Francisco de Paula Horta Manzano (*)
Foi uma daquelas idéias que no fim ninguém sabe dizer de onde surgiu. E da qual ninguém quer assumir a autoria. A maioria dos consultados a respeito concordaram em se reunir para uma espécie de, poderia assim se chamar, confraternização. Afinal, todos sempre trabalharam em equipe e, em princípio, parecia uma boa ideia.
Logo de saída, quando foram formalizar o convite, o C já foi logo dizendo que não prestaria nenhum tipo de colaboração. Poderia até participar da reunião, mas não queria ser usado, ficando mais uma vez entre duas vogais só para dar sentido à vida delas. Que fizessem o convite sem ele.

Mantiveram o convite feito à letra C para participar do evento, apenas para não criar caso. E tiveram que improvisar com a letra K, que foi a solução mais próxima que encontraram. No alto, lia-se Konvite. O primo do C, o cê cedilha, ofereceu-se para a função. Todos agradeceram muito pela boa vontade, mas acharam melhor usar os préstimos do K. Mesmo porque o K, sempre tão esquecido, coitado, sentia-se orgulhoso com a honra oferecida. Além do mais, não haveria como esconder o rabinho do cê cedilha.
Tudo bem. Todo grupo sempre costuma ser dividido em alas. Sempre aparece algum ti-ti-ti. Houve até um princípio de confusão entre as vogais, que alegavam estarem cansadas de ficar dando sentido a tudo, sempre usadas pelas consoantes que, apesar de serem em maior número, sempre se mostram tão dependentes delas.
Mas a situação foi contornada pelos parênteses que, como sempre, acolheram a todos com braços e abraços apaziguadores. Alguns diziam que os parênteses só ficavam fazendo cochichinhos entre eles e que não eram confiáveis. Eles fingiram não ter entendido. Aliás, a idéia da reunião era justamente essa: promover confraternização e convivência pacífica entre todos.

O M compareceu ao encontro e chegou, como sempre, antes do N. Sempre correu mais, por causa das três perninhas enquanto o companheiro andava em desvantagem, com duas. Assim que chegou à reunião, o M foi agradecer pessoalmente ao P e ao B pela deferência de serem precedidos por ele. Em detrimento do N, coitado.
A turma elogiou muito o hífen pelo trabalho que vinha desenvolvendo, sempre um fator de união que ninguém poderia deixar de reconhecer e comentar. Sempre auxiliou com sua presença a todos que um dia precisaram de sua ajuda para se unirem.
Chegou o W dando tapinhas nas costas do M, chamando-o de “colega”, fazendo-se de acróbata. Foi o que bastou para fazer com que o M fizesse verdadeiros contorcionismos com seu ego para manter a compostura.
As aspas compareceram também. Muito humildes como sempre, desculparam-se com todos os presentes. Reconheceram o trabalho e o esforço de todas para formar as palavras e elas, as aspas, sempre deixando pairar no ar alguma dúvida quanto à veracidade delas. Explicaram que não faziam isso por mal. Era apenas por força da obrigação.

Avoadas, andando ordeiramente em fila indiana, as reticências também apareceram. Na ocasião conversaram muito com todos, muito embora nunca conseguissem terminar um pensamento com muita clareza. Já a interrogação, por mais que falasse, nunca demonstrava saber de nada. Não ajudava muito. Mas como já era mais velha do que os outros ‒ tanto que utilizava uma bengalinha para caminhar por onde quer que fosse ‒ era muito respeitada no lugar. Ninguém reclamava dela.
A exclamação apareceu calçada com seu saltinho alto. Muito magrinha, alta e elegante, teve alguma dificuldade quando lhe pediram para pular para a linha de baixo. Era quase um salto mortal. A letra A, que estava por perto, teve até que dar-lhe um empurrãozinho. E ela quase formava uma entrelinha vaga, não tivesse se enganchado no anzol do S que estava logo ali também. Ela não queria se fazer de esnobe. Não era charme. Era apenas o seu jeitão, coitada. Até que ela era legal! Só não gostava muito das frequentes insinuações que a letra i (a minúscula) lhe fazia sempre que a encontrava. Ao contrário do que dizia o i, ela não andava de cabeça pra baixo. E como o i ainda era uma criança, minúscula que era, não provocava reação mais violenta.
A turma não gostava muito era da dona Vírgula, sempre se intrometendo nas conversas, interrompendo os outros. Fazia isso a toda hora e até sem necessidade. Pior que ela, só mesmo seu irmão mais velho, o ponto e vírgula. Esse era de desanimar qualquer um.

Aquela confraternização seria de grande utilidade para as vogais, que não viam com bons olhos os acentos. A nenhum deles. Tanto os agudos, quanto os graves, os circunflexos e até mesmo o simples til. Sentiam-se incomodadas. Diziam que os acentos eram perfeitos parasitas que se apoiavam nelas sempre e com sérias intenções de modificar seu caráter. Não deixavam que elas fossem quem elas realmente eram. Não se davam realmente muito bem. Para os acentos a idéia da confraternização pareceu muito boa.
Todos pararam de conversar quando chegaram os dois pontos. Egocêntricos, sempre exigiam a atenção de quem quer que fosse. Mania de querer explicar alguma coisa. Todos paravam para ouvir. Sabiam que, depois deles, sempre vinha alguma coisa.
A reunião estava boa, juntou todos num mesmo local. De A a Z. Até o asterisco, que compareceu à festa todo despenteado. O q e o p minúsculos permaneceram um de costas para o outro, dado ainda não contarem com a maturidade das letras maiúsculas. Falando nisso, o Q ficou a maior parte do tempo procurando pelo U. Sinal de alta insegurança.
De repente, tudo terminou. Não teve jeito de seguir em frente. Nem mesmo com a intervenção (de pura boa vontade) do parágrafo, tentando dar um tempo e começar tudo de novo. Foi só aparecer o ponto final e aí sim: acabou-se a reunião. Pronto. Ponto final.
(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.
Publicado originalmente em 20 nov° 2016.
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