Paralimpismo 2


Interligne vertical 12Algum tempo atrás, insurgi-me contra o neologismo «paralímpico», termo que entra em colisão frontal com o espírito de nossa língua. Passou-se quase um ano, e a situação não se moveu nem um milímetro. Com a honrosa exceção da Folha de São Paulo
― que se mantém, firme e forte, contra a corrente ― os outros meios impressos se vergaram à caprichosa ignorância dos que deram nome ao comitê nacional que cuida das competições paraolímpicas. Como maria vai com as outras, o Estadão e o Correio Braziliense seguem a corrente. É pena. Achei oportuno reproduzir aqui o mesmo artigo que saiu no Correio Braziliense em 1° de setembro 2012.


Paralimpismo

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° setembro 2012

Enganam-se o gentil leitor e a distinta leitora se imaginarem que estou aqui, a mando de sabe-se lá que multinacional, cumprindo a nobre missão de apresentar-lhes novo produto de limpeza. O que parece nem sempre é, como sabem todos os que, um dia, já passaram pela experiência de levar gato por lebre. Comecemos pelo começo, que dá mais certo.

Sentindo os ventos fétidos que prenunciavam as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, um certo Dr. Ludwig Guttman, cirurgião do Hospital Judeu de Breslau (hoje Wroclaw), deixou a Alemanha em 1939 e se refugiou na Inglaterra, onde continuou a exercer seu ofício.

Os Jogos Olímpicos previstos para 1940 e para 1944 não se realizaram, por razão de conflito mundial. Mas Londres fez questão de sediar os de 1948. Quis mostrar ao mundo que, apesar das perdas, dos bombardeios, das privações, o velho leão ainda estava de pé, alerta, pronto para mostrar-se sob seu perfil mais favorável.

Os combates haviam deixado um rastro de mutilados e estropiados. Dr. Guttman teve a brilhante ideia de valer-se dos holofotes dos Jogos Olímpicos para promover uma manifestação paralela, exclusivamente dedicada a atletas cadeirantes. Diga-se logo que a ideia não despertou no público nenhum entusiasmo delirante. A vista daqueles amputados reavivava feridas dolorosas e ainda não cicatrizadas. Aquilo trazia lembrança do que todos queriam justamente esquecer. Apesar de o bom doutor ter tentado oficializar sua iniciativa, o sucesso foi tênue. Ainda não era a hora.

A ideia cochilou. Foi preciso que uma geração inteira se passasse para que a humanidade estivesse pronta a aceitar a novidade. Veio aos poucos. Já em 1960, nos Jogos de Roma, houve um embrião de competições para atletas diminuídos por defeitos físicos. Pouco a pouco, a nova prática foi ganhando os espíritos, e diretórios nacionais foram-se formando. Logo veio a necessidade de criar um comitê internacional para coordenar os diretórios nacionais da nova modalidade esportiva. Em 1989, fundou-se em Düsseldorf o organismo tutelar. Faltava dar-lhe o nome.

Não houve grandes discussões. Tomou-se o prefixo grego παρα (para), que evoca a semelhança, a proximidade, e juntou-se-lhe o nome tradicional das competições. Nasceram assim os Jogos Paraolímpicos. As duas raízes gregas compuseram um adjetivo novo, claro, explícito. Ingleses, alemães, franceses, castelhanos decidiram amputar a primeira letra do nome principal. Para nós, soa estranho. Resultaram formas como Paralympic Games, Paralympische Spiele, Jeux Paralympiques, Juegos Paralímpicos. Parece produto de limpeza.

Pelo menos desta vez — é tão raro, daí nosso orgulho — foi-nos permitido desdenhar com certa superioridade da falta de cultura dos falantes dessas línguas. Nós, com nossos Jogos Paraolímpicos, havíamos tido a sabedoria de manter o aspecto, o som e a ideia, tudo sem deturpar nenhuma palavra! Foi envaidecedor, digo sinceramente. No tempo em que ainda era permitido se exprimir assim, cheguei a pensar: «eles, que são brancos, que se entendam».

Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Ao contrário do que cantava Eduardo das Neves na marchinha que compôs em 1902 em homenagem a Santos Dumont — «a Europa curvou-se ante o Brasil» —, desta vez fomos nós que sucumbimos. O Brasil acabou dobrando-se diante da Europa.

Não sei quem teve a fabulosa ideia, nem quando esse espantoso estalo terá ocorrido. O fato é que a palavra tradicional foi atirada à lata de lixo da história. Atropelamos o espírito de nossa língua. Foram ignorados os usos e costumes de nossa norma culta que, tradicionalmente, impelem o prefixo a adaptar-se ao nome. Mil anos de formação de nosso falar foram alegremente desconsiderados. Se era para encurtar, que se oficializasse ‘parolímpicos’. Seria uma forma intermerdiária, nem lá nem cá, que talvez satisfizesse a gregos e a troianos.

Mas, não. O braço brasileiro da organização traz o exótico (e mui oficial) nome de… Comitê Paralímpico(sic) Brasileiro. Com site e tutti quanti. O nome de origem foi transfigurado através de uma verdadeira política de faroeste, daquelas que primeiro executam o suspeito, para impossibilitar o devido julgamento. Não se julgam cadáveres.

A adulteração foi heresia perpetrada ao arrepio da forma sacramentada pelo Vocabulário Ortográfico da ABL, guardião da língua! Que aqueles que patrocinaram esse ‘malfeito’ levantem os braços ao céu e agradeçam por não se queimarem mais hereges em fogueiras.

Se alguém pensou em colonização cultural, não há de estar longe da verdade.

O jogo e a paz

José Horta Manzano

Ingenuidade é característica da infância. É enternecedor ler cartinhas escritas por crianças e endereçadas ao Papai Noel. Cada época da vida tem seus atributos. E é muito bem que assim seja.

À medida que o tempo vai passando, os marcadores vão-se modificando. À pureza infantil, segue-se a rebeldia do adolescente, a sensação de onipotência do jovem adulto, o realismo próprio da maturidade.

Carta a Papai Noel

Carta a Papai Noel

Assim deveria ser. No entanto, como já dizia o outro, na prática, a teoria é outra. Não é raro que adultos já bem crescidinhos conservem traços infantis. Não é perigo tão grande: cada um tem suas idiossincrasias.

Bem mais grave é ver a casta dirigente de um país ―todos à beira de uma idade provecta ― ser regida por delírios infantis. É assombroso constatar que os que têm nas mãos as rédeas do País continuam acreditando na existência do bom velhinho, aquele que ri «ho, ho, ho».

Em 2004, na certeza de que seria bom para nosso País, nossos mandachuvas insistiram para que nos fosse garantida participação significativa na Minustah, força de intervenção da ONU destinada a fazer reinar a ordem no pobre e atormentado Haiti.

Os mandarins do Planalto, comandados à época por um enfatuado presidente, imaginaram que a situação se resolveria num piscar de olhos. Um jogo de futebol para encantar e uma tropazinha de algumas centenas de soldados para distribuir barrinhas de cereais entre os miseráveis deveriam bastar. Ademais, seria um passo de capital importância para a obtenção de cadeira cativa no Conselho de Segurança da ONU, neurose obsessivo-compulsiva do presidente de então.

As grandes potências, cujos dirigentes são menos deslumbrados, ficaram felizes em livrar-se do abacaxi. Aceitaram rapidinho.

Já vai para dez anos que isso se passou. O Haiti continua ocupando o pouco invejável lugar de país mais pobre das Américas. A calma por lá é só aparente ― todos sabem que terminará no exato instante em que as tropas de ocupação se retirarem. O Brasil continua tão distante da cobiçada cadeira cativa no Conselho de Segurança quanto estava em 2004.

A intervenção, que o Planalto acreditava ser coisa de poucos meses, não dá sinal de chegar ao fim. O erário ― cofre onde se guardam os impostos, diretos e indiretos, pagos por todos os habitantes do território nacional ― continua sendo sangrado. Não se sabe direito quantos bilhões a aventura terá custado até agora. De qualquer maneira, dar esmola com chapéu alheio não dói no bolso, não é mesmo?

Minustah Missão de estabilização no Haiti

Minustah
Missão de estabilização no Haiti

Reportagem da Folha de São Paulo esclarece que perto de 700 milhões de reais já foram gastos só com adicionais de soldo pagos aos militares estacionados lá. Só adicionais! Esse total, evidentemente, não inclui o montante gasto com transporte, armamentos, alimentação, logística, e tudo o mais que um deslocamento de tropa pode custar.

Resultado da façanha: gastamos rios de dinheiro e continuamos no ponto zero. Fica reforçada a impressão de nosso País vem sendo governado por cortesãos ingênuos e incapazes.

Interligne 37c


Interligne vertical 5Nota de pé de página:
Em 18 de agosto de 2004, realizou-se o «jogo da paz». O povão, naturalmente, foi escorraçado do estádio. De qualquer maneira, não teriam dinheiro para pagar a entrada. O Brasil ganhou por 6 a zero. Mas a paz não veio.

A frase do dia – 16

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O urubu…


“Michel Temer é um sabotador porque sabotou(sic) a tentativa da presidente Dilma de realizar o plebiscito”


… anda voando baixo.

Markus Sokol, integrante da direção nacional do PT e candidato à presidência do partido in Estadão, 29 julho 2013.

To be, or not to be

José Horta Manzano

«There are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy.»

William Shakespeare
Hamlet, Ato I, Cena 5

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A fala de Hamlet costuma ser traduzida livremente como «há mais mistérios entre céu e terra do que sonha nossa vã filosofia». Não corresponde exatamente ao texto original, mas transmite a mesma ideia.

A parafernália eletrônica atual tem acelerado a circulação da informação e dado suores frios a todos os encarregados de manter secretos certos fatos.

No entanto, apesar de todos os Snowdens da vida, das câmeras de vigilância, do esquadrinhamento de mensagens eletrônicas, algum mistério ainda perdura. E sempre há de perdurar.

Dia 25 de julho, duas jornalistas assinaram artigo na Folha de São Paulo revelando que um jovem cubano ― por coincidência chamado Fidel Castro ― havia sido internado no Hospital das Clínicas de São Paulo para tratar-se de um problema urológico.

Até aí, não há nada de espantoso. Ter nome semelhante ao do Líder Máximo não é um pecado. Ser cubano, tampouco. E a dignidade manda tratar os males do próximo e aliviar-lhe o sofrimento.

É a partir daí que começa o jogo de empurra. A internação do estrangeiro no HC foi sigilosa. Para garantir discrição, foi registrado na ala infantil. Um não identificado «integrante do governo brasileiro» foi o facilitador da admissão do paciente no hospital. Apresentou-o como parente do Comandante.

O Itamaraty alegou total ignorância dos fatos. José Dirceu, contactado por sua notória proximidade com os dirigentes da ilha, desmentiu que o doente seja parente dos Castros. Feitos os exames necessários, foi marcada cirurgia para o dia seguinte, no próprio Hospital das Clínicas.

Hamlet William Shakespeare

Hamlet
William Shakespeare

Embora pareça evidente, não está confirmado que a reportagem da Folha tenha tido alguma influência na evolução dos acontecimentos. O fato é que, apesar de a operação estar marcada para o dia seguinte, foi dada alta ao paciente às oito e meia da noite, no mesmo dia em que saiu a reportagem.

O Itamaraty continua sem saber o que aconteceu. Os dirigentes do hospital não foram encontrados. Médicos e enfermeiros, escudados atrás do segredo profissional, não podem dar maiores explicações. Tudo indica que não interessa a ninguém que se continue discutindo sobre este caso. Assunto encerrado.

O paciente foi-se. Escapou como um ladrão. Nada mais se publicou sobre o fato. Sobrou um saco de perguntas.

Quem era o doente? Estará ainda no Brasil? Terá sido operado? Estará no Sírio-Libanês, o hospital que costuma tratar os que vivem no andar de cima? Terá voltado a Cuba num avião medicalizado da FAB? Por que o primeiro artigo da Folha foi assinado, mas não o segundo (e último)? Quem era o «integrante do governo» que encaminhou o enfermo ao hospital? Como é possível que o Itamaraty não esteja a par de nada?

Muitas outras questões estão sem resposta e certamente assim continuarão in æternum.

Há mais mistérios entre céu e terra do que sonha nossa vã filosofia.

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A frase do dia – 15

Interligne vertical 10«Ninguém mais liga para ela, que não sabe se expressar direito e, quando começa a falar, parece que vai dar um cascudo em alguém, coitadinha. Eu fico com pena, é muito duro, às vezes eu penso que ela está ali, querendo fazer pose de cáiser prussiano, mas com vontade de chorar, é desumano.»

João Ubaldo Ribeiro, discorrendo sobre dona Dilma in Estadão, 28 julho 2013

The royal name

José Horta Manzano

Você sabia?

Algumas atividades são éticas e legais. Felizmente, é o caso da maior parte do que fazemos no dia a dia. Outras ações são, ao mesmo tempo, aéticas e ilegais. Tanto a corrupção como o homicídio entram nessa categoria ― ambos cabem dentro da esfera penal.

Outras práticas, embora ilegais, são éticas. Durante a Segunda Guerra, quando europeus acolheram e esconderam judeus para salvá-los da deportação e da morte certa, estavam agindo na ilegalidade. As leis de então proibiam expressamente que se desse guarida a perseguidos. No entanto, os que assim fizeram contrariaram a lei, mas agiram dentro da ética. Até do heroísmo, em muitos casos.

Por último, falta mencionar as atividades que, embora perfeitamente legais, estão na fronteira da ética. Quando não são claramente antiéticas. Um artigo do site suíço Handelszeitung ― Jornal do Comércio ― nos dá notícia de um desses atos limítrofes entre o que fica bem e o que não se deve fazer.

Vive em Portugal um jovem empreendedor suíço de 32 anos. Tem o sobrenome Biggs, exatamente o mesmo daquele inglês que, faz meio século, cometeu assalto a um trem pagador na Grã-Bretanha e se refugiou no Rio de Janeiro. Mas parece que é pura coincidência, que os dois não se conhecem nem de elevador.

The Royal Family

The Royal Family

Nosso empreendedor começou a vida como corretor de imóveis. Faz alguns anos, decidiu mudar-se para Portugal e, a partir de lá, dedicar-se a uma atividade pouco corriqueira. Atento aos acontecimentos do mundo, registra em seu nome domínios internet com a intenção de revendê-los, com bom lucro, a quem se interessar. Possui atualmente mais de 600 domínios registrados em seu nome.

Estas últimas semanas, acompanhou de perto o agito das bolsas de apostas de Londres. Interessou-se particularmente pelos nomes que seriam provavelmente dados ao principezinho que estava por nascer. Acostumado que está a registrar nomes, deixou tudo engatilhado e ficou preparado para agir o mais depressa possível.

Teve sucesso. Segundos depois do anúncio oficial do nome da criança, conseguiu registrar GeorgeAlexanderLouis.com em seu nome ― uma façanha! A família real deveria ter pensado em registrar o nome antes de publicá-lo. Bobearam, logo dançaram. Quanto àquele que fez o registro, deu um excelente exemplo de ação que, embora perfeitamente legal, está no limite da ética.

Depois que a Europa inteira ficou sabendo do caso, nosso amigo Biggs, meio encabulado, resolveu corrigir o tiro. Não quis passar para a posteridade como usurpador. Decidiu doar o domínio à família real britânica.

Ainda não se sabe se a Royal Family aceitou a doação.

Interligne 18h

Miscelânea 06

José Horta Manzano

Autostrada italiana 1935

Autostrada italiana 1935

Proporcional
A Itália reclama para si a invenção da estrada de rodagem ― em seu conceito moderno, entenda-se. Na Europa, foram realmente os primeiros, já nos anos 1920, a se darem conta da necessidade de construir estradas exclusivas para veículos automotores. Entre rebanhos de cabras, carroças de feno, carros de boi, bicicletas e pedestres, os automóveis tinham crescente dificuldade em se locomover nas estradas de então.

Em 1924, foi inaugurada a primeira dessas novas vias, a Milano-Laghi, 84 quilômetros entre Milão e a região dos lagos lombardos. As características principais desse novo tipo de estrada já estavam lá: duas pistas duplas separadas por um canteiro central, proibição de circulação a todo veículo não motorizado, cobrança de uma taxa de passagem ― o pedágio.

Hoje a Itália conta com 6500km dessas estradas exclusivas, enquanto a França tem 9600km e a Alemanha, 11700km. A rede suíça totaliza 1400km. Os italianos dizem autostrada. Em alemão, é Autobahn. Os franceses conhecem como autoroute. Já os espanhóis preferem autopista. Em Portugal, também dizem auto-estrada. No Brasil, não há um nome específico. Fala-se em estrada duplicada, em rodovia com pedágio. Acredito que autoestrada ou via expressa pudesse ser uma boa tradução. Quem tiver melhor ideia, que se manifeste.

Via expressa atual

Via expressa moderna

Quase cem anos depois da abertura da primeira autostrada europeia, o Estadão nos informa que, neste sábado 27, a rodovia SP-340 «ganha»(sic) pedágio por trecho. É realmente um ganho! A cobrança da taxa de circulação passa a ser proporcional à distância percorrida. Isso sempre pareceu evidente para os europeus, desde os pioneiros de 100 anos atrás. Mas não aos responsáveis brasileiros.

Antes tarde que nunca.Interligne 18b

Suplentes
Artigo de Victor Vieira publicado neste 27 de julho volta ao assunto dos suplentes de senador. Dentre os 81 titulares, 16 são suplentes, criaturas sem voto, escolhidas por dedaço entre os familiares ou conhecidos dos senadores. Isso significa que 20% dos representantes dos Estados não foram eleitos pelo povo, um inconcebível absurdo.

Para o caso de impedimento de um senador, há somente duas soluções viáveis:
1) Deixar vaga a cadeira até que o titular retorne ou, no caso de não retornar, até a próxima eleição.
2) Organizar nova eleição no Estado representado pelo senador.

Que se aproveite a onda das reformas que apontam por aí e que se tome uma decisão. O que não podemos é continuar com esse sistema clânico, descendente direto do conceito medieval das capitanias hereditárias. Um senador não pode «terceirizar» seu cargo. O eleito é ele e não um de seus familiares, homens de confiança ou… capangas.

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A vantagem de Maria
A notícia fala dos problemas judiciários de Dominique Strauss-Kahn, ex-futuro candidato à presidência da França. Não me cabe aqui tomar partido. Eles, que são brancos, que se entendam.

O que me surpreende é o desaparecimento de uma palavra de nossa língua. Não li todos os avisos mortuários dos últimos 50 anos, portanto não sei quando ela faleceu. O fato é que sumiu de circulação.

O artigo conta que DSK está sendo processado pelo crime de proxenetismo. Em seguida, o jornalista sente-se obrigado a explicar, com meia dúzia de palavras, o que vem a ser essa palavra.

É aí que sinto a falta que fazem as palavras falecidas. Antigamente, dizia-se lenocínio. E todos sabiam o que era, não precisava maiores explicações. Quando proxenetismo entrou na língua portuguesa, já fazia alguns séculos que se dizia lenocínio.

Está aí uma substituição inútil e trabalhosa. Esquece-se a palavra antiga, elege-se uma nova. E, a cada vez que aparece, tem de ser acompanhada de sua definição.

Como dizia o outro: ― que vantagem Maria leva?Interligne 18b

Bandeiras queimadas by Miguel Schincariol, AFP

Bandeiras queimadas
by Miguel Schincariol, AFP

La gloria en llamas
Nos anos 60, na véspera da inauguração de uma exposição espanhola em Milão, na Itália, houve uma passeata de protesto. Os manifestantes reclamavam contra o regime franquista que regia a Espanha já fazia mais de 25 anos. No auge dos protestos, atearam fogo a bandeiras espanholas.

Indignado com o que acabava de acontecer, um jornalista espanhol, hoje já falecido, usou de toda a sua verve para escrever um inflamado artigo que fez história no jornalismo ibérico. Foi lá que, referindo-se à bandeira, utilizou a expressão «la gloria en llamas», a glória em chamas. E o artigo terminava prevenindo aqueles «que se divertem brincando com fogo».

Nesta sexta-feira, irresponsáveis se divertiram queimando a bandeira brasileira e a paulista. A bandeira é o símbolo maior de um país. Atear fogo a ela equivale a ofender todo um povo. É insulto de gravidade extrema, como se tivessem cuspido na cara de todos nós. A bandeira não é símbolo da presidente, nem do congresso, nem da prefeitura. É a representação de todos os brasileiros. Quero crer que os iconoclastas sejam brasileiros também. Assim, terá sido a primeira vez que vejo manifestantes ofendendo a si próprios. Nonsense total.

Nestes tempos de visita papal, cabe lembrar o sempre atual versículo 23:34 do Evangelho de Lucas: «Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem».

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O inverno extraordinário

José Horta Manzano

Frio

Frio

Você, que vive no Sul e no Sudeste, sentiu frio estes dias. Mas saiba que já houve épocas ainda mais geladas. Veja a descrição detalhada que lhes dou abaixo do extraordinário inverno de 1955.

Quarta-feira, 27 julho 1955. Naquela data, quase 60 anos atrás, tinha início a que talvez tenha sido a mais espetacular onda de frio já oficialmente registrada no Brasil. Os registros oficiais de 1912 até a atualidade estão aí para confirmar.Interligne 18f

ANÁLISE GERAL
A onda polar que atingiu o Brasil no final de julho 1955 foi marcante em cinco aspectos atípicos.

Interligne vertical 81°) O frio
Segundo os dados disponíveis, a onda polar derrubou as temperaturas em mais de 60% do território nacional ― mais de 5 milhões de km2. Mais: embora não tenham sobrado cartas sinóticas, os dados indicam que a frente fria ultrapassou a linha do Equador.

2) A geada
As geadas cobriram extensão territorial excepcional. Estima-se que o fenômeno tenha ocorrido em 90% da região Sul. Chegou a gear em quase todo o litoral gaúcho e também em alguns trechos do litoral de Santa Catarina e do Paraná, fenômeno pra lá de raro.

3) A neve
Nevou nos três estados sulinos com grande intensidade. A altura da neve acumulada no solo atingiu 70cm na serra catarinense. Além disso, no alto da serra gaúcha, o fenômeno continuou por 4 dias consecutivos. Foi a nevada mais longa já registrada na região. A neve cobriu também áreas de baixa altitude do RS e parte expressiva do PR.

4) As máximas diurnas
A temperatura máxima diurna registrada em todos os municípios atingidos pela onda de 1955 foi anormalmente baixa. O caso mais emblemático ocorreu em São Joaquim (SC), onde, durante três dias seguidos, o termômetro permaneceu abaixo de zero ― tanto de noite quanto de dia.

5) As mínimas noturnas
As ondas de frio registradas em 1918, 1925 e 1933, embora muito fortes, não cobriram regiões tão extensas quanto a de 1955. Em centenas de localidades brasileiras, o recorde de baixa temperatura verificado em 1955 ainda não foi quebrado. Essa afirmação vale tanto para o extremo sul do RS quanto para a Amazônia.

Após escrupulosa comparação, pode-se garantir que a frente polar de 55 foi a mais importante de todas as que já se registraram no Brasil.Interligne 18f

Frio

Frio

A CRONOLOGIA DO FENÔMENO

Nota: Os dados que se seguem baseiam-se nos registros no Inmet

Terça-feira, 26 julho 1955
O sul do Chile e o sudoeste da Argentina são invadidos por uma massa polar de trajetória continental. Ao mesmo tempo, o sul do Brasil vive um forte veranico.

Quarta-feira, 27 julho 1955
A massa de ar progride em direção ao norte e chega ao Rio Grande do Sul. Durante o dia, a temperatura despenca e o Inmet já registra neve à tarde em Bom Jesus. Enquanto isso, o Estado de São Paulo recebe a pré-frontal, com bastante vento, mas sem queda de temperatura.

Quinta-feira, 28 julho 1955
A massa polar, apesar de intensa, enfrenta grande resistência e avança lentamente pelo Brasil. No RS e em SC já faz muito frio e cai neve. Em Bom Jesus (RS), neva forte durante a tarde e a noite. No PR, a temperatura só cai mesmo a partir do meio da tarde e no Estado de SP a pré-frontal continua forte. Pelo interior, a massa polar avança em direção à Amazônia.

Sexta-feira, 29 julho 1955
O bloqueio do veranico perde força, mas ainda assim o ar polar avança devagar pelo Brasil. No Centro-Oeste, a onda de frio chega a Cuiabá e dá início a uma forte friagem. Em São Paulo, o tempo muda à tarde com a chegada da frente fria. As temperaturas despencam. Neva muito nas serras gaúchas e catarinenses. Em Bom Jesus (RS), registra-se intensa queda de neve durante 24 horas seguidas.

Em São Joaquim (SC), além da nevasca, a temperatura máxima do dia foi negativa. Não subiu além de -1ºC.

Em Joaçaba, no interior catarinense, nevou a tal ponto que houve interrupção no tráfego de algumas ruas. A precipitação durou o dia inteiro. No fim do dia, a neve chegaria ao Paraná. Em Porto Alegre (RS), a máxima foi de apenas 8,5ºC, uma das mais baixas registradas até hoje.

Sábado, 30 julho 1955
A onda de frio atua com fortíssima intensidade no Sul, em parte do Sudeste, na maior parte do Centro-Oeste e até no oeste da Amazônia brasileira. O dia amanhece gelado desde o Rio Grande do Sul até o Amazonas.

Em Cuiabá a mínima chega a 4,3ºC e na cidade de Lages (SC), desce a 5ºC negativos. Nesse dia, continua a nevar nas serras do RS e de SC, embora já com menor intensidade. Por outro lado, as precipitações caem sob forma de neve intensa sobre vasta região do Paraná. A cidade de Palmas (PR) recebeu de 30 a 50cm de neve, volume extremamente raro.

No Paraná, neva nas cidades de Clevelândia, Francisco Beltrão, Santo Antônio, União da Vitória, Inácio Martins, Guarapuava, Cascavel e Pato Branco, entre outras.

Também em Curitiba parece ter ocorrido o fenômeno. Jornais locais da época afirmam que caíram flocos de neve nos bairros do Bacacheri, Boqueirão e na região do Afonso Pena. É perfeitamente plausível, dado que a temperatura variou entre -2ºC e 3ºC na cidade naquele dia.

Também foi divulgada pela imprensa a queda de neve em Porto Alegre (RS). Mas o Inmet não registrou oficialmente essa ocorrência.

Outro fato digno de nota é a temperatura máxima diária mais baixa registrada em São Joaquim (SC): apenas -2,0ºC. Só em uma outra ocasião registrou-se máxima diária inferior a essa: foi em julho de 1993, com 2,4ºC negativos.

Ao mesmo tempo em que tudo isso ocorre no Sul, a massa polar continua seu avanço e chega a Manaus (AM). Ao longo do dia o tempo abre em toda a Região Sul.

Domingo, 31 julho 1955
A onda de frio atua no auge de sua força em todo o Centro-Sul e em boa parte da Amazônia. Na Região Sul, o céu limpo na madrugada favorece a queda da temperatura e a formação de fortes geadas. A friagem, como o fenômeno é chamado na Amazônia, atua com força total.

Veja algumas mínimas registradas no Brasil naquele dia:

Guarapuava (PR): -8,4ºC
São Joaquim (SC): -8,1ºC
Ivaí (PR): -6,0ºC
Curitiba (PR): -5,0°C
Aquidauana (MS): -0,9ºC
Paranaguá (PR): 2,3ºC
Laguna (SC): 2,4ºC
Florianópolis (SC): 4,0ºC
Cruzeiro do Sul (AC): 10,2°C
Manaus (AM): 18,5°C

Pela manhã, as geadas devastaram as lavouras de café do Paraná. Foi um desastre econômico, dado que a rubiácea era, de longe, o principal produto de exportação do País.

Em São Paulo, geou apenas na cidade de Catanduva, que registrou mínima de -1ºC. No leste do estado, o céu ficou limpo a partir da tarde e as temperaturas despencaram à noite.

No Amazonas, a onda polar ultrapassou a linha do Equador.

Frio

Frio

Segunda-feira, 1 agosto 1955
De a madrugada, o frio atingiu seu auge e o amanhecer foi gélido no Centro-Sul. Eis algumas mínimas:

Rio Grande do Sul
Bom Jesus: -9,8°C (recorde histórico do Estado)
Alegrete: -3,0°C
Bagé: -2,0°C
Iraí: -4,3°C
Passo Fundo: -2,5°C
Pelotas: -3,4°C
Porto Alegre: -1,2°C
São Luiz Gonzaga: -1,2°C
Santa Maria: -2,0°C

Santa Catarina
São Joaquim: -6,4°C
Urussanga: -4,6°C
Camboriú: -1,2°C

Paraná
Castro: -7,5°C
Rio Negro: -7,2°C
Ivaí: -6,1C°
Jaguariaíva: -2,7°C
Paranaguá: 3,8°C

São Paulo
Avaré: 0,3°C
São Paulo (Mirante de Santana): 1,5°C
São Paulo (Horto Florestal): 0,7°C

Mato Grosso
Cuiabá: 9,0°C
Aquidauana: -2,2°C
Corumbá: 3,3°C

Amazônia
Alto Tapajós: 11,1°C
Uaupés: 18,1°C
Manaus: 19,0°C
Iauaretê: 16,5°C (na linha do Equador)
Cruzeiro do Sul: 9,6°C

As geadas foram muito intensas em toda a Região Sul e atingiram também boa parte de São Paulo. Geou em Catanduva, Limeira, Avaré, Itú, Monte Alegre do Sul, Tatuí. Em Presidente Prudente, a mínima desceu a -1ºC.

Neste dia, a onda de frio começou a perder força, embora ainda mantendo temperaturas relativamente baixas durante o dia.

Frio

Frio

Terça-feira, 2 agosto 1955
A onda de frio perde força rapidamente, mas de manhã o frio foi intenso principalmente no Estado de São Paulo.

Mínimas:
Camboriú, SC: -1,2°C
São Paulo, SP: -2,1°C (recorde histórico)
Santos, SP: 4,3°C
Iguape, SP: 3,2°C
Angra dos Reis, RJ: 9,9°C
Itajubá, MG: 1,2°C

No dia 3 ainda foram registradas mínimas negativas no Sul do país, mas no dia 4 o ar frio já se dissipava totalmente. Mesmo assim, Teresópolis registrou apenas 1,2°C.

Foi o fim da superonda polar do inverno de 1955.

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Fonte: Abaixodezero.com

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Mundo, mundo, vasto mundo

José Horta Manzano

Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso. É o que se costumava dizer para sublinhar traços que diferenciam os povos.

A globalização está aí. Hoje em dia, o mundo parece cada vez menor. Pode-se comprar camembert legítimo no Brasil. Qualquer bom supermercado europeu vende farinha de mandioca, maracujá e cachaça. Há restaurante especializado em sushi até na Bósnia. Na Mongólia ou em Uganda, basta dispor de uma parabólica ― uma «paranoica», como dizia o outro ― para captar Telesur, a televisão bolivariana. ¡Que felicidad, hermanos!

Mas essas mudanças, no fundo, são de fachada. Raspando a superfície, descobre-se que a casca é fininha. Abaixo dela, o miolo é bem mais resistente e detesta mudanças.

Nos costumes políticos, por exemplo. Em tempos idos, o Partido dos Trabalhadores chegou a expulsar afiliados que ousaram mostrar algum sinal de insubmissão a ditames superiores. Hoje, isso não impressiona mais ninguém, muito pelo contrário.

Não é raro ver deputados e outros eleitos bandearem-se do partido A ao partido B, que os acolhe braços abertos. Ficha limpa? Ficha suja? Processo nas costas? Condenação judicial? Pouco importa ― quem liga mais para essas picuinhas? Nestes tempos estranhos em que antigos «virtuosos» tomam a benção de Maluf, os valores andam um bocado turvos. O fato é que está cada dia mais difícil ser expulso de um partido no Brasil.

Torre Eiffel

Torre Eiffel

Já na França, outra roca, outro fuso. Por lá, ainda vale o velho adágio: bobeou, dançou. O site da televisão pública francesa dá hoje seis conselhos aos políticos que quiserem evitar ser expulsos de seu partido. Comparando a visão que se tem da política na França com a que se tem no Brasil, parece que estamos falando de um outro planeta.

Os conselhos são:

Interligne vertical 71) Não fazer a saudação nazista ― aquela com o braço direito estendido à frente do corpo.

2) Não minimizar os crimes da Segunda Guerra.

3) Não atacar as etnias minoritárias na França.

4) Não apoiar o partido Frente Nacional (extrema-direita).

5) Não se candidatar quando o partido tiver escolhido outro nome em sua circunscrição.
Nota: Os deputados franceses são eleitos por voto distrital puro.

6) Não fraudar a receita.

Cada conselho faz alusão a alguma expulsão ocorrida em tempos recentes. Mundo, mundo, vasto mundo.

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A frase do dia – 14

«Num discurso impróprio, a doutora Dilma referiu-se às “mudanças que iniciamos há dez anos”. Louvava a década de pontificado petista diante de um pastor cujo mandato começou há 2013 anos. Não entenderam nada.»

Elio Gaspari, comentando a fala de dona Dilma diante do papa
in Folha de São Paulo, 24 julho 2013

A festa continua

José Horta Manzano

Já lhes falei aqui, faz pouco mais de um mês, de nosso exótico ministro do Esporte, Aldo Rebelo. Pois o homem é incorrigível. Continua aprontando.

Outra travessura do burlesco personagem aconteceu no Carnaval passado, mas só agora veio a público. E olhe que, não fosse o pipocar de traquinagens semelhantes cometidas por outros políticos mais célebres que ele, suponho que suas artes continuassem dormindo no esquecimento.

Artigo da Folha de São Paulo deste 24 de julho nos informa que Aldo Rebelo se valeu de um avião das Forças Aéreas Brasileiras para viajar a Cuba. Até aí, nada de estranho. Parece absolutamente normal que um afiliado histórico do Partido Comunista vá passear na ilha onde ele é amigo do rei.

Para não ficar feio, a viagem foi registrada como «missão oficial» ― quem poderá contestar? Aconteceu durante o Carnaval. E daí? Na maior ilha caribenha, como sabemos, vivem todos felizes o ano inteiro. Não têm necessidade de comemorar carnavais para descomprimir. Por lá, trabalha-se duro o tempo todo, donde o elevado padrão de vida da população.

O ministro levou consigo a esposa. E daí? Se até os encarcerados têm direito a visita íntima, por que seria negada a um figurão da República a regalia de levar consigo a esposa em viagem oficial? A esposa não aparece na lista oficial de viajantes. Bem, aí já começamos a ter um problema. Por que não aparece? Um esquecimento, certamente.

Avião da alegria

Avião da alegria

Além da esposa, o ministro levou consigo o filho. Que tampouco aparece na lista de passageiros ― mas vejam que coincidência!

Vamos recapitular. Nosso aplicado ministro do Esporte decide fazer uma viagem de trabalho a Cuba em pleno Carnaval. Leva esposa e filho. O nome dos acompanhantes não aparece na lista oficial de passageiros da viagem. O senhor Rebelo nos explica que sua esposa e seu filho viajaram a convite dos Castros. E daí? Na ilha maravilhosa mandam os Castros e sua clique, no Brasil mandamos nós. Que se saiba, o custeio da aviação militar brasileira não vem da ilha da fantasia. Sai do dinheirinho suado que é extorquido de todos os brasileiros por meio de impostos diretos e indiretos.

Vejam como são as coisas. O homem que tanto se esforçou em matéria de proteção da língua portuguesa e do saci-pererê é bem menos rigoroso quando se trata de proteger o dinheiro de seus compatriotas contribuintes.

A quem estamos querendo enganar? Contorcionismos verbais já não surtem o mesmo efeito que antes. Ou esses medalhões tomam jeito, ou isso ainda vai acabar mal. Ninguém gosta de ser vítima de zombaria. Os políticos brasileiros estão demorando a se dar conta de que a consciência do povão já não é letárgica como costumava ser.

A continuarem as estrepolias da nomenklatura tupiniquim, essa novela ainda vai acabar mal.

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Era de esperar

José Horta Manzano

Uma das engraçadas leis de Murphy diz que, se o pior puder acontecer, acontecerá. A mídia europeia, naturalmente, deu boa cobertura à presença papal no Rio e a ela dedicou espaço importante.

No entanto, é compreensível que, num mundo encharcado de imagens ao vivo e em alta resolução, a figura de um papa beijando criancinhas já não entusiasme como antes.

Para apimentar reportagens modorrentas, não foi preciso procurar muito longe. A alguns passos da rota do visitante, jovens ― aparentemente sem grande coisa a fazer e, mais que isso, vítimas de estrelismo agudo ― decidiram se manifestar.

Visita do papa

Visita do papa

Houve reclamações contra o governador do estado, contra o preço das passagens de ônibus. Houve até os que fizeram questão de hostilizar o visitante, prova de que democracia não rima necessariamente com civilidade. Em resumo, as manifestações pareciam um mercado persa, uma loja de 1,99 onde se encontra de tudo.

O jornal francês Le Monde, assim como o resto da mídia estrangeira, não se fez rogar para registrar os acontecimentos e difundi-los por aqui. Vai-se firmando a ideia de que, longe da imagem suave e idílica que se tinha, o Brasil é um país habitado por gente violenta, baderneira, mal-educada e imprevisível. Dá muita pena.

E pensar que os que tiveram nas mãos o poder absoluto estes últimos 12 anos não se empenharam em elevar o padrão civilizatório do povo. Não era tão difícil. Até nos tempos da ditadura havia uma oposição mais incisiva que a atual. Bastava que os eleitos tivessem dedicado metade de seu tempo a cumprir com honestidade o mandato que lhes tinha sido confiado. Para desgraça de todos, a maioria preferiu dedicar a totalidade de seu tempo a seus interesses pessoais. O resultado está aí. A História há de guardar estes anos irresponsáveis, de esbórnia e de incúria, entre os mais sombrios.

O bom lado disso tudo é que, por uma dessas coincidências alinhavadas pelo destino, o herdeiro da coroa britânica tenha visto a luz no mesmo dia da chegada do papa ao Rio. O choro do neonato foi providencial.

No Brasil, compreensivelmente, o evento passou praticamente despercebido. Já na Europa, o royal baby eletrizou tanto os que ainda têm um rei, quanto os que gostariam de voltar a tê-lo. Ou seja, uma importante fatia de cidadãos. Isso ajudou a sombrear a imagem das desordens do Rio e abafar-lhes o eco . Melhor assim.

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Interligne vertical 9Curiosidade pré-histórica

Jânio Quadros foi presidente do Brasil ao tempo dos Sumérios. Era personagem carregado de defeitos. Acusavam-no de beberrão, esquizofrênico, populista, imprevisível, paranoico. Pode até ser, mas há controvérsias.

No entanto, num ponto, todos concordavam: o homem conhecia profundamente a língua portuguesa. E mais: apesar dos defeitos e do raríssimo sorriso, sabia tratar os outros com civilidade e, em troca, exigia ser tratado com respeito.

Uma vez, quando de uma entrevista coletiva, um repórter dirigiu-se ao presidente chamando-o de você. A reação veio fulminante. O presidente chamou a atenção do interlocutor. Disse-lhe que não o estava tratando com tamanha intimidade e ficaria reconhecido se o repórter lhe concedesse tratamento recíproco.

Eram outros tempos. Os homens tinham seus defeitos, mas ainda mantinham um verniz de polidez. Hoje, um solvente parece haver decapado a superfície. Foi-se o polimento, e sobraram só os defeitos.

Reparem, aqui logo acima, no cartaz do manifestante. Trata o ilustre visitante por você e isso não parece incomodar mais ninguém. Jânio talvez desaprovasse.

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O papa e o protesto

José Horta Manzano

Os franceses têm resposta pra tudo. A cada aumento de imposto ― fato que acontece com bastante frequência na terra deles ― sempre aparece alguém no rádio ou na televisão para repetir que trop d’impôt tue l’impôt, imposto demais mata o imposto.

Com isso querem dizer que todo exagero é pernicioso. Impostos elevados demais são um convite à evasão e até à fraude. Têm razão. Nunca convém abusar, sob pena de ver o resultado irremediavelmente comprometido.

Faz um mês, o Brasil fervia. Centenas de milhares de manifestantes pacíficos saíam espontaneamente às ruas. Sem bandeiras, sem comando unificado, sem orientação partidária, sem carros de som, sem uniformes e sem estímulo oficial. Alguns portavam cartazes artesanais onde exprimiam seu anseio, sua reclamação, seu fastio.

Se algum dos 200 milhões de brasileiros lhe disser que, duas semanas antes, já havia previsto os protestos, não acredite: estará mentindo. Nenhum de nós imaginou que esse tipo de fenômeno fosse de novo possível num Brasil sedado havia mais de 10 anos. Mas aconteceu e foi útil.

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Numa certa altura da vida, tive um chefe que eu admirava e respeitava. Era o dono da empresa. Vez por outra, no meio do dia, ele saía. Nunca dizia aonde ia, mas costumava lançar, já na soleira da porta, a frase ritual: «Pode ser que eu volte no fim da tarde». Às vezes, voltava mesmo. O mais das vezes, não. Mas, entre nós, ficava a dúvida. Voltará ou não? Será que posso ir-me embora um pouco mais cedo? Será que ouso ausentar-me uma meia horinha para tomar sorvete na esquina?

O fato é que a técnica do chefe funcionava. Ninguém arriscava fazer o que não devia. O homem ia, mas o chicotinho ficava dependurado na parede.

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As passeatas de junho foram uma advertência gritante. Todos os figurões entenderam, mas cada um reagiu a seu modo. O mais visado, o pai de todos, escondeu-se e, pusilânime, fez-se de morto e sumiu de circulação. Outros, que não tinham como escapar, tomaram decisões vistosas, mas atabalhoadas e desconexas. Houve ainda quem desafiasse a voz das ruas e continuasse, como antes, requisitando aviõezinhos da FAB como se estes fizessem parte de seu patrimônio privado. Levaram uma advertência em regra.

Agora, que estão todos avisados, precisa dar uma pausa para meditação. Os mandarins brasileiros não vão tomar juízo da noite para o dia, que os vícios são muito antigos e já criaram raízes. O importante é que todos agora sabem que o mundo mudou e que as coisas não são mais como antes. Todo gesto, toda conversa, todo movimento é susceptível de ser vigiado, descoberto e divulgado.

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Papa Francisco

Papa Francisco

Papa Francisco deve desembarcar no Rio nesta segunda-feira, logo mais à tarde, em sua primeira viagem fora da Itália. Algumas mentes pouco iluminadas estão convocando incautos para protestar contra isto e aquilo durante a visita papal. É besteira grossa.

Primeiro, porque uma manifestação desse tipo pode ser interpretada como hostilidade ao visitante. Não cai bem. Além de mostrar sua falta de educação, os manifestantes perigam emitir sinais incoerentes. Desfilar diante do indivíduo A para manifestar seu descontentamento com o indivíduo B? Não faz sentido.

Segundo, porque os microfones e as câmeras do mundo inteiro que estarão postadas estes dias em volta do visitante transmitirão ao mundo a imagem de um povo baderneiro, pouco sério e dificilmente governável. A longo prazo, uma imagem desse naipe só pode ser prejudicial. Vai assustar futuros turistas e afugentar investidores. Contribuirá para que o planeta enxergue o Brasil com antipatia.

Terceiro ― e talvez mais importante: o exagero é prejudicial. As duas semanas de manifestações juninas foram uma advertência séria. Governo, ministros, senadores, deputados, prefeitos, governadores entenderam que o chicotinho está dependurado na parede. Não precisa açoitar ninguém, pelo menos não por enquanto.

Tenhamos paciência. Vamos dar tempo ao tempo. Não nos precipitemos. Vamos deixar que nossos mandachuvas tomem as providências urgentes. Depois, veremos. Trop d’impôt tue l’impôt.

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Interligne vertical 4Observação indignada e envergonhada

O senhor Eduardo Paes, prefeito da mui nobre cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro permitiu-se ofender um país inteiro. Chamou os franceses de vagabundos. E não fez isso numa conversa de botequim, mas durante uma entrevista coletiva, ao responder a um questionamento de uma equipe da televisão francesa.

Não conheço o prefeito do Rio. No entanto, ao ler essa notícia, entendi que não deve ser o homem mais inteligente da política brasileira. E olhe que os políticos brasileiros não primam pela inteligência nem pela cultura! A ofensa pública e gratuita que ele cometeu é acachapante. Mesmo sem ser carioca, sinto-me envergonhado.

Escolha errada

José Horta Manzano

Talvez seja tarde demais, é verdade, mas… antes tarde do que nunca. Antevendo catástrofe no ano que vem, o presidente da Fifa finalmente reconhece que a escolha do Brasil para sediar a próxima Copa do Mundo pode não ter sido uma boa ideia. Foi delicado, falou suave.

E tem razão, ninguém pode negar, embora receio que seja demasiado tarde para voltar atrás. Bilhões já foram enterrados nessa aventura extravagante. Governo do Brasil, patrocinadores, a própria Fifa, nenhum dos envolvidos pode mais desistir. Malfeito foi, malfeito continua sendo, e malfeito continuará.

Estava bonito no papel, na prancheta e na conta bancária. Tudo parecia perfeito. Esqueceram de combinar com o povo. Os ingênuos mandachuvas brasileiros menosprezaram a inteligência dos habitantes do País. E os gananciosos dirigentes da Fifa acreditaram nas garantias do governo brasileiro.

Estava aí uma ocasião de ouro para organizar um plebiscito. Falo de 7 anos atrás, evidentemente. O governo teria assim jogado a responsabilidade no colo do povo. Ninguém poderia reclamar. Mas, que fazer? Entre o plebiscito que não houve e o governo que não ouve, deu no que deu.

Árbitro Crédito: Kopelnitsky, EUA

COPA DO MUNDO
By Kopelnitsky, EUA

Cada povo tem suas características, destiladas por um processo multissecular. Cada povo tem suas qualidades e seus defeitos. O rigor e a disciplina certamente não fazem parte da coletânea de qualidades maiores de nossa gente ― bem ao contrário.

A organização de um evento da magnitude de uma fase final de Copa do Mundo de futebol exige qualidades e prendas que ainda não possuímos. Se bastasse construir estádios monumentais e dar-lhes a bizarra apelação de «arena», o problema estaria resolvido. Infelizmente, precisa um pouco mais que sol, samba, carnaval e mulatas para organizar o espetáculo.

Temos falhas estruturais capazes de frustrar o sucesso de eventos mundiais. Há remédio para tudo, mas precisa comprar o medicamento e seguir a receita tim-tim por tim-tim. O tratamento vai levar tempo.

A visão de nossos políticos não alcança mais longe que a próxima eleição, portanto esses tratamentos a longo prazo não têm grande chance de serem adotados.

É muito chato que aconteçam coisas como esse pronunciamento de Herr Blatter, paxá da Fifa. Uma frase saída da boca de gente desse calibre é capaz de aniquilar anos de maquiagem de marqueteiros do Planalto. A imagem de país de Primeiro Mundo, moldada com tanto cuidado por «peritos em comunicação», escoa pelo ralo.

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Aqui está um florilégio da repercussão mundial da fala de Herr Blatter.

Interligne vertical 5No Brasil

No México

No Canadá

Na Alemanha I

Na Alemanha II

Nos Estados Unidos

Na Itália

Na França

No Peru

Na Inglaterra

Em Portugal

Se o mundo ainda existir ― e o Brasil e o futebol também ― talvez estejamos em condições de nos candidatar para sediar a Copa de 2126. Ou quem sabe a de 2130, ano que marcará o 200° aniversário do primeiro Campeonato Mundial de Football, como se dizia na época.

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Em boas mãos

José Horta Manzano

No dia 4 de julho de 2013, o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves, reconheceu que tinha «errado» ao requisitar um avião das Forças Aéreas Brasileiras para conduzi-lo de Natal ao Rio de Janeiro a fim de assistir a um jogo de futebol.

Ressalte-se que esse senhor é presidente da Câmara dos Deputados. Está em segundo lugar na linha sucessória da presidência da nação. Vem logo após o vice-presidente, antes até do presidente do Senado.

É interessante que o senhor Alves somente se tenha dado conta do «erro» depois que a mídia já tinha tornado público o escândalo. Menino travesso.

Ladrão

Ladrão

No dia 4 de julho de 2013 ― que coincidência, na mesma data! ― reportagem do Correio Braziliense informa que um secretário do senhor Alves tinha sido assaltado três semanas antes. O assalto, descrito como cinematográfico, deu-se à luz do dia, numa artéria movimentada de Brasília. Os personagens designados como assaltantes não primaram pela sutileza. Parece que procuravam se exibir diante de testemunhas, coisa estranha.

O veículo em que trafegava o assessor foi fechado por outro carro do qual dois homens desceram e anunciaram o assalto. Vasculharam o veículo do assessor e levaram uma maleta que, segundo se soube mais tarde, conteria 100 mil reais em dinheiro vivo. A história, um tanto nebulosa, foi deixada de molho desde então. Ninguém mais falou no caso.

Bisbilhoteira, a Folha de São Paulo deste 20 de julho retoma o fio da meada. Informa que os 100 mil reais que ― sempre segundo a declaração do portador ― a maleta continha pertenciam na verdade a nosso conhecido senhor Alves. Yes!, o mesmo que cometeu o «erro» de requisitar avião da FAB para seu lazer particular.

Repito que esse senhor é presidente da Câmara dos Deputados do Brasil. Não é pouca coisa.

Segundo a reportagem da Folha, o deputado mostra certa irritação com a invasão de privacidade de que se considera vítima no caso do roubo da maleta. Alega que o dinheiro contido ali era seu. Estava destinado a pagar uma prestação relativa à compra de um apartamento. Por sinal, o vendedor do dito apartamento é também deputado ― mera coincidência, certamente.

Ladrão

Ladrão

Excluídos os bancários cuja função consiste em preparar maços de notas para serem guardados em caixa-forte, é dificilmente concebível que um cidadão tenha 100 mil reais em suas mãos. Mais inacreditável é que use dinheiro em espécie para pagar uma prestação desse valor. Mais impressionante ainda é que confie a missão a uma terceira pessoa. E o auge da emoção é provocado pelo assalto em pleno dia.

Acredite quem quiser. Para mim, essa história está muito mal contada. Cada um é livre de formular sua própria hipótese. Pena que Agatha Christie já não esteja mais entre nós. Esse caso, posto nas mãos do detective Hercule Poirot, renderia um livro excepcional.

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Para que fique bem claro:
Ressalte-se que o senhor Henrique Eduardo Alves é presidente da Câmara dos Deputados. Está em segundo lugar na linha sucessória da presidência da nação, logo após o vice-presidente. Nosso País, como se vê, está em boas mãos.

Melhores destinos para expatriados

José Horta Manzano

O marketing governamental carece de visão de futuro. Pode ser instrumento excelente para tapar buracos pequenos e imediatos, mas, no capítulo das previsões, é um desastre. Só se dá conta dos problemas quando já aconteceram. E aí, é mais difícil dar jeito. Precisa competência, artigo raro entre nossos mandarins.

Assim como o Brasil tem o Valor Econômico, publicação que preencheu o vazio deixado pela extinção da Gazeta Mercantil, a França tem as revistas Capital e Management. A versão online das duas está alojada no sítio Capital.fr.

Mês passado ― antes dos protestos das ruas brasileiras ― o especialista publicou um interessante artigo, bastante documentado, com recomendações aos franceses que pretendem se estabelecer no estrangeiro.

Bandeiras do mundo Para onde ir?

Bandeiras do mundo
Para onde ir?

Descreve, com os comos e os porquês, os oito países mais interessantes para os futuros expatriados. Atenção: não estamos mais falando da imigração de 100 anos atrás, quando levas de agricultores pobres e iletrados saíam em busca de vida menos apertada. Falamos aqui de deslocamento voluntário de gente que tem formação técnica ou intelectual e competência para exercer funções de responsabilidade.

Para cada um dos países, o artigo indica quais são os setores onde os expatriados terão melhores chances de descolar uma boa posição. Dá também algum conselho útil para quem chega a terra desconhecida.

Os oito países são: o México, a Índia, a República Dominicana, a Turquia, a Indonésia, o Marrocos, a Suíça e a Hungria. Não necessariamente nessa ordem.

Notou falta de alguma coisa? Pois é, eu também reparei. Falta o Brasil, o novo eldorado cantado em verso e prosa pelo marketing oficial.

É assaz incômodo ficar sabendo que empresários estrangeiros nos enxergam como um país com menos oportunidades que um México ou uma Indonésia. Pior: na visão deles, até Índia e República Dominicana nos ultrapassam.

Que outras realidades o marketing do Planalto nos oculta?

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É oficial

José Horta Manzano

É oficial. Já aconteceu faz um mês, mas, distraído, eu não tinha me dado conta. É verdade que nosso governo federal nos tem acostumado a uma avalanche de decisões grandiosas, o que faz que uma ou outra decisão passe despercebida. Mas essa de que lhe falo aqui é de tal magnitude que não pode ser deixada na penumbra.

Vera Magalhães, da Folha de São Paulo, foi quem botou a boca no trombone. Como não gosto de comprar gato por lebre, fui conferir na fonte. Para quem se interessar, aqui está o Decreto n° 8001, de 10 de maio de 2013, sancionado pela presidente da República.

Decreto n° 8001 Presidência da República

Decreto n° 8001
Presidência da República

Entre outras providências, o decreto cria o cargo de diretor do Departamento de Racionalização das Exigências Estatais da Secretaria de Racionalização e Simplificação da Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República. Não é brincadeira, não. Confiram.

E pensar que, durante mais de cinco séculos, função tão importante não foi exercida por ninguém! É de pasmar! Antes tarde que nunca. Estou feliz em saber que uma parte do salário desse senhor é sustentada com os impostos que pago. Equipamentos hospitalares podem bem esperar um pouco. Tenho certeza de que estamos todos de acordo, não?

Depois fazem cara de bobos e dizem não entender por que razão o povo reclama nas ruas…

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Obs:
Dona Dilma, sabe-se lá por que absconsa razão, prefere a forma presidentA. A mim, soa demasiado informal, indigno de servir de título à chefe do Executivo. Faz pensar em «gerenta», em «dona patroa», formas irreverentes que não caem bem em tão excelsa personagem.
Parenta ainda passa ― é termo familiar, coloquial. Agora, presidenta… tsk, tsk, não me parece apropriado.

Jeca Tatu

Jeca Tatu

Jeca Tatu

 

“Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí.”

José Bento Monteiro Lobato, in Jeca Tatu

Leia a historinha completa do Jeca Tatu no Blog da Wilma. Aqui. Ou também aqui.

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Casus belli, ma non troppo

O Estadão, um dos três maiores diários brasileiros, dedicou um de seus editoriais deste 18 de julho à humilhação a que o Brasil foi submetido pela Bolívia quando da inspeção de que foram alvo três aviões da FAB em La Paz.

Este blogue já tinha analisado esse incidente no artigo Autolouvação, de 17 de julho. Nós classificamos a agressão na categoria de casus belli, aqueles capazes de provocar uma guerra. O Estadão é mais suave em suas conclusões. Melhor assim.

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Mercática

José Horta Manzano

Nenhum exagero é saudável. Nem de coisa boa se deve abusar. Arsênico e beladona, venenos poderosos, estão presentes em certas preparações homeopáticas. Quem tiver paciência e determinação, pode suicidar-se bebendo copos d’água ― a partir de um certo limite, o metabolismo se alterará a tal ponto que a morte será inevitável.

Desde que o primeiro homem pôs à venda o primeiro produto ― terá sido uma cabra, um carneiro, um cesto de lentilhas? ― estratégias empresariais estiveram presentes em toda negociação.

Meio cheio

Copo d’água

Técnicas de venda recebem diversas denominações, algumas valorizantes, outras depreciativas. Tudo depende da época e do caso específico. Esperteza, malícia, astúcia, manha, lábia são nomes mais pejorativos. Entre as designações prestigiosas, estão argúcia, técnica, perícia, engenhosidade e a onipresente e universal marketing(*).

Cada um tenta vender seu peixe. Mas o apregoamento do produto, por mais que lhe destaque as qualidades, não tem o condão de aprimorá-las. Nenhum alquimista conseguiu até hoje transformar bronze em ouro. Um mau produto, ainda que tenha sido vendido com maestria, será sempre um mau produto.

Marketing, merchandising e técnicas afins estão cada vez mais presentes em nosso dia a dia. Até o governo vai buscar inspiração em estratégias que antes eram apanágio de vendedores de aspirador.

De uns tempos para cá, o debate de ideias vem sendo substituído por técnicas de marketing. Não vence necessariamente o candidato que tiver o melhor projeto, mas o que puder pagar o marqueteiro mais convincente.

Já faz anos que os atores da arena política brasileira vêm sendo aconselhados por marqueteiros. Em casos extremos, agem como marionetes, como bonecos de ventríloquo. O que dizem não é necessariamente o que pensam ― é o que foram orientados a dizer.

Bebida

Copo d’água

Assim como água pode matar, esse viés de nossos dirigentes tem-se tornado pernicioso ultimamente. Está exageradamente visível e artificial. Não me espantaria que estivesse entre os motores dos confrontos de junho.

A população começa a se dar conta de que está sendo governada não por políticos, mas por marqueteiros. É incômodo saber que os que conduzem o País não são exatamente aqueles que escolhemos. São homens da sombra, cuja identidade nem sempre nos é revelada.

Vamos torcer para que o excesso de copos d’água não bloqueie o metabolismo da nação. E para que tampouco exagerem na dose de arsênico.

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(*) É pena que não tenha ocorrido a ninguém fabricar um equivalente tupiniquim para o termo “marketing”. A palavra mercática, por exemplo, simpática, fácil de grafar, simples de pronunciar, teria sido um excelente substituto.