O Brics

Da Folha de São Paulo

José Horta Manzano

O clube chamado Brics não passa de fantasia sem qualquer consistência. Esse acrônimo foi bolado vinte anos atrás por um economista do banco Goldman Sachs. O rapaz teve a ideia de enfileirar a letra inicial de cada um dos países que, segundo a bola de cristal daqueles tempos, dominariam a economia global por volta de 2050. Brasil, Russia, India, China. Deu: Bric. Anos mais tarde, talvez na intenção de incluir um país africano no elenco, foi acrescentada a África do Sul (South Africa) e o acrônimo virou Brics.

Como se vê, entraram na mesma sacola países que quase nada têm em comum além do fato de serem promessas para o futuro. A Rússia tem tanto a ver com a África do Sul quanto a China tem a ver com o Brasil. No fundo, a qualidade comum aos membros do clubinho é ter uma população importante, se bem que a África do Sul nem tanto.

Dirigentes do Brics se reúnem com certa frequência e tomam decisões de pouca relevância. A heterogeneidade dos membros é tão grande que até o nome do clube flutua no entendimento de cada um. Veja a imagem reproduzida no alto deste artigo: a própria Folha de SP, que costuma ser cuidadosa nos detalhes, hesita entre “os Brics” e “o Brics”.

É verdade que aquele “s” no final parece indicar plural. Mas é só impressão. Como Mercosul, Brics é um nome coletivo, não admite plural. Quem diz “os Brics se reúnem” deveria também dizer “os Mercossuis se reúnem”. Não se deixe impressionar pelo “s” final.  O Brics é suficiente, assim como o pires e o lápis.

A associação é atualmente composta por 5 países: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Desses cinco, dois são ditaduras autoritárias (China e Rússia) e um está a caminho (Índia). Pior que isso: o ditador russo está na lista vermelha da Interpol com ordem de captura emitida pelo Tribunal Penal Internacional. Para ele, é temerário botar um pé fora de suas fronteiras.

A população da Índia é 25 vezes maior que a da África do Sul. O PIB da China, pelo conceito ppp, é 3 vezes maior que o da Índia, 7 vezes maior que o do Brasil ou da Rússia, 30 vezes maior que o da África do Sul. A assimetria econômica entre os membros é paralisante.

O distinto leitor e a encantadora leitora hão de convir que, com sócios díspares e sem um objetivo comum, a associação tem chances magras de prosperar. A continuar assim, vai acabar se tornando um agrupamento de países-súditos da China.

Caso o Brics aceite novos membros nos próximos anos, a ascendência chinesa sobre todos vai se tornar ainda mais evidente. O Brasil deveria combater vigorosamente toda expansão do clube.

Não sei se o lulopetismo já se deu conta de que o preço a pagar para levar seu antiamericanismo às últimas consequências é jogar-se nos braços da China. É bom que comecem a pensar nisso com urgência porque, sabendo ou não, é o que estão fazendo.

A sabedoria popular ensina que não se deve trocar o certo pelo duvidoso.

Seis por meia dúzia

José Horta Manzano

Nossa memória coletiva é curta. Fatos que enchiam a atualidade 5 ou 6 anos atrás sumiram, saíram de cartaz e ninguém fala mais deles.

Lula da Silva assumiu a Presidência em 2003. Com o passar dos anos, o lulopetismo foi se entranhando na cena política nacional. Com linguajar soviético-policial, dizia-se que o PT tinha “aparelhado” as instituições da República; que seus braços tinham “infiltrado” estatais, autarquias, semiautarquias, agências, departamentos e repartições; que estava tudo “dominado”.

A infiltração parecia estar instalada para todo o sempre. A menos que se faça uma despetização, “o Brasil está perdido”, temia-se. Nesse espírito, Bolsonaro foi eleito.

Não foi preciso esperar os 13 anos da era anterior. Hoje, passados apenas 4 aninhos, eis que de novo a sensação geral é de que a República está infiltrada. A diferença é que, desta vez, não são mais elementos lulopetistas, mas bolsonáricos.

Contas feitas, jornalistas informam que, nos altos escalões, seis mil militares estão refestelados. Sem contar montanhas de apadrinhados em estatais, autarquias, semiautarquias, agências, departamentos e repartições.

Igualzinho ao que era antes. Trocamos seis por meia dúzia.

Isso deixa uma notícia ruim: esteja quem estiver instalado no trono, sinecuras serão tomadas de assalto por uma horda de companheiros e apaniguados sem qualificação para o posto nem disposição para o batente.

Tem-se a impressão de viver num rodopio, num moto perpétuo, num movimento pendular supernocivo para a sociedade, mas no qual nós, os membros da sociedade, não podemos participar.

Por seu lado, a prisão de doutor Ribeiro, ex-ministro da Educação – pessoa notoriamente não qualificada para o cargo que exerceu – é boa notícia. Não digo a prisão em si, dado que, dependendo do juiz, um habeas corpus a qualquer hora vai tirar o doutor do cárcere. A boa notícia é que, diferentemente do que às vezes se imagina, não está tudo dominado.

A Polícia Federal continua cumprindo sua missão e mostrando que não é órgão do governo, mas do Estado brasileiro. É um alívio, uma constatação importante nestes tempos de desvirtuamento das instituições. Não é a salvação da lavoura, mas não deixa de ser um bálsamo.

Monsieur Pap Ndiaye

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 28 maio 2022

O semipresidencialismo imposto pela Constituição francesa criou um país bicéfalo, em que um presidente (chefe do Estado) convive com um primeiro-ministro (chefe do Executivo). Em teoria, o poder de cada um é equivalente, embora distinto. Na prática, o do presidente é muito maior do que “as quatro linhas da Constituição” lhe atribuem – parodiando expressão em voga em nossas altas esferas. Seu poder é diretamente proporcional à força de sua maioria no Parlamento.

Uma vez reeleito o presidente, a tradição manda que a totalidade dos ministros, incluindo o primeiro-ministro, deem demissão do cargo. O presidente nomeia então novo primeiro-ministro, e a maioria dos ministros são substituídos por caras novas. Foi o que aconteceu estes dias. Entre os estreantes, surgiu um nome vindo da sociedade civil, um cidadão que nunca havia ocupado cargo político. Trata-se de Monsieur Pap Ndiaye, novo titular do Ministério da Educação Nacional.

Sua nomeação provocou uma onda de choque que balançou as estruturas do país. Todos ficaram surpresos, muitos protestaram, alguns se indignaram. Percebe-se até uma não disfarçada revolta proveniente das bordas do espectro político. Faz uma semana que analistas políticos não param de discutir a nomeação. Vamos ver por que razão.

Monsieur Ndiaye é um intelectual brilhante. Seu currículo é de dar inveja a muita gente fina. Ele é diplomado em História pela Escola Normal Superior, o nec plus ultra do ensino universitário nacional. É titular de um doutorado obtido na Escola de Estudos Superiores de Ciências Sociais, onde é palestrante especialista em História dos Estados Unidos e em temas ligados às minorias. É diretor do Museu da História da Imigração. Além disso, seu currículo inclui cinco anos de estudos na Universidade da Virgínia (EUA), onde preparou sua tese de História. É ainda autor de meia dúzia de livros, entre os quais “Obama na América Negra”.

Ninguém contesta a bagagem cultural do novo ministro nem sua capacidade a assumir a elevada função. A grita que se alevanta vem de círculos ultraconservadores (mas não só deles). O problema maior é o seguinte: Monsieur Ndiaye é negro. Sua mãe é francesa e branca, enquanto seu pai é senegalês e negro. O novo ministro nasceu em família atípica. Além de resultar de miscigenação pouco habitual no país, seu pai foi o primeiro negro africano diplomado pela Escola Nacional de Engenharia da França, uma façanha. O ministro se autodefine como “um puro produto da meritocracia republicana”.

Já faz quarenta anos, desde o governo Mitterrand, que a França se habituou a conviver com ministros não-brancos. Já houve ministros da Integração e dos Direitos Humanos negros. Madame Taubira, negra originária da Guiana Francesa, foi titular do cobiçadíssimo Ministério da Justiça durante quatro anos. Nenhum desses personagens foi objeto de rejeição explícita. Por que razão a nomeação do novo ministro da Educação enfrenta uma onda de repúdio tão forte?

É que o ultradiplomado ministro possui duas características incompatíveis aos olhos de muita gente: é negro e pensa, o que é imperdoável. Se tivesse sido nomeado somente para dar um verniz de diversidade ao conjunto de ministros e acrescentar um pingo de cor à foto de grupo, ninguém reclamaria. Mas o homem pensa, e todos sabem disso. Um negro que pensa – e que vai cuidar da Educação Nacional – assusta.

Monsieur Ndiaye é conhecido e respeitado nos círculos universitários. Todos conhecem seus trabalhos e seu posicionamento em defesa dos imigrantes e das minorias. Uma vista d’olhos ao título de seus livros dá uma ideia: “Os negros americanos: da escravidão a Black Lives Matter”, “A condição negra: ensaio sobre uma minoria francesa”, “Os negros americanos: a caminho da igualdade”.

Os que o rejeitam provavelmente nunca leram suas obras. Pouco importa. Um negro dotado de ideias próprias aceitar comandar o Ministério da Educação lhes parece de uma petulância insuportável. No Brasil, essa polêmica parece um exagero, coisa de gringo. Mas há que tomar cuidado. A persistir a palavra de ordem do “nós x eles”, instaurada pelo lulopetismo e insuflada pelo bolsonarismo, em pouco tempo estaremos como a França.

O fracasso da bolsa família

José Horta Manzano

Com o passar do tempo, a bolsa família, implantada no governo do Lula, mudou de nome mas não mudou de espírito. Como disse o companheiro José Dirceu, numa conversa que não era pra ser gravada mas foi, o programa não passava de alavanca eleitoreira capaz de trazer 40 milhões de votos para o lulopetismo.

E o truque deu certo. Precisou o impeachment da doutora pra desalojar do poder a turma do mensalão e do petrolão. Não fosse isso, continuariam imbatíveis. Num país de miseráveis, uns trocados no bolso fazem diferença.

Se os dirigentes do país estivessem realmente empenhados em mitigar a miséria, o programa, desde que foi implantado em 2003, já teria tirado da mendicidade, se não todos, pelo menos boa parte dos beneficiários. Não foi o que aconteceu.

A ficha custou a cair para Bolsonaro. Empenhado em deixar, após sua passagem pelo poder, uma marca que não pudesse ser confundida com a genial iniciativa do PT – seu espantalho –, tergiversou e protelou quanto pôde. Mas acabou rendendo-se à evidência. Quem quiser se reeleger na Presidência, tem de distribuir ajuda financeira. Tem muita gente que depende disso pra sobreviver.

Fez corpo duro, hesitou, mas não teve jeito: recriou a bolsa. Só pra não dar o braço a torcer, fez uma mudancinha aqui, outra ali, modificou o nome, mas a nota é uma só.

O Instituto Poder 360 publicou estudo detalhando os beneficiários do Auxílio Brasil (a nova bolsa família) comparados com os funcionários com carteira assinada, estado por estado. O resultado é edificante. Observa-se que, em 19 anos de bolsa (agora auxílio), a situação continua tão dramática quanto antes, se não for mais.

Em 12 dos 14 estados do Norte e do Nordeste, o número de dependentes de auxílio do poder público supera o de empregados com carteira assinada. A pior situação é a do paupérrimo Maranhão, reserva do humanista clã Sarney, que contabiliza dois beneficiários de programa assistencial para cada trabalhador formal.

Nas demais unidades da Federação, a situação é menos tensa. No entanto, mesmo em estados ricos, centenas de milhares de conterrâneos fazem jus à assistência do poder público.

No país, os ricos estão cada vez mais ricos. Os do andar de cima, com infinitas benesses e até polpudos orçamentos secretos estão nadando de braçada. “Pastores”, “bispos” e episcopisas(*) têm até liberdade (e anuência presidencial) para distribuir bíblias com foto de ministro. Diga-me então: por que é que alguém se preocuparia em tirar realmente esses infelizes da miséria?

O que tira gente da extrema pobreza é formação profissional. Mas é aí que mora o perigo. Gente que sabe ler e entender o que leu pode até se dar conta de que nosso governo e nossos parlamentares são “fake”, um circo monumental em que são sempre os mesmos que saem ganhando. Melhor não tentar o diabo.

Que continuem fazendo fila pra receber uns caraminguás. Que continuem a não entender o que leem, assim não há risco de entenderem que estão sendo esbulhados. Que venha Lula (de novo!) ou Bolsonaro (de novo!), tanto faz como tanto fez. O populismo deste é igualzinho ao daquele. Talvez a grande diferença entre os dois seja a quantidade que distribuirão de pílulas contra disfunção erétil.

O capitão prefere espalhar a benesse entre os companheiros militares, que devem estar precisando. O Lula há de preferir distribuir aos companheiros, que também devem estar precisando – afinal, estão todos envelhecendo.

(*) Embora seja forma praticamente desconhecida entre devotos, episcopisa é o feminino de bispo. Dá mais status que o bizarro “bispa”.

Protestos

Amsterdã: protesto em letras laranja, a cor-símbolo do país

José Horta Manzano

Brasileiros que vivem no exterior, mesmo que estejam em situação apertada e passando necessidade, não recebem auxílio de Brasília. É natural. Bizarro seria se a pátria-mãe continuasse a sustentar filhos que decidiram deixar o lar e morar sozinhos.

Essa não-dependência lhes permite acompanhar com certa isenção os acontecimentos nacionais. O fascínio lulopetista, por exemplo, que arrebatou multidões em território brasileiro, pegou menos firme por aqui. O brasileiro do exterior logo se deu conta de que artifícios como a bolsa família, apesar do intenso marketing, estavam mais pra embuste eleitoreiro que pra solução radical pra extinguir a miséria.

Nas eleições de 2018, os brasileiros estavam, em maioria, decididos a dar um basta ao lulopetismo. Fosse qual fosse o candidato, votariam nele, desde que afastasse o Lula e seus companheiros. O resultado é que, apesar do histórico de sucesso do partido, somente 45% dos eleitores votaram em Haddad. Brasileiros do exterior foram ainda mais explícitos: apenas 29% dos eleitores deram seu voto ao candidato lulopetista, exprimindo nas urnas um sonoro basta!. Foi de encher de orgulho qualquer brasileiro pensante.

Tendo em vista o desastre que tem sido a gestão Bolsonaro, parece-me justo e natural que os que vivem no Brasil e que sentem na pele as consequências de um governo caótico se revoltem e se disponham a sair às ruas em passeata. Mas… e no exterior? Será que a rejeição a Bolsonaro se aplica também aos compatriotas que vivem fora? Aqueles que, em 2018, votaram em massa em Bolsonaro e lhe garantiram 71% do total dos votos eram realmente bolsonaristas ou apenas antipetistas? Está chegando a hora do “vamos ver”.

E estamos começando a ver. Foi no sábado que passou. Cento e cinquenta cidades brasileiras foram palco de passeatas e manifestações diversas em que milhares exprimiram repúdio a Bolsonaro. No mesmo dia, os brasileiros do exterior deram a resposta à dúvida que expus logo acima. A colônia estabelecida na Europa e nos EUA não se fez de rogada. Brasileiros saíram às ruas de Londres, Berlim, Lisboa, Zurique, Nova York, Paris com o mesmo ardor dos que encheram avenidas paulistanas, cariocas e soteropolitanas.

As urnas de 2022 confirmarão, mas podemos desde já nos sentir aliviados: se os brasileiros do exterior consagraram Bolsonaro em 2018, não foi pelos méritos do capitão, mas por ter encarnado a imagem do antipetista por excelência. E estamos todos assistindo à decomposição dessa imagem. Como ensinou Ary Barroso, “toda quimera se esfuma como a brancura da espuma que se desmancha na areia”.(*)

(*) Do samba-canção Risque (1953).

Trumpização

José Horta Manzano

Donald Trump não inventou a baixaria na política, mas está lhe dando um impulso fenomenal. É difícil saber se costumes tão rasteiros já existiram antes, em outras épocas. O bom senso indica que não, que nunca houve nada parecido. Homens políticos, por mais incisivos e veementes que possam ter sido, não desceram tão fundo como o atual inquilino da Casa Branca.

Não assisti ao debate de ontem, etapa obrigatória da corrida presidencial americana. Pra começar, não teria estômago para aguentar hora e meia de bate-boca; pra terminar, o espetáculo caía às 3h da manhã na hora daqui, razão suficiente para renunciar. Mas ouvi, hoje de manhã, uma dezena de analistas, cada um com sua visão e seu resumo do que ocorreu.

Pelo que pude depreender, não foi um debate de ideias stricto sensu, dado que nenhum dos candidatos gastou mais que 10% de seu tempo para apresentar as metas de um eventual governo. Foi mais parecido com uma briga de cortiço, em que a intenção de cada litigante era só rebaixar o adversário.

Invectivas, insultos, mentiras, ataques pessoais, ‘voadoras’ na carótida, dedo no olho, pé no peito pra derrubar. Sabe de uma coisa? Aqueles que se destroçavam num circo romano, dois mil anos atrás, seguiam código de ética bem superior ao que se viu numa etapa crucial das eleições do país mais poderoso do planeta.

Não posso avaliar o que se passa na cabeça do americano médio; não sei como ele se sente depois de quatro anos sob Trump. Visto daqui de longe, no entanto, o problema é diferente. Quem vive fora dos EUA está menos preocupado com problemas internos americanos e mais com a imagem que a grande potência projeta no resto do mundo. E com a influência que exerce em dirigentes mais frágeis, como é o caso do doutor que nos governa.

Que Donald Trump esteja fazendo bom ou mau governo, isso quem tem de julgar são os americanos, seus eleitores. Darão o veredicto nas urnas. Quanto a nós outros, só nos resta constatar o abalo que um indivíduo inculto, agressivo, narcisista, mentiroso e despreparado para ser presidente tem provocado nos costumes políticos do planeta.

Povos mais esclarecidos, como os que vivem em democracias maduras, têm nas mãos as armas para reconhecer essa ameaça de degradação nas artes da política e para resistir a ela. Povos menos esclarecidos – como o nosso, sejamos sinceros – se encontram desarmados. O jeito lulopetista de manejar a coisa pública deu uma perigosa inclinada para baixo. Os anos em que fomos governados por presidentes de poucas letras e ideias curtas (mas braços longos, se é que me entendem) deram a partida para forte rebaixamento no nível do debate de ideias.

A rejeição ao modo lulopetista de governar abriu uma avenida para o aventureiro que se mostrasse mais ousado. Bolsonaro conseguiu ser visto como o mais antipetista dos candidatos. Não deu outra: deixou os demais a comer poeira e venceu.

Sem preparo e sem projeto, nosso doutor precisava agarrar-se à figura de um irmão mais velho a mostrar-lhe caminho radioso. É neste ponto que entra a influência daninha de Trump sobre políticos despreparados, como nosso presidente.

Se Trump não tivesse ousado, Bolsonaro não ousaria. Se Trump não tivesse dito, Bolsonaro não diria. Se Trump não tivesse feito, Bolsonaro não faria. Em resumo: sem Trump, não teria havido Bolsonaro; ou, pelo menos, não esse Bolsonaro que conhecemos.

Resta esperar que os eleitores americanos se mostrem mais espertos desta vez e que despachem o topetudo pra casa. Para o Brasil, será uma bênção.

De salários

José Horta Manzano

Passeando pela internet, caí por acaso num site que divulga os salários do funcionalismo público. São fortes as diferenças entre uma categoria e outra. Para quem está acostumado, esses contrastes devem parecer corriqueiros; para quem vive, como eu, longe do país há muito tempo, assustam. São inacreditáveis, de deixar de queixo caído.

A gente sabe que o Brasil está na lista dos campeões mundiais de desigualdade, informação que não parece comover ninguém em nosso país. Greves e manifestações por aumento de salário, frequentes algumas décadas atrás, são hoje raras. Os tempos do lulopetismo no poder deixaram um rastro de sindicalistas anestesiados, deve ser isso. Parece que agitadores de massas desaprenderam a razão pela qual estão lá.

Os números que tive ocasião de observar são fornecidos pelo Portal da Transparência do Estado de São Paulo, fonte que suponho confiável. Informam que, no mês de agosto passado, o salário médio do funcionalismo público paulista foi de 4.900 reais, em números arredondados. Até aí, morreu o Neves. O que atordoa qualquer um é o valor do salário mais elevado: 395.000 reais. Yes, my dear friend! Faltou pouco para meio milhão. Em um mês.

Observe-se que o governador, que se suporia fazer jus ao salário mais elevado, recebeu 23 mil reais. Portanto, há funcionários infinitamente mais bem pagos que ele, o que não deixa de ser um assombro.

Anos 40: preparando o pagamento do ordenado

O salário mais elevado equivale a 80 vezes o ordenado médio. Depreende-se que, só no mês de agosto, o contemplado com o maior salário recebeu o que o funcionário médio receberá em 6 anos e 8 meses (=80 meses). Examinando de outro jeito, é de crer que o dono do supersalário produza tanto quanto 80 colegas reunidos. É de crer.

Seja como se examine, fica evidente que algo está muito errado com os quase 500 mil funcionários do estado. Das duas uma. Ou a imensa maioria deles é de gente mal paga, o que é uma aberração. Ou é a elite funcional que está recebendo remuneração muito acima do que merece e do que é razoável, o que é tremenda distorção.

Eu me pergunto para que servem esses portais de transparência facilitados pelo Estado magnânimo. Fica-se sabendo que o cidadão X recebe 80, 100, 130 vezes mais que o cidadão Y e… fica tudo por isso mesmo? Não há nenhuma reação, nenhum movimento de revolta? Parece que esse tipo de informação só serve pra satisfazer a curiosidade malsã dos que querem saber quanto ganha o colega que se senta ao lado.

Olhar da mídia

José Horta Manzano

Houve uma época, e não foi ao tempo dos Sumérios, em que não havia internet. A informação vinha pela imprensa. No exterior, o Brasil costumava aparecer nas páginas turísticas. Sol, praia, futebol, Carnaval era o que se lia. Copacabana, Iguazú (sic), Ipanema – eram esses nomes exóticos que emolduravam as imagens de coqueiros, de sol, de sal, de sul.

Com a virada do século, veio a grande (e bem-sucedida) jogada de marketing do lulopetismo. Um Lula paz e amor, todo sorridente, percorria o mundo. Dizia e fazia besteiras, mas tudo lhe era perdoado por transmitir a imagem de paizinho dos pobres. Lentamente, o Brasil saiu do caderno Turismo para entrar nas páginas políticas.

A derrocada do regime abalou muita gente. Ao redor do mundo, alguns não entenderam até hoje o que aconteceu e preferem se agarrar à imagem do demiurgo injustiçado. Cada um é livre de venerar os santos de sua preferência.

Um belo dia, na esperança de enterrar o governo marqueteiro, o povo brasileiro elegeu doutor Bolsonaro, um desconhecido que prometia fazer melhor do que tudo aquilo que havia sido feito antes.

Bolsonaro é bem-sucedido em recurso contra a obrigação de usar máscara
Artigo do Deutschlandfunk

A magia não durou muito. O rojão estava molhado e deu chabu. Depois do caderno Turismo e das páginas políticas, o Brasil escorregou para a rubrica policial, aquela que os franceses chamam «faits divers – fatos diversos», e que engloba crimes e acidentes.

A ilustração é do Deutschlandfunk, um dos braços do conglomerado de mídia pública alemã. Explica a história sombria de uma briga judicial de doutor Bolsonaro contra a obrigação de usar máscara de proteção contra covid-19.

Este blogueiro teria vergonha de ser ameaçado de multa por se negar a proteger o próximo contra a epidemia que assola o país. Mas vergonha é palavra que não consta do indigente vocabulário presidencial.

O país de ressaca

José Horta Manzano

Pra quem achava que os (longos) anos do lulopetismo eram o pior que se podia imaginar em matéria de governo, aqui está doutor Bolsonaro pra provar que o que já é ruim pode sempre ser piorado.

O lulopetismo roubou os dinheiros da nação; o bolsonarismo está roubando a alma do povo. Dinheiro, trabalhando e economizando, sempre se consegue juntar de novo; alma, já fica mais complicado. Não há trabalho nem economia que conserte alma arranhada.

Se não for logo interditado, este governo vai deixar um rastro de desolação em que todos sairão perdendo. Dirigentes que desprezam a cultura, desdenham a ciência e destroem a natureza estão agindo pior do que os que assaltaram o erário: estão hipotecando o futuro do Brasil como nação civilizada.

Não sei quantas reuniões ministeriais já houve desde que doutor Bolsonaro assumiu. Alguém acredita que as anteriores tenham sido diferentes dessa que foi desvelada? Moro não apontou a reunião de 22 de abril porque havia nela palavrões, mas porque escorava sua acusação de que o presidente tencionava intervir na PF.

Reunião ministerial

Incivilidades, impropérios e rasteiras parecem ser o prato do dia, servido em todas as refeições àquela gente insaciável. Todos os presentes, excluídos o cinegrafista e a mulher do café, estão na mesma salada. Ainda que alguns aparentem constrangimento, não leve a sério. Se constrangidos estivessem, já faz tempo que teriam entregado o chapéu. Se lá continuam, é porque se sentem entre iguais. Damares inclusive, com toda a pureza que exibe, deve ter os ouvidos acarpetados de palavrões.

Falando em Moro, é curioso que tenha se segurado quietinho durante ano e quatro meses, calado, apagado, apático. Há de ter ouvido muito palavrão, muita impropriedade, muitos planos antidemocráticos. No entanto, não soltou um pio. Só decidiu abandonar o barco quando a água já estava batendo na cintura.

O Centrão acaba de aceitar, com volúpia, convite pra integrar essa caravana de insanos. Como moscas atraídas pelo mel, os do baixo clero só têm olhos para as vantagens que virão em troca de apoio ao governo. Esquecem que toda moeda tem dois lados.

Ao fazer barragem a um processo de impeachment, estão levando água ao moinho do aprendiz de ditador e contribuindo para o sucesso de seu projeto autoritário. Caso o pior acontecesse e o golpe se consumasse, o Congresso seria fechado e eles – tolinhos! – seriam as primeiras vítimas. Perderiam o mandato e só com muita sorte não terminariam na cadeia. A cupidez é defeito muito feio.

Ignorantes e ignorantes

José Horta Manzano

A palavra ignorante pertence a família numerosa. Seus membros estão presentes não só entre nós, mas também em quase todas as línguas europeias. Mas esse é assunto que desenvolveremos numa outra oportunidade.

Hoje gostaria de lembrar ao distinto leitor que, na variante brasileira da língua portuguesa, o termo ignorante tem dois significados principais.

Ignorante 1
É aquele que ignora, que desconhece, que não sabe. Exemplos:

Joãozinho é realmente um ignorante; imagine que tirou zero em três provas!

Está escrito ali na parede! Não sabe ler, ignorante?

Ignorante 2
É o indivíduo abrutalhado, malcriado, tosco, pesado, grosseiro, não necessariamente ignaro. Exemplos:

Você viu? Uma velhinha de pé e aquele ignorante sentado!

Marido que maltrata a mulher é ignorante.

Tivemos, na época em que a patota lulopetista estava aboletada nas poltronas macias do andar de cima, bom exemplo de ignorantes no poder. Eram do tipo 1, aqueles que não sabem. A tônica era dada pelo próprio presidente, avesso a todo tipo de alimento que lhe pudesse enriquecer o intelecto. Obedientes, os demais acompanhavam o chefe. Com deleite.

Varridos os ignorantes do tipo 1, convivemos agora com um bando de ignorantes do tipo 2. Ai, Jesus! Em matéria de conhecimento, embora não sejam luminares, até que sabem o básico. Não se imagina, por exemplo, que acreditem na terra plana. Já no quesito civilidade, são todos espinhudos. De novo, quem dá o tom é o presidente, o mais ignorantão, aquele que carrega sempre um insulto no bolsinho, pronto a ser disparado. Obsequiosos, os demais seguem o chefe. Com facilidade, desdenham e ofendem. São pesadões, vulgares, rasteiros.

Este blogueiro, já entrado em anos, tem pouca esperança de vir a conhecer um governo cuja característica maior não seja a ignorância. Por enquanto, estamos condenados a assistir a um desfile de ignorantes, com direito a alternância entre ignorantes 1 e ignorantes 2. Até quando vai durar? Cabe à próxima geração decidir se rompe esse círculo vicioso ou se deixa tudo como está.

Greve – 2

José Horta Manzano

Outro dia eu contava a origem da palavra greve. (Pra quem perdeu, o post está aqui.) O tempo que levei escrevendo sobre essa palavra me levou a um momento de reflexão sobre o significado dela, tanto na etimologia quanto na vida real e nas consequências para cada cidadão.

Os franceses inventaram a greve e… abusam dela. Eu me lembro de um exemplo clássico. Era no tempo em que eu viajava frequentemente ao Brasil. Como todo o mundo, eu procurava escolher companhia que oferecesse bom preço e conexões decentes – evitando, se possível, aquelas que cobravam um pouco menos mas, em compensação, te faziam passar uma noite dormindo nos agradáveis bancos de madeira do aeroporto de Uagadugu. Com direito a mosquitos, pernilongos e muriçocas.

A preocupação maior era evitar a Air France, ainda que os preços fossem promocionais. A razão não era nenhuma desconfiança com a empresa, que é cotada entre as melhores do planeta. O nó do problema eram as greves, imprevisíveis e frequentes. Nesse ponto, francês é campeão. Quem faz escala em Paris está sujeito a elas. Ora são os controladores aéreos, ora os comandantes, ou o pessoal de solo, ou as aeromoças (adoro o sabor antiquado e romântico desse nome). É sempre arriscado. Se acontece no dia do seu voo, é pandemônio garantido.

No mundo, em qualquer empresa, quando surge desavença entre patrão e empregados, o caminho usual e adequado é discutir primeiro. Se realmente não houver jeito, aí sim, como último recurso de pressão, entra-se em greve. Na França, não funciona dessa maneira. Quando há uma reivindicação qualquer, entra-se logo em greve antes de discutir. A discussão, tumultuada, ocorre durante a greve. É balbúrdia na certa, que acaba prejudicando empresa, funcionários e usuários. Todos saem perdendo.

O distinto leitor ficará espantado se eu lhe disser que na França, duas ou três vezes por ano, até o rádio entra em greve. Falo das emissoras públicas, que são as mais sintonizadas e populares do país. Um belo dia de manhã, você liga o rádio pra ouvir as notícias e só vem música. A cada dez minutos, a música é interrompida por uma voz aveludada que informa que, em razão de um ‘movimento’ de funcionários por questões salariais, a emissora não está em condições de oferecer os programas habituais. E o ouvinte que se vire. A parede não tem prazo pra terminar e pode durar vários dias.

Para entrar em greve, cada categoria de profissionais escolhe o momento em que o cidadão ficará mais incomodado. Funcionários de metrô não vão parar de trabalhar no fim de semana, mas em plena segunda-feira de manhã, quando o movimento é mais intenso. Enfermeiras grevistas não escondem a seringa em agosto, mês de férias, mas numa época em que todos estejam no batente. E assim por diante, todo grevista procurando atrapalhar o mais possível.

Atualmente, está ocorrendo uma greve pra lá de original. As provas do baccalauréat (equivalente a nosso Enem) realizaram-se estes dias. Nessa época, a moçada do país inteiro fica em efervescência, todos nervosos e ansiosos. Pois acredite, distinto leitor: parte dos professores encarregados de corrigir as provas escolheu exatamente este momento pra entrar em greve. Recusaram-se a entrar as notas no sistema informático. Compreensivelmente, o país ficou indignado e o auê foi ensurdecedor – a tal ponto, que a reivindicação dos grevistas passou para segundo plano em meio à grita geral. É demais cruel impor esse suspense aos já estressados estudantes. Até o presidente da República interveio por meio de fala à nação, acontecimento raro.

Diante da ameaça de punição equivalente a 15 dias de desconto de salário, muitos grevistas entregaram os pontos e devolveram as provas corrigidas. Pequena minoria, no entanto, resistiu até o fim. Para contornar o problema, o ministério da Educação decidiu considerar que, para aqueles cujas provas tinham sido confiscadas pelos grevistas, valeria a média das notas das provas parciais do último ano letivo. Mais à frente, quando chegasse a nota do baccalauréat, valeria a mais favorável – a do ‘bac’ ou a média do ano.

No Brasil de antigamente, havia alguma greve. Nunca chegamos à recorrência que o fenômeno assume na França, mas greve sempre houve. Depois que o andar de cima foi capturado pelo lulopetismo, quinze anos atrás, sindicatos foram amansados com generosos mimos e as greves minguaram. Renascerão, sem dúvida. Por enquanto, estão quietinhos. Devem estar catando os cacos pra remendar o vaso.

Teoria dos conjuntos

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 maio 2019.

Na Itália do pós-guerra, a vida era dura. O longo conflito deixou um país exangue e uma economia desarticulada. Todos se davam conta de que a reconstrução ia exigir muito trabalho. Só de pensar, dava desânimo – o que é compreensível. Escaldados pelas estrepolias de um guia iluminado que só lhes havia trazido sangue e lágrimas, os italianos descartavam a ideia de recorrer de novo a um salvador da pátria. O terreno tornou-se então fértil para o florescimento do comunismo, doutrina que prometia progresso e felicidade para todos sem muito esforço. De fato, fundado nos anos 1920, o Partido Comunista Italiano conheceu expansão fenomenal a partir do fim da Segunda Guerra. Chegou a ser o maior partido comunista do mundo ocidental – uma façanha.

Quando da ascensão da agremiação, lá pelo fim dos anos 1950, corria uma anedota reveladora do estado de espírito dos afiliados. Numa cidadezinha recuada, discorria um comício. A certa altura, o orador dirigiu-se a um rapaz de jeitão humilde que assistia atento. Inflamado, perguntou-lhe em voz bem alta pra ser ouvido por todos:

– Se o camarada tivesse duas casas, o que é que faria?

– Ficaria com uma e daria a outra ao partido.

– Muito bem. E se tivesse duas vacas, o que é que faria?

– Ficaria com uma e daria a outra ao partido.

– É assim que se faz. E se tivesse duas bicicletas, o que é que faria?

– Ei! Mas… Duas bicicletas, eu tenho!

À época, não havia gravador de bolso, de modo que ninguém pode confirmar a veracidade do diálogo. Assim mesmo, ele é espelho de como o cidadão comum encara doutrinas e ideologias. Todo ideário é bom até o ponto em que me é favorável. A partir do momento em que começa a exigir de mim um esforço que não estou disposto a fornecer, já não presta. «It’s human nature – é a natureza humana.» O bom camponês de nossa historinha disse amém à cartilha comunista enquanto ela lhe prometia as delícias de viver, sem contrapartida, no mundo do ‘venha a nós’. Quando se deu conta de que o ‘dá cá’ implicava um ‘toma lá’, a coisa azedou.

É que, ao mencionar a partilha das bicicletas, o predicador mostrou como pode ser desestabilizante, na prática, a Teoria dos Conjuntos. De repente, o camponês percebeu que o conjunto de generosos doadores que abriam mão de metade do patrimônio em prol da sociedade incluía também o conjunto dos possuidores de bicicleta – ou seja, ele entrava na dança. Meio cismado, voltou pra casa pensativo. No dia seguinte, rasgou a carteirinha do partido. E nunca mais assistiu aos comícios dos camaradas.

Universal, a Teoria dos Conjuntos se aplica também ao Brasil. O lulopetismo em geral – e doutora Dilma Rousseff em particular – aprenderam essa verdade na marra. A dicotomia nós x eles valeu enquanto se manteve no campo abstrato. A partir do momento em que inteiros grupos sociais se deram conta de que se situavam numa intersecção de conjuntos que lhes era desfavorável, passaram a engrossar o time dos batedores de panela. E deu no que deu.

É de crer que doutor Bolsonaro nunca ouviu falar na fábula das bicicletas do camponês italiano. Devia, pelo menos, ter analisado a débâcle do lulopetismo, mormente por ter sido ela a alavanca maior do sucesso eleitoral que o levou à Presidência. De certeza, não analisou. Embora acredite estar longe do modelo anterior, está a repetir os erros dos predecessores. As falas e os atos cortantes e excludentes são a exata reprodução do famigerado nós x eles.

O trágico é que a política ao molho bolsonaresco acicata a Teoria dos Conjuntos. O governo tem lançado muito anátema estes últimos tempos. Sua metralhadora giratória está agredindo até apoiadores da primeira hora, gente que, por infelicidade, se encontra numa intersecção desfavorável. As recentes manifestações estudantis são produto de intersecções que incomodam muita gente fina. Cidadãos situados no ponto de encontro entre os que aplaudiam a atuação do governo e os que contam com uma escola pública rica de verbas estão como o italiano da bicicleta. Não apreciaram que a navalha venha ferir-lhes a carne. Vão acabar batendo panela.

The show goes on

José Horta Manzano

Mas é sem parar! Quando a gente pensa que vão nos dar dois dias de folga ‒ catapimba! ‒ lá vêm eles com nova baciada de barbaridades. Sabíamos que, pra ver o lulopetismo longe dos «negócios», ia ser preciso pagar preço elevado. Mas acho que ninguém imaginava que fosse tão alto assim. Repito: se o bando que nos assaltava continuar afastado, qualquer preço terá valido a pena, por elevado que seja. Mas que está saindo pelos olhos da cara, ah, isso está, compadre. Valha-nos São Benedito!

Embora recentes, o golden shower e a balela de que ‘a democracia é presente dos militares’ já entraram para a história. Saíram da atualidade e são página virada. Vamos em frente, que atrás vem gente. Há futricas novas, saidinhas do forno.

Não contente de se ter mostrado rancoroso e ameaçador para com a Folha de São Paulo logo depois de ser eleito, doutor Bolsonaro resolveu, este fim de semana, engalfinhar-se com o Estadão. A história é obscura. Nela entram um misterioso jornalista francês de nome árabe, uma repórter do Estadão, uma conversa em inglês (editada, ao que parece), um site bolsonarista, um portal francês com forte simpatia pela esquerda tradicional. Um doce pra quem desenrolar esse novelo.

O que interessa não é tanto quem disse o quê. Nem quem está dizendo a verdade. Nem quem está fantasiando. O que chateia é essa contínua lavagem de roupa suja em público, ao vivo e em cores. A manchete do Estadão, o jornal mais conceituado do país há quase 150 anos, é clara: «Bolsonaro usa declaração falsa para atacar imprensa». Eloquente, não é?

Não bastasse essa enormidade, o Planalto nos brinda com um suplemento dominical. Depois de colher o beneplácito do presidente, doutor Vélez Rodríguez, ministro da Educação, decidiu exonerar um de seus secretários. De novo, a história é cabeluda. Há desentendimento entre doutor Bolsonaro, um senhor tido como seu guru, o ministro mencionado, o secretário demitido e mais a torcida organizada do entorno presidencial, cada ala puxando o coro conforme seu ídolo.

É natural que, em início de governo, ocorra algum ajuste aqui e ali, com troca de figurinhas. O que não é natural nem decente é que isso tenha lugar sob a luz dos holofotes, que seja apregoado a quem quiser escutar. E quer saber de uma coisa? Nada indica que, para o futuro, diminuam ocorrências desse tipo. Doutor Bolsonaro ‒ que deveria ser o pêndulo da balança, o sábio, aquele que modera os ardores da macacada ‒ é justamente quem mais sopra as brasas pra atiçar labaredas. Se ele não consegue botar a bola no chão, quem conseguirá? Todo grupo herda um pouco do temperamento do chefe. Podemos ir nos conformando: a poluição da comunicação palaciana tende a durar até o fim do quadriênio.

Polícia do Pensamento Único

José Horta Manzano

Doutor Moro engoliu um enorme sapo estes dias. Vamos resumir o drama. Embora pouco se divulgue sobre essas instâncias, o Executivo está rodeado de quase 50 diferentes grupos de aconselhamento. São conselhos, comitês ou colegiados compostos por figuras da ‘sociedade civil’, como se costuma dizer. Em princípio, a ideia é boa. Trata-se de esforço, iniciado 80 anos atrás e reforçado nas últimas décadas, de trazer a ‘voz do povo’ pra perto do presidente.

Certos conselhos têm poder regulatório – editam normas com força de lei. Outros são meramente consultivos e se limitam a sugerir o bom caminho. Todos eles são compostos de personalidades livremente nomeadas pelo presidente em pessoa ou por seus ministros. Para redesenhar o colegiado do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão que está sob responsabilidade do Ministério da Justiça, doutor Moro reservou um lugar de suplente a uma senhora de nome desconhecido deste blogueiro e, mui provavelmente, também do distinto leitor. Parece que a nomeada nutre simpatia pelas ideias de esquerda. Sempre alerta, a Polícia do Pensamento Único teve conhecimento disso e saltou sobre a ocasião. O primeiro-filho tratou de açular as redes sociais para amplificarem veemente protesto.

Limitado pela costumeira dificuldade de sopesar e avaliar as consequências de seus atos, doutor Bolsonaro cedeu aos apelos filiais e determinou que a nova integrante fosse ‘desconvidada’. Onde é que já se viu incluir num conselho uma voz dissidente? Conselheiro só é bom se der os conselhos que a gente quer ouvir, ora essa! Num surpreendente acesso de humildade, doutor Moro aquiesceu. A moça foi dispensada antes de assumir. Os bolsonarinhos hão de ter entrado em êxtase com o reforço de poder que o pai lhes garantiu. Já o Brasil não tem motivos pra pavonear.

O país saltou da panela pro fogo – é como minha avó descreveria a situação. Cansados de guerra, os brasileiros decidiram mandar pra casa o lulopetismo e sua coorte de trambiques e rapinas. De fato, estava mais que na hora. No entanto, pra pôr no lugar, quem estava à mão é doutor Bolsonaro, desconhecido do grande público. Se não se pode chegar ao extremo de suspirar que o regime antigo era melhor, há que constatar que o atual tem deixado a desejar. Até o mais fanático adepto do bolsonarismo, se intelectualmente honesto for, concordará. Há muito chiado na linha.

Perguntar não ofende: se todos os integrantes de cada grupo de aconselhamento tiverem visão uniforme, seja qual for o fato, pra que serve o grupo? Se todo debate de ideias é vedado, abrindo alas para o pensamento único, melhor será dissolver todos os conselhos e mandar todo esse pessoal pra casa. Economiza-se no pagamento de jetons.

Mas nem tudo é ruim. Felizmente contamos com doutor Hamilton Mourão, o vice-presidente. O homem tem boa formação, cultura acima da média palaciana e, sobretudo, bom senso. Tendo sido eleito pelo povo em dobradinha com o titular, não é ministro. Não deve explicações a ninguém e é indemissível. Em mostra explícita de equilíbrio, declarou à revista Valor Econômico que, com o sapo engolido por doutor Moro, o Brasil é que sai perdendo. Doutor Mourão tem a (rara) qualidade de falar claro. Dá nome aos bois. Disse que esse tipo de política é nefasto para o Brasil. Você perde todas as vezes em que não se puder sentar ao redor da mesa com interlocutor que professe ideia divergente da sua – foi a essência do que declarou.

Ainda bem que temos pelo menos uma voz discordante em palácio. Nem tudo está perdido.

Diz que diz e cai não cai

José Horta Manzano

Está cada dia mais aflitivo o que se passa pelas bandas do Planalto. Se ainda viva fosse, a Candinha ‒ aquela dos mexericos ‒ ficaria roxa de inveja. O diz que diz é digno de cortiço. Nem durante as brigas de minha vizinha do apartamento de baixo se vê tanta roupa suja lavada em público. E olhe que minha vizinha, quando se enfeza, aborda o marido aos berros e nele atira pratos, cobras, lagartos e o que mais lhe passe por perto. No Planalto, lugar excelso da República, é pior.

Os Bolsonaros
Crédito: vespeiro.com

Fofocas, insultos, hesitações, ataques, retratações, acusações, desmentidos ‒ têm sido nosso prato do dia há duas semanas. Os grão-duques do lulopetismo assaltavam o erário, é verdade, mas pelo menos o faziam discretamente. A gente empobrecia mas conservava o sorriso dos ingênuos. Já atualmente, o clima conflagrado irrita o povo e emperra o bom andamento da nação. Não nos roubam dinheiro, mas surrupiam-nos a paciência e confiscam-nos o sorriso.

Uma simples troca de ministros, fato que ocorreu às dúzias em governos anteriores, transformou-se num circo midiático, espetáculo servido à prestação, com picantes capítulos diários. Um espanto. Agora que o ministro cai-não-cai já se foi, resta torcer pra que a turma do palácio endireite. Se não for pedir muito. Desconfio que é.

Sinais trocados?

José Horta Manzano

Quando doutor Bolsonaro assumiu as funções no Planalto, o Brasil entrou em compasso de espera. Foi um breque no samba do crioulo doido(*). De respiração suspensa, ficamos todos presos àquele curto instante que corre entre o clarão do raio e o estampido do trovão. É quando a gente sabe que o barulho virá, mas não dá pra determinar a intensidade. Será trovoada longínqua ou estrondo de assustar cachorro e despertar criança?

Por enquanto, há muita conversa e pouco efeito. As promessas de «eu bato e arrebento» andam meio murchinhas, desenxabidas. Fica a desagradável mas nítida impressão de que mais se fala do que se faz. Dizem muitos que a ideologia dos atuais dirigentes é como a dos anteriores, só que com sinal trocado. Discordo.

É inegável que os atuais ocupantes do andar de cima emitem sinais de adesão ao ideário conservador. Ressalte-se que o brasileiro, de qualquer modo, vê com desconfiança todo sacolejo brusco da sociedade. Mudanças, sim, desde que não sacudam demais o coqueiro. Na oposição entre o statu quo e a revolução, não há dúvida: preferimos conservar o que temos.

Tirando a tendência conservadora, que eu hesitaria em classificar como ‘ideologia’, o atual governo mostra, sim, inclinações ideológicas de caráter místico e messiânico. Doutor Araújo, ministro de Relações Exteriores, e Doutora Damares, ministra dos Direitos Humanos, são a face mais visível da moeda.

Revolução

Já o período anterior, o lulopetismo, carecia de ideologia. Alguns enxergam naqueles tristes anos uma tendência ‘esquerdista’ de trocas Sul-Sul, de alinhamento com países pobres, de políticas de amparo aos deserdados do planeta. Eu não vejo nada disso. Tudo que consigo enxergar é uma política malandra de fazer negócios com governos estrangeiros que aceitassem compartilhar os bilhões com a clique que comandava o Planalto. Construir vias expressas na África não é a melhor maneira de ajudar populações que não têm o que comer. Não é por acaso que países de regime ditatorial foram o alvo preferencial da política de ‘ajuda fraterna’ lulopetista. São os mais abertos a obscuras transações.

Estão aí, de maneira resumida, as razões pelas quais concordo que o atual governo se deixa guiar, até certo ponto, por ideologia. Estão aí também as razões que me levam a refutar toda ideologia no sistema petista de gerir a coisa pública. Organizar rapina do erário não é manifestação ideológica. É pura bandidagem.

(*) Em seu discurso de entronização, doutor Bolsonaro propôs um desafogo na dura lei do politicamente correto. É de supor que a nova orientação já esteja em vigor. Se não estiver, corrija-se: onde se lê crioulo doido, leia-se afrodescendente com deficiência intelectual.

Apocalipse vende mais

José Horta Manzano

Puxa! Nunca imaginei que o Brasil se tivesse tornado tão importante! Visto do exterior, parece que o país subiu de nível. Passou a eleição, o novo presidente está definido há dez dias, mas o assunto continua a ser comentado na imprensa. Em volume de citações, este período supera com folga a época de ouro do lulopetismo, quando se imaginava que um salvador da pátria tinha surgido da secura da caatinga para redimir definitivamente a nação tupiniquim. Quá!

A abundância de artigos, entrevistas e análises atuais se deve, com certeza, à rede mundial de telefones e computadores, que faz que a informação circule fluente e dê volta ao planeta num segundo. No entanto, apesar das facilidades modernas, constato que a informação que chega ao exterior pende para um lado que não é o que os brasileiros escolheram. Com folgada maioria, os eleitores elegeram doutor Bolsonaro. Passando por cima dessa realidade, a mídia europeia continua de queixo caído, incapaz de reconhecer que o eleito encarna a mudança pela qual todos anseiam, tanto os que votaram nele, quanto os demais.

Por aqui, o discurso que se ouve é aflitivamente semelhante ao do lulopetismo. Analistas continuam a mostrar-se escandalizados com a «deriva conservadora» do eleitorado do maior país da América Latina. Acusam os brasileiros de ‘fascistas’, ‘adeptos da extrema-direita’, ‘homofóbicos’, ‘machistas’, ‘adeptos do autoritarismo’ e outros apodos graciosos.

Também, brasileiros com projeção internacional não ajudam. Outro dia, ouvi nosso ultraconhecido fotógrafo Sebastião Salgado, convidado matinal da rádio pública francesa, declarar que ‘os brasileiros ficaram loucos’ e martelar o relato do golpe sofrido por doutora Rousseff. Entre dezenas de outros, essa mesma ex-presidente, mais Chico Buarque e até FHC ‒ quem diria! ‒ botam lenha na fogueira. Correspondentes da mídia internacional baseados no Brasil também contribuem para difundir a versão lulopetista. É que anunciar o apocalipse vende mais do que falar em esperança de enfiar corruptos na cadeia e pôr ordem no país.

O festival de desinformação continua. Por minha parte, preferia que se falasse do país por outros motivos. Mas as coisas são como são. The (poor) show must go on. O show (mambembe) tem de continuar.

Adendo 1
Signor Paolo Mieli é colunista do italiano Corriere della Sera há 25 anos. Passando por cima do fato de que foi o próprio povo brasileiro a fazer sua escolha, ele assina um artigo publicado domingo passado que dá a impressão de que o novo presidente nos tenha sido imposto por algum poder extraterrestre. Aqui vai a primeira frase:

“Il trionfo elettorale di un personaggio discutibile e discusso come Jair Bolsonaro è stata una pessima notizia non soltanto per il Brasile, ma anche per l’America Latina tutta e, probabilmente, per il mondo intero ‒ O triunfo eleitoral de um personagem discutível e discutido como Jair Bolsonaro foi péssima notícia não só para o Brasil, mas também para toda a América Latina e, provavelmente, para o mundo inteiro.”

Precisa ler o resto?

Adendo 2
Ouvi outro dia no rádio, no dia seguinte ao da eleição do novo presidente, o comentário de um jornalista, que soava como trovão:

«Les minorités entendent déjà le bruit des bottes sur le sable de Copacabana ‒ As minorias já podem ouvir o ruído de botas nas areias de Copacabana.»

Que talento dramático! De todo modo, pouco importa o conteúdo, o que conta é a embalagem. Não é pra assustar qualquer cristão?

Do you speak English?

José Horta Manzano

Depois de quinze anos de afligente monoglotismo nas altas esferas brasileiras, surpreende agradavelmente constatar que o vice-presidente eleito, general Mourão, se exprime em inglês decente.

Entrevistado pela BBC três dias atrás, doutor Mourão entendeu as perguntas e não hesitou em alinhavar as respostas, mostrando familiaridade com o idioma. Em se tratando de autoridade política brasileira, a coisa é tão extraordinária que a conversa de dois minutos foi parar até no youtube.

by Mix & Remix, desenhista suíço

De fato, os que nos governaram desde que o lulopetismo se aboletou no Planalto ignoravam línguas estrangeiras. Para piorar, tinham grande dificuldade em se exprimir na própria língua nacional. Nesse particular, doutora Rousseff atingiu o paroxismo: suas falas foram, com frequência, incompreensíveis.

Num país onde boas notícias têm de ser garimpadas com persistência, é um alívio saber que o vice-presidente ‒ que foi adido militar nos EUA por dois anos ‒ consegue ler e se exprimir em inglês com destreza. Comparando com o que tivemos em passado recente, já é enorme avanço!