Palco iluminado

José Horta Manzano

O distinto leitor e a graciosa leitora já devem ter visto foto tirada durante uma sessão parlamentar no exterior. Tirando republiquetas folclóricas, o palco onde se fazem as leis de um país costuma respirar dignidade. Os personagens exalam aquela sensação de comprometimento com o que está acontecendo, de apego aos ritos e à solenidade da hora.

Em nossas terras tropicais – e bonitas por natureza –, funciona assim não. Deputados e senadores vestem paletó e gravata por imposição do regulamento. Não fosse isso, veríamos eleitos do povo adentrar o recinto de bermudão e chinelo de dedo. Com exceção daquele jovem que um dia vestiu peruca amarela pra “lacrar”, nossos parlamentares costumam respeitar a indumentária exigida.

No entanto, se o regulamento fala do modo de vestir, é mudo quanto às atitudes admitidas. Observem a foto que reproduzo acima. Mostra uma sessão da Câmara Federal.

Ao centro, com ar compenetrado, está o presidente da mesa. O resto são figuras cuja presença naquele exato lugar é difícil de explicar.

Uma senhora está à esquerda na foto. Na verdade, ela está sentada à direita do presidente, sinal de que exerce cargo importante. Enquanto fala o chefe, lá está ela grudada no celular, pouco interessada no discurso.

Atrás do presidente, estão plantados seis indivíduos. (Talvez sejam mais numerosos, mas a foto só mostra essa meia dúzia.) Três deles dão as costas para o plenário, desinteressados dos debates mas interessadíssimos em algo que a foto não mostrou. Será uma bíblia? Uma foto de mulher pelada? Um jacaré?

Outros três personagens estão voltados para a plateia. Esses tampouco parecem fazer parte do conjunto de representantes do povo. Dois deles se apoiam, displicentes, no espaldar da poltrona do presidente da Câmara. Todos os três parecem interessadíssimos em espiar o papel onde está escrito o discurso do chefe.

Não sei você, mas eu não aprecio que alguém se apoie sobre a poltrona em que estou sentado, mormente quando é cadeira de escritório, com molejo que chacoalha quando alguém encosta.

Talvez esses chacoalhões expliquem certas decisões esquisitas de nosso Congresso. De fato, certas leis parecem ter sido escritas de cabeça pra baixo.

Goiabada basta

by Arend van Dam, desenhista holandês

José Horta Manzano

Virada a página Bolsonaro e passado o 8 de janeiro, acreditei que as coisas melhorassem. Nem esperava um definitivo “desta vez, vai!”, mas já me contentaria com um esperançoso “parece que sossegou”. Pra quem é, goiabada basta – como diziam os antigos. Do jeito que as coisas estavam, um pouco de silêncio já seria um bálsamo.

No entanto (tem sempre um porém pra atrapalhar), as coisas não parecem estar se endireitando. Se não, vejamos.

Em política externa, Lula se esmerou em escolher o lado errado na crise russo-ucraniana, que chacoalha o mundo.

Em política interna, já manteve no cargo ministro malandro que assalta os cofres do Estado para visitar feira equina. Já catou pelo braço o chefe do MST e deu-lhe a honra de viajar à China de aerolula, afago reservado a poucos.

Apesar de ter jurado retornar à decência republicana, Luiz Inácio, até agora, falhou. O cidadão esperançoso que aguardava nítida melhora desde o 1° de janeiro ficou com a goiabada mesmo. Sem queijo.

É verdade que acabaram ataques às urnas, às instituições, à mídia e às minorias. Por seu lado, porém, conchavos, condescendência para com assessores duvidosos e posicionamentos do lado errado da História continuam na ordem do dia. Como nos tempos do capitão.

Faz poucos dias, Lula deu a entender que quer porque quer furar poço de petróleo na região amazônica. Nos tempos atuais, é decisão estapafúrdia, que renega as juras de parar de agredir a fabulosa natureza brasileira, promessas feitas por um Lula candidato. Muita gente tinha acreditado – inclusive e principalmente no exterior.

Está também no capítulo agressão à natureza o “desconto” concedido a comprador de carro novo. Na verdade, desconto não é, pois não passa de supressão de imposto. E imposto, se não for pago por este, terá de ser pago por aquele. Do bolso do presidente é que não sai. O mundo se dirige a um futuro descarbonado, e eis que o Brasil incentiva a compra de carros de motor térmico. Faria sentido dar desconto para carro elétrico (ou a hidrogênio, ou a vento), mas desconto pra carro tradicional não tem cabimento.

Na mais recente façanha do andar de cima, há participação atuante do Congresso. Como todos já sabem, nossa política para o meio ambiente, cujo melhor trunfo foi a nomeação de Marina Silva, está sendo suprimida e sucateada por nossos próprios parlamentares. Numa operação nada sutil, estão desidratando os poderes dos ministérios onde se decidem as ações dedicadas ao desenvolvimento sustentável e respeitoso do meio ambiente. Francamente, contando, ninguém acreditaria.

O Brasil de 2023 está se saindo parelho ao Brasil de 2019. Cara de um, focinho do outro. Quem deseja ver as coisas mudarem de verdade vai ter de esperar 2027 e torcer pra que o estropício atual não seja reeleito e que o estropício anterior não volte. Nem um, nem outro, nem nenhum de seus respectivos capangas.

Clube de amigos?

José Horta Manzano

Está difícil captar a lógica de Lula da Silva no caso da guerra que a invasão da Ucrânia por tropas russas provocou. Analistas de todos os quadrantes – inclusive este escriba – têm atribuído o bizarro comportamento de Lula a diferentes causas: antiamericanismo primário, desejo de ficar na história como aquele que parou uma guerra, necessidade de ser visto como pacificador planetário.

Talvez as palavras e os gestos de nosso presidente reflitam um pouco de cada uma dessas razões. Mas tem mais. Um curto vídeo rodado na abertura da reunião da qual participaram todos os líderes (os do G7 e os de países convidados) revela que, à entrada de Zelenski, todos se levantaram e se dirigiram para acolhê-lo. Lula, fingindo estar entretido na leitura de um documento, nem ergueu a cabeça. Ficou sentado como se tivesse entrado a moça do café.

Lula da Silva não é homem culto. Mas também bobo não é. Se ele tivesse a intenção sincera de “levar a paz” àquela região e minorar o sofrimento de seus inocentes habitantes, sua atitude certamente seria outra. Ao ver, a dois metros de distância, entrar o líder de um dos países em conflito, teria se levantado imediatamente para saudá-lo, apertar-lhe a mão e soprar-lhe no ouvido: “Logo mais, vamos conversar”.

Não foi o que ele fez. Ao se fazer de estátua enquanto o resto dos líderes recepcionava o visitante, deu um recado: “Não vou porque não quero”. Pode-se traduzir por uma frase que criança usava antigamente: “Não sei quem é esse aí, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”.

Em suma, o desaforo que Lula fez a Zelenski não foi gratuito. Tem um motivo, mas qual?

Lula aparenta ter ficado extremamente irritado com a presença do convidado surpresa. Zelenski, popstar conhecido e famoso no mundo todo, ofuscou o papel de protagonista que Lula imaginava assumir. Roubou-lhe a cena. O mau humor de Luiz Inácio é a face visível do ciúme e da raiva que lhe roem a alma.

Dá pra imaginar que, no fundo, o “clube de amigos” que poria fim à guerra na Ucrânia não era o objetivo maior de Lula. Se fosse isso, Luiz Inácio teria agarrado a ocasião de dar um forte abraço no líder do país invadido. O grande objetivo de Lula era dominar a cena do festival, como fazia nos bons tempos em que era “o cara” de Obama. No fundo, para quem dizia querer criar um “clube de amigos”, o procedimento de Lula foi inamistoso e revelou sua falta de sinceridade.

Pois é, os tempos mudaram, mas Luiz Inácio esqueceu de evoluir. A continuar assim, periga nem ser convidado para o G7 do ano que vem.

Bullying

José Horta Manzano

Muita coisa mudou de meio século para cá. Sem dúvida, a sociedade evoluiu. No entanto, observando de outro ponto de vista, percebemos que certos problemas que nos parecem modernos já existem há séculos.

Desde que o mundo é mundo, crianças e adolescentes convivem com o que hoje se chama “bullying”. No passado, o jovem atazanado por colegas de classe podia até não apreciar as gozações, mas a situação não costumava degenerar a ponto de afetar sua saúde mental.

Hoje, vivemos uma época mais controlada, mais vigiada, mais restritiva, em que é bom policiar o que se diz e o que se faz porque qualquer deslize pode dar encrenca. Acosso estudantil sai nos jornais, entra na boca do povo e se torna preocupação de saúde pública.

Nessa linha, o governo do Mato Grosso do Sul acaba de lançar programa de combate à evasão escolar. Uma das medidas chama a atenção: facilitação para que esses jovens tiranizados tenham acesso à cirurgia reparadora. Os conceptores do plano partem do pressuposto que, quando um aluno é maltratado em razão de sua aparência física, a solução é… modificar a aparência física.

Sem querer ser alarmista, tenho de alertar para a chegada ao mundo estudantil do eugenismo que ameaça a sociedade brasileira.

A cirurgia plástica desenvolveu-se a partir dos anos 1920. Sua intenção era reparadora, para acudir soldados que voltavam da guerra com o rosto massacrado e disforme. Atualmente, esse ramo cirúrgico vem se dedicando a corrigir pequenos defeitos da natureza – ou pequenas imperfeições que o paciente acredita ter no corpo.

Vai daí, o império da beleza física é imposto por tique-toques e outras redes. Muitas jovens se fazem preencher os lábios, por exemplo, ainda que uma boca carnuda entre em contradição com um rosto de traços finos. O resultado é por vezes desastroso. Mas assim é. Estamos apostando numa cartilha eugenista, em busca de uma sociedade em que todos se parecem. São reflexos desse movimento que parecem estar chegando à escola.

Segundo o governo do MS, trata-se de um “programa de combate à evasão escolar”. Por baixo do nome ingênuo e suave, enxergo problemas graves. Eis alguns.

O primeiro, como já disse, é a aceitação da tendência eugenista, que nivela a sociedade com base num ser humano idealizado, modelo do qual ninguém tem direito de se afastar. Teorias eugenistas, que obrigam todos os cidadãos a se formatarem no mesmo molde, são vistas com simpatia pelos extremos do espectro político (direita ou esquerda). Tanto o regime nazista na Alemanha quanto o comunista na URSS adotaram essa cartilha de formatação em massa, e correram em direção ao desastre. Sabemos como terminou.

O segundo problema do programa do MS é de ordem ética. Ao aceitar que cabe ao ofendido tomar a iniciativa de disfarçar a própria aparência para escapar à violência do ofensor, o projeto desafia a ordem moral vigente em nossa sociedade. O senso comum diz que, em caso de maus-tratos, cabe ao tirano desculpar-se e emendar-se. Ao ceder às exigências do ofensor, o programa dá razão ao valentão, invertendo assim os valores.

Uma última observação tem a ver com igualdade de tratamento, tema muito debatido atualmente. Em princípio, todos os alunos humilhados têm direito a igualdade de soluções. Se o poder público oferece solução a um caso particular, deveria estar em condições de oferecer solução a todos os casos de maus-tratos no âmbito escolar.

O programa mato-grossense propõe solução cirúrgica para orelhas de abano, nariz fora dos padrões, mamas superdesenvolvidas, estrabismo, obesidade. Só que… esses “defeitos” não são os únicos que resultam em tirania contra um aluno. Há casos em que nenhuma cirurgia é útil.

Como é que fica a humilhação do “foguinho” (que tem cabelo vermelho)? E a do “dentuço” (prognata superior)? E a do “chove dentro” (prognata inferior)? E a do “sol de peneira” (sardento)? E a do “perna fina”? E a do “bochecha”? E a do “tição” (preto)? E a do “branquela” (albino)? E a do “tampinha” (baixinho)? E a do “arroz de pauzinho” (oriental)? E a do “bicha” (n° de chamada 24)? Enquanto os coleguinhas “se livram” do acosso, estes vão ficar a ver navios? Onde está a igualdade de tratamento?

Pois é, acredito que esse programa de “correção” da aparência de crianças para aproximá-las de um modelo idealizado é um barco cheio de furos. Dá impressão de solidez, mas não chegará a porto nenhum.

Tem mais. Imperfeição física não é o fator essencial para o aparecimento do “bullying” direcionado a um infeliz aluno. O Zé Grandão da classe pode até ter nariz torto, orelha de abano, verruga na testa, olho caído, sarda e outros “defeitos”, mas jamais será vítima de abuso nenhum. Simplesmente porque ninguém ousa afrontá-lo, com medo do físico imponente.

Por seu lado, um aluno franzino e tímido, ainda que não apresente imperfeição visível, é forte candidato a tornar-se o cristo da turma.

Acredito que a atenuação do problema só virá com a educação da criançada. Se não tiverem recebido boa educação em casa – o que parece ser o caso de muita gente hoje em dia –, a escola terá de se encarregar. Só o ensino poderá informar aos jovens o que pode e o que não pode. Civilidade se aprende.

Me parece que o trabalho do mestre não é emitir guia para aluno obeso fazer lipo pelo SUS. Sua tarefa é, antes, dar ao gordinho orientação básica sobre o valor nutritivo dos alimentos. Melhor será encaminhá-lo ao dietetista do que ao bisturi.

Observação
O distinto leitor talvez tenha notado que utilizei mais de uma palavra para designar “bullying” escolar. Nossa língua, que é rica, oferece diferentes possibilidades para representar a mesma realidade: acosso, intimidação, abuso, tiranização, humilhação. Podem ainda servir: prepotência e maus-tratos.

Se o telefone bater

José Horta Manzano

Pra enxergar melhor, amplie a imagem estampada acima. O instantâneo foi batido em maio de 2020, no auge da primeira onda de covid.

O então presidente aparece no centro da imagem. Ao redor, um batalhão de seguranças, reconhecíveis pelos óculos escuros estilo anos 60 e pelo fone de ouvido.

Um personagem de óculos pendurados na camiseta carrega uma pasta preta. Dado que não parecem dirigir-se a nenhuma reunião de trabalho, pode-se supor que a pasta pertença ao presidente. Talvez contenha alguma importante minuta, se é que me faço entender.

O presidente pela mão leva a criança, sua filha.

Na extrema esquerda, aparece o ajudante de ordens, o então major Mauro Cid, hoje na prisão. Marquei com flecha os três telefones celulares que se adivinham na imagem: um na mão direita do assessor, mais um em cada bolso da calça dele.

O presidente não parece levar nenhum telefone, fato inabitual em pessoa sabidamente ligada a esse meio de comunicação.

Esse fato invulgar nos leva a desconfiar que um dos aparelhos que o ajudante de ordens leva no bolso pertença ao chefe. Talvez até os dois celulares.

É possível que essa promiscuidade telefônica tenha despertado a curiosidade da PF que, acertadamente, confiscou os aparelhos de cada um dos dois, chefe e assessor, ao mesmo tempo.

Parece que o aparelho de Bolsonaro estava mudo, tudo apagado e nada mais. Mas o(s) do faz-tudo do chefe estava(m) recheado(s) de informações importantes, que vão pingando aos poucos.

Espremendo bem, inda vai acabar saindo o rascunho da minuta do golpe.

Busca e apreensão

José Horta Manzano

Muito esquisita a “breaking news” desta manhã de quarta-feira. Numa operação de busca e apreensão levada a cabo logo cedinho pela Polícia Federal, o braço direito do então presidente Bolsonaro, um tenente-coronel do Exército, foi preso preventivamente (por tempo indefinido). Outros personagens foram também levados de camburão. A residência de Bolsonaro, num condomínio de luxo de Brasília, sofreu perquisição que terminou com seu telefone celular sendo apreendido.

Oficialmente, a operação foi lançada para desmascarar e botar atrás das grades uma quadrilha de falsificadores de documentos públicos. Mais de quinze pessoas são acusadas de envolvimento na produção de falsos atestados de vacinação contra a covid. Parte da quadrilha estaria homiziada no próprio Palácio do Planalto na época em que Seu Jair era o dono do pedaço.

Tudo isso me parece um tanto estranho. Com tantas acusações de crime grave pesando sobre os ombros do ex-presidente, a PF preferiu deflagrar essa operação para investigar um crime francamente menor. Fraude em documento público pode dar até 4 anos de cana, mas cumplicidade na morte de centenas de milhares de cidadãos no auge da pandemia pode resultar em pena bem mais pesada.

Por que isso agora? A oposição dirá que é perseguição contra o cândido ex-presidente, alma boa e pura incapaz de fazer mal a um pernilongo. É verdade que o capitão deixou atrás de si um rastro de inimigos, de gente a quem insultou gratuitamente e que hoje não o olham com simpatia. Mas deixou também um rastro de atos e gestos indecorosos e criminosos que ainda hão de persegui-lo por anos.


Num primeiro momento, me ocorrem algumas reflexões.

Quando a pandemia se alastrou e pegou feio, o que todos queriam era esticar o bracinho pra receber a vacina salvadora – incluindo extremistas zumbificados. Até um general palaciano foi acusado de se ter vacinado escondido. Portanto, não faz sentido uma quadrilha se formar dentro do Planalto para emitir certificados de vacinação falsos.

Certificados para quem? Quando Bolsonaro esteve em Nova York para discursar na ONU, fez questão de apregoar seu status de não vacinado. Todos se lembram daquela cena surreal em que o chefe do Estado brasileiro e seu entourage aparecem mordiscando um triângulo de pizza gordurosa, com as mãos, todos de pé numa calçada nova-iorquina. Tanto ele não tinha sido vacinado, que não pôde entrar no restaurante. E se orgulhou disso. Ele, portanto, não precisava de certificado falso.

Por que, então, a operação de hoje?

1) A primeira possibilidade seria investigar a fundo e demonstrar que, apesar de afirmar o contrário, Bolsonaro se vacinou, sim, contra a covid. Nesse caso, imagina-se que ele sairia desmoralizado desse episódio perante seus adeptos. Não me parece que provar que ele se vacinou fizesse algum efeito. Os que não apreciam o capitão, não estão nem aí para seu estatuto vacinal; já seus zumbificados adeptos, que vivem num universo paralelo, se agarrariam a um pretexto qualquer para não acreditar na história.

2) Outra possibilidade poderia ser jogar holofotes sobre a estada de Bolsonaro nos EUA do fim de dezembro 2022 até fim de março 2023. Na ida, entrou no país em avião oficial, na qualidade de chefe de Estado estrangeiro, personagem de quem não se costuma pedir documento. No entanto, dois dias depois, ao fim de seu mandato, deixou de ser chefe de Estado e passou à condição de turista. Tendo assim perdido as prerrogativas, transformou-se em simples mortal, como qualquer um de nós. Foi nesse momento que o capitão entrou para a clandestinidade. A lei americana exige que todo visitante estrangeiro esteja vacinado. Bolsonaro não estava e nada fez para regularizar a situação.

Será que a PF está sugerindo às autoridades americanas que convoquem o capitão para esclarecer o caso? Se ele desdenhar do processo americano, acabará sendo julgado à revelia e poderá pegar 10 anos de cadeia entrar na lista vermelha da Interpol, o que o condenará a não mais sair do Brasil e a passar os próximos anos por aqui à espera do camburão. Será esse o raciocínio da PF?

3) Uma terceira possibilidade tem a ver com o telefone do ex-presidente, que foi apreendido. E se o objetivo maior de toda essa operação fosse simplesmente arrancar o celular das mãos de Seu Jair e mandá-lo para análise? Ele deve conter informações crocantes e apimentadas, daquelas que não saem no jornal. Enquanto estão todos discutindo se Bolsonaro se vacinou ou deixou de se vacinar, a PF está escrutando as entranhas do telefone ex-presidencial.

E como é que fica isso tudo? Veremos. O tempo dirá.

A gravata

José Horta Manzano

Madame Da Silva esteve na Europa para uma vilegiatura de 5 dias em Portugal, mais um dia de lambuja na Espanha. Enquanto o marido tratava com gente séria e soltava alguma bobagem (mas só de vez em quando), Madame não tinha muito que fazer.

Um dia, levantou da cama decidida. Convocou um batalhão de seguranças e dirigiu-se a uma franquia da rede Ermenegildo Zegna, aquela loja de adereços masculinos que marca presença nos bons centros comerciais (=shopping centers) ao redor do planeta.

Lá encantou-se por um modelito de gravata rajada azul e branco – uma graça! Não ficou claro se Madame perguntou o preço. Mandou embalar e voltou para o hotel com a compra debaixo do braço.

Jornalistas curiosos foram atrás de informações. E descobriram que o mimo adquirido por Madame custou a bagatela de 195 euros (cerca de R$ 1.100).

Ok, concordo que cada um gasta seu dinheiro como quer. Se Madame Da Silva não se importa de investir um patrimônio numa gravatinha de grife, o problema devia ser dela, não nosso.

Só que tem uma coisa. Se o distinto leitor entrar numa boutique Zegna e comprar uma gravata de mais de mil reais, a notícia não vai sair nos jornais. Agora, quando se é a primeira-dama do Brasil, é diferente. Todo gesto, toda palavra, todo ato é escrutado, analisado, pesado, medido e… publicado. Assim como o presidente deveria tomar mais cuidado com suas declarações, a primeira-dama deveria prestar mais atenção a certos gastos ostentatórios.

Em primeiro lugar, há o perigo de muita gente pensar que a compra foi debitada no cartão corporativo, ou seja, que o gasto foi pra conta do povão. Essa ideia é evidentemente falsa. Mas pega mal.

Em seguida, tem o alcance do gesto. Madame Da Silva, que é socióloga, está sem dúvida sabendo que 33 milhões de conterrâneos passam fome. Esse contingente foi confirmado por seu marido em fala recente. Convenhamos: quem compartilha com o marido o topo da escala de poder não deveria dar demonstração pública de esbanjar dinheiro num país em que um em cada sete habitantes sofre cronicamente o flagelo da fome. Pega muito mal.

De uma próxima vez, não custa encarregar um assessor de ir até a loja e trazer a caixinha. A hipocrisia será a mesma, mas ninguém vai ficar sabendo.

Para um 22 de abril

Descobrimento do Brasil
by Oscar Pereira da Silva (1867-1939)

José Horta Manzano

Você sabia?

 


Insegurança é componente importante do espírito brasileiro.

Vivemos num persistente estado de insegurança de raiz.


 

A desonestidade e a criminalidade onipresentes geram insegurança e transformam o honesto cidadão em refém da violência de criminosos.

Na política, fica a impressão de que os do andar de cima, embora podres, conseguem sempre escapar dos raios da justiça.

Para os do andar de baixo, a insegurança jurídica é proverbial. Vai-se dormir à noite sem ter certeza de que, no dia seguinte, leis e regulamentos ainda serão os mesmos.

Essas incertezas não vêm de hoje. Marcam a história do país desde o dia em que foi lavrada sua “certidão de nascimento”. Falo da carta de Pero Vaz de Caminha, bordada com arte e carinho pelo escriba da esquadra de Cabral.

A missiva é cristalina ao datar a descoberta – ou o achamento, como prefiram – da terra tropical. Diz ela: “nos 21 dias de abril (…) topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho”. No dia seguinte, foi avistado um «monte mui alto e redondo», além de serras e de terra chã com grandes arvoredos. Pronto, o Brasil estava achado. E era 22 de abril.

Acontece que essa carta, devidamente guardada nalgum escaninho da burocracia lusa, sumiu durante 300 anos e acabou esquecida. Só viria a ressurgir no século XIX. Enquanto isso, o Brasil já se havia declarado independente da metrópole. Logo após a independência, na complexa organização do novo país, foi buscada uma data de descobrimento. Na falta de informação segura, foi designado o dia 3 de maio. E por quê?

A insegurança gerada pela ausência de provas documentais fez supor que o primeiro nome dado à terra – Vera Cruz – viesse do dia que a Igreja consagra à celebração da verdadeira cruz, justamente o 3 de maio.

Em 1889, ao fixar os feriados oficiais da nova república, o governo provisório manteve a comemoração da chegada dos primeiros europeus em 3 de maio. Por essa altura, a carta de Pero Vaz já havia reaparecido – portanto, já se sabia que a verdadeira data não era aquela. Assim mesmo, por comodidade, deu-se preferência a manter a celebração no dia de Vera Cruz. Como o dia de Tiradentes, 21 de abril, já era dia de festa, não convinha fixar dois feriados seguidos.

Não foi senão durante a ditadura de Getúlio Vargas que a História se rendeu oficialmente à evidência: estava-se comemorando no dia errado. Resolveram corrigir. De uma tacada, vieram duas modificações: o descobrimento passou a ser celebrado dia 22 de abril e, ao mesmo tempo, deixou de ser dia feriado.

Quando eu era criança, meus pais me diziam que o Brasil tinha sido descoberto em 3 de maio e eu não entendia por que, na escola, me ensinavam data diferente. A insegurança sobre as datas só se desfez muitos anos depois, quando eu descobri que meus pais estavam apenas me transmitindo o que haviam aprendido nos tempos de grupo escolar.

O distinto leitor há de convir que, numa terra que já começou com provas documentais desaparecendo de circulação, não espanta que a insegurança continue sobressaindo. Fazer sumir provas tornou-se esporte nacional. Antes, eram documentos que desapareciam; hoje em dia, são as fitas das câmeras do Palácio do Planalto.

Francamente, continuamos a viver na terra do “eu não sabia de nada”.

O tapete vermelho

José Horta Manzano

O sistema de governo chinês – fechado, autoritário, repressivo, implacável – há de ser oprimente para os cidadãos do país, tanto para gente comum quanto para os graduados do regime, que temem a todo momento cair em desgraça. Para o brasileiro, é inimaginável viver sob um regime assim. Nem nos tempos mais duros de nossa ditadura, o rolo compressor do governo militar chegou a esmagar a população com o rigor e o método com que a ditadura do partido único faz com os chineses.

Assim mesmo, toda moeda tem duas faces. Apesar do hermetismo das decisões da cúpula dirigente chinesa, o planejamento do futuro do país continua em marcha. Com dança de cadeiras ou sem elas, os dirigentes seguem rigorosamente a política de Estado traçada para as próximas décadas. Estabelecido a longo prazo e cumprido com precisão metódica, é esse planejamento que permitiu à China, nos últimos 30 anos, galgar posições em numerosas áreas.

Lula está na China, acompanhado por caudalosa comitiva (que lotou dois Airbus). À sua chegada, o tapete vermelho não foi estendido só na pista: subiu as escadas até a porta do Aerolula. Esse afago é reservado aos grandes visitantes.

Analistas estrangeiros enxergam a visita de Lula como uma jogada de mestre no tabuleiro mundial, com o objetivo de valorizar o Brasil na disputa entre a China e os EUA. Pode até ser. Primeiro, precisa ver se Lula entendeu isso ou se está só sendo traído por seu antiamericanismo.

Estamos diante de um caso curioso. Não acredito que nosso presidente morra de amores por Pequim. Durante seus dois primeiros mandatos, Lula mostrou que, em matéria de política internacional, seu interesse se concentra na América Latina. Fora das Américas, o mundo lhe parece longínquo e de parco interesse. É minha análise pessoal.

A birra do ex-metalúrgico é com os Estados Unidos. Desde a juventude, Lula encasquetou que sua missão era tentar se opor à potência e à interferência dos americanos (de olhos azuis, lembra?), tanto em nossas vizinhanças quanto no resto do planeta. O mundo mudou muito nesse meio século, mas Lula persiste.

Presidente de novo, Lula retomou a cartilha antiga. Começou afirmando que, na invasão da Ucrânia pelos russos, os dois lados eram culpados. Curiosa acusação para alguém que pretende ser o mediador do conflito. Na pressa de mostrar a língua aos EUA, acabou desagradando a russos e ucranianos.

Pequim dispõe de bons analistas de geopolítica. A cúpula do país entendeu que nosso país é uma peça importante no xadrez mundial, e que convém afagar e conquistar como aliado. Por seu lado, Luiz Inácio também entendeu que a ascensão da China no panorama internacional desbancou qualquer pretendente ao pódio. Nem Rússia, nem Índia, nem Europa. Os dois grandes são agora os Estados Unidos e a China.

Para os dirigentes chineses, conquistar o Brasil não é tarefa inatingível. Um tapete vermelho bem fofo e uma recepção sorridente e calorosa fazem milagres – não precisa nem colar de diamantes. Quanto a Lula, entendeu que Pequim será excelente aliado em sua cruzada antiamericanista.

Temos, assim, o casamento da fome com a vontade de comer. Eu te ajudo, você me ajuda. Não é uma beleza, este mundo?

Convencer as pessoas

José Horta Manzano

Em nosso sistema político, o presidente da República encarna simbolicamente o povo brasileiro. Quando ele viaja de visita ao presidente chinês, por exemplo, é como se todos os brasileiros estivessem homenageando Xi Jinping.

Por ser incapaz de entender essa dimensão do poder, o capitão passou anos ofendendo duro dirigentes estrangeiros. Cada invectiva que lançou contra a França, a China e os outros foi captada como se o autor do insulto fosse o povo brasileiro. Daí a repercussão planetária.

Nesse aspecto, Lula é mais comedido. Nestes primeiros 3 meses de governo, não fez declaração pública insultante. Houve um dia em que se soltou numa entrevista entre camaradas. Mostrou rancor contra o ex-juiz Moro. Por causa disso, apanhou tanto que deve ter se emendado. Espera-se que continue bem comportado.

Além de procurar manter a decência esperada de um presidente, Lula retomou uma prática desdenhada por seu predecessor. Inteirado das catastróficas inundações no Maranhão, exerceu seu dever de solidariedade e sobrevoou a área. Foi como se o Brasil inteiro tivesse acorrido para demonstrar compaixão.

Só que… ninguém é perfeito. O Lula operário ficou no passado, não atravessou o milênio. Luiz Inácio, que nasceu e cresceu paupérrimo, está há mais de duas décadas acostumado ao bem-bom. Tirando os meses que passou em cela de luxo em Curitiba, tem levado vida de rei, morando em palácio e cercado de serviçais. A persistência dessa existência afastada do povo tem seu lado perverso: vai desconectando o indivíduo da realidade.


“Precisamos convencer as pessoas que não é possível construir uma casa num lugar que a gente sabe que vai dar enchente”


Essa foi a reflexão de nosso presidente ao sobrevoar a zona alagada. Em sua lógica, ‘alguém’ tem de aconselhar cada sinistrado a abandonar sua casa e se virar para construir em outro local. O Lula ativista de outrora, aquele que puxava greve e arregaçava as mangas por seus companheiros parece morto e enterrado. Desconectou.

O Maranhão é um estado de poucos recursos. Perder a casa (ou estar a ponto de perdê-la) é um drama terrível em qualquer lugar. No Maranhão, então, pode ser ainda mais catastrófico. O raciocínio de Lula me fez lembrar a frase atribuída a Marie-Antoinette, rainha da França, quando viu uma multidão pedindo pão. “Não têm pão? Pois que comam brioches!”. Talvez por não ter entendido o mundo que a cercava, a coitada acabou guilhotinada.

Por certo, Lula não arrisca o mesmo destino. Mas parece não mais entender o mundo dos mais humildes, justamente aqueles que garantiram sua vitória. “Essas pessoas” não precisam “ser convencidas” de que vivem num lugar perigoso, cercado de ravinas (voçorocas) e à mercê do próximo alagamento. Convencidas, já estão. E, se pudessem, já teriam ido pra outro lugar.

É que querer nem sempre é poder. O que se espera do presidente do Brasil, homem de poder, é que apresente um esboço de solução ao problema. As pirambeiras que cercam certas localidades são impressionantes. Há gente morando à beira do precipício – ao pé da letra.

Esses cidadãos não têm de ser convencidos, pois conhecem o perigo. Aquelas casas têm de ser interditadas e os habitantes provisoriamente realojados em local seguro. Em seguida, o poder público terá de indenizá-los e encontrar uma solução para construir casas novas em lugar “que a gente sabe que não vai dar enchente”. Bem longe dos despenhadeiros.

“Convencer as pessoas” é muito bom. Dar a mão a quem precisa é melhor.

Clube da Paz

José Horta Manzano

Faz séculos que a Rússia é uma potência imperial. Ao longo do tempo, agiu como a coroa portuguesa em terras brasileiras: foi, aos poucos, se apossando de regiões extensas e pouco povoadas. O Brasil se expandiu para o Oeste, especialmente na Amazônia; a Rússia se espichou para o Leste, pela Sibéria, até chegar às vizinhanças do Japão e da Coreia.

O desmanche da União Soviética, no início dos anos 1990, permitiu que uma dezena de países vassalos encontrassem o caminho da independência. Esse movimento pôs fim à guerra fria e o mundo imaginou que o risco de conflito mundial tinha desaparecido para sempre.

No entanto, a Rússia – país que nunca conheceu regime democrático – assistiu à ascensão de novo ditador, um antigo pequeno funcionário, de métodos mafiosos mas imensamente ambicioso. Vladímir Putin, é dele que estamos falando. Nos primeiros anos em que comandou o país, o mundo não se deu conta de que ele tinha o objetivo de recuperar territórios perdidos e restabelecer o esplendor da Rússia imperial.

Foi só em 2014, quando invadiu e se apossou da região ucraniana chamada Crimeia, que o planeta de repente se deu conta de que o risco de conflito mundial voltava a ser real. A partir desse momento, a Rússia foi objeto de sanções leves, que não entravaram o funcionamento do país.

Mas o que Putin queria mesmo era a Ucrânia inteira. Declarou que a Ucrânia não existia, que era apenas uma criação do espírito, um país inventado que não passava de um pedaço da própria Rússia e que era governado por um bando de nazistas degenerados. Foi com esse estado de espírito que invadiu o país a fim de anexá-lo.

Agora vamos refletir juntos. Vamos lembrar que o Uruguai já foi uma província do Brasil, no começo do século 19, logo depois do Grito do Ipiranga. Foi só durante três anos, depois nosso vizinho ficou independente. Agora imaginemos que um ditador aboletado em Brasília declarasse que o Uruguai é uma ficção, que não existe, que aquele território é parte do Brasil. E que mandasse soldados, tanques e metralhadoras para tomar o país à força. Dá pra imaginar? Pois foi o que aconteceu com a infeliz Ucrânia.

Da noite para o dia, começou uma chuva de bombas e mísseis aniquilando prédios de habitação, pontes, aeroportos, hospitais, creches, escolas. Sem falar dos campos de lavoura, contaminados de minas e bombas não explodidas que ainda vão matar gente daqui a cem anos. Como reagiria o mundo?

Se o Brasil invadisse o Uruguai, o mundo civilizado certamente se posicionaria em defesa do país soberano invadido. Pesadas sanções econômicas seriam aplicadas com o objetivo de prejudicar o funcionamento de nosso país.

É o que aconteceu na sequência da invasão russa. O chamado “Ocidente” (Europa, EUA, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Japão) uniu esforços para amparar o país invadido. Por motivos que dizem respeito a cada um deles, outros países preferiram abster-se, ou seja, ficaram em cima do muro. Esses motivos podem ser de ordem comercial ou política. Ou ambos.

O Brasil está encarapitado no muro porque precisa de fertilizantes russos e também porque seu presidente tem a ilusão de resolver o problema no tapetão e candidatar-se ao Nobel da Paz. Quanto à China, está aproveitando a ocasião para atrair a empobrecida Rússia para sua órbita e transformá-la em país quase-súdito.

Um Lula assoberbado com os conchavos de Brasília delegou a seu assessor Celso Amorim a missão de levar adiante a ideia do Plano de Paz para acabar com a guerra. Amorim voltou estes dias de uma viagem a Moscou, onde foi recebido por Putin em pessoa, com direito a sentar-se àquela folclórica mesa de 5 metros. Em grandes linhas, apresentou sua ideia ao ditador russo, que se mostrou interessado. Ficaram de se reunir de novo.

Mas um conflito tem dois lados. Cumprida a missão do lado russo, Amorim dirigiu-se a Kiev para falar com a outra parte. Parece lógico, não é? Pois não é verdade, não foi o que aconteceu. Apesar de o presidente ucraniano já ter convidado Lula, ao vivo, para visitar seu país, Amorim se fez de desentendido e ignorou a Ucrânia.

Agora, vamos voltar a nosso terrível exemplo. Suponhamos que o Brasil tenha invadido o Uruguai e continue a martirizar seu povo. Imaginemos também um mensageiro estrangeiro que, a pretexto de pregar a paz entre os que estão em guerra, visitasse somente Brasília, deixando Montevidéu de lado. Falar com uma parte e ignorar a outra. Pode?

Pois foi o que o emissário de Lula fez. Conversou com o agressor e não quis se encontrar com o agredido. É humilhante para a própria Ucrânia, que se sente tutelada por potências estrangeiras, que discutem seu destino sem consultá-la. Curiosa concepção de mediação, essa do governo brasileiro, não?

Que Lula goste ou deixe de gostar, não há muito que conversar para acabar com essa guerra. A condição indispensável para permitir qualquer início de negociação é que a Rússia se retire do território da Ucrânia. Os invadidos não vão sossegar enquanto não expulsarem o derradeiro soldado russo. Afinal, estão defendendo a própria pátria. Antes disso, não faz sentido negociar. Negociar o quê? A entrega ao inimigo de parte do território nacional?

Lula não consegue (ou não quer) entender isso. Talvez esteja sendo empurrado por seu antiamericanismo primário. Talvez ignore a história recente dos países da Europa Oriental. Ou talvez esteja realmente sonhando com o Nobel.

Lula, o caminho não é esse! Chegou a hora de uma correção de rota.

Adeus, mordomias!

Em Orlando, funcionária do aeroporto entrega cartão de embarque a Bolsonaro dando-lhe as costas.

José Horta Manzano

Desde que tomou posse do cargo, em 2019, Bolsonaro se habituou a viver cercado de reverências e mordomias. Foram quatro anos durante os quais não teve de se preocupar em abrir portas, fazer compras, arrumar a cama, mandar um eletrodoméstico para o conserto, conduzir a filha até a escola, levar o carro para a revisão, pagar a conta do telefone, fazer fila no banco, comprar aspirina na farmácia, apertar o botão do elevador. Até o pastel que comia no boteco – sempre em frente às câmeras, naturalmente – era pago por um serviçal.

Derrotado, o ex-presidente ainda conseguiu dar uma espichadinha no mundo da fantasia. Dois dias antes de entregar o cargo, escapuliu do Brasil em avião oficial e estacionou três meses pras bandas da Disneylândia. Lá continuou cercado de serviçais e de apoiadores, concedeu autógrafos, posou para selfies, comeu hambúrguer e pizza (longe das câmeras) e visivelmente engordou algumas libras.

Mas chegou a hora do retorno. Prolongar a estada equivalia a pavimentar a estrada para outros potenciais candidatos à Presidência em 2026. Medroso como é, o capitão há de ter engolido meio vidro de remédio tranquilizante pra poder embarcar de volta.

Já no aeroporto de Orlando, levou seu primeiro susto de ex-presidente. Como qualquer mortal, teve de fazer fila e passar o controle de bilhetes. Chegando ao guichê, Bolsonaro, que não carrega a própria passagem mas deixa a tarefa para um assessor, parou e ficou esperando que lhe dessem autorização de seguir adiante.

Nesse instante, o assessor carregador de bilhete espicha o braço e entrega a tarjeta informando que é do senhor que está de pé. A mocinha do embarque cata o papel, confere, e devolve o cartão de embarque ao ex-presidente. Faz isso com um gesto displicente, dando as costas a Bolsonaro e espichando o braço para trás enquanto conversa com outra pessoa. Para o ex-presidente, há de ter sido um susto!

Logo em seguida, ele teve de embarcar num voo comercial (coisa que não fazia havia anos), espremido como qualquer cidadão comum. Ouviu aplausos, mas também teve de aguentar gritos hostis. Parece que não dormiu durante a viagem. Ao desembarcar, não viu multidão nenhuma. Foi levado em viatura da PF até a sede de seu partido. Na porta, esperando por ele, havia meia dúzia de gatos pingados.

À noite, depois que uma dia calamitoso o fez cair na real, acho que ele teve de tomar remédio pra dormir.

Ai, ai, ai. A dor de ser ex é a dor de quem era mas deixou de ser. E com pouca esperança de voltar a ser.

10h10

Relógios novos – Todos marcam 10h10 (clique para ver)

José Horta Manzano

Talvez o distinto leitor e a graciosa leitora já tenham reparado numa característica dos relógios novos expostos à venda: todos marcam 10h10. Se não prestou atenção, pode botar reparo. É curioso, não? E qual seria a razão dessa uniformidade? Teorias, há várias.

A mais sofisticada conta a história da introdução da hora de referência universal (GMT). Foi um acordo multinacional assinado ao fim da Conferência Internacional de Washington de 1884. Vinte e cinco países debateram durante quase um ano. A adoção não foi  por unanimidade: dos 25 países participantes, só 22 aprovaram que o meridiano de Greenwich fosse oficializado como marco zero das longitudes. Brasil e França se abstiveram, enquanto a República Dominicana votou contra. Mas a maioria venceu e a introdução da hora universal foi oficializada. O documento final foi assinado exatamente quando os relógios marcavam 10h10. Por esta hipótese, a hora mostrada até hoje pelos relógios novos seria uma homenagem ao Acordo de Washington.

Uma segunda explicação, embora também histórica, é um bocado tétrica. Relata que o infeliz Luís 16, rei da França destronado pela Revolução Francesa, subiu ao patíbulo exatamente às 10h10 para ser guilhotinado. O relato é de arrepiar. Muitos acreditam que, até hoje, os relógios novos marcam a hora desse regicídio.

Uma terceira versão, não de todo fantasiosa, fala da mensagem positiva transmitida de modo subliminar pelos ponteiros apontando pra cima, formando o V da vitória. De fato, um par de ponteiros marcando 8h20 (e apontando para baixo) evocaria tristeza e desencorajaria clientes potenciais.

Há uma última explicação, que aliás me parece lógica e credível. A marca comercial do relógio costuma aparecer no alto do mostrador, logo abaixo do número 12. Com o relógio marcando 10h10, o nome comercial cabe entre os ponteiros e fica visível. E ainda homenageia o Acordo de Washington e o rei decapitado. De quebra, o V transmite mensagem positiva. Que mais se pode desejar?

O Estadão continua a vasculhar os presentes dados a Bolsonaro nos anos em que ele foi presidente. Descobriram mais um estojo da Maison Chopard (Genebra) contendo: uma caneta, um par de abotoaduras, um anel, um masbaha (rosário muçulmano) e… um relógio Rolex. Todas as peças são de ouro branco e cravejadas de diamantes. Um mimo estimado, por alto, em meio milhão de reais, estimação que me parece até baixa levando em conta o prestígio do joalheiro genebrino. Pode valer bem mais que isso.

O conjunto, cuja foto está aqui abaixo, foi oferecido pelo príncipe da Arábia Saudita diretamente a Bolsonaro. Entregue em mãos. Sem cerimônia, o então presidente entendeu que o presente era objeto de uso pessoal. Não foi esclarecido qual seria a contraparte de tamanha “generosidade” dos príncipes árabes. Um dia talvez fiquemos sabendo.

Uma olhada ao relógio informa que ele não marca 10h10. Sabendo que todos os relógios novos (mormente os de luxo) mostram a mesma hora, conclui-se que Bolsonaro, o feliz destinatário do regalo, já tinha usado a joia antes mesmo de confiá-la aos almoxarifes do Planalto para ser fotografada, registrada e encaminhada a seu acervo pessoal.

Fica agora a curiosidade. Em que ocasião o capitão teria dado corda no relógio, acertado a hora e afivelado a pulseira?

Dificilmente teria sido no dia em que comeu farofa com as mãos – o relógio teria aparecido na foto.

Tampouco foi no dia em que convocou o corpo diplomático para dar a Suas Excelências a crucial informação de que as eleições brasileiras eram fraudadas.

Uma possibilidade é que ele tenha usado o Rolex numa motociata.

Ou talvez, hipótese plausível, tenha simplesmente dormido com ele e sonhado que era imperador.

A aposta errada

Folha de SP, 28 março 2023

José Horta Manzano

Alguns integrantes do governo Lula 3 não têm medo de escorregar em público. São daquele tipo de gente que, ao ver uma casca de banana do outro lado da rua, não resiste à tentação: atravessa só pra pisar na casca.

Como é natural, o mais ávido é o próprio chefe, mas ministros não ficam muito atrás. Não sei se se trata de cacoete indesejado que nos vem dos quatro anos de Bolsonaro, mas o fato é que Lula se tem mostrado à vontade pra soltar palavrões em entrevista e pra acusar Moro de malfeitos imaginários. Outro dia, o ministro das Comunicações também se sentiu livre para agredir verbalmente uma jornalista, em entrevista ao vivo pela CNN.

Toda essa energia jogada fora pela janela seria mais bem empregada se canalizada para projetar o Brasil das próximas décadas. Goste-se ou não, o futuro chegará. Visto que o tempo do terraplanismo e da negação acabou, é hora de largar mão de negar a realidade.

Os combustíveis fósseis estão sendo banidos por toda parte. Inúmeras cidades europeias já anunciaram que, já em 2030, veículos com motor térmico serão proibidos de circular. Outras cidades fixaram data ainda mais apertada, como 2025 por exemplo. Poluente e vilão climático, o combustível fóssil está com os dias contados.

Investir para alimentar essa tecnologia é dar murro em ponta de faca. Cada centavo gasto em exploração de petróleo em território brasileiro será um centavo a menos para alavancar o País e trazê-lo ao mundo atual. Ainda que o governo Lula acredite ter mãos de aço, não tem. De tanto dar murros na faca, vai acabar estropiando a mão. Investir em prospecção de petróleo, nestas alturas, é um contrassenso.

Nosso país é ensolarado e ventoso. Temos à disposição, de graça, a matéria prima principal da produção de energia limpa: sol e vento. No mundo, usinas eólicas e parques fotovoltaicos se multiplicam. Na Europa, a invasão da Ucrânia pela Rússia veio acelerar o processo. Na Suíça, por exemplo, tornou-se obrigatório cobrir de placas fotovoltaicas o telhado de toda construção nova.

O que é que o governo Lula pretende? Quer que o Brasil faça concorrência com a Venezuela em matéria de petróleo? Talvez queira também que nosso país siga os passos de Caracas em matéria de decomposição política?

Que deixem o petróleo tranquilo. Um dia, ele pode até vir a ser precioso para aplicações novas, que hoje nem conseguimos imaginar. As futuras gerações agradecerão por não termos queimado essa preciosidade que a natureza levou milhões de anos pra fabricar.

A armação do Moro

NaniHumor.com

José Horta Manzano

Sabe aquela do tiro que sai pela culatra? Vamos aos fatos.

Houve um momento, faz poucos anos, em que o juiz Sergio Moro era reverenciado por boa parte da população. Tirando petistas de raiz, descontentes com as investigações que mandavam companheiros para a Papuda, os brasileiros estavam animados com a Operação Lava a Jato. Muita gente chegou a acreditar que a “limpa” ia erradicar a corrupção política no país. Moro estava prestes a entrar para o panteão nacional.

Deslumbrado com seu momento de ator, o juiz abandonou a toga e colou em Bolsonaro. Verdade seja dita, a vitória do capitão em 2018 se deve em parte à imagem do Xerife de Curitiba. Muita gente acreditou que Bolsonaro tivesse realmente intenção de enterrar a corrupção. Que nada, enterrou mesmo foi a Lava a Jato.

Escanteado e desprestigiado, o ex-juiz saiu atirando e renunciou à companhia do capitão. Tornou-se ex-ministro. Sua travessia do deserto levou alguns anos. Sem muita esperança, candidatou-se ao Senado em 2022. Foi eleito. Mas o problema é que ele já estava numa espécie de limbo, brigado com Lula e com relação bamba com Bolsonaro.

Tomou posse de seu assento de senador. Não devia estar se sentindo confortável, dado que é hostilizado por lulistas e olhado com desconfiança por bolsonaristas. Estava destinado a passar os próximos anos atolado, uma ex-estrela, um astro apagado.

Eis que de repente, a espuma fria do ódio aflorou à boca de nosso velho presidente. Lula ofereceu a Moro o posto de melhor inimigo. Esta semana, em duas ocasiões declarou em público toda a raiva que ele guarda do homem que o julgou. Como resultado, o antigo astro de Curitiba – que já foi a coqueluche de meio Brasil mas que agora percorria as penumbras do Senado feito alma penada – voltou à ribalta.

Se o Lula continuar a dirigir os holofotes para Sergio Moro (e tudo indica que continuará), dará ao ex-juiz a grande oportunidade de sua vida: eclipsar Bolsonaro e apresentar-se como candidato à Presidência em 2026.

O distinto leitor já imaginou: elegemos o Lula pra tirar Bolsonaro e agora perigamos ter de eleger Moro pra tirar o Lula? Que dança de cadeiras mais extravagante!

Vou ficar bem quando f**** com o Moro

José Horta Manzano

Logo de entrada, vamos relevar o palavreado de botequim (em linguagem moderna: passar pano). No passado, o Lula costumava escorregar de vez em quando, mas Bolsonaro elevou o calão à categoria de linguajar oficial do Planalto.

A pérola que o Estadão destaca na chamada reproduzida acima foi solta pelo presidente em extensa entrevista concedida à TV Brasil 247, rodada em pleno Palácio do Planalto.

As tristezas e as mágoas que persistem no coração do presidente são legítimas. O ressentimento que ele guarda contra o juiz que o condenou é compreensível. O Lula tem direito de desabafar com família e amigos. Já falar disso ao grande público é outra coisa.

Quando o presidente revela a todos os brasileiros a sede de vingança que lhe rói a alma, comete uma imprudência e dá um tiro no pé. Sem obter vantagem nenhuma.

A imprudência é a ameaça velada externada contra um hoje senador da República. Não sei que tipo de ameaça se esconde por trás do termo f****, mas coisa boa não é. Se amanhã algo feio acontecer com Moro, muitos olhares hão de se voltar contra Lula.

O tiro no pé é mais grave. Logo no discurso de vitória proferido na noite do segundo turno, Lula prometeu governar para todos os brasileiros (os que votaram nele e os demais) e que era hora de restabelecer a “paz entre os divergentes”. Agora, ao revelar publicamente que carrega um desejo de vingança tão entranhado, o presidente contradiz o lindo pronunciamento inicial e mostra que tudo não passava de palavras vazias escritas por algum discurseiro a soldo.

Ao fim e ao cabo, Lula:

  • mostra uma incômoda proximidade com o antigo presidente, aquela verborragia pesada que muitos gostariam de esquecer;
  • traz de volta o nós x eles, ao alargar o fosso entre dois campos políticos;
  • revela uma faceta inquietante de sua personalidade: tem espírito vingativo.

Além de tudo, Lula perde mais do que ganha. Se a eleição fosse hoje, uma fala desastrada como essa poderia fazê-lo perder sua estreita margem de votos e entregar a vitória ao adversário.

A eleição não é hoje, mas a impressão de ser um presidente rancoroso fica.

Os sucessores

José Horta Manzano

Essa foto sorridente foi tirada estes dias. Embora nenhum dos onze personagens apareça envolto na bandeira nacional, o fato de carregarem uma foto do antigo presidente – de faixa presidencial e tudo – deixa supor que sejam bolsonaristas. De alto coturno, sem dúvida, mas bolsonaristas.

Se não, vejamos. A ausência de diversidade do grupo é típica dos seguidores do capitão. É o retrato de um Brasil uniforme, que só existe nos sonhos deles, bem longe do Brasil real. Na foto, são onze homens e nenhuma mulher. São todos brancos sem mistura. Tirando um ou outro, estão todos na força da idade – nem muito jovens, nem muito velhos.

Estão todos bem alimentados, sem exagero. O infalível personagem que simboliza o atirador anabolizado, primitivo e supertatuado também aparece. O onipresente filho n° 03 também está lá. Dos onze participantes, cinco ostentam pelos faciais, que lhes acentuam a imagem de virilidade. O personagem anabolizado é justamente o mais barbudo, sabe-se lá por que motivo. Por alguma razão pessoal, os demais dispensam essa marca de masculinidade.

É curioso que a confraria tenha julgado necessário exibir uma foto do ex-presidente fugido. Mostrar retrato de pessoa viva é raro. É mais comum ver grupos ostentando a foto de um ente querido que já não está mais neste mundo. Quando eu era jovem, por exemplo, me lembro que nossas fotos de família eram tiradas contra uma parede onde estava pendurado um retrato do avô falecido décadas antes.

A inserção da foto do capitão é enigmática. Não ficou clara a mensagem que o grupo quis passar. Tudo depende da disposição de espírito dos confrades. Há diversas possibilidades.

Disposição de espírito branca
“Somos apóstolos do capitão e ele continua sendo nosso guia. Aqui está a prova.”

Disposição de espírito amarela
“Nosso mestre está no momento fora do ar, mas ele volta logo. Ele é este aqui, ó!”

Disposição de espírito laranja
“Bolsonaro iniciou a ascensão da extrema direita. Agora, com ele ou sem ele, vamos seguir em frente.”

Disposição de espírito vermelha
“OK, ele está politicamente morto e talvez não volte nunca mais. Mas não estamos tristes, não, pelo contrário. Repare no nosso sorriso!”

As joias contrabandeadas

José Horta Manzano

O caso das joias contrabandeadas (supostamente a mando do então presidente Bolsonaro) continua a provocar turbulência. A mídia, que se apossou do assunto, insiste em falar de um “presente para a então primeira-dama”. Está faltando ânimo pra largar as certezas do “ouvi dizer” e explorar o universo do “e se fosse outra coisa”.

Há fatos que saltam à vista.

Valor
Há controvérsia quanto ao valor. Sem ser diamantário, a simples observação dos mais de 50 diamantes grandes que formam colar e brincos, adicionados à baciada de pequenos brilhantes incrustados no relógio e no anel informa que o valor total – cuja avaliação por especialista ainda não foi divulgada – pode ser bem superior a 3 milhões de euros. Pode ser o dobro disso ou até mais, só a perícia dirá.

Origem
Há controvérsia quanto à origem do mimo. Um vídeozinho de 1 minuto demonstra. Logo no início da gravação, interrogado por jornalistas, Bolsonaro conta: “Eu estava no Brasil quando esse… esse… presente foi ofertado lá… [pausa] nos Emirados Árabes”. Ora, toda a mídia repete que o mimo foi generosidade dos donos da Arábia Saudita, mas Bolsonaro, o destinatário, confirma que as joias vieram dos Emirados Árabes. Confundir os dois é o mesmo que confundir Suíça com Suécia, ou Brasil com Argentina.

Desleixo
Há cheiro de queimado quando se vê que uma encomenda de milhões de euros foi transportada na mochila do assessor de um assessor. Pra completar o quadro, veio também uma estatueta equestre cinzelada à mão, arrancada de sua base e espatifada em quatro ou cinco pedaços. Vê-se que o centro das atenções não era a peça artística mas o conteúdo do estojo. Ou talvez quem se encarregou do carreto tinha sangue neandertal nas veias.

Desembaraço
O cheiro de queimado aumenta quando se sabe que foram feitas nada menos que oito tentativas (frustadas) de retirar, em nome do capitão, as peças da alfândega na lábia, no grito e na carteirada.

Esse amontoado de informações às vezes contraditórias me lembra a peça Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello. Os fatos estão aí, só falta a arte e a perspicácia de organizá-los numa sequência lógica. Proponho um esboço de organização.

Por alguma razão que o inquérito esclarecerá, o capitão pediu (ou o mandachuva árabe propôs) uma recompensa por algum favor recebido ou a receber. O valor estipulado foi de 3 milhões de dólares (ou 4 milhões, ou 5 milhões – montante a comprovar). Quando o emir (ou sultão ou rei) pediu o número da conta bancária de Bolsonaro a fim de fazer a transferência, este explicou que não era possível, visto que o mundo mudou e não se pode mais ter conta secreta no exterior com a mesma liberdade de antes. Conversa vai, conversa vem, ficou acertado que, em vez de dinheiro, o valor seria convertido em diamantes, mais cômodos de carregar.

Nessa altura, com medo de ser apanhado pela Receita na hora de passar a alfândega, o capitão sugeriu que as pedras não viessem soltas, mas montadas em colar, brincos, relógio. Em caso de má surpresa, ficaria mais fácil explicar que era um presente para a primeira-dama. Ao fim da aventura, era só desengastar as pedras e vendê-las aos poucos em Antuérpia ou no mercado nacional mesmo.

O rei (ou sultão ou emir) argumentou que não dispunha de diamantes nesse valor, nem soltos nem montados. Precisava primeiro passar encomenda à Casa Chopard. Ficou assim combinado.

Quando as joias ficaram prontas, Bolsonaro despachou um assessor graduado (ministro da República) para ir buscar. Por medida de precaução, a encomenda não veio na bagagem pessoal do ministro, mas na de um assessor. O resto da história todos já conhecem.

A sequência dos fatos não há de ser muito diferente do que o cenário que tracei. A estas alturas, ainda não se pode saber como terminará o caso dos diamantes contrabandeados. O fato é que essa história vai enriquecer a galeria de crimes cometidos por Jair Bolsonaro.

O imperador africano

Sagração de Bokassa 1°

José Horta Manzano

O século 19 marcou o apogeu da colonização da África pelas potências europeias. No final do século, o continente estava fatiado e repartido entre poucos países colonizadores. França e Inglaterra detinham a parte do leão. Os ingleses controlavam boa parte da costa Leste, enquanto os franceses mandavam no Oeste – aquela protuberância rombuda da África, que se projeta no Oceano Atlântico.

As potências europeias saíram enfraquecidas da Segunda Guerra mundial. O nacionalismo africano encontrou terreno fértil para se afirmar. Nos anos 1950-1960, não houve como segurar o movimento: uma a uma, foram pipocando novas nações recém-independentizadas.

A República Centro-Africana alcançou a independência em 1960. Trata-se de um território sem saída para o mar, pouco populoso mas de bom tamanho (maior que a França e maior que o estado de Minas Gerais).

Nas primeiras décadas após a onda de independência, a França conservou forte influência sobre as antigas colônias. Hoje em dia, a presença francesa é menos marcante mas, naquele tempo, Paris era o fazedor de reis. Para ser bem sucedido, todo golpe de Estado tinha de ter o apoio do antigo colonizador.

Em 1965, por meio de um golpe e com apoio francês, Jean-Bédel Bokassa foi alçado à liderança da África Central. Enquanto o governo do novo ditador seguia conforme aos interesses de Paris, tudo foi bem. Em 1976, deslumbrado com o poder, Bokassa inventou que queria transformar o país em império, e que ele seria o imperador. Assim foi feito. Houve festa de coroação, com trono, manto, cetro, coroa, diamantes e pedras preciosas. Um remake da sagração de Napoleão.

Tornado imperador, Bokassa impôs uma política autoritária e excessivamente repressiva. Sua política tomou nova direção, que contrariava os interesses franceses. Três anos depois da proclamação do império, Bokassa foi destituído por um golpe de Estado fomentado e financiado pela França. Isso aconteceu em setembro de 1979.

Um mês depois, em outubro de 1979, o Canard Enchaîné, popular semanário francês de sátira política, revelou que Valéry Giscard d’Estaing, presidente da França, tinha sido presenteado pelo imperador Bokassa com 30 quilates de diamantes. Considerando que o preço médio do diamante lapidado é de 12.000 euros por quilate, isso dá um total de 360 mil euros (R$ 1,8 mi). O escândalo se alastrou mais rápido que fake news.

Giscard d’Estaing estava em plena campanha de reeleição à Presidência. A notícia não podia cair em momento pior. A oposição fez a festa e ajudou a pisar na ferida. Abafa daqui, abafa dali, a história nunca foi elucidada preto no branco. Fica ao gosto do freguês. Por minha parte, acredito que o propagador da notícia tenha sido o próprio imperador africano destituído. Foi vingança pelo golpe de Estado que o arrancou do trono, fomentado pelo governo francês. O caso entrou para a história como Les diamants de Bokassa (Os diamantes de Bokassa).

Giscard d’Estaing acabou perdendo a reeleição. O desastre de imagem causado pelos diamantes do imperador há de ter contribuído para a derrota.

Estourou semana passada, no Brasil, o caso dos diamantes de Bolsonaro. Assim que fiquei sabendo, lembrei imediatamente dos “diamants de Bokassa”. Se a história das pedras das Arábias tivesse vindo à tona antes, Bolsonaro poderia até ter perdido a eleição. Mas… que bobagem estou dizendo! Ele já foi derrotado!

A saga dos diamantes ainda vai dar pano pra manga. Ninguém dá um presente de 3 milhões de euros sem ter um bom motivo pra isso. Reis, xeiques e emires são podres de ricos, mas nem por isso saem distribuindo milhões assim, sem mais nem menos. Alguns pontos ainda estão nebulosos.

Por que razão esse mimo milionário foi dado a Bolsonaro? Qual foi a contrapartida?

Outra curiosidade é o fato de ter sido necessário designar o sub do sub para viajar à Arábia, tomar posse da encomenda e embarcar num avião de volta carregando essa fortuna numa mochila(!). Por que é que Bolsonaro não trouxe na bagagem presidencial? Por que é que o presente não veio por mala diplomática árabe, para ser entregue ao capitão em Brasília?

Quem sabe um dia teremos as respostas. Ou será que o escândalo vai continuar enevoado para todo o sempre?