano Atlântico.

As potências europeias saíram enfraquecidas da Segunda Guerra mundial. O nacionalismo africano encontrou terreno fértil para se afirmar. Nos anos 1950-1960, não houve como segurar o movimento: uma a uma, foram pipocando novas nações recém-independentizadas.

A República Centro-Africana alcançou a independência em 1960. Trata-se de um território sem saída para o mar, pouco populoso mas de bom tamanho (maior que a França e maior que o estado de Minas Gerais).

Nas primeiras décadas após a onda de independência, a França conservou forte influência sobre as antigas colônias. Hoje em dia, a presença francesa é menos marcante mas, naquele tempo, Paris era o fazedor de reis. Para ser bem sucedido, todo golpe de Estado tinha de ter o apoio do antigo colonizador.

Em 1965, por meio de um golpe e com apoio francês, Jean-Bédel Bokassa foi alçado à liderança da África Central. Enquanto o governo do novo ditador seguia conforme aos interesses de Paris, tudo foi bem. Em 1976, deslumbrado com o poder, Bokassa inventou que queria transformar o país em império, e que ele seria o imperador. Assim foi feito. Houve festa de coroação, com trono, manto, cetro, coroa, diamantes e pedras preciosas. Um remake da sagração de Napoleão.

Tornado imperador, Bokassa impôs uma política autoritária e excessivamente repressiva. Sua política tomou nova direção, que contrariava os interesses franceses. Três anos depois da proclamação do império, Bokassa foi destituído por um golpe de Estado fomentado e financiado pela França. Isso aconteceu em setembro de 1979.

Um mês depois, em outubro de 1979, o Canard Enchaîné, popular semanário francês de sátira política, revelou que Valéry Giscard d’Estaing, presidente da França, tinha sido presenteado pelo imperador Bokassa com 30 quilates de diamantes. Considerando que o preço médio do diamante lapidado é de 12.000 euros por quilate, isso dá um total de 360 mil euros (R$ 1,8 mi). O escândalo se alastrou mais rápido que fake news.

Giscard d’Estaing estava em plena campanha de reeleição à Presidência. A notícia não podia cair em momento pior. A oposição fez a festa e ajudou a pisar na ferida. Abafa daqui, abafa dali, a história nunca foi elucidada preto no branco. Fica ao gosto do freguês. Por minha parte, acredito que o propagador da notícia tenha sido o próprio imperador africano destituído. Foi vingança pelo golpe de Estado que o arrancou do trono, fomentado pelo governo francês. O caso entrou para a história como Les diamants de Bokassa (Os diamantes de Bokassa).

Giscard d’Estaing acabou perdendo a reeleição. O desastre de imagem causado pelos diamantes do imperador há de ter contribuído para a derrota.

Estourou semana passada, no Brasil, o caso dos diamantes de Bolsonaro. Assim que fiquei sabendo, lembrei imediatamente dos “diamants de Bokassa”. Se a história das pedras das Arábias tivesse vindo à tona antes, Bolsonaro poderia até ter perdido a eleição. Mas… que bobagem estou dizendo! Ele já foi derrotado!

A saga dos diamantes ainda vai dar pano pra manga. Ninguém dá um presente de 3 milhões de euros sem ter um bom motivo pra isso. Reis, xeiques e emires são podres de ricos, mas nem por isso saem distribuindo milhões assim, sem mais nem menos. Alguns pontos ainda estão nebulosos.

Por que razão esse mimo milionário foi dado a Bolsonaro? Qual foi a contrapartida?

Outra curiosidade é o fato de ter sido necessário designar o sub do sub para viajar à Arábia, tomar posse da encomenda e embarcar num avião de volta carregando essa fortuna numa mochila(!). Por que é que Bolsonaro não trouxe na bagagem presidencial? Por que é que o presente não veio por mala diplomática árabe, para ser entregue ao capitão em Brasília?

Quem sabe um dia teremos as respostas. Ou será que o escândalo vai continuar enevoado para todo o sempre?

Carnaval visto da Escandinávia

“Turistas se aglomeram na volta da festa de rua no Rio de Janeiro”
“No tempo de Bolsonaro no poder, muitos eram contra o carnaval”

José Horta Manzano

O jornal sueco Dagens Nyheter é o maior e mais importante diário não só da Suécia mas de toda a Escandinávia. Estes dias, seu correspondente permanente no Brasil, baseado no Rio de Janeiro, escreveu um artigo (acompanhado de um vídeo) sobre o carnaval.

A primeira frase da reportagem dá o tom:

“Pela primeira vez desde que a pandemia estourou, o carnaval de rua está de volta ao Rio de Janeiro. Centenas de milhares de pessoas são esperadas para comemorar dançando nas ruas neste fim de semana. Como Bolsonaro não é mais presidente do Brasil, mais turistas vieram.

O resto segue na mesma linha.

Mas que diabos tem Bolsonaro a ver com o carnaval? Na visão de muita gente, o capitão é desmancha-prazeres de marca maior. Sem a presença dele, a festa é mais alegre.

A perna curta

“Segundo mídia brasileira, Bolsonaro foi vacinado contra a covid”

 

José Horta Manzano


Mentira tem perna curta, todo o mundo sabe disso.


E o ditado vale para todos, sem exceção. Quem mente muito acaba desmascarado com frequência.

O capitão Bolsonaro, que um dia governou este país, entra na categoria dos mentirosos compulsivos. Para o ouvinte de cabeça fria, destrinchar o que ele diz e separar o falso do verdadeiro é um desafio.

Desde que se instalou a pandemia de covid, o capitão não deixou escapar nenhuma ocasião para zombar do povo maricas que tinha medo da doença. Assim que surgiu a vacina, montou uma cruzada contra ela. Disse que todos tinham de fazer como ele, que era homem de verdade e que recusava a vacina. Preferia cloroquina.

Muitos adeptos do presidente engoliram essa gororoba, esnobaram a vacina anticovid e ainda proibiram os filhos de se vacinarem contra doenças infantis. Um triste desastre.

Empacado, Bolsonaro jurou de pés juntos nunca ter se vacinado contra a covid. Apesar disso, impôs 100 anos de sigilo aos dados de seu cartão de vacinação. O Brasil ficou com a pulga atrás da orelha. Se é verdade que não se vacinou, por que diabos esconde o cartão? Aí tem treta.

Com o capitão derrotado nas urnas e fugido para o exterior, o mistério é agora desvendado. Por fim, é conhecida a razão do sigilo secular: ele se vacinou sim. Que desmoralização, capitão! O distinto leitor e a simpática leitora poderão argumentar que, pra se desmoralizar, é preciso antes ter moral. Mas essa já é uma outra história.

Homiziado na Florida, Bolsonaro foi obrigado a reagir. Negou com veemência ter se vacinado e alegou que o registro é obra de algum pirata informático mal-intencionado. Exaltado, ameaçou entrar com processo contra o ministro da CGU que desvendou o segredo. Quá!

Realmente, o capitão estava convencido de que ia continuar no poder indefinidamente, com reeleição ou golpe, tanto faz. Imaginava que, enquanto estivesse vivo, ninguém jamais teria acesso a seu registro vacinal.

A reeleição não veio, o golpe gorou, outro presidente está no Planalto. E o mentiroso da perna curta levou um tombo e caiu de boca.

E agora? Como se justificar perante os devotos por seus conselhos furados? Como explicar atitudes do tipo “faça o que eu digo, não o que eu faço”?

Sem problema: seus seguidores acreditam em qualquer historinha, por mais esfarrapada que seja, desde que venha da boca do ex-não-vacinado. Cada um acredita no que quer, não é mesmo?

Bolsonaro no exílio

José Horta Manzano

Fugido do Brasil e autoexilado nos EUA, Bolsonaro sopra o calor e o frio. Um dia, diz que está de malas prontas para voltar; dia seguinte, informa que o retorno não tem data marcada. Ora vem, ora não vem.

Por age assim? Acredito que basicamente é pra mostrar-se vivo. Se, além de sumir de circulação, ficasse quietinho, seria dado por morto e descartado como carta fora de jogo.

É verdade que todos os seus planos foram por água abaixo e não lhe resta nenhum mourão ao qual se agarrar. As Forças Armadas do Brasil não o acompanharam, Trump não quis saber de recebê-lo, seus aliados estão aos poucos saindo de fininha para entender-se com o Lula. A 8.000 km de distância, com medo de voltar, o que é que o capitão pode fazer além de gesticular?

Observe agora a ilustração acima. É uma montagem de fotos extraídas de filmetes feitos por devotos que pagaram pra ouvir uma “palestra” de Seu Mestre num templo evangélico da Florida sábado passado. As imagens foram tiradas de filmezinhos amadores, de baixa qualidade, eis por que aparecem meio desfocadas.

Qualquer um pode notar que o ex-presidente engordou – e muito. Nessas fotos, não me parece que estivesse vestido com colete à prova de balas, como costumava andar no Brasil. O diâmetro do capitão é inteirinho dele mesmo. Imagino que a haute cuisine do Planalto esteja fazendo falta. Nos EUA, sozinho naquele casarão sem terreno onde está homiziado, sem a esposa (que já lançou seu grito de independência e voltou a Brasília), deve estar se alimentando de pizza, hambúrguer, batata frita e maionese em dose dupla.

Ao permanecer nos EUA, Bolsonaro dá sossego a muita gente. A ele, pra começar, que vai pra cama sem o pavor de ser acordado pela PF. Para seus devotos, porque a ausência de Seu Mestre mantém acesa a chama sebastianista de um hipotético retorno. E também para os não-bolsonaristas, que preferem vê-lo pelas costas.

Assim, sua ausência convém a todos. Que ele continue na Disneylândia!

Lula nos EUA

by Gilmar Fraga (1968-), desenhista gaúcho

José Horta Manzano

A imensa vantagem de Lula, em qualquer viagem internacional, é que sua fama chega antes dele. No Brasil, ele venceu a presidencial com 51% dos votos mas, se todos os eleitores dos países democráticos tivessem podido votar, ele teria levado com um placar soviético de 80% ou 90%. Em resumo: no exterior, o demiurgo conta com enorme capital de simpatia.

Em matéria de ideologia, Lula continua o mesmo. (Aliás, ninguém costuma mudar – algum ângulo mais pontudo da personalidade pode até ser limado, mas a essência permanece.) Pelas contas, estamos na versão Lula 3.0, mas o presidente continua empacado no ideário que já adotava nos tempos de líder sindical. O antagonismo entre “nós” e “eles” é marca de sua personalidade. O vitimismo do oprimido que se revolta contra o opressor está na base de sua cartilha.

Ele persevera na ideia de que redistribuição de riqueza se faz por decreto – daí a guerra declarada contra a política de juros do Banco Central. Lula realmente acredita que bastaria baixar os juros para eliminar a carestia. Não entende (ou não quer entender) que a economia não é ciência exata, e que qualquer mexida num dos pilares pode fazer o edifício desmoronar. Com juros baixos, capitais estrangeiros que hoje garantem o funcionamento do Estado brasileiro vão fugir em busca de mercados mais atraentes. Acontecendo isso, o governo trava.

Se Biden tocar no assunto da invasão da Ucrânia pelos russos, o fará por pura formalidade. O presidente americano já conhece a posição de Lula e sabe que não adianta insistir. De todo modo, para os EUA, um Brasil “neutro” é sempre melhor que um Brasil “solidário à Rússia”, como Bolsonaro um dia garantiu a Putin.

Lula adora navegar entre siglas que lhe parecem importantes. Sons como OEA, Mercosur, Celac, OCDE, Unasur são bálsamo para seus ouvidos. O Brics faz parte desses clubes. Aliás Lula acaba de indicar Dilma Rousseff para presidente do Banco do Brics, com sede em Xangai (China). A Rússia também faz parte do Brics. Com sua lógica peculiar, Lula acredita que não fica bem o Brasil por um lado, ser sócio da Rússia, e por outro condenar a invasão da Ucrânia. Prefere prestigiar o companheiro Putin, colega de clube, e dar de ombros para o povo ucraniano, que sofre as penas do inferno.

Nosso presidente dá preferência a manter acordos comerciais enquanto fecha os olhos para o massacre intencional de milhões de seres humanos promovido por Moscou no território de um país soberano. É o mesmo raciocínio que o faz apoiar gente asquerosa como os irmãos Castro de Cuba, Nicolas Maduro da Venezuela, Daniel Ortega da Nicarágua, Bachar El-Assad da Síria, os aiatolás do Irã, ditadores africanos.

Lula é considerado humanista. Pois é estranho que um humanista dê preferência a sacrificar um povo inteiro no altar das boas relações entre companheiros, mas a realidade é essa. Parece que a máscara de “pai dos pobres” de Lula é só pra inglês ver.

A viagem a Washington, por seu lado, não vai resultar em grandes avanços nem fortes recuos. Para Biden, será a ocasião de mostrar que o Brasil continua um grande aliado, não armado e não belicoso. Para Lula, vai marcar um início de mandato com pé direito, sendo recebido com honras pelo chefe de Estado mais poderoso do planeta. E os ucranianos que se danem.

Não foi ideia minha!

José Horta Manzano

Sou assinante de um portal de língua espanhola que me manda, entre outros temas, interessantes informações de etimologia. Cada post vem ilustrado com uma imagem que evoca o assunto.

A “Palabra del día” de hoje era energúmeno, que tem a mesma grafia e praticamente a mesma pronúncia em espanhol e português. Para ilustrar, os autores escolheram uma sugestiva foto do ex-presidente Bolsonaro. Devem ter achado que era a tradução mais fiel do sentido de energúmeno.

O post no site original está aqui.

Frase que não deveria ter sido pronunciada

José Horta Manzano

O presidente Lula da Silva afirmou nesta segunda-feira que os atos golpistas de 8 jan° representaram

“a revolta dos ricos que perderam a eleição”.

A frase, que ressuscita um “nós x eles” de triste memória, não serve a nenhum público.

* Os que votaram em Bolsonaro não vão passar a apreciar Lula.

* Dos que não votaram em Bolsonaro, a maior parte não vê “ricos” nos vândalos da Praça dos Três Poderes. Ao contrário, enxerga uma tropa de indigentes – físicos e mentais.

* Os que não se encaixam nas categorias acima são os que não costumam ler jornal nem seguir as falas do Lula.

Portanto, a frase faz mais mal do que bem. Parodiando Romário, o Lula calado é um poeta.

Resenha – 4

by Pedro Silva, desenhista português

José Horta Manzano

Descartável
Doutor Anderson Torres, que foi ministro da Justiça aos tempos de Bolsonaro, foi colhido pela PF ao desembarcar de voo que o trazia de volta de suas ‘férias’ em Orlando. Foi então conduzido a um destacamento da Polícia Militar de Brasília onde está preso há três semanas.

Ontem, o doutor deu depoimento. Indagado sobre a minuta de decreto golpista encontrada entre seus guardados, declarou que considera a dita minuta “totalmente descartável” e, mais que isso “sem viabilidade jurídica”.

O doutor não explicou o que é que um papel “totalmente descartável” fazia entre os documentos conservados em sua residência. Se era descartável, deveria ter sido descartado. Por que não o foi?

Ao declarar que o decreto golpista é “sem viabilidade jurídica”, o doutor chove no molhado. Golpe de Estado significa exatamente a quebra de ordem jurídica. Dizer que ele é “sem viabilidade jurídica” é uma evidência, um truísmo.

Em matéria de esclarecimento, o depoimento foi de soma zero.

Do porão
Assustado com as múltiplas tentativas de golpe de Estado que permearam os últimos meses da gestão bolsonárica, doutor Gilmar Mendes (STF) declarou que “a gente estava sendo governado por uma gente do porão”.

Se qualquer um de nós, cidadãos comuns, fizéssemos esse comentário, o mundo não viria abaixo. Mas quando Gilmar Mendes, conhecido como “o ministro que mais solta bandido”, faz a mesma observação, vale o dobro. Fica patente que essa gente é do porão mesmo.

Italiano
Bolsonaro disse que é italiano e que, se quiser tirar os documentos, basta solicitá-los, que a burocracia não será pesada. Tem razão o ex-presidente. O que ele não disse, talvez por não saber, é que a Itália não é o porto mais seguro para fugitivos da lei. Nenhuma lei do país impede a extradição de nacionais.

Já tivemos um caso famoso, o de Henrique Pizzolato. Binacional, o condenado na Lava a Jato se homiziou na Itália. O governo brasileiro solicitou extradição e, depois de uma batalha judicial, a Itália acabou entregando Pizzolato à PF, que o levou direto de Roma para a Papuda.

Portanto, a nacionalidade italiana pode ser útil para cidadãos brasileiros comuns. Para um Bolsonaro condenado, não é destino recomendável.

Enquanto isso
Inconformado ao ver que uma das mais importantes instituições da República escapa ao seu controle, Lula dá sinais de querer “rever” a autonomia do Banco Central. Para não chacoalhar o mercado, diz que a ideia só será posta em prática após o término do mandato do atual presidente do banco.

Lula não tem jeito. Com os pés cravados nos anos 1970, não consegue (ou não quer) entender que a absoluta independência do banco emissor é ponto importante no sistema de pesos e contrapesos de uma democracia vigorosa. É assim que funciona em todos os países democráticos.

Doutora em Ginecologia
Uma cirurgiã-ginecologista francesa, que oficia no hospital de Bordeaux (sul da França), gosta de cantar. Já na sala de operações, antes de iniciar o procedimento cirúrgico, canta para tranquilizar a paciente.

Embalados por sua bela voz, os “gospels” têm feito sucesso desde que foram publicados nas redes. Veja aqui.

Resenha – 3

by Guy Valls (1920-1989), desenhista francês

José Horta Manzano

A queda
Quando o cidadão está lá em cima, forte e poderoso, é cortejado por todos. Já quando desce do pedestal, vai aos poucos escorregando para o ostracismo. O caso de Bolsonaro é mais grave ainda. Dado que, quando presidente, exorbitou, ofendeu, insultou, extrapolou e magoou, sua queda dramática o transforma em indivíduo tóxico. Todos o abandonam e ninguém quer ter o próprio nome ligado a ele. A queda é vertiginosa.

Nos EUA, numerosos parlamentares fazem pressão sobre Joe Biden para que dê um jeito de impedir a estada do capitão em território estadunidense. Que seja expulso o mais rápido possível.

Na Itália, parlamentares horrorizados com os acontecimentos de Brasília também se insurgem contra o capitão. Ele não se encontra na Itália (por enquanto), mas sua figura paira como mancha indesejada. É que em novembro de 2021, em sua passagem pela Itália, Bolsonaro recebeu uma homenagem por parte da prefeita da cidadezinha de origem de seus antepassados. Concederam a ele a cidadania honorária do município de Anguillara Veneta. Depois do golpe de Estado fracassado do 8 de janeiro, diversos eleitos pressionam a prefeita para que anule o título concedido. Não querem ver o nome da cidadezinha associado ao do “Trump dos trópicos”.

Na minha visão, é uma bênção que Bolsonaro esteja no exterior. A cada dia longe da pátria, sua fama de fujão vai se afirmando e sua aura vai empalidecendo. Dependesse de mim, faria tudo para que ele nunca mais pisasse solo brasileiro. Quanto mais longe estiver, melhor será. O homem é nocivo e perigoso demais.

Ecos do 8 de janeiro
Encontrei na imprensa alemã as expressões mais veementes para descrever os terríveis acontecimentos de nosso 8 de janeiro em Brasília.

A malta que invadiu os palácios foi chamada de “Armee des Wahns”, ou seja, Exército da Loucura. Excelente definição.

Li também a afirmação seguinte: “Die Wut der Massen entstammt dem Gift des Populismus”, que se traduz por “A fúria das massas tem origem no veneno do populismo”, uma verdade histórica.

Parafraseando movimentos como a “Internacional Socialista” e a “Internacional Operária”, a mídia alemã tascou outra boa etiqueta para a turba:
“Die Internationale der Verschwörungsgläubigen”, que é
“A Internacional dos Crentes da Conspiração”.

Avaliação Lula x Bolsonaro
Pesquisa do Ipec apura que 55% dos brasileiros acreditam que o governo Lula será melhor que o governo Bolsonaro. Deduz-se que os demais, ou seja 45% dos brasileiros, são de outra opinião. Os números (55% x 45%) se aproximam do resultado do segundo turno (51% x 49%). Em outros termos, quem votou no Lula acha que o novo governo será melhor que o anterior. E quem votou Bolsonaro persiste em acreditar que bom mesmo era antes. Nem precisava de pesquisa.

Roraima
Bolsonaro passou quatro anos hostilizando a Venezuela, fechou embaixada, tirou pessoal diplomático, diabolizou o regime. Esbravejou e cantou de galo em cima do desprezível vizinho. Mas não se preocupou em conectar a rede de energia elétrica roraimense à rede brasileira. Roraima é o único estado da Federação cuja rede elétrica é desconectada do resto do país. Até hoje, é a Venezuela que fornece energia ao estado.

O capitão bradava: “Que ninguém ouse botar a mão na Amazônia!”, enquanto entregava a segurança energética de um vasto pedaço de nossa Amazônia aos caprichos de um ditador estrangeiro. Mais uma vez está feita a prova de que o nacionalismo dele é só de fachada, pra inglês ver.

Surpreendente
Em carta escrita nesta quarta-feira 18 janeiro 2023 e endereçada aos dirigentes do mundo inteiro, que estão atualmente reunidos no Fórum Econômico de Davos (Suíça), mais de 200 bilionários provenientes de 13 diferentes países afirmam que querem pagar mais impostos. Estudos especializados indicam que o patrimônio dos ultrarricos aumentou em 50% nos últimos dez anos.


“Vocês, nossos representantes no mundo, têm de aumentar nossos impostos, e isso tem de começar agora. Trata-se de uma medida simples e de bom senso.”

Trecho da carta


Na lata, ao tomar conhecimento da carta, o ministro francês da Economia convidou todos a irem morar na França. Explicou que se tratava de um dos países onde se pagam mais impostos no mundo e completou: “Saberemos cobrar de todos vocês”. Bem-vindos!

Resenha – 2

José Horta Manzano

Por que parou? Parou por quê?
O frisson do momento fica por conta dos escritos que a PF encontrou ao esquadrinhar os guardados de Anderson Torres, ministro de Bolsonaro, ora refugiado nos EUA.

Pelo jeitão do documento, não se trata de “rascunho”, como tenho lido. As letras impressas e o juridiquês caprichado revelam que o texto não é um devaneio rabiscado em papel de padaria ao fim de uma noite de uísque abundante. Longe disso, é a prova de que havia trama para revirar o resultado das urnas, e que o projeto estava em estado adiantado. O “rascunho” é, na verdade, uma minuta pronta para ser impressa em papel timbrado e assinada pelo capitão.

Discute-se sobre a autoria. Discute-se sobre a constitucionalidade do frustrado decreto. Discute-se sobre o peso que a descoberta vai exercer na culpabilidade de Bolsonaro. Todas essas questões são válidas e justas. No entanto, a meu ver, uma pergunta paira no ar, intrigante e sem resposta:

Por que é que a minuta foi descartada sem nunca virar decreto?

Responder a essa pergunta equivale a esclarecer o mistério.

Caçoar do Lula
O jornalista e escritor português Ricardo Araújo Pereira é conhecido por seu afiado senso de humor. É dele a fala seguinte (que já vem com sotaque):

“Agora, é tempo de caçoar do Lula. Sem medo de que este governo vá falhar. Até porque vai falhar. Já agora, aproveito para dar essa novidade. O governo brasileiro vai falhar por dois motivos: primeiro, por ser um governo; segundo, por ser brasileiro. É uma combinação que costuma ser fatal.”

Ironia do destino
O destino costuma espalhar cascas de banana na estrada para apanhar incautos. Ai de quem não prestar atenção.

Dia 5 de janeiro, uma empertigada primeira-dama convocou a Rede Globo para narrar o “estado de ruína” em que os Bolsonaros haviam deixado o Palácio do Planalto. Uma ponta de tapete esfiapada, uma quina de móvel esgarçada, um estofado rasgado – coisas desse jaez.

Não se sabe exatamente qual era a intenção da boa senhora, se era acusar os locatários antigos de serem selvagens ou se era para embasar futura requisição de verba para reforma.

Mal sabia a primeira-dama que, apenas três dias depois, nada mais restaria do mobiliário do palácio. O que lhe tinha parecido “ruína” tinha sido apenas aperitivo da desolação que viria depois.

KFC
No começo do mês, o canal de tevê TF1, o de maior audiência na França, não deixou passar em branco a imagem insólita. Enquanto Lula recebia as honras de presidente e assumia suas funções em Brasília, um solitário ex-presidente, despejado do poder e homiziado nos EUA, comia uma fritura no KFC. Com as mãos, como é de lei.

Fuga inútil
Contropiano, jornal comunista italiano online, repica o que afirmaram veículos da mídia brasileira e revela que Bolsonaro pensa em homiziar-se na Itália para evitar possível prisão no Brasil.

Dois meses atrás, lembrei a meus distintos leitores a triste e decepcionante história de Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil nos tempos do Petrolão e da Lava a Jato. Titular de dupla nacionalidade – brasileira e italiana – o cidadão, enrolado com a justiça brasileira, julgou que refugiar-se na Itália seria excelente ideia. Depois de muitas peripécias, terminou extraditado pela Itália e recolhido diretamente à Papuda, onde cumpriu a pena imposta.

Nos dias de hoje, está cada vez mais difícil escapar ao próprio destino. Incluído na lista vermelha da Interpol, nenhum réu tem mais sossego. Não estou aqui para dar pistas a Bolsonaro, mas ele que se lembre que, uma vez inculpado, não adianta fugir porque será perseguido até seus últimos dias. Onde quer que esteja, inclusive na Itália.

Digital
Em certos aspectos, o universo petista continua a se comportar como se estivéssemos nos anos 1980, na era pré-internet. A esse propósito, o jornalista Pedro Dória publicou um artigo pertinente do qual um trecho vai aqui abaixo.

“Este governo, o governo Lula, é um governo terrivelmente analógico. E, num momento de democracia em risco, o governo não pode se dar ao luxo de ser analógico.”

Poderia ter sido pior

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 31 dezembro 2022

Virada de ano é o momento de dar uma parada, olhar pra trás, olhar pra frente e buscar, na euforia efêmera do espocar dos fogos, ânimo pra seguir adiante.

Cada um tem a idade que tem, não há como evitar. Se fosse um carro, este escriba, que já rodou mundo, contaria muitos quilômetros no odômetro. Me lembro dos ensolarados anos 60 e 70, quando o futuro nos pertencia e um fusquinha era nosso objeto de desejo. Mas os anos passaram e o panorama mudou. As cidades brasileiras se estufaram e engoliram, em congestionamentos crônicos, nossos ingênuos objetos de desejo. Quanto ao futuro, já nem temos certeza de que nos pertença. Entre crise climática, pandemia e ameaça nuclear, nem sabemos se futuro haverá.

Constato, consternado, que nosso fluxo migratório se inverteu. Meio século atrás, o número dos que escolhiam o Brasil para se estabelecer e recomeçar a vida era muito superior ao de brasileiros que se iam. Na atualidade, cresce a cada ano o contigente de brasileiros desiludidos, que abandonam nosso país em busca de um futuro melhor em outras terras. O país do futuro já não atrai aquele mundaréu de gente e já não cativa nem seus próprios cidadãos. Dá dó assistir impotente a essa fuga de braços e de cérebros, gente que, no futuro, só voltará para as férias.

Hoje à meia-noite (se o mundo não acabar daqui até lá), teremos tirado o pé de 2022, um ano agourento. No nível mundial, a invasão da Ucrânia nos fez retroceder oito décadas a um período em que Herr Hitler, julgando que faltasse Lebensraum (espaço vital) a seus súditos, armou suas tropas e invadiu países soberanos. Era um tempo que, até outro dia, todos acreditávamos superado, morto e esconjurado. Putin nos ensinou que nenhuma verdade é eterna e que não convém baixar a guarda.

Essa ressurgência da guerra tem infligido horrores ao povo agredido. Até países que, embora distantes da cena bélica, dependem dos grãos ucranianos estão em estado de insegurança alimentar. Assim mesmo, os russos poderiam até ter invadido algum país da Otan, o que acenderia o braseiro de uma guerra mundial. Felizmente, não o fizeram. No fundo, poderia ter sido pior.

Nosso capitão, que vive hoje seu último dia de mandato, foi outro que aprontou. Não chegou a cogitar invadir o Paraguai nem recuperar o Uruguai, mas um dia ousou ameaçar os Estados Unidos (!), explicando a Biden que “Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”. Mas, para alívio de nossas angústias, ficou no blá-blá. Não despachou tropas em direção ao grande irmão do Norte. Veja você que, no fundo, poderia ter sido pior.

O negacionismo científico do presidente, que tinha se manifestado já no estouro da pandemia com a sonegação de vacina e oxigênio, continuou firme e adentrou 2022. Verbas foram negadas a tudo o que, de perto ou de longe, estivesse no campo da ciência. Universidades federais e bolsistas viram sua dotação fortemente diminuída ou até suprimida. Talvez o capitão tenha tido ganas de mandar fechar universidades em todo o território nacional e acabar de vez com esses “perigosos ninhos de comunistas”. Não o fez. Veja você que, no fundo, poderia ter sido pior.

O golpismo, característica inerente ao capitão, manteve-se empinado. A cada ocasião que lhe pareceu propícia, Bolsonaro avivou a chama. Jamais deixou cair a peteca. A ideia fixa que o atormenta desde os tempos da caserna não enfraqueceu. Queria porque queria dar um golpe de Estado. No caso dele, seria um “autogolpe”, variante tipicamente latino-americana já testada por numerosos governantes de nossa região. Talvez por não se sentir escorado pelas Forças Armadas, Bolsonaro não ousou ir às últimas consequências. Tivesse ido, estaríamos vivendo um caos que a imaginação mais fértil não consegue avaliar. Veja você que, no fundo, poderia ter sido pior.

De susto em susto, de tranco em tranco, de solavanco em solavanco, chegamos ao fim de um ano que não deixará saudades. Amanhã acordaremos aliviados por ver o fim de um ciclo atroz, mas também apreensivos por ver a volta de Luiz Inacio ao poder. Nós, os que escrevemos sobre política nacional, baixaremos enfim a arma. Mas Lula que se cuide: nossa metralhadora é rotatória. Que ele não bobeie, se não “vai ter pólvora”.

Feliz ano novo a todos.

Na antevéspera do gozo – 2

Brasília: Praça dos 3 Poderes em construção

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há mais de cinco anos detectei pela primeira vez uma sinistra coincidência entre momentos de pré-júbilo nacional e a ocorrência de alguma tragédia ou reviravolta frustrante na vida institucional brasileira. Dei a esse fenômeno inusitado o nome de “antevéspera do gozo” e desde então comecei a me perguntar das razões para seu surgimento.

Analisando alguns acontecimentos históricos ligados a momentos de grande mobilização cívica interrompidos abruptamente – como a rejeição da emenda das Diretas Já depois de 21 anos de ditadura e após expressivas manifestações de rua da sociedade civil, a morte de Tancredo Neves antes de assumir o cargo presidencial e consolidar a transição para a volta do regime democrático, o acidente aéreo fatal que atingiu Eduardo Campos, a principal novidade da campanha ao lado de Marina Silva, a poucos meses da eleição presidencial de 2014, e até a morte do ministro do STF Teori Zavascki, o único que poderia enquadrar os desvios éticos de Sérgio Moro e conduzir a Operação Lava Jato com segurança jurídica e imparcialidade até o final -, cheguei à conclusão que temos, como cultura, um caráter evidentemente histérico.

Com isso quero dizer que estamos perpetuamente surfando na crista de uma onda de excitação coletiva que jamais encontra descarga completa e impede que seja zerada a tensão política acumulada. Quando sentimos que se aproxima o momento do gozo final, algo em nós inexplicavelmente se assusta, se tranca e recua. E, quando se bloqueia a energia libidinal, ela por assim dizer “apodrece” qual água estagnada e contamina outras áreas do psiquismo. A incapacidade de entrega amorosa plena termina gerando desprazer e frustração, o que, por sua vez, deriva para a formação de irracionalidades, perversões, neuroses, fanatismo, misticismo, etc. A potência orgástica se perde e se divide em uma série de gratificações secundárias.

Se confirmado, esse traço cultural histérico explicaria ainda outras duas tendências com as quais venho trabalhando para entender a brasilidade: o baixíssimo comprometimento da população com processos (de qualquer tipo, mas especialmente os de construção democrática) e a ânsia de obter resultados praticamente imediatos, ou expectativa de mudança mágica da realidade. Em segundo lugar, a bipolaridade estrutural que nos faz oscilar entre momentos de eufórica autoestima {como acontece quase sempre no futebol e no carnaval) e outros de depressão (síndrome do vira-lata) e autocondenação (principalmente em períodos pós-eleitorais, com a sistemática repetição da crença de que brasileiro não sabe votar).

Ainda não sei quais e quantos outros fatores estão em jogo, mas posso apostar que a recusa em juntar forças para o atingimento de um orgasmo-cidadão está ligada ao eterno confronto entre nossas raízes africanas e indígenas de valorização da coletividade e a herança conservadora e individualista de nossos colonizadores portugueses. Aparentemente, isso se deve às pesadas noções de culpa e pecado da tradição judaico-cristã herdada deles que interferem em nosso caráter original de afetividade despudorada, espontaneidade e liberalidade sexual.

Pois bem, parece que está prestes a acontecer de novo. Desde 30 de outubro, nem um dia se passa sem que ouçamos a profecia: “O ladrão não vai subir a rampa”. Como, desta vez, Deus parece ter optado por não chamar para seu reino nenhum dos candidatos finalistas nem a figura mais odiada do bolsonarismo, Alexandre de Morais, as deserdadas viúvas do Mito resolveram tomar nas próprias mãos a tarefa de desconstrução final do estado democrático de direito. Depois dos emocionantes manifestos em favor da democracia que reuniram mais de um milhão de assinaturas, o que deveria ser uma festa popular de regozijo com a vitória da esperança de reconquistarmos credibilidade internacional e de recuperar nosso já devastado meio ambiente foi brutalmente interrompida com bloqueio de estradas federais, manifestações abertamente golpistas na frente de quartéis, ações de caráter explicitamente terrorista e nazifascista e até aberrações de cunho religioso messiânico, como a de clamar por intervenção extraterrestre através de celulares.

Embora nada de mais terrível tenha acontecido até este momento, seja por obra e graça da incompetência e planejamento amadorístico das ações dos golpistas ensandecidos ou por pura conivência mal dissimulada das autoridades de plantão, temos de convir: nada impede que acordemos horrorizados no dia 1º de janeiro de 2023 ao assistirmos ao vivo e em cores a um atentado contra o novo presidente em plena Praça dos Três Poderes. Garanto que muita gente já perdeu o sono revivendo mentalmente as cenas dantescas de partes do cérebro de John Kennedy voando longe ou, mais recentemente, da morte em público do primeiro-ministro japonês Shinzo Abe.

A parte moralista do nosso Eu coletivo, que chafurda cada dia mais no fundamentalismo religioso mais rastaquera, entra novamente em campo para alertar: esse parceiro que nos está sendo reapresentado como salvação de nossas fraquejadas libidinais não é confiável, já abusou de nossa confiança anteriormente, não dá para nos entregarmos de mão beijada a ele sem contarmos com alguma forma de salvaguarda contra seus ideais liberalizantes nos costumes. E se ele achar que não somos moças de família por cedermos ao desejo? E se gostarmos da experiência e quisermos repeti-la, como ficará nossa imagem pública? Emancipação para quê? Não, melhor nos mantermos dentro das 4 linhas do patriarcado cristão heteronormativo!

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Tudo é fake

José Horta Manzano

Dê uma olhada na foto acima. Até que não está tão mal, não é? Mas alguma coisa atrapalha. Parece esquisita, um pouco fora de esquadro. Mostra um cenário bonitinho, de Natal idealizado. Dá pra entender a intenção de quem teve a ideia, só que o conjunto ficou pra lá de bizarro.

De fato, a porta de vidro e a armação metálica que aparecem por detrás do cenário estragam o efeito de casinha mágica. A neve que cai tem dois defeitos: 1. Não costuma nevar com céu azul; 2. O gramado (capim?) não recebeu nenhum floco e continua verdinho. O efeito fake incomoda.

Tem mais. Os quatro personagens vestidos de preto não combinam de jeito nenhum com casinha de cartão postal. A presença inquietante dessas quatro silhuetas abafa o som do Jingle Bell.

Agora vou contar uma coisa: essa imagem mostra só uma parte da foto original. Se você ainda não adivinhou, clique aqui pra ver a fotografia original por inteiro.

A mudança do capitão

clique para ampliar

José Horta Manzano

A imprensa publicou este flagrante do carregamento dos pertences do capitão (clique na imagem para ampliar). Os jornais descrevem como “mudança” do presidente, mas eu acredito que seria mais apropriado falar em “despejo”, que é a palavra adequada para o caso de alguém ser impedido de ficar, e sair de má-vontade.

Noto alguns detalhes curiosos. O objeto que está para subir no caminhão deve ser bem pesado, visto que há seis carregadores atarantados em torno, com ar de conjecturarem sobre o melhor modo de operar.

Note que o objeto não está saindo da residência presidencial (Alvorada), mas do Palácio do Planalto, centro nevrálgico do Executivo, onde fica o escritório do presidente, o gabinete do ódio e onde despacham os generais palacianos.

Pelo jeitão, se objeto não for um desconhecido mumificado, há de ser uma estátua representando uma figura humana em tamanho real. Estátua? Saindo do escritório presidencial? Como assim? Será que o capitão estaria subtraindo parte do patrimônio nacional, como Lula já fez no passado?

Pode ser que seja uma estátua de propriedade de Bolsonaro, trazida por ele para enfeitar sua sala. Ué, mas até as emas de Brasília sabem que Bolsonaro odeia a arte! Coisa mais esquisita.

Ouriços tchecos em Kiev

Suponho que a Presidência conte com uma governanta ou com um funcionário encarregado de controlar tapetes, quadros, mobiliário e outras obras de arte. Se o objeto misterioso tiver sido “tomado emprestado por descuido”, a verdade deve aparecer da próxima vez que fizerem o inventário. Por enquanto, fica o mistério.

Outro detalhe interessante é a proteção antitanque de guerra, aquela fileira de “ouriços tchecos” que se estendem de borda a borda da rampa. Inventados pouco antes da Segunda Guerra, esses dispositivos de aço espesso e resistente são de grande eficácia em situação de batalha urbana. Impedem a passagem de todo veículo leve ou pesado e até de tanques de guerra.

Na rampa do Planalto, estão pintadinhos de branco, que é pra evitar chocar alguém. Quem terá mandado instalar? O presidente quase ex-presidente ou o ex-presidente quase presidente? Ao subir a rampa, dia 1° de janeiro, será que Lula & acompanhantes vão ter de saltar por cima desses obstáculos? Vai ser um espetáculo pra lá de gracioso, não percam!

Pra vocês verem quanto uma foto despretensiosa pode nos revelar. Basta observar.

Amazônia à venda

José Horta Manzano


“Aqueles indivíduos bem-intencionados que […] se preocupam com o clima do planeta deveriam dedicar-se a influenciar seus próprios governos no sentido da mudança de padrões insustentáveis de produção e consumo e da utilização de energias renováveis. Nessa área, o Brasil tem muito a oferecer em conhecimento e tecnologia.

Da Amazônia nós estamos cuidando […]. A Amazônia é um patrimônio do povo brasileiro, e não está à venda.”


Não precisa nem dizer que é o autor dessa fala: é evidente que só pode ter saído da boca do capitão. Certo?

Errado! O trecho citado é parte de artigo que a Folha publicou em 2006. Os autores são Celso Amorim, Marina Silva e Sergio Machado Rezende.

É curioso constatar mais uma vez que os extremos se tocam. O tom muda, mas o nó é o mesmo. Bolsonaro já chegou a ameaçar potências estrangeiras ao afirmar que, se ousassem pôr um pé na Amazônia, “a pólvora” iria falar. Amorim e Marina Silva arredondaram o discurso ao proclamar que “a Amazônia não está à venda”, mas a paranoia é a mesma.

Tanto o capitão quanto os petistas não conseguem entender que a preocupação do mundo é com o descaso cúmplice do governo brasileiro diante da acelerada destruição da maior reserva de biodiversidade do planeta. E com as consequências que isso trará para a regulação do clima mundial.

Vamos dar um desconto. O artigo do inefável Amorim e da pasionaria Marina foi escrito 16 anos atrás. Vamos torcer pra que tenham clareado as ideias, já que são ambos cotados para participar do governo Lula. Não custa ter esperança.

Sarrafo alto

José Horta Manzano

Desde que venceu duas Copas seguidas (1958 e 1962), o Brasil se impregnou de um estranho sentimento: o de que é o dono da taça. Em outros termos, os proprietários legítimos e vitalícios do troféu somos nós – qualquer eventual vencedor do campeonato será considerado usurpador.

Nestes últimos 60 anos, a cada edição do Campeonato do Mundo, insistimos em fixar como objetivo trazer a taça pra casa, numa espécie de tudo ou nada. É opção arriscada. É como o atleta de salto com vara que coloca o sarrafo alto demais. O risco de não conseguir chegar lá é elevado. Nessa toada, vamos de desilusão em desilusão, uma a cada quatro anos.

Acredito que deveríamos ser mais cautelosos na hora de colocar o sarrafo. Outros países fixam objetivos mais modestos: chegar às quartas ou à semifinal; eventualmente, de chegar à final. O risco de causar um trauma nacional é menor.

Neste sábado de ressaca, a mídia nacional está coalhada de críticas, tanto à equipe quanto (principalmente) ao técnico. É fácil criticar refestelado num sofá em frente à tevê. Tite devia ter feito isto, esqueceu de fazer aquilo, seria melhor se tivesse feito outra coisa. Bobagem. Profecias do passado são fáceis de fazer.

Até a ordem em que os jogadores bateram os pênaltis é criticada! Como se a conquista da taça tivesse sido frustrada só porque fulano bateu antes de sicrano. É um delírio.

Por que a Seleção perdeu? Ora, porque não fez gol, veja você. O escrete jogou cinco partidas. Tirando o passeio diante da fraca Coreia, sobram quatro jogos sérios. Quantos gols foram marcados nesses quatro jogos? Quatro gols. Dá uma média de um por partida. Me parece fraquinho para quem tem ambição de voltar a ser campeão do mundo.

Mas não tem importância. Os “meninos” da Seleção não precisam do prêmio, visto que já estão esbanjando dólares (e arrogância) ao comer bife de ouro enquanto muitos de seus fãs passam fome.

Quanto ao Brasil, já ganhou o prêmio maior: conseguiu livrar-se do tenebroso capitão. Bolsonaro desocupando o Planalto vale mais que ganhar a Copa.

Prognóstico

Corriere della Sera, 24 nov° 2022

José Horta Manzano

“O líder da direita [Bolsonaro] contabilizou o apoio de Neymar e fez duas promessas: “Eu vou ganhar as eleições e ele, a Copa”. A primeira aposta frustrou-se. Quanto à segunda, hoje começa o baile.

E se, no final, a seleção que mais títulos já recebeu na história devesse chegar de novo ao topo, provavelmente Lula vai esquecer a brincadeirinha de Neymar e vai abraçá-lo como um filho predileto. Porque essa é a democracia, e sobretudo esse é o futebol (não somente) no Brasil.”

Fugir para a Arábia?

José Horta Manzano

Todo o mundo já sabe, mas não custa repetir para que fique bem claro: o maior pavor do capitão é a cadeia. Por certo, essa não é a preocupação maior nem do distinto leitor nem deste escriba. Mas o capitão arrasta um passado complicado. Ele deve conhecer os motivos pra tanto medo.

Em diversas ocasiões, ele já bradou que ninguém jamais o tiraria do palácio e que nunca iria preso. A contradição da primeira parte de sua profecia já está aí: vai sair do palácio sim, senhor. Falta a segunda parte. Minha avó dizia: “Quem não deve, não teme”. Por que será que ele teme – e treme?

As especulações correm soltas sobre uma eventual fuga de Bolsonaro para o exterior. Não será simples. Se decidir seguir esse caminho em busca de asilo, terá de escolher um país com o qual o Brasil não mantém tratado de extradição.

Uma fuga para um país governado por dirigente autoritário de extrema-direita pode ser uma opção. A Hungria ou a Polônia, por exemplo. Mas… e se o governo de lá mudar de cor política amanhã e anular o asilo, como é que fica? Bora fugir de novo de mala e cuia?

Reinos, sultanatos e emirados do Oriente Médio são outra opção. Por lá, o risco de mudança de regime é quase inexistente. Mas… não deve ser fácil ter de passar o resto da vida numa bolha de ar condicionado, com samambaias artificiais, rodeado de deserto por todos os lados, com temperatura externa próxima de 50 graus. Tem quem aguente: Juan Carlos, que foi rei da Espanha, envolveu-se há dois anos num escândalo de corrupção e refugiou-se no emirado de Abu Dabi. Está lá até hoje.

O site Metrópoles informa que os filhos n°01 e n°03 do presidente estiveram na embaixada da Itália em Brasília terça-feira passada para tentar apressar o processo de reconhecimento da cidadania italiana para o clã. Entrevistado, o filho mais velho disse que deram início ao processo em 2019. Não explicou a razão da súbita pressa em ver o fim do túnel.

É permitido especular que, longe de cogitar uma aposentadoria na gelada Hungria ou no escaldante Oriente Médio, Bolsonaro esteja de olho na obtenção do passaporte italiano para dar o fora daqui. Num primeiro momento, até que parece boa ideia, mas o porto não é tão seguro como ele está imaginando.

Aconteceu não faz dez anos. Nos tempos em que a Lava a Jato comia feio, um senhor chamado Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil, encontrava-se em situação semelhante à do capitão hoje: era alvo da justiça brasileira e possuía dupla nacionalidade – italiana e brasileira. Às vésperas de ser preso, fugiu para a Itália.

Despistou a PF, saiu em direção à Argentina e de lá tomou avião para a Itália. Imaginou-se para sempre a salvo. Estava enganado. Quando souberam de seu paradeiro, as autoridades judiciárias de Brasília requereram sua extradição. Pizzolato tinha confundido a lei brasileira com a lei italiana. Imaginou que, como o Brasil, a Itália não extraditasse seus nacionais. Não é bem assim que funciona.

A lei italiana não impede a extradição de cidadãos do país. Com base no Acordo de Extradição firmado entre a Itália e o Brasil em 1989, cada caso será estudado individualmente. O fujão permaneceu dois anos na Península enquanto a batalha judicial corria solta. Num primeiro momento, sua extradição foi negada pela justiça italiana. O Brasil entrou com recurso, o caso foi para Roma, e a Corte de Apelação finalmente concedeu a extradição. Com o rabo entre as pernas, Pizzolato foi trazido pela PF a Brasília. De jatinho. Do aeroporto, foi direto para a Papuda purgar sua pena.

Se você, distinto leitor, for íntimo do clã do (ainda) presidente, procure fazer chegar este recado à família: “Lembrem-se do Pizzolato!”.

Se fugir já é uma vergonha, imagine só o que deve ser fugir, ser apanhado e trazido de volta pela PF. Vexame supremo! O capitão não vai querer arriscar. Ou vai?

Na ilustração, o avião que trouxe Henrique Pizzolato de volta para o Brasil.