Chirac – o funeral

José Horta Manzano

Quinta-feira passada morreu Jacques Chirac, que foi presidente da França por doze anos, na virada do século (1995 – 2007). Como todo político, teve um lado bom e outro mais escuro. Foi sem dúvida o presidente mais popular destes últimos 50 anos, desde que De Gaulle deixou o poder.

Assim que a notícia chegou, chefes de Estado do mundo todo emitiram nota expessando pesar e deixando algumas palavras de elogio. Quando alguém acaba de falecer, convém lembrar do lado bom. Só se pode começar a falar dos podres depois de alguns dias.

Nesta segunda-feira, teve lugar o funeral, com as honras devidas a todo ex-chefe de Estado. Os franceses são bons nisso. São capazes de organizar cerimônias que, de tão solenes, dão arrepio. Tambores rufando, militares em uniforme de gala, sino de Notre Dame badalando, o Requiem de Gabriel Fauré como fundo musical, a Marselhesa na hora certa – tudo milimetricamente organizado.

Dirigentes de praticamente todos os países se manifestaram. Ou mandaram mensagem, ou compareceram. Na cerimônia, estavam todos os ex-presidentes da França, além de Vladimir Putin, Bill Clinton, o presidente da Itália, o príncipe de Mônaco, chefes de Estado europeus e mais uma centena de personalidades estangeiras. O Lula, sentadinho na palha úmida da masmorra onde vive, não pôde estar presente em Paris; mas reagiu com um tuíte simpático.

Só faltou… quem poderia ser? Faltou Donald Trump! Malcriado e mal-assessorado, o tuiteiro-mor não se dignou de soltar duas linhas em homenagem a um francês que, por sinal, era muito próximo dos EUA, país onde chegou morar durante um ano, na juventude.

E quem é que acompanhou o presidente americano no desdém? Qual é o importante personagem nacional que passa o tempo tuitando e não julgou importante escrever três palavras em nome do Brasil? Quem adivinhar ganha uma passagem de ida simples pra Caracas – de ônibus. Resposta no próximo parágrafo.

Claro! Foi doutor Bolsonaro. Como dizia o Barão de Itararé, «de onde menos se espera, daí é que não sai nada».

Um bom homem

José Horta Manzano

Traduzir não é tarefa das mais simples. Quando o tradutor tem tempo pra refletir, o trabalho é mais maneiro. Mas se o trabalho tiver de ser feito às pressas, então, a coisa se complica. É o que acontece na mídia. Nem sempre há tempo pra lapidar o escrito.

Chamada do Estadão

Um bom homem?
No original Donald Trump qualificou doutor Bolsonaro de good man. “He’s a good man” – foi exatamente o que ele disse. De fato, a good man é um bom homem. To the foot of the letter.(*)

Em geral, o tradutor tem duas opções. Pode ater-se rigorosamente à língua de partida e manter fidelidade a cada palavra. Nesse caso, seu texto poderá às vezes soar estranho, como se falasse com sotaque. Pode também optar por palavra ou expressão que, embora se afaste do original, leva ao leitor a imagem que o autor do texto original quis dar. Esse trabalho visa a «eliminar sotaque», mas toma tempo.

Chamada da Folha de São Paulo

Tanto o Estadão quanto a Folha de SP optaram pela via mais rápida. O good man de Trump virou bom homem. Errado, não está. Mas ficou esquisito, com sotaque. Viria à cabeça de alguém dizer que Collor, FHC, Lula ou qualquer político é um bom homem?

Pra dizer que alguém é bom de coração, o mais comum é defini-lo como um homem bom, expressão raramente usada pra políticos de alto coturno. Corações bondosos são artigo raro nas prateleiras no andar de cima.

Afora isso, sem descambar para o lado sentimental, diremos simplesmente que alguém é boa gente ou boa pessoa. Se tivesse tido tempo o tradutor teria caprichado no trabalho e, certamente, teria chegado a essa conclusão. Faltou tempo.

(*) ‘To the foot of the letter’ é tradução literal de nossa expressão ‘ao pé da letra’. Mas é só pra brincar, que nenhum falante de inglês compreenderia o sentido.

Vanzolini e a floresta

José Horta Manzano

Paulo Vanzolini (1924-2013) foi um zoólogo brasileiro que, secundariamente, fazia música. Nunca viveu de sua arte, mesmo porque não precisava. A atividade científica garantia ganho suficiente. Assim mesmo, emplacou sucessos como a música Ronda (vista por alguns como o hino de São Paulo), Volta por cima (aquela que dizia: ‘levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima), Praça Clóvis (que Chico Buarque gravou). Deixou centenas de composições, muitas inéditas.

Vanzo, apelido que lhe davam os mais íntimos, era genioso, como se dizia antigamente. Não era de trato fácil. Ranzinza, tinha a língua afiada e costumava dizer o que pensava, o que nem sempre agradava a todos.

Paulo Vanzolini, aos 88 anos, em 2012.

Sem formação musical, não conhecia solfejo, não tocava nenhum instrumento, não distinguia modo maior de modo menor. Já na ciência, eram outros quinhentos. Desde jovem, seu ofício o levou a ter contacto intenso com a mata virgem. Descobriu e descreveu dezenas de espécies desconhecidas. Como ninguém, conheceu a Amazônia, sua fauna e seus habitantes.

Já lá vão mais de dez anos, instado por um jornalista a dar sua opinião sobre a floresta brasileira, não guardou a língua no bolso. O homem, que não se ajoelhava diante do ‘politicamente correto’, disse o que pensava.

Desenvolvimento insustentável
«Vejo a situação da Amazônia com grande desgosto. (…) A Amazônia inteira quer derrubar a floresta. Principalmente o pessoal que vive lá mesmo. O único jeito seria diminuir a população. Não existe desenvolvimento sustentável. É uma besteira completa.

Enquanto a população crescer, você não vai negar comida. Enquanto tiver gente, e gente fazendo mais gente, como você vai comer sem plantar, sem matar os bichos que estão por lá? A única solução é: ‘Tranca a porta e perde a chave.’»

Sabe Deus qual seria a reação de Vanzo, se ainda estivesse entre nós, diante do festival de desmatamento incentivado pelo Planalto.

Janot e o pagode

José Horta Manzano

Neste país, ultimamente, a gente navega de espanto em espanto. Quando parece que estamos no auge, que nada mais pode espantar, eis que aparece assombro maior.

O de hoje nos foi brindado por doutor Janot Monteiro de Barros. O moço, que já ocupou o posto preeminente de Procurador-Geral da República, confessou que sua aparente bonomia esconde impulsos assassinos. Revelou que «quase matou» Gilmar Mendes, ministro do STF. Numa boa. Curtiu o ódio, premeditou o crime, carregou o revólver, encaminhou-se para o local da execução mas, na última hora, murchou.

Essa história acrescenta covardia à vilania. Além de ser o vilão da quase tragédia, doutor Janot se acovardou na hora agá. E ainda tem a caradura de vir contar? Francamente, o homem tem um grave problema de equilíbrio. É destrambelhado. Até que combina com o estilo do governo atual – alô, gerente de RH do Planalto!

De loucos, o mundo está cheio. O espantoso não é que esse cidadão também faça parte da categoria, mas que tenha um dia chefiado a PGR. E, mais que tudo, fico muito preocupado com o fato de ele ter podido penetrar armado no prédio do STF.

Nunca estive lá, mas imaginava que, pra entrar, precisasse enfrentar um dispositivo desses que a gente vê no aeroporto, com pórtico detector de metais e esteira para objetos, pastas e pacotes. Ou será que doutor Janot entrou pela janela? Até que ficou bonito: Janot pela janela. Dá letra de pagode, mermão.

Nossa língua

José Horta Manzano

Surpreso (quem diria!) com a avalanche de críticas ao discurso que pronunciou no púlpito da ONU, doutor Bolsonaro reage e persevera: “Não fui agressivo”. Insiste na tese de que foi um discurso ‘patriótico’, seja lá o que isso quer dizer. Tentou ser espirituoso perguntando se queriam que ele ‘falasse abobrinhas’. Ficou, de fato, gracioso.

Para emendar, voltou a questionar a liderança do velho cacique Raoni, exatamente como já tinha feito na ONU. Não parece ter-se dado conta de que não cai bem um presidente se queixar, perante plateia planetária, do comportamento de um de seus 200 milhões de governados. É como se Monsieur Macron fosse à ONU queixar-se do chefe do movimento dos Coletes Amarelos. Coisa sem pé nem cabeça.

Doutor Bolsonaro desqualificou o cacique ao dizer que «ele não fala nossa língua». Agora ficou urgente. Alguém precisa dizer imediatamente ao presidente que a frase está expressa ao contrário.

Na verdade, somos nós que não falamos a língua dele. Afinal, os povos nativos – como o nome indica – já eram donos destas terras milênios antes da chegada do europeu e do africano. Assim, nós todos é que devíamos ter aprendido a língua deles, e não o contrário.

Contra-bravata

José Horta Manzano

Acabo de ler o relato de entrevista concedida por doutor Bolsonaro a um programa de televisão. A gravação teve lugar em Nova York, logo após o discurso pronunciado no púlpito da ONU. Tenho algumas considerações sobre a conversa entre o presidente e a jornalista.

Desfocados
O presidente asseverou que sua equipe e ele planejaram um pronunciamento “contundente, mas não agressivo”, necessário após “semanas de muito ataque ao Brasil”.

Entre contundente e agressivo, vai uma larga distância. Contundentes foram as palavras de Churchill ao prometer aos ingleses “sangue, labuta, lágrimas e suor”. Agressivo foi o pronunciamento de Trump quando chamou o dono da Coreia do Norte de “homem foguete (rocket man)“. É possível ser contundente sem necessariamente agredir. Pra isso, porém, é preciso arte, artigo em falta no Planalto há décadas.

A equipe de doutor Bolsonaro decidiu-se pelo tom ‘contundente’ após “semanas de muito ataque ao Brasil“. Falácia. Querer socializar os tais ‘ataques’ e compartilhá-los com o Brasil inteiro é malandragem. Os tais ‘ataques’ não foram dirigidos ao Brasil, mas ao presidente Bolsonaro pessoalmente. Não foi o povo brasileiro que insultou dirigentes europeus, foi doutor Bolsonaro. Em seu nome unicamente. O revide, naturalmente, foi dirigido a ele unicamente.

Exagerado
O presidente lembrou que o governo brasileiro não pode controlar focos de incêndio em todo o território da Amazônia. “O tamanho da nossa Amazônia é maior (sic) do que a Europa Ocidental; não tem como manter o controle“ – arrematou. Vamos passar por cima da frase mal construída. Se a gente for parar pra comentar cada pisão na lógica desferido por doutor Bolsonaro, amanhã ainda estaremos aqui.

Vamos ao que interessa: Europa Ocidental é conceito impreciso. É como coração de mãe, onde sempre cabe mais um país. Dado que não é conceito oficial, cada um põe os limites onde lhe agrada. Portanto, usar a Europa Ocidental como base de comparação de área seria proposição de má-fé. A União Europeia, sim, é entidade real, com superfície definida. Vamos supor que a esclarecida equipe de doutor Bolsonaro tenha se baseado nela.

Rápida consulta ao google esclarece a questão. A União Europeia tem superfície de 4.500.000 km2. A Amazônia brasileira (Bolsonaro falou em ‘nossa’ Amazônia) tem 3.000.000 km2. Portanto, a afirmação de que nossa floresta é maior que a Europa é mais que exagerada: é falsa.

Confissão
A entrevistadora puxou a conversa para o terreno pantanoso de eventual intervenção militar na Venezuela. Doutor Bolsonaro descartou toda ação nesse sentido. Disse esperar que as sanções econômicas americanas surtam efeito. (Esquece-se de que, ao que se saiba, sanções econômicas jamais levaram país nenhum a abrir o bico. Contorná-las é fácil como tirar chupeta de recém-nascido.)

E aí veio uma das afirmações mais surpreendentes que se poderiam esperar da boca de um presidente da República. A confissão de que nossas Forças Armadas são fracas, incapazes de enfrentar uma Venezuela. Disse ele: “No Brasil, você sabe que as nossas Forças Armadas, o seu potencial foi bastante diminuído ao longo das últimas décadas. E, pela topografia da Venezuela, qualquer intervenção militar ali, de qualquer país, seria um ‘Vietnã”.

Não é corriqueiro ouvir, do dirigente de um país, a confissão de que suas FFAA são fracas – portanto, incapazes de garantir a segurança do território. Mais comum é ouvir o contrário, afirmações do tipo: “Quem ousar mexer conosco vai conhecer o fogo do inferno”.

Aviso aos navegantes: Quem quiser vir tomar a Amazônia brasileira, esteja à vontade. Nosso exército é fraco. Não sou eu quem diz isso, foi o presidente quem afirmou com todas as letras.

Nem Dilma Rousseff, nos momentos mais delirantes, ousou soltar uma contra-bravata desse quilate.

O Brasil e o bicho-papão

José Horta Manzano

Doutor Bolsonaro subiu ao púlpito da ONU e falou. Sua dicção não melhorou nadinha, mas, desta vez, ele teve sorte: apareceu um orador pior que ele. Pele escura e barrete no cocuruto, o senhor que presidia aos trabalhos tinha uma fala ainda mais absconsa. Impressionante, não sei se vocês ouviram. O homem falou antes de Jair Messias. Discursava em inglês, mas juro que só dava pra pescar uma palavra aqui, outra ali. Que fala enrolada, sô! Uma dublagem teria sido bem-vinda.

Estudos mostram que 9 em cada 10 leitores lê somente o título de cada artigo ou, no máximo, o primeiro parágrafo. O mesmo vale pra discursos solenes. Importantes são os primeiros dois ou três minutos; depois disso, o olhar vagueia e o ouvido amolece.

A primeira parte do discurso de nosso presidente levou a marca de Ernesto Araújo, seu ministro de Relações Exteriores. Não sei se ele fez de propósito, mas fato é que os primeiros minutos do discurso de Bolsonaro foram uma calamidade. O presidente autoproclamou-se paladino da luta contra a implantação do «socialismo» no país. Como é que é? Ele pronunciou a palavra ‘socialismo’ como se pecado fosse. Só faltou um pelo-sinal.

Alguém precisa dar umas aulas de política àquele pessoal do Planalto. Eles precisam urgentemente aprender o significado de conceitos básicos como socialismo, comunismo, nazismo, fascismo, liberalismo e quejandos. Embora essa família política não seja minha favorita, um governo socialista não é nenhum bicho-papão. Socialista não é comunista, aquele que come criancinhas. Os presidentes Mitterrand e Hollande, chefes do Estado francês, eram membros do Partido Socialista. A Espanha é atualmente governada por socialistas. O socialista Mário Soares foi presidente de Portugal. Por décadas, os países escandinavos foram governados por sócio-democratas. E nenhum desses países virou uma Venezuela.

Fiquei imaginando o espanto de um auditório que reunia a fina flor da política do planeta. Se o autor do discurso do presidente pretendia impressionar, pode ficar tranquilo: atingiu o objetivo. Só que impressionou no mau sentido. Doutor Bolsonaro subiu ao púlpito vestido e de lá desceu nu. Depois de contar que salvou o Brasil do socialismo, discursou por mais uns quinze minutos. Falou mal de Cuba, da Venezuela, do Irã. Mas o que disse não tinha mais importância. Os primeiros três minutos escancararam a realidade e carimbaram nosso presidente e sua troupe com um adjetivo incômodo: ignorantes. Pra fazer esse papelão, melhor teria sido ficar em casa.

Baile das letras

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

Foi uma daquelas idéias que no fim ninguém sabe dizer de onde surgiu. E da qual ninguém quer assumir a autoria. A maioria dos consultados a respeito concordaram em se reunir para uma espécie de, poderia assim se chamar, confraternização. Afinal, todos sempre trabalharam em equipe e, em princípio, parecia uma boa ideia.

Logo de saída, quando foram formalizar o convite, o C já foi logo dizendo que não prestaria nenhum tipo de colaboração. Poderia até participar da reunião, mas não queria ser usado, ficando mais uma vez entre duas vogais só para dar sentido à vida delas. Que fizessem o convite sem ele.

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Mantiveram o convite feito à letra C para participar do evento, apenas para não criar caso. E tiveram que improvisar com a letra K, que foi a solução mais próxima que encontraram. No alto, lia-se Konvite. O primo do C, o cê cedilha, ofereceu-se para a função. Todos agradeceram muito pela boa vontade, mas acharam melhor usar os préstimos do K. Mesmo porque o K, sempre tão esquecido, coitado, sentia-se orgulhoso com a honra oferecida. Além do mais, não haveria como esconder o rabinho do cê cedilha.

Tudo bem. Todo grupo sempre costuma ser dividido em alas. Sempre aparece algum ti-ti-ti. Houve até um princípio de confusão entre as vogais, que alegavam estarem cansadas de ficar dando sentido a tudo, sempre usadas pelas consoantes que, apesar de serem em maior número, sempre se mostram tão dependentes delas.

Mas a situação foi contornada pelos parênteses que, como sempre, acolheram a todos com braços e abraços apaziguadores. Alguns diziam que os parênteses só ficavam fazendo cochichinhos entre eles e que não eram confiáveis. Eles fingiram não ter entendido. Aliás, a idéia da reunião era justamente essa: promover confraternização e convivência pacífica entre todos.

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O M compareceu ao encontro e chegou, como sempre, antes do N. Sempre correu mais, por causa das três perninhas enquanto o companheiro andava em desvantagem, com duas. Assim que chegou à reunião, o M foi agradecer pessoalmente ao P e ao B pela deferência de serem precedidos por ele. Em detrimento do N, coitado.

A turma elogiou muito o hífen pelo trabalho que vinha desenvolvendo, sempre um fator de união que ninguém poderia deixar de reconhecer e comentar. Sempre auxiliou com sua presença a todos que um dia precisaram de sua ajuda para se unirem.

Chegou o W dando tapinhas nas costas do M, chamando-o de “colega”, fazendo-se de acróbata. Foi o que bastou para fazer com que o M fizesse verdadeiros contorcionismos com seu ego para manter a compostura.

As aspas compareceram também. Muito humildes como sempre, desculparam-se com todos os presentes. Reconheceram o trabalho e o esforço de todas para formar as palavras e elas, as aspas, sempre deixando pairar no ar alguma dúvida quanto à veracidade delas. Explicaram que não faziam isso por mal. Era apenas por força da obrigação.

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Avoadas, andando ordeiramente em fila indiana, as reticências também apareceram. Na ocasião conversaram muito com todos, muito embora nunca conseguissem terminar um pensamento com muita clareza. Já a interrogação, por mais que falasse, nunca demonstrava saber de nada. Não ajudava muito. Mas como já era mais velha do que os outros ‒ tanto que utilizava uma bengalinha para caminhar por onde quer que fosse ‒ era muito respeitada no lugar. Ninguém reclamava dela.

A exclamação apareceu calçada com seu saltinho alto. Muito magrinha, alta e elegante, teve alguma dificuldade quando lhe pediram para pular para a linha de baixo. Era quase um salto mortal. A letra A, que estava por perto, teve até que dar-lhe um empurrãozinho. E ela quase formava uma entrelinha vaga, não tivesse se enganchado no anzol do S que estava logo ali também. Ela não queria se fazer de esnobe. Não era charme. Era apenas o seu jeitão, coitada. Até que ela era legal! Só não gostava muito das frequentes insinuações que a letra i (a minúscula) lhe fazia sempre que a encontrava. Ao contrário do que dizia o i, ela não andava de cabeça pra baixo. E como o i ainda era uma criança, minúscula que era, não provocava reação mais violenta.

A turma não gostava muito era da dona Vírgula, sempre se intrometendo nas conversas, interrompendo os outros. Fazia isso a toda hora e até sem necessidade. Pior que ela, só mesmo seu irmão mais velho, o ponto e vírgula. Esse era de desanimar qualquer um.

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Aquela confraternização seria de grande utilidade para as vogais, que não viam com bons olhos os acentos. A nenhum deles. Tanto os agudos, quanto os graves, os circunflexos e até mesmo o simples til. Sentiam-se incomodadas. Diziam que os acentos eram perfeitos parasitas que se apoiavam nelas sempre e com sérias intenções de modificar seu caráter. Não deixavam que elas fossem quem elas realmente eram. Não se davam realmente muito bem. Para os acentos a idéia da confraternização pareceu muito boa.

Todos pararam de conversar quando chegaram os dois pontos. Egocêntricos, sempre exigiam a atenção de quem quer que fosse. Mania de querer explicar alguma coisa. Todos paravam para ouvir. Sabiam que, depois deles, sempre vinha alguma coisa.

A reunião estava boa, juntou todos num mesmo local. De A a Z. Até o asterisco, que compareceu à festa todo despenteado. O q e o p minúsculos permaneceram um de costas para o outro, dado ainda não contarem com a maturidade das letras maiúsculas. Falando nisso, o Q ficou a maior parte do tempo procurando pelo U. Sinal de alta insegurança.

De repente, tudo terminou. Não teve jeito de seguir em frente. Nem mesmo com a intervenção (de pura boa vontade) do parágrafo, tentando dar um tempo e começar tudo de novo. Foi só aparecer o ponto final e aí sim: acabou-se a reunião. Pronto. Ponto final.

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Publicado originalmente em 20 nov° 2016.

Tudo errado

José Horta Manzano

Nem tudo o que é legal é moral. Há muita imoralidade transvestida em regra ou até em lei. A prática que envolve a atribuição de passaportes diplomáticos é bom exemplo. Como o próprio nome já informa, esse tipo de passaporte destina-se a diplomatas ou a pessoas encarregadas de missão assimilável à diplomacia.

Subentende-se também que o fim da missão implica devolução imediata de todos os atributos do cargo, passaporte incluído. Veja-se, por exemplo, o caso do parlamentar. Assim que termina o mandato, devolve carro, motorista, secretária, assessores, gabinete, apartamento funcional. O fato de ter exercido a função não o autoriza a conservar nenhum “souvenir”.

Reportagem publicada no Estadão informa que a emissão de passaportes diplomáticos volta a crescer este ano. A justificativa é que o documento é distribuído a granel, a parlamentares e líderes religiosos que o solicitem. Há milhares de passaportes diplomáticos em circulação no Brasil. A distribuição indiscriminada inflaciona, enfraquece e desvirtua a especificidade do documento.

Nada justifica a atribuição de passaporte diplomático a parlamentares, a não ser que viajem em missão assimilada à diplomacia. Neste caso, é concebível que se lhes atribua o documento – mas com validade unicamente para aquela viagem. Ao retorno, deverá ser devolvido. Não há razão para que deputados e senadores se apoiem em passaporte diplomático para levar a família passear na Disneylândia. Chega a ser imoral.

Mais problemático ainda será sustentar o direito de “líderes religiosos”(*) a obter esse documento. Não estão a serviço da pátria. O Brasil não é Estado religioso, como Irã ou Arábia Saudita. Portanto, que esses dirigentes espirituais façam fila no aeroporto de Miami ou de Paris como qualquer mortal, cáspite!

Se já era uma aberração ser titular de um documento dessa natureza, enormidade maior será retê-lo ao deixar o mandato. Segundo a reportagem do jornal, o Itamaraty tem grande dificuldade em recolher passaporte dos que deixam o parlamento. Todos guardam o livretinho como ‘souvenir’, exatamente como aqueles que levam ‘lembrancinha’ do hotel, do restaurante ou do último emprego.

Está tudo errado.

(*) A expressão ‘líderes religiosos’ inclui imames muçulmanos? E donos de terreiro de umbanda? Se eles apelarem para a Justiça e invocarem o princípio de isonomia, têm forte chance de obter o direito. Aviso aos navegantes!

Fundo eleitoral crescidinho

José Horta Manzano

Nossa língua é muito difícil. Principalmente pra quem não aprendeu. A crise que assola a mídia tradicional – falo dos grandes jornais – deve ser realmente bem mais acachapante do que imaginamos. Os cortes salariais não estão atingindo só o porteiro e a mulher do café; já chegam à redação.

Estranhas chamadas de primeira página andam aparecendo. Algumas são tão absconsas que só podem ser compreendidas por iniciados; outras tiranizam a língua. Hoje o Estadão online estampou esta pérola:

Chamada Estadão, 19 set° 2019

A maior parte das vezes, o verbo crescer é intransitivo. Algo cresce. Ponto e basta, sem complementos.

Em casos mais raros, pode aparecer como transitivo indireto. Por exemplo:
À medida que discursava, o deputado transpirava mais e mais abundantemente e seu verbo crescia em furor.

Crescer não será jamais transitivo direto. Ninguém pode crescer algo.

Portanto, pra retomar o texto do jornal, a brecha aberta pela Câmara não crescerá o fundo eleitoral. Pra consertar, há diversas soluções. À escolha do freguês.

A brecha fará fundo eleitoral crescer.

A brecha aumentará fundo eleitoral.

A brecha inflacionará fundo eleitoral.

A brecha ampliará fundo eleitoral.

A brecha inchará fundo eleitoral.

A brecha expandirá fundo eleitoral.

Essa história deixa um gosto amargo. Constata-se, mais uma vez, que Suas Excelências estão legislando em causa própria. Isso não me parece republicano. Acho que certas decisões que dizem diretamente respeito aos parlamentares deveriam ser tomadas por outras instâncias.

Não faz sentido que eles fixem o próprio salário, as mordomias, os adicionais, o número de assessores, a remuneração do pessoal, as condições de aposentadoria, o valor do fundo eleitoral. Essa tarefa deveria ser atribuída a um coletivo independente de cidadãos, que nada tivesse que ver com o Congresso. Pode-se discutir sobre a composição do plantel e a forma de escolher os componentes. O importante é que cessasse essa aberração de congressistas legislarem em benefício próprio.

Não é admissível que subsistam cidadãos ‘mais iguais que os outros’, gente que tem a faca e o queijo na mão. E a boca.

Senão ou se não? Depende

Dad Squarisi (*)

A questão surgiu no fechamento do jornal. A frase na qual apareceu a dúvida era esta: o ministro não teve alternativa… ops! senão ou se não pedir demissão? Palpites não faltaram. O que faltou foi certeza. A saída? Pesquisar. Eis o resultado:

Se não
Use separado quando:

a) puder substituí-lo por caso não: Se não chover (caso não), vamos viajar de carro. Levará falta se não (caso não) for à aula. A declaração deve dizer tudo. Se não (caso não), precisa ser revista.

b) equivaler a quando não: Pareciam amigos, se não (quando não) bons companheiros. O desafio é, se não (quando não) de solução impossível, pelo menos muito difícil. Se lhe convém, leva o trabalho a sério; se não (quando não), leva-o na brincadeira. A empresa vai demitir quatro empregados, se não (quando não) cinco.

c) for conjunção integrante. Aí, é moleza. Ninguém erra: O pai quer saber se não é melhor o filho estudar de manhã. O governador perguntou se não era possível adiar a votação do projeto. Ele se questionou se não era preferível viajar de carro.

Senão
Use coladinho nos demais casos:

Nada lhe restava senão (a não ser) a aposentadoria. O deputado não é senão (mais do que) um representante do povo. Não fazia nada senão (a não ser) chorar. Isto não compete à Câmara, senão (mas) ao governador. Não há beleza sem senão (defeito). Não lhe restava alternativa senão (a não ser) pedir demissão.

Resumo da ópera
O senão rouba pontos, promoções e prestígio. Olho vivo! Entenda as manhas do danadinho. Se não, você engordará as estatísticas de vítimas. Valha-nos, Deus!

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. Edita o Blog da Dad.

Dilma continua a mesma

José Horta Manzano

Precedida por um dirigente sindical e sucedida por uma militante climática, doutora Dilma Rousseff deu o ar de sua graça, sábado 14 de setembro, na Fête de l’Humanité (Festa da Humanidade), o encontro anual de simpatizantes comunistas na França. O nome da festa faz alusão a “L’Humanité”, o jornal oficial do Partido Comunista Francês.

Organizada todos os anos nesta época, a festa é evento importante, com a colaboração de cantores, artistas populares, homens políticos e personagens conhecidos. Estende-se de sexta a domingo. Embora possa parecer surreal, o Partido Comunista ainda subsiste na França – um dos raros remanescentes na Europa. A cada eleição, propõem candidatos. Para a presidência, não têm a menor chance, mas numerosos prefeitos levam a etiqueta do partido.

Dilma Rousseff em Paris, 14 set° 2010

Doutora Dilma compareceu a uma noitada especial dedicada à liberação do Lula. Discursou. Após cada frase, uma intérprete traduzia para o francês. Madame cometeu as confusões de linguagem habituais. A certa altura, falando das últimas eleições presidenciais, disse: «Foi necessário criar um ambiente propício para que o ódio fosse gertado(?) e a mentira fosse a primeira vítima da luta contra a democracia liderada pelos golpistas». A mentira foi vítima da luta! Ai, ai, ai. Esperta, a tradutora deu a volta por cima, fez um esforço e traduziu do jeito que havia entendido. Ficou bonito, mas não se sabe se era isso que a ‘presidenta’ queria dizer. Como se sabe, discurso em dilmês tem de ser legendado.

A doutora disse ainda que a Lava a Jato foi «montagem golpista feita especialmente para destruir inimigos». Dado que a operação teve início durante seu governo, numa época em que todas as instituições aparelháveis se encontravam aparelhadas pelo PT, o blá-blá de «destruir inimigos» fica capenga.

No mais, a doutora repetiu a tese do ‘golpe parlamentar’ de que foi vítima. (Ela se refere ao impeachment.) E martelou firme o bordão único que paralisa seus correligionários: Lula livre. Queixou-se ainda da Lava a Jato com o argumento de que, se é possível prender uma pessoa com a liderança do Lula, então não há mais limites. Portanto, no entender da ex-presidente, ‘uma pessoa com forte liderança’ é inimputável e paira acima da lei.

Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei.

O adversário maior

José Horta Manzano

Ainda é muito cedo pra pensar na próxima eleição presidencial. Até lá, muita água ainda há de passar pelo Amazonas e, espera-se, também pelo canal de repartição do São Francisco. Ainda assim, se nenhuma catástrofe ocorrer no meio do caminho, o maior adversário de doutor Bolsonaro para a reeleição chama-se Sergio Moro.

Recente pesquisa de opinião do instituto Datafolha constata que a popularidade do ex-juiz é inabalável. Nada parece capaz de derrubá-lo. As revelações sobre conversas inadequadas não degradaram sua imagem. A fritura intermitente a que é submetido pelo presidente tampouco arranhou o elevado conceito em que os brasileiros o têm. Imperial, Moro continua lá no topo. Em matéria de simpatia, deixa o presidente comendo poeira: sua popularidade estacionou 25 pontos à frente da do chefe.

by Gilmar de Oliveira Fraga (1968-), desenhista gaúcho

Bolsonaro está numa sinuca cabeluda. Se conservar Moro no cargo de ministro, estará garantindo fabulosa vitrine ao ex-juiz que, humilhado ou não, continuará no noticiário. Se o demitir, perderá apoiadores e será apupado pelos brasileiros, que enxergam no ex-magistrado caçador de corruptos o garante da lisura da Presidência. Manter Moro na fritura não adianta nada, que sua popularidade parece blindada.

Doutor Bolsonaro só tem uma maneira de afastar Moro do caminho. (Eu até nem deveria dizer estas coisas aqui. Não acredito que o presidente seja leitor do blogue, mas… nunca se sabe.) O único jeito de neutralizar a ameaça é nomear Moro para o STF. Em 2020, uma vaga vai surgir. Que Bolsonaro aproveite a ocasião e esqueça essa bobagem de indicar ministro «terrivelmente evangélico». Dê a cadeira ao ex-juiz.

Se fizer isso, auferirá vantagem múltipla. Contentará a todos os que simpatizam com Moro. Não ferirá a imagem de probidade do Executivo. Asfaltará o caminho que o pode levar à reeleição. E terá, no STF, um integrante que lhe deve favores – o que pode ser uma mão na roda para quando ele deixar a presidência e começarem a surgir os inevitáveis processos.

Os filhos da Igreja

José Horta Manzano

No tempo em que era rezada em latim, a missa era muito solene. Ninguém entendia nada do que dizia o padre, mas o rito impressionava. O único momento inteligível era a hora do sermão, quando o celebrante subia ao púlpito e fazia a pregação dominical.

Na Idade Média, época em que o falar popular não havia ainda adquirido status de língua de verdade, tanto a missa quanto o sermão eram ditos em latim. Em terras ibéricas, assim que chegava ao púlpito, o padre abria os braços e conclamava num vocativo cerimonioso: Filii Ecclesiæ! – Filhos da Igreja!. Era a forma habitual de dar boas-vindas aos presentes.

O tempo passou. Aquelas palavras, que soavam tão estranhas aos ouvidos do populacho, passaram a designar o conjunto dos que frequentavam a mesma igreja. Cada região reproduziu os sons conforme seu aparelho fonador lhe permitia. Depois de séculos de pronúncia flutuante, a formas dialetais acabaram desaparecendo, absorvidas pelo castelhano. Hoje, em espanhol e nas demais línguas faladas na Espanha, a saudação ritual ”Filii Ecclesiæ“ transformou-se em feligrés.

Já em Portugal, a pronúncia sofreu deformação maior. Como sabemos, a língua portuguesa tem um problema com a letra L. Volta e meia, ela acaba substituída por R. Como exemplo, o francês blanc e o espanhol blanco deram branco em português. Assim como: clou/clavo = cravo; plat/plato = prato; plage/playa = praia. E mais uma infinidade de palavras. A forma ibérica feligrés não foi exceção. Perdeu um L e ganhou um R. Virou freguês.

Além da deformação fonética, a antiga saudação eclesial conheceu também uma ampliação de sentido. Além de continuar designando o paroquiano, a palavra freguês passou a ser usada pra indicar os clientes de um estabelecimento qualquer. Ela tem ainda outro sentido, um tanto depreciativo. Dizemos freguês pra zombar do time de futebol que costuma perder para o nosso. Diz-se freguês também do indivíduo a quem o mesmo infortúnio acontece mais de uma vez, como aquele que é vítima de trombadinha pela enésima vez.

Com isso, os ”filhos da Igreja“ acabaram virando vítimas de assalto, quem diria! Sinal dos tempos.

Viva a ignorância!

José Horta Manzano

Assim como o melhor dos governos tem seu lado sombrio, o pior deles tem também um lado luminoso. Se o período militar foi sinistro em inúmeros aspectos, teve também alguns lampejos. Uma herança das boas é a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Criada em 1973, em pleno governo do general Medici, ela pode hoje ser definida como uma multinacional da pesquisa.

A Embrapa é a estatal brasileira mais importante. Conta com 10 mil funcionários incluindo 2.500 pesquisadores. Entre estes últimos, 84% são titulares de doutorado ou mesmo pós-doutorado obtido em universidades nacionais e estrangeiras. A empresa, presente em todo o território nacional, tem antenas em numerosos países com os quais colabora e troca informações científicas.

Seus trabalhos permitiram introduzir a agricultura no cerrado, bioma que era antes considerado improdutivo e que hoje responde por metade de nossa fabulosa produção de grãos. A tecnologia gerada pela empresa tornou possível multiplicar por quatro a oferta de carne bovina e suína. A produção de frango pôde ser ampliada em 22 vezes.

De importador de alimentos básicos, o Brasil alcançou o patamar de potência exportadora. A Embrapa goza de respeito planetário por seu grau de excelência. Suas pesquisas cobrem todos os biomas brasileiros – Amazônia, Pantanal, cerrado, semiárido, regiões temperadas.

Se o distinto leitor leu o título deste escrito, deve estar se perguntando onde está a ignorância. Pois ela vem agora. Acaba de sair nota informando que o governo federal pretende cortar perto de 50% do orçamento da Embrapa para o ano de 2020. Metade do que é necessário pra permitir a continuidade da pesquisa agropecuária brasileira! A notícia é angustiante. O Brasil não é potência econômica. Está longe de ser gigante bélico. Na política mundial, é anão. O único ponto em que somos globalmente importantes e respeitados é na pesquisa e na produção agropecuária. Em total desvario, o governo não consegue enxergar a importância disso.

Há que constatar que, mesmo com doutor Bolsonaro acamado, a guerra contra o conhecimento continua. Fica claro que a equipe que rodeia o presidente está afinada com ele. A ausência do chefe não é sinônimo de trégua. A obra de demolição segue adiante. No Planalto, continuam todos fiéis ao propósito de impedir que o Brasil suba de patamar. Que seja na difusão da cultura, no ensino universitário ou na pesquisa científica, a ordem é cortar, impedir, barrar, cercear.

O lulopetismo não foi tão longe. O atual governo é uma ode à ignorância.

Trilha dos toblerones

José Horta Manzano

Você sabia?

Os suíços sentem muito orgulho por seu país não ter sido invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça ― cercada por Alemanha, Itália, Áustria (anexada pela Alemanha) e França (ocupada por tropas de Berlim) ― não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. A maioria do povo atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Toblerone de verdade

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se imaginava poder vir nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, suas obras de arte, seus objetos de valor. Mais ainda: um lugar onde se podiam organizar eventuais encontros secretos e manter conversações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje faz parte da História. Como diz o outro, «depois do fato consumado, é fácil ser profeta». Difícil mesmo é adivinhar o que está por ocorrer. No final dos anos 30, um bafo de guerra soprava no continente, mas ninguém sabia de que lado nem com que força chegaria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones – hoje utilizada como trilha para caminhada a pé

A inteligência militar planejou um sistema de defesa. A referência mais próxima era a Primeira Guerra, durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era ― e ainda é ― uma linha de 10km de blocos de concreto para barrar a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 monstros de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Viraram atração turística. Trilhas próprias para caminhadas a pé serpenteiam por quilômetros, dentro da floresta, ao longo da barreira de concreto. É hoje o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose
Janela com cortina falsa

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada. Incluí algumas imagens dos bunkers disfarçados de chalé e dos toblerones.

Publicado originalmente em 28 nov° 2013.