O mundo de olho

“Debate venenoso entre Bolsonaro e Lula”
Le Monde, França – 30 set° 2022

José Horta Manzano

Antes deste ano da graça de 2022, nunca jamais uma eleição presidencial brasileira tinha despertado tamanho interesse além-fronteiras. No tempo dos militares, nem se fala. A “eleição” estava mais pra nomeação e não levantava paixões. Desde a redemocratização, o interesse aumentou, mas não resultou em entusiasmo internacional.

Este ano é diferente. O mundo está assustado. Assustado com o espantalho de um Trump ameaçando voltar a se apossar do governo da maior potência do planeta. Assustado com a ditadura de Putin, que aterroriza com suas bombas atômicas. Assustado com regimes populistas e autoritários que pipocam no coração da Europa: Hungria, Polônia. Assustado com as eleições da semana passada na Itália, que deram a vitória a uma extrema-direita populista e xenófoba.

O mundo civilizado tem acompanhado os quatro anos do desastre bolsonárico. Embora dirigentes dos principais países respeitem o dever de reserva que se exige deles, sabe-se que todos estão preocupados com as eleições brasileiras.

O temor de um autogolpe, presente até pouco tempo atrás, arrefeceu. Bolsonaro, decerto por não receber o apoio que esperava, anda mais calmo. E todos nós nos damos conta de que o perigo de uma reviravolta no regime, se não estiver de todo esconjurado, está menos ameaçador.

Resta o risco de uma reeleição do capitão, fato considerado um verdadeiro desastre. Bolsonaro, com sua visão simplória de geopolítica, não tem capacidade de entender o perigo representado pela ditadura totalitária de Putin. Chegou a declarar que “o Brasil é solidário à (sic) Rússia”. Dirigentes de visão sentem calafrios ao imaginar o Brasil entrando no clube das pseudodemocracias autoritárias.

Não se passa um dia sem que se fale de nosso país e destas eleições. Estações de rádio e de tevê mandaram enviados especiais, que já estão no país à espera do domingo. Diariamente, há bloco nos telejornais especialmente para analisar o Brasil pelo direito e pelo avesso. Os jornais seguem na mesma linha. Assisti estes dias a dois longos documentários sobre o clã dos Bolsonaros. O primeiro, com uma hora de duração, passou na tevê suíça; o outro, de três horas espalhadas por três capítulos, passou na britânica BBC.

Até o debate de ontem já apareceu na imprensa europeia. A ilustração mostra longo artigo com boa análise feita praticamente no fogo da ação.

Faz bem ao ego ver que o mundo se interessa pelo país da gente. Só que, francamente, eu preferia que esse interesse fosse por aspectos mais civilizados de nossa sociedade, e não por esse indivíduo repulsivo.

Que ele seja logo despachado de volta pr’a geleia geral dos baixos círculos milicianos. De onde nunca deveria ter saído.

De uniforme ou sem?

by Alberto Benett (1974), desenhista paranaense

José Horta Manzano

Não sei como anda a moda vestimentária da juventude no Brasil. Aqui onde vivo, as cores desapareceram: todos (ou quase todos) os jovens se vestem de preto. Dos pés à cabeça. Minto – é só das canelas à cabeça. O calçado escapa à ditadura do luto. É a única peça que dá um pouco de cor à silhueta.

Quando este escriba era jovem, o uso era o inverso do que é hoje. O sapato é que era obrigatoriamente preto, enquanto a roupa era livre. Era uma época mais colorida, com camisas estampadas, calças de todas as cores imagináveis. Só o calçado era uniformizado. Não usar sapato preto era pecado tão grave quanto ir a um baile de formatura de smoking e sandália de dedo.

Não sei de onde terá vindo essa ideia de cada um tentar afirmar a própria personalidade vestindo-se todos de urubu.

Enfim, se estão felizes assim, melhor pra eles.

O dia do voto está chegando. Os eleitores sairão de casa e, se não forem incomodados por algum assalto ou bala perdida, entrarão na cabine de votação. Cabine, daquelas de cortininha, é modo de dizer; nestes tempos de penúria, a cabine é virtual. Virou um minibiombo de papelão.

Aos que, distantes de corpo e alma da pátria-mãe, vêm me pedir orientação sobre os candidatos, dou meu conselho. E não esqueço de acrescentar um ponto primordial: o cuidado com a indumentária.

O risco não é grande, mas no exterior também há grupelhos exaltados e até violentos. São, em geral, pupilos do capitão – veja-se o que aconteceu em Londres, diante da residência do embaixador, quando da estada de Bolsonaro. Aquela gente mostrou aos ingleses o grau de incivilidade que a passagem do capitão pela Presidência provocou.

Aconselho a todos evitar vestir-se de vermelho no dia de votar. Touros selvagens se excitam com essa cor e podem tentar dar chifrada. Por seu lado, é bom evitar também a cor amarela. Ninguém é santo, e não é impossível que algum apóstolo inflamado do demiurgo de Garanhuns saque a peixeira.

Nesta época do ano, em que camisetas já foram lavadas, dobradas e empilhadas no fundo do armário, estamos todos de agasalho pesado, que costuma ter cores menos vibrantes. É raro ver capote vermelhão; mais raro ainda é ver abrigo amarelo. Assim mesmo, todo cuidado é pouco.

A gente se espanta e se solidariza com as infelizes mulheres iranianas que estão sendo massacradas por saírem de casa sem o véu islâmico. Ao mesmo tempo, não nos damos conta de que em nosso país, a sinistra função de Polícia de Costumes foi delegada a todos os cidadãos. Os mais desvairados estão sempre prontos a despachar para o Pronto Socorro os que não rezam pela sua cartilha. Para o Pronto Socorro ou para o outro mundo.

Veja quanto regredimos!

Voto desparelhado

Golden Gate Bridge, San Francisco (California)

José Horta Manzano


De quatro em quatro anos volto ao assunto na época das presidenciais. Mas vamos começar pelo começo.


No Brasil, a colonização europeia chegou pela costa marítima. No primeiro século, com a notável exceção do vilarejo de São Paulo, os numerosos estabelecimentos portugueses estavam à beira-mar, de norte a sul do território.

Diferentemente dos EUA e do México, países com duas faces costeiras, o Brasil só pode contar com a costa atlântica. Sem a atratividade de uma outra face marítima, nosso povoamento demorou a penetrar fundo no território. A construção da nova capital federal, Brasília, e os incentivos dados nos anos 1970 à internalização do “progresso” não provocaram caudalosa marcha para o Oeste. O grosso da população e das atividades do país continuaram concentradas numa faixa de poucas centenas de quilômetros ao longo da faixa costeira.

Assim é até hoje. Veja um exemplo flagrante. Nosso país, com seus 4.400 km de extensão leste-oeste, cobre 4 fusos horários. No entanto, quando o locutor de alguma estação de rádio de projeção nacional ouvida em todo o território proclama, com voz empolada, que são 10 horas, está dando somente a hora da costa atlântica.

É verdade que cerca de 90% dos brasileiros se encontram dentro desse fuso, mas não deixa de ser injusto para com os demais. O relógio de mato-grossenses, amazonenses e vizinhos ainda está marcando 9 horas. Devem sentir-se cidadãos de segunda zona. Pior ainda são os acrianos, para os quais são ainda 8 horas. Ah, e tem o caso dos habitantes de Fernando de Noronha. São poucos, mas merecem atenção como os demais. Os relógios do arquipélago estão marcando 11 horas.

Até aqui, tratei de uma indelicadeza para com parte da população. Fica feio, mas não é ilegal. Já o que vem a seguir resvala para terreno pantanoso.

Faz uns vinte anos que os brasileiros do exterior temos direito de votar nas presidenciais. Vota-se somente para presidente, visto que, no Congresso, ainda não foram criadas vagas de deputados e senadores para defender especificamente os interesses dos expatriados.

Brasileiros da Nova Zelândia são os primeiros a apertar teclas na urna eletrônica. Em seguida, vêm os conterrâneos estabelecidos na Austrália, no Japão, na China, e assim por diante, até a Terra girar e o dia clarear em território nacional. Começam primeiro a votar os fernando-noronhenses, em seguida votam os da grande faixa que segue a hora de Brasília. Uma hora depois, abrem-se as urnas de amazonenses e mato-grossenses. Por último, vêm os acrianos.

Enquanto isso, continua o voto no exterior. A Terra vai girando – Ásia, África, Europa – e as urnas vão se abrindo. E chega a vez dos Estados Unidos. Consulados da costa atlântica são seguidos pelos do interior do país até chegar à costa do Pacífico.

No Brasil, cada estado encerra a votação às 17 horas locais. Os últimos a bloquear as maquinetas são os do Acre, que só terminam de votar duas horas depois do grosso da população do país. Fechadas as urnas do Acre, todos os veículos de informação anunciam a esperada estimativa geral colhida na boca de urna. Em seguida, vão pingando, um atrás do outro, resultados parciais daqui e dali. Em meia hora ou coisa assim, conhece-se o nome do(s) vencedor(es).

Até aí, beleza pura. Só que… nos EUA, na costa do Pacífico, as urnas ainda estão abertas e há gente esperando pra votar. Temos aí um grave problema. Em princípio, o horário de votação de todos os brasileiros tem de estar encerrado pra que se saiba dos resultados. Como é possível terem esquecido os que votam em Los Angeles ou em San Francisco? E não são poucos.

Chegamos assim à bizarra situação de ver eleitores que votam sabendo já do resultado, como se o voto deles não fizesse a menor diferença. Ou, pior ainda, podendo, sim, fazer diferença no caso de resultado apertadíssimo.

É uma anomalia que tem de ser sanada. Quem sabe para as próximas eleições, quando estará menos absorvido em se esquivar de ataques da extrema-direita belicosa, o TSE vai poder se debruçar sobre esse problema.

Como fazer então?
A França, que tem ilhas e pequenos territórios ao redor do planeta, já resolveu o problema faz tempo. Os eleitores do exterior não votam no domingo, mas um dia antes, no sábado. Assim, sem afobação, as seções eleitorais transmitem o resultado a Paris. Os votos do estrangeiro ficam armazenados no computador central à espera do fim do voto nacional.

Pra tudo tem remédio, basta querer.

Um susto italiano

José Horta Manzano

Susto não foi, porque já fazia semanas que as pesquisas estavam mostrando a tendência. Assim mesmo, quando a boca de urna confirmou a vitória da extrema-direita nas eleições italianas, um calafrio percorreu Oropa, França e Bahia. A primeira página de jornais mundo afora reflete o choque.

Afinal a Itália, além de ser membro fundador da União Europeia, é sua terceira economia. Uma Itália que hesitasse a seguir caminho com os demais parceiros seria um golpe extremamente pesado, do qual a UE teria dificuldade em levantar-se. Num momento em que há uma guerra trovejando no continente, é pra lá de importante que todos se mantenham unidos.

Li e ouvi numerosas análises, cada uma com sua explicação do resultado das urnas. “Como é possível que os italianos estejam se mostrando saudosos de um passado fascista?” “Onde foi parar a esquerda, relegada ao papel de simples figurante no próximo parlamento?” “Como explicar essa deriva ‘trumpista’ que tomou conta da península?”

Acredito que, para abraçar o problema e encontrar a resposta, não precisa muita filosofia – uma análise terra a terra do ânimo dos eleitores é suficiente. Muitos povos, se não for a humanidade inteira, vivem à espera do homem providencial, aquele que virá salvar a lavoura e a pátria inteira. É um estado de espírito problemático, pois a entrega do destino de um país nas mãos de um único indivíduo costuma terminar em desastre.

A Alemanha de Hitler conheceu esse destino; os EUA de Trump também; a Rússia de Stalin, a Líbia de Kadafi, a Nicarágua de Ortega idem. E decerto a própria Itália de Mussolini. Mas não vamos exagerar. A república italiana, tal como está estruturada pela Constituição de 1946, conta com pêndulos e contrapoderes que tendem a equilibrar a governança.

A razão pela qual os italianos votaram no partido da Signora Meloni (Fratelli d’Italia) não tem tanto a ver com ideologia, mas com as dificuldades do dia a dia. Carestia, desemprego, inflação, juros altos, queda do poder aquisitivo – essas são as engrenagens que levaram ao voto de extrema-direita. O pequeno comerciante obrigado a trabalhar 14 horas por dia pra tirar um salário magrinho no fim do mês é tipicamente um eleitor insatisfeito com o sistema.

Nos últimos anos, a Itália conheceu governos de esquerda moderada, de direita moderada, de centro-esquerda, de centro-direita. Aos olhos de muitos, o país continua empacado. Por isso, decidiram votar num partido que, apesar de trazer vapores tóxicos de um fascismo idealizado, lhes pareceu capaz de levantar o país. Foi assim que investiram Signora Meloni no papel de salvadora da pátria.

A meu ver, a situação guarda certa semelhança com o Brasil de 2018. Quase ninguém estava querendo implantar a extrema-direita no país. O grande motor do voto foi a ojeriza ao lulopetismo. Bolsonaro foi o candidato que pareceu encarnar mais virulentamente o antipetismo. Por isso e para isso foi eleito.

Não se pode – nem se deve – acreditar que a Itália está à beira de um novo período de obscurantismo medieval, de leis raciais e de perseguição de oponentes e de homossexuais. Se os contrapoderes internos não forem suficientes, a União Europeia tem argumentos muito poderosos, como por exemplo o repasse periódico de dezenas de bilhões de euros a que Roma tem direito.

Pra finalizar, convém relativizar. Somente 64% dos eleitores votaram, o que significa que 1 em cada 3 italianos ficou em casa num domingo de chuva. O partido vencedor ficou com apenas 26% do total. Se calcularmos 26% de 64%, veremos que menos de 17% dos eleitores votaram para Fratelli d’Italia. Não é o caso de puxar os cabelos e começar a gritar.

Abaixo, a primeira página da edição impressa de uma seleção de jornais no dia seguinte ao do voto.

 

Il Giornale, Itália
A manchete faz trocadilho com a letra do hino nacional

 

 

The Times, Londres (Reino Unido)

 

 

Corriere della Sera, Itália

 

 

O Estado de São Paulo, Brasil

 

 

El País, Madrid (Espanha)

 

 

“I”, Portugal

 

 

La Vanguardia, Barcelona (Espanha)

 

 

Ara, Catalunha (Espanha)

 

 

De Morgen, Antuérpia (Bélgica)

Tout ça pour ça?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 24 setembro 2022

“Tout ça pour ça” é expressão que os franceses utilizam para indicar que um grande esforço deu resultado pífio. Tudo isso pra isso?

Bolsonaro botava fé na ida à Inglaterra para o funeral de Elizabeth II. Assim que a nota de falecimento chegou, postou na rede um texto enigmático em que elogiava a falecida e explicava: “porque não foi apenas a rainha dos britânicos, mas uma rainha para todos nós”. O sentido da frase não ficou claro. De que maneira teria ela sido uma rainha para todos nós? Talvez fosse apenas uma tentativa canhestra de saudar uma personalidade importante. Quase todo o mundo tinha simpatia pela rainha da Inglaterra; de lá a considerá-la “nossa rainha”, há uma boa distância. Ficou esquisito.

Seu comitê de campanha julgou que estar presente na cerimônia fúnebre seria ótima oportunidade para dar ao bom povo a ilusão de ter um presidente influente, aceito nos altos círculos da governança planetária, enfronhado com os grandes deste mundo. O decreto de luto nacional de três dias saiu rápido, em edição extra do Diário Oficial. Note-se que o Brasil não é integrante do Commonwealth e que Bolsonaro, diferentemente de Lula, FHC e Dilma, nunca se encontrou com a rainha.

Ficou a incômoda impressão de que o luto decretado tinha um fundo interesseiro. O presidente pareceu estar pedindo para ser convidado para o funeral. Até os ladrilhos da Abadia de Westminster sabiam que nem todos os dirigentes do planeta seriam convidados. Sabia-se que ninguém que pudesse criar constrangimento receberia convite. Mas… e Bolsonaro? Ele já criou caso com tanta gente! Charles III é fervoroso militante da causa climática, enquanto nosso presidente milita pelo fim da floresta amazônica. É lícito crer que foi o receio de não ser convidado que impeliu o capitão a ser tão obsequioso.

Deu certo. O convite veio, com direito a cumprimentar o rei. O soberano não concedeu mais que um minutinho a cada dirigente estrangeiro, mas o importante é que Bolsonaro conseguiu ser retratado ao lado dele. Na foto, o capitão parece sorridente demais para um encontro com quem acabava de perder a mãe. Deu tapinha no ombro do rei, numa intimidade inusitada, gesto lesa-majestade. Mas a foto saiu. Vai ajudar na eleição da semana que vem? Que acredite quem quiser.

Bolsonaro pernoitou na residência de nosso embaixador. Ruidosa recepção matinal defronte à sacada o esperava, preparada por apoiadores paramentados como manda o figurino: todos de amarelo, alguns enrolados no lindo pendão da esperança. Na hora, levei um susto ao imaginar que nossos compatriotas que moram no Reino Unido fossem todos bolsonaristas. Por ingenuidade ou malícia, o capitão pareceu achar a mesma coisa. Tanto é que, sentindo-se elevado às nuvens, fez discurso de improviso. Inflamado, acusou antecipadamente o TSE de fraude caso ele não vença no primeiro turno.

Após reflexão, percebi que minha primeira impressão estava errada. Nós, brasileiros do exterior, não lemos todos pela mesma cartilha. Aqueles que vociferaram na tranquila manhã londrina, em pleno período de luto e recolhimento nacional, não eram representativos da colônia brasileira. É que os não bolsonaristas – lulistas, ciristas, tebetistas, abstencionistas – aproveitaram o feriado para dormir até mais tarde. Iam lá se expor à violência gratuita de devotos ensandecidos? Ainda não enlouqueceram.

Dois dias depois, no discurso de abertura dos trabalhos na ONU, o capitão teve grande oportunidade de redimir-se. Mas subiu ao púlpito e não decepcionou: leu um texto com algumas platitudes e muitas inverdades. Descreveu um Brasil de folheto turístico, de deixar o País das Maravilhas com inveja. Achei até que, ao final da fala, a plateia se fosse levantar em peso para precipitar-se ao consulado do Brasil para solicitar um visto de permanência. Conhecendo o capitão, ninguém se levantou.

Ao fim e ao cabo, Bolsonaro perdeu excelente oportunidade de dar uma trégua aos eleitores que pretende conquistar. Desaparecer do cenário por alguns dias teria sido bom para sua campanha, visto que não proferiria as habituais ofensas que freiam sua subida nas pesquisas. Só que, mesmo no exterior, ele persistiu em deteriorar a própria imagem. Foi jogo de resultado zero.

Tout ça pour ça? Manda outra, capitão! Com essa, vosmicê deu com os burros n’água.

Café frio

José Horta Manzano

Em dezembro de 2018, um mês antes de passar a faixa a Bolsonaro, o presidente Temer foi enfático ao confirmar a historinha do café frio que costuma ser servido aos presidentes em fim de mandato. “A história do café frio é uma verdade absoluta” – disse ele. Em seguida, emendou-se e garantiu que o café dele “ainda estava sendo servido quente”. Decerto um eufemismo.

A pitoresca imagem foi criada há décadas. É bastante explícita. Passadas as eleições, já se conhece o nome de quem ocupará o trono pelos quatro anos seguintes. O presidente sainte (=que está de saída) já não manda muito, fato que diminui a motivação de garçons, serviçais, faxineiros, atendentes e aspones em geral para atender a seus chamados.

Dado que, tirando os devotos, todos preferimos dar mais crédito ao Datafolha que ao Datapovo, já entendemos que, a não ser que aconteça um milagre, o mandato do capitão não será renovado. Nesse “nós” há muita gente incluída: você, eu e até bolsonaristas de carteirinha que estão deixando de pagar as mensalidades do clube.

Um deles deu na vista estes últimos dias. É o togado André Mendonça, o “terrivelmente evangélico” nomeado por Bolsonaro para ocupar uma cadeira no STF. Nos primeiros tempos, o feliz ministro vitalício votou em concordância com os interesses do governo e fez o que pôde para agradar ao padrinho. Mas o tempo passa, a Terra gira e… chega um dia em que o café começa a esfriar.

Todo o mundo ficou sabendo da compra de uma baciada de imóveis pelo clã Bolsonaro com dinheiro vivo. Como se deve, esse relato ficou em exposição no Portal UOL, à disposição do distinto público. Um dos bolsonarinhos, aquele que é senador, requereu à Justiça que a informação fosse retirada do ar. Um desembargador obsequioso determinou que os vídeos fossem retirados.

Foi aí que entrou em cena nosso ministro “terrivelmente evangélico”. Com uma argumentação cristalina e bem estruturada, cassou a decisão do desembargador e permitiu que a informação que cutuca o clã presidencial continue disponível, com todo o detalhe da negociata.

Pode-se imaginar o baque que terá levado o clã. A explicação é que André Mendonça, o pastor ministro, parece já ter virado a página do bolsonarismo. Numa era pós-bolsonárica, não pretende continuar como um elétron solto, um zumbi esquecido de um pesadelo que já acabou. Quer pisar em 2023 como ministro normal, no mesmo nível de prestígio dos demais.

Seja como for, Sua Excelência está ajudando a soprar o café do presidente. Que, a estas alturas, já deve estar gelando.

O medo da morte

José Horta Manzano

Assim que o primeiro estalo de civilização atingiu os contemporâneos de Lucy, o homem se habituou a dar sumiço no cadáver de seus mortos. Desde então, nenhum povo costuma derrogar a essa prática.

Até poucos séculos atrás, não incomodava a ninguém que águas usadas, transformadas em fedido esgoto, escorressem a céu aberto. No entanto, ninguém jamais admitiu ter de alargar o passo para evitar pisar em cadáveres insepultos. A barreira entre vivos e mortos tem de ser física, forte, visível, hermética, intransponível. Alguns recorrem à cremação, mas a maioria prefere enterrar seus defuntos. Sem esquecer de instalar algo pesado por cima.

Esse «algo pesado» com que se cobrem as sepulturas é revelador de um pavor ancestral de que o falecido possa voltar, seja para cobrar dívidas deixadas em aberto, seja para agarrar algum vivente e arrastá-lo inexoravelmente para as trevas.

Na ausência de espiritualismo sofisticado, o homem primitivo cobria as sepulturas de pedras pesadas. Não era simbólico: era pra valer. Garantia que o finado, caso resolvesse retornar para buscar alguém, não tivesse força suficiente para levantar-se da cova. As lápides de mármore ou granito que, ainda hoje, povoam cemitérios de Oropa, França e Bahia são reminiscências desse pavor de ser puxado para os infernos.

O respeito à vontade dos mortos continua sendo a regra em nossa sociedade. As determinações daquele que se foi costumam ser rigorosamente respeitadas, ainda que se situem fora do âmbito da obrigação legal. Vocês já repararam que todo morto «vira santo»? Frase do tipo: “Ah, Fulano era tão bom”, “Homem bom tava ali, sô” são amplamente ouvidas em velórios.

Mas o tempo é remédio para tudo. Passado o luto, o medo diminui. Alguns anos depois, talvez sentindo que o perigo já passou, voltamos a enxergar nossos mortos como realmente foram, com suas qualidades e seus defeitos. E o temor da volta do falecido se atenua.

E a vida continua.

Publicado originalmente em 9 dez° 2012

Bolsonaro e os cristãos perseguidos

Perseguição aos cristãos

José Horta Manzano


“Quero aqui anunciar que o Brasil abre suas portas para acolher os padres e freiras católicos que tem sofrido cruel perseguição do regime ditatorial da Nicarágua. O Brasil repudia a perseguição religiosa em qualquer lugar do mundo.”

Trecho do discurso proferido por Bolsonaro na ONU em 20 set° 2022


Até quando tenta mostrar uma faceta pseudo-humanitária, o capitão é desonesto e distorce a realidade. Até quando quer parecer bonzinho, ele expõe seu lado clivante e discriminatório.

À primeira vista, quem acompanhou o trecho do discurso que citei acima fica com a impressão de que finalmente o presidente conseguiu exprimir um sentimento de empatia, ainda que tardio. A farsa, no entanto, desaba quando se toma conhecimento da impiedosa perseguição que sofrem os cristão mundo afora.

A ong Open Doors (Portas Abertas), fundada em 1955 por um fervoroso holandês, milita em favor dos 360 milhões de cristãos perseguidos no planeta simplesmente pelo motivo de serem cristãos.

Essa ong protestante publica todos os anos um “índice mundial” da repressão aos cristãos, esmiuçando todos os tipos de maus tratos. Em seguida, classifica os países numa escala que vai de “opressão diária discreta” até “violências extremas”. Frise-se que a imensa maioria das vítimas são de religião católica.

Em 2021, mais de 360 milhões de cristãos foram vítimas de perseguição, com variados graus de violência. Eles são católicos, ortodoxos, protestantes, batistas, evangélicos, pentecostais e outras denominações – distribuídos por 76 países. O número de cristãos assassinados em 2021 foi de 5.898. O número de igrejas e templos fechados, atacados ou destruídos foi de 5.110.

A China é a campeã de fechamento de igrejas. Aproveitando-se da crise da covid, quando tudo foi fechado, deixaram de autorizar a reabertura de templos cristãos. A Nigéria é a que mais assassina cristãos. O Afeganistão, desde que os talibãs assumiram o poder, é o pior país para um cristão viver sua fé.

A ilustração mostra os 50 países em que a perseguição dos cristãos é mais intensa. Observando bem, vê-se que a Nicarágua, citada no discurso de Bolsonaro, não aparece. Por que, então, esse país aparece na fala presidencial? Por que o Brasil só abre as portas para nicaraguenses, abandonando os demais à própria sorte?

Há duas hipóteses.

A primeira é que a equipe presidencial simplesmente não sabia da existência dessa ong – que, por sinal, está implantada também no Brasil. Sabe como é, falou em “ong”, Bolsonaro se arrepia todo, imaginando que são todos vagabundos de olho em nossas riquezas minerais. Logo, por esta primeira hipótese, a citação da Nicarágua no discurso fica por conta da ignorância presidencial.

A segunda hipótese é mais sutil. Sabedor de que Lula parece apreciar o ditador da Nicarágua a ponto de chamá-lo de “companheiro”, Bolsonaro quis matar dois coelhos de uma só cajadada. Deu uma alfinetada no Lula ao lembrar que o regime do “companheiro” nicaraguense persegue religiosos e mostrou-se magnânimo abrindo as portas do Brasil para acolher os perseguidos. Logo, esta segunda hipótese fica por conta da perfídia presidencial.

Pensando bem, o mais provável é que as duas hipóteses sejam verdadeiras, o que nos leva ao cruzamento da ignorância presidencial com a perfídia presidencial. Que Deus nos acuda!

Caminho traçado

José Horta Manzano

Em março último, faz exatamente 6 meses, o Estadão passou a publicar um agregador de pesquisas eleitorais. Com metodologia própria, colhe os dados levantados por 14 diferentes institutos e chega a um resultado depurado.

A ferramenta é interessante, visto que atenua imprecisões, distorções e até dados fora da curva que algum instituto individualmente possa ter publicado.

Consulto com frequência esse agregador. Com respeito às pesquisas da corrida presidencial, tenho notado uma surpreendente constância nos resultados.

 


Em 12 de abril deste ano, bem antes do início da campanha oficial, Lula era creditado com 44% das intenções de voto; naquela altura, Bolsonaro estava com 30%.


 

De lá pra cá, tivemos distribuição de dinheiro a rodo via orçamento secreto, milhões torrados na campanha oficial, propaganda gratuita em rádio e tevê, aumento substancial da mensalidade da Bolsa Família, exposição tímida do projeto de cada um, debates entre candidatos, exposição na mídia, posicionamento firme de figurões (cada um apoiando seu candidato). E qual foi o resultado?

 


Na última atualização, publicada ontem, o agregador mostra Lula com 45% e Bolsonaro com 33%.


 

Constata-se que, pouco mais ou menos, ambos oscilaram dentro da margem de erro. Seis meses se passaram e as intenções não arredaram pé. É notável essa estabilidade. Parece que todo esse frenesi e essa gastança de dinheiro público não serviram para nada.

O astral não deve estar muito alto na equipe de campanha do capitão. Ele continua garantindo que vence no primeiro turno, mas a gente se pergunta qual é a receita para mudar em 10 dias um cenário que está congelado há 6 meses.

A menos que uma catástrofe venha chacoalhar o picadeiro – tipo assassinato, morte súbita, terremoto ou bomba atômica – o caminho parece traçado.

Darwinismo social

José Horta Manzano

Semana passada, o Estadão publicou editorial intitulado Darwinismo Social de Bolsonaro.  Me pareceu excelente definição do modo malvado e mesquinho com que o capitão espezinha as camadas mais humildes da população. É aporofobia(*) pura exercida por um indivíduo de espírito fundamentalmente escravagista.

O Darwinismo Social é doutrina impiedosa, que não cabe em nosso modelo ocidental de democracia. É parente próximo do Eugenismo, que preconiza o abandono – ou até a eliminação – dos elementos mais frágeis da sociedade.

A amputação de 60% da verba destinada ao programa Farmácia Popular está em perfeita sintonia com a ideologia bolsonárica: vence o mais forte, os fracotes que se lixem.

Na mesma linha está o veto presidencial do aumento da verba para a merenda escolar – que está congelada há 5 anos (1 ano de Temer mais 4 do governo atual).

Em numerosas ocasiões, especialmente nos momentos mais agudos da pandemia, Bolsonaro deixou claro seu desprezo pelos cidadãos que mostravam ter medo de apanhar a doença. Caçoou dos que morriam de falta de ar. Tratou de maricas os que se vacinavam. Exortou o bom povo a deixar de lado a vacina e optar pela cloroquina.

São gestos que casam com a doutrina do super-homem e da vitória dos mais fortes em detrimento dos mais fracos, exatamente como na selva de Tarzan. Não há pensamento mais tóxico e mais explosivo para tornar inviável a convivência num país tão desigual como o nosso. O “pensamento” bolsonárico é poderoso freio a nosso avanço no processo civilizatório.

Um dos sinais mais significativos da transformação de uma sociedade primitiva em uma sociedade avançada e democrática é justamente o cuidado dedicado a seus membros mais frágeis. No caso do Brasil, a franja vulnerável é constituída pelos miseráveis, pelos famintos, pelos menos favorecidos, pela infância, pelas minorias étnicas e raciais. São justamente os que precisam da merenda escolar e da Farmácia Popular.

Cortar verbas que deveriam ser dirigidas aos que vegetam nas bordas da nação equivale a arremessar esses indesejáveis ao mar e seguir o barco. Cada ato emanado desse governo vem encharcado de injustiça.

É inacreditável que um em cada três eleitores ainda apoiem a reeleição desse indivíduo. Me recuso a acreditar que um terço dos brasileiros concordem com esse Darwinismo Social. Acho que eles, principalmente os que se consideram cristãos, não entenderam o que está ocorrendo.

(*) O termo aporofobia define o ódio e o repúdio à pobreza e aos pobres.

As falsas assimetrias

Eduardo Affonso (*)

Digam o que disserem antropólogos, sociólogos e cientistas políticos, ninguém conhece melhor a alma de um povo do que seus artistas. Eles são “a antena da raça”, na definição do poeta Ezra Pound. Antena, radar, sonar, telescópio, microscópio, tradutor, oráculo, o artista atira no que sente e acerta no que talvez apenas pressinta. Mesmo quando fala de uma dor de corno ou de cotovelo, pode estar retratando o relacionamento tóxico de um povo consigo mesmo e com suas escolhas.

Esses moços, pobres moços (…)
Saibam que deixam o céu por ser escuro
E vão ao inferno à procura de luz

cantou Lupicínio Rodrigues com o pensamento nos que buscam os altos voos do amor se atirando no precipício da paixão. Mais ou menos o que temos feito na vida política.

Com Mário Covas, Ulysses Guimarães e Roberto Freire na disputa, elegemos Fernando Collor. Agora abrimos mão de Simone Tebet, Ciro Gomes e Luiz Felipe d’Avila para encarar uma escolha de Sofia entre o que deu errado e o que não tem como dar certo.

Mantidas as tendências apontadas nas pesquisas de opinião, Bolsonaro (em ascensão) poderia alcançar Lula (estabilizado). Mas isso foi antes das entrevistas no JN e dos debates, em que Lula leva vantagem.

Como o impossível sempre nos acontece, resta torcer por gafes, revelações bombásticas, plot twists e armadilhas do destino. Não havendo, entretanto, fato novo que nos faça dar uma chance ao bom senso, algumas previsões podem ser feitas, com probabilidade de 150% de virem a se cumprir:

O novo presidente não pacificará o país – ao contrário, ampliará o fosso. Terá contra si, se não o ódio, pelo menos o ranço de metade da população. Não respeitará o teto de gastos. Adotará medidas que já não funcionaram em governos anteriores.

Será alguém que não nutre simpatia pela imprensa livre. Que se sente perseguido, injustiçado e sonha com uma cobertura chapa branca – devidamente recompensada.

Será um iliberal. Que não esconde uma queda por regimes autoritários. O representante de um anacronismo – a velha esquerda antiamericana (ops, agora é antiestadunidense) com camiseta de Che Guevara, ou a velha direita reacionária, com bandeira do Império e mentalidade das capitanias hereditárias.

Alguém com um passivo de conivência com a corrupção, esteja o balcão de negócios no MEC, na Saúde, nos Transportes ou na Previdência dos Correios; sejam as jocosamente diminutivas rachadinhas ou os superlativos petrolão e mensalão. E que não se arrepende dos malfeitos, nem garante que não voltará a cometê-los.

Alguém que odeia a Lava-Jato – e pelos motivos errados. Que não se compromete com a lista tríplice para a escolha do PGR. Que terá deixado um país pior para o sucessor, ainda que atribua a maldição à herança recebida. Alguém incapaz de metáforas – no máximo, analogias rasas com casamento e futebol.

Será o governo de um tigrão nos cercadinhos e uma tchutchuca diante do Centrão. E de quem não admite ser comparado a seu suposto antípoda.

Sobre essa nossa sina, já cantava Lupicínio:

Se deixo de alguém por falta de carinho
Por brigar e outras coisas mais
Quem aparece no meu caminho
Tem os defeitos iguais.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

O nome dos bois

José Horta Manzano

Uma conjectura atormenta filósofos desde a Grécia antiga.


A coisa e seu símbolo são convergentes ou inapelavelmente antinômicos?


Em palavrório accessível, a questão é: mudando o símbolo muda-se a coisa?

Os franceses, com sua longa experiência em matéria de conflitos, afrontamentos, revoluções e guerras, ensinam a «appeler un chat un chat» – se for um gato, há que dizer que é um gato. Esse dito popular exorta o bom povo a não ter medo de dizer as coisas como elas são. Dar nome aos bois, diríamos nós outros. Diríamos? Dizíamos, distinto leitor, dizíamos.

Até alguns anos atrás, os contorcionismos verbais se restringiam a suavizar tabus geralmente de ordem sexual. Todas as palavras que pudessem, de perto ou de longe, remeter ao sexo eram evitadas. Até fenômenos fisiológicamente naturais como a trivial menstruação tinham seus nomes eludidos. Dizia-se que a moça estava «naqueles dias».

Costumes mudam com o passar do tempo. Não há que ser empacado nem caprichoso, que o mundo é assim mesmo. A sociedade evolui e, com ela, as modas, as palavras, as expressões. De uns tempos para cá, essa guinada tem-se acelerado em nosso País. É fenômeno importado, mas pegou forte, alastrou-se como fogo em palha seca.

Uma lista de nomes e expressões a banir foi criada. E esse rol tende a se avolumar a cada dia. Não se fala mais assim, não se diz mais isso, nem pensar em pronunciar aquilo. Fica a desagradável impressão de que mentores mal-intencionados se puseram de acordo para acirrar ânimos, aprofundar fossos entre extratos sociais, separar o povo em campos distintos e antagônicos.

Palavras estranhas – e nem sempre bem escolhidas – nos vêm sendo impostas. Mulato, por exemplo, palavra a execrar hoje em dia, deve ser substituída por afrodescendente. Ora, há que ter em mente que todos os mulatos são também eurodescendentes, se não, não seriam mulatos. Por que, raios, o afro- teria precedência sobre o euro-? Devemos enxergar aí uma nova discriminação?

O Brasil já foi um país muito mais livre. O que digo pode soar estapafúrdio para os mais jovens, mas é o que ressinto. Éramos pobres, sim, mas podíamos sair à rua a qualquer hora sem medo de enfrentar violência, não precisávamos viver enjaulados como bichos no zoológico, a porta de casa dispensava tranca. E era natural dar nome aos bois.

Hoje os brasileiros são mais ricos que meio século atrás (ou menos pobres, se preferirem), mas vivem na apreensão permanente do assalto, da violência, da bala perdida, do sequestro relâmpago. São obrigados a cercar-se de jaulas, câmeras de segurança, porteiros, vigias. E, para coroar tudo, como morango em cima de bolo de aniversário, já não se pode falar como antes. Temos de filtrar nossas palavras, pesar nossas expressões, policiar nosso discurso.

Será que, desde que fomos assaltados pelo “politicamente correto”, teremos sido capazes de resolver a conjectura secular dos filósofos? Será que, mudando o nome da coisa, mudamos também a essência dela? Será que o mulato transfigurado em euro-afrodescendente será mais respeitado, mais valorizado, mais favorecido, mais feliz?

Se assim for, chegou a hora de enfiar o grande Ataulfo Alves no mesmo balaio ao qual já foram condenados Monteiro Lobato e o Saci-Pererê. Seu samba Mulata Assanhada, de 1956, tem de ser banido do cancioneiro nacional por motivo de vocabulário inapropriado.

E é bom que preparem um balaio de bom tamanho. Muita gente fina vai ter de se acomodar lá dentro. Gente do quilate de Ary Barroso, Chico Buarque, Noel Rosa, isso só para começar. Pelas regras de hoje, estão todos em pecado mortal.

Publicado originalmente em 13 dez° 2012.

Zé Pequeno

Gaudêncio Torquato (*)

Dinarte Mariz era governador do Rio Grande do Norte. Em uma de suas costumeiras visitas a Caicó, visitou a feira da cidade, acompanhado da sempre presente Dona Nani, secretária de absoluta confiança. Dá de cara com um amigo de infância e logo pergunta:

– Como vai, Zé Pequeno?

O amigo, meio tristonho e cerimonioso, responde:

– Governador, o negócio não tá fácil; são oito filhos mais a mulher… tá difícil alimentar essa tropa vivendo de biscate. Mas vou levando até Deus permitir.

Dinarte o interrompe de pronto:

– Zé, que é isso, homem, deixe essa história de governador de lado. Sou seu amigo de infância, sou o Didi!

Vira-se para Dona Nani e ordena:

– Anote o nome do Zé Pequeno e o nomeie para o cargo de professor do estado.

Na segunda-feira, logo no início do expediente, Dona Nani entra na sala de Dinarte e vai logo informando:

– Governador, temos um problema, o Zé Pequeno, seu amigo, é analfabeto; como podemos nomear…

Antes que concluísse a fala, o governador atalha:

– Virgem Maria, Dona Nani! O Rio Grande do Norte não pode ter um professor analfabeto. Aposente o homem imediatamente.

E assim foi feito!

(*) Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e colunista.

A avó da Europa

Lago de Lucerna (Suíça)
aquarela pintada pela rainha Victoria em 1868

José Horta Manzano

Recordes são feitos pra serem batidos. Antes do longo reinado de Elizabeth II, o recorde de longevidade no trono britânico tinha sido proeza de sua bisavó, a rainha Victoria (1819-1901), que subiu ao trono em 1837 e reinou por 64 anos, até sua morte.

Aos 21 anos, em 1840, casou-se com Albert, um príncipe alemão. Tiveram nove filhos e quarenta netos. Muitos descendentes se casaram com membros da realeza europeia.

Seus bisnetos – contando só os legítimos – são 142. Entre eles, há gente conhecida: a rainha Elizabeth II e o marido Philip, o rei Juan Carlos I da Espanha e sua mulher Sofia, o rei Constantino II da Grécia e sua mulher Anne-Marie.

Além desses descendentes que se casaram com primos distantes, há outros: o rei Harald V da Noruega, o rei Carl XVI Gustaf da Suécia, a rainha Margrethe II da Dinamarca, o rei Peter II da Iugoslávia e o rei Michel I da Romênia.

Nesse elenco, só aparecem os bisnetos que se tornaram reis; ficam de fora príncipes, duques, viscondes e quetais.

Victoria enviuvou em 1861, aos 42 anos. Daí pr’a frente, perdeu gosto pela vida. Vestiu-se de preto e nunca mais abandonou o luto. Alguns anos depois da morte do marido, chegou a um estado de grande cansaço, de desânimo, de estafa. Hoje o diagnóstico seria certamente mais sofisticado; na época, falou-se de esgotamento nervoso.

Foi organizada uma viagem de algumas semanas à Suíça. Para espairecer e mudar de ares, a rainha veio em 1868. Testemunhas relatam que ela adorou a temporada. Dado que ela falava alemão, pôde conversar com gente do povo, especialmente com trabalhadores agrícolas. Ficou encantada de ver que as vacas tinham nome e que, quando seu nome era pronunciado, cada uma respondia ao chamado e se aproximava. Na Inglaterra, tinha disso não.

A rainha, que gostava de pintar, registrou a paisagem que vislumbrava do Lago de Lucerna. É a imagem que ilustra este artigo.

Victoria é, de certa forma, a “avó da Europa” – ou, pelo menos, da realeza europeia.

Os mantras da política brasileira

Crédito: MoisesCartuns.com.br

Myrthes Suplicy Vieira (*)


De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Fernando Pessoa


Em psicologia clínica, é comum o alerta aos jovens terapeutas: é justamente nos momentos de maior vulnerabilidade e dor que o paciente menos tem condições emocionais de pedir e de aceitar ajuda. A pessoa está tão empenhada em provar que não há solução viável para o seu caso que rejeita sistematicamente toda forma de aconselhamento e descarta todas as medidas profiláticas sugeridas. Pior, entra numa desesperada batalha inconsciente para desqualificar a expertise, o profissionalismo, a sensibilidade ou a isenção de todos que lhe estendem as mãos.

“Você não entende… Se eu prestar queixa contra meu marido e ele for preso, vai querer se vingar nos meus filhos e na minha família. E eu não saberia viver carregando essa culpa. Além disso, eu não teria como sobreviver financeiramente sem a ajuda dele. Você não sabe como é duro ver seus filhos passarem fome… O que ninguém quer entender é que eu não posso viver o resto da vida em um abrigo, nem depender da decisão de um juiz para evitar que ele saia da cadeia e aí, sim, queira se vingar de todos. Preciso trabalhar e não tenho estudo suficiente, nem onde deixar as crianças… Melhor deixar pra lá, eu me viro sozinha, sei me defender quando é preciso. O problema é que ele está passando por um período difícil sem trabalho e acaba bebendo muito, mas tenho certeza que ele não teria coragem de me matar. Ele só faz essas ameaças porque tem medo de me perder…”

Tristemente, não é diferente na vida de uma nação. No Brasil, além do desastre humanitário causado pela pandemia e pela crise econômica que se sucedeu, estamos tendo de nos debater com uma aliança inédita entre o fundamentalismo pentecostal e o militarismo golpista. E, forçoso é admitir, nenhuma dessas duas forças conhece limites para a manipulação de mentes e de vontades. Seus códigos disciplinares não são somente vendidos a granel, mas agressivamente impostos em bloco a quem não partilha dos mesmos valores como uma questão de patriotismo. A luta deixa, então, de ser política e se configura como a batalha decisiva do bem contra o mal. Saem de cena os direitos e deveres consolidados na Constituição de 1988 e reassume triunfante seu lugar no palco o Código de Hamurabi, com sua Lei de Talião a tiracolo.

Assim, o eleitorado brasileiro já não tem a quem recorrer para pedir ajuda, e não quer – ou não pode – ser ajudado no esclarecimento dos fatores críticos que estão em jogo, seja porque desacredita da análise especializada dos cientistas políticos e juristas, da imparcialidade dos órgãos de imprensa e da credibilidade individual dos jornalistas ou da isenção dos ministros do Supremo. Acossados pela fome, pela total falta de perspectivas de um futuro melhor para todos, pela brutal insegurança pública e pelo ódio que contamina todos os setores da experiência cotidiana, vivem todos enclausurados em seus guetos ideológicos, acusando-se mutuamente de serem gado alienado e recusando-se a serem dissuadidos de suas respectivas intenções de voto.

Num estado de ânimo como esse, é fácil para o eleitor embarcar na ilusão de que “é tudo farinha do mesmo saco”. Depois de incontáveis tentativas frustradas de eleger um salvador da pátria, um pai amoroso que os resgate de seu desalento e impotência infantil, como acreditar que pode ser diferente agora? É quase inescapável a tendência de adotar uma postura cínica de equivalência moral entre os candidatos líderes nas pesquisas – principalmente quando se considera que o eleitor brasileiro vota em pessoas e não em ideias ou projetos de governo.

No que diz respeito à escolha dos melhores candidatos para o Legislativo, a situação é ainda mais aterradora. Sem se darem conta de que eles teriam um papel fundamental para reequilibrar e limitar os desmandos do futuro Executivo, desinformados pelo horário gratuito de propaganda eleitoral, herança trágica da ditadura militar, o que resta para a maioria é adotar como principal método de escolha aquele que se usava descuidadamente nas brincadeiras infantis: “Minha mãe mandou bater neste daqui, mas como sou teimoso bato neste daqui”.

Ainda não entendemos que a irracionalidade não tem como ser combatida com argumentos verbais lógicos. É o profundo investimento emocional do eleitor e sua identificação com figuras polêmicas de poder que precisariam ser confrontados. E quem ousaria se oferecer para essa tarefa? O analfabetismo político de boa parte da população, a abissal desigualdade que impede a visualização de uma solução única para todos os estratos sociais, a falta de uma identidade ideológica clara dos partidos, a crise da democracia representativa e o presidencialismo de coalizão reforçam-se mutuamente para afastar de vez a possibilidade de mudança dos ventos.

Há ainda outra tragédia à espreita. Hoje em dia ninguém mais se apresenta ao eleitorado como capaz de elaborar propostas criativas para a solução dos problemas sociais que nos afligem ou por ter maior capacidade de trânsito e negociação com forças políticas opostas. Agora tudo se resume a comprovar que você desfruta de fama e prestígio nas redes sociais – e que, portanto, suas chances de angariar o número de votos necessários para se eleger são maiores, quase certas. E dá-lhe influencer, tiktoker, subcelebridades, gente ligada ao entretenimento de massa. Não importa seu histórico educacional, profissional ou sua visão de mundo, nem que pesem sobre cada um acusações graves de descomprometimento com os valores iluministas e democráticos.

Dessa forma, a intenção de voto acaba ficando mesmo ao sabor do resultado das pesquisas eleitorais: com medo de “perder o voto” apostando num candidato lúcido mas sem reais chances de chegar lá, qualquer um que prometa pulso firme para enfrentar os poderosos de plantão, ser diferente de ‘tudo isso que aí está’ ou acabar com a corrupção e a impunidade pode atrair o interesse e a confiança maciça da população.

Ignorar que seu voto representa também a permissão para que seu país continue priorizando a economia em detrimento da qualidade de vida e bem-estar da população, que o meio ambiente sofra as consequências trágicas de uma visão deturpada de progresso, que o acesso a uma educação de qualidade continue apenas nas mãos de uma elite endinheirada, que falte capacidade ao sistema de saúde para dar atendimento digno aos mais carentes, que se normalize o infernal acréscimo no número de moradores de rua, de famintos, de desempregados e de violência contra as minorias. Em última instância, que sua indiferença significa autorizar que a democracia agonize nas mãos de déspotas nada esclarecidos. E que, ao fazê-lo, você consente em arrastar seus compatriotas para um abismo ético sem volta apenas para não entrar em contato com sua própria dor, impotência e desesperança.

O que fazer, então? Não tenho as respostas, mas pressinto que a única forma de colocarmos fim a estes tempos de barbárie é acolher terapeuticamente as frustrações e o ressentimento que ainda desorientam os dois lados do espectro ideológico. Aceitar que escolha moral é para quem não tem fome, ser capaz de ouvir os argumentos ainda não-explicitados que forem surgindo à medida que formos nos desapegando da sensação de desamparo como quem realmente quer compreender, e não como quem apenas se prepara para contra-argumentar.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O king

José Horta Manzano

Uma parte dos britânicos tem o sentimento de que a monarquia, ainda que constitucional, é tradição empoeirada, que não combina com os tempos atuais. As gerações mais antigas são mais complacentes e não se sentem chocadas pelos gastos engendrados pela família real. Já os mais jovens são menos indulgentes.

Nos últimos setenta anos, toda discussão séria em torno da abolição da monarquia foi inibida pela personalidade carismática da rainha Elizabeth II. O magnetismo da monarca era tão grande que abafou toda dissensão. A maioria dos britânicos sentia orgulho de sua rainha e, colateralmente, da família real – apesar das estrepolias. (Ou talvez por causa delas.)

Esta semana, ainda estamos em período de luto. A comoção provocada pelo falecimento de Elizabeth II ainda paira no ar. O reino tem novo rei, mas, na verdade, a ficha ainda não caiu. Só a partir da semana que vem, quando a poeira baixar, é que os súditos vão pouco a pouco encarar a nova realidade.

Uma pesquisa do site britânico YouGov, feita no primeiro semestre deste ano para aferir a popularidade dos membros da família real, informa que o (agora) rei Charles III ocupava um obscuro 12° posto. Em primeiro, aparece a rainha, com 68% de popularidade. Seguem-se os filhos de Charles, as noras, a irmã (Anne), a esposa (Camilla) e até algumas sobrinhas. Charles alcançava apenas 34% de popularidade, nível muito baixo para um rei.

A emoção da perda da rainha fez que a popularidade do novo rei subisse imediatamente. Mas não há que se deixar enganar por esse movimento. O que sobe muito rápido hoje pode descer amanhã com a mesma rapidez. Bastam dois ou três escorregões do novo monarca.

Ele nem esperou passar o período de luto para começar a escorregar. Pelo menos em duas ocasiões, já mostrou diante das câmeras toda a sua arrogância e todo o seu mau humor. Comporta-se como um ser superior, que todos são obrigados a temer e a reverenciar.

Num dos episódios, no momento de assinar uns documentos, a caneta vazou. O soberano deu um piti, saiu praguejando, largou a esposa desamparada falando sozinha.

O outro vexame também ocorreu na hora de assinar papéis. (Francamente, parece que Charles tem um problema com canetas.) Incapaz de encontrar um lugar na mesinha para acomodar a bandejinha com as canetas, fez uma careta de impaciência, sacudiu a bandeja para chamar um serviçal e obrigou-o a vir correndo tirar o pequeno porta-canetas para ele conseguir assinar. Foi um acesso de arrogância explícita.

A continuar desse jeito, sua popularidade vai pro beleléu, e a aventura pode terminar mal. A Grã-Bretanha, que já teve seu Brexit, pode perfeitamente ter um Kingxit.

Se acabou

João Selva, cantor e compositor carioca

José Horta Manzano

Hoje, logo depois do almoço, estava eu tranquilamente na cozinha pondo ordem em panelas, pratos e talheres. Observe-se que deste lado do mundo, pra pagar serviçais, precisa ser abastado. O rei da Inglaterra, por exemplo, com os bilhões que já tem mais outros tantos que acaba de herdar, tem quem lhe arrume a cozinha. Eu não tenho.

O rádio estava ligado. O locutor comentava das algas que infestam os grandes lagos pré-alpinos. E continuava falando de algas comestíveis, que alguns gostam de misturar na salada. Eu ouvia sem escutar, que o assunto não era lá tão interessante. Eis senão quando, entra um intervalo musical. E a música me pareceu familiar.

O ritmo estava entre o baião e a marchinha de carnaval. Acompanhamento singelo e uma voz masculina suave. Prestei atenção na letra. Dizia:

Se acabou, fora Bolsonaro!
Se acabou, fora capitão!

Em seguida falava em galo, galinha, periquito, carcará e toda a animália que pode caber numa letra de música. A imagem era de a bicharada toda estar comemorando a despedida do capitão. E voltava o refrão:

Se acabou, fora Bolsonaro!
Se acabou, fora capitão!

Pensei: “Puxa, será que o horário de propaganda eleitoral gratuita chegou até aqui?” Logo me dei conta de que a ideia era absurda. Que tolice!

Cogitei então que os candidatos de oposição a Bolsonaro tivessem feito uma vaquinha pra inserir um anúncio pago na rádio pública suíça. Cheguei logo à conclusão de que a ideia não fazia sentido. É verdade que a colônia tem aumentado e que somos hoje dezenas de milhares de conterrâneos no país; assim mesmo, não dá um contingente em que valha a pena investir.

Em seguida, pensei em mais uma explicação para o fato de a rádio suíça estar tocando uma musiquinha anti-bolsonarista às vésperas da eleição brasileira. Certamente estão dando a contribuição que podem para abrir os olhos daqueles que ainda teimam em mantê-los fechados.

Não acredito que funcione. Ninguém consegue ensinar uma avestruz a desenterrar a cabeça. Assim mesmo, fico grato aos serviços públicos de radiodifusão do país pela boa vontade.

O autor
O locutor descreveu a musiquinha como “Sê acabú” cantada por “Joaô Sellvá”. Traduzi: Se acabou, por João Selva.

Nunca tinha ouvido falar nesse artista. Fui pesquisar e fiquei sabendo que se trata de um carioca que se casou com uma moça de Guadalupe (ilha francesa do Caribe) e se estabeleceu na França há alguns anos. Não sei se é conhecido no Brasil, mas em seu país de adoção lança discos, participa de festivais e se apresenta em programas de rádio.

Se você quiser ouvir um trechinho, está aqui no Youtube.

Imbrochável ou imbroxável?

Aldo L. Bizzocchi (*)

O coro de apoiadores de Bolsonaro que, no último Sete de Setembro, entoou o grito “imbroxável, imbroxável” suscitou, além de perplexidade em muitas pessoas, algumas dúvidas linguísticas. Primeira: essa palavra existe? Segunda: qual a sua origem? Terceira: a grafia correta é imbrochável ou imbroxável?

Primeiramente, é preciso dizer que, ao contrário do que afirmam muitos gramáticos, uma palavra existe na língua a partir do momento em que é criada e passa a ser usada socialmente. Essa nova palavra, que ainda não consta nos dicionários, é chamada de neologismo. Nesse sentido, pode-se dizer que Bolsonaro e os bolsonaristas criaram um neologismo. Se ele sobreviverá a ponto de ser dicionarizado ou se desaparecerá após algum tempo como moda passageira, só a história dirá. Muitos neologismos são assim criados como termos da moda (vide as gírias dos jovens) e, meses depois, caem em desuso. É a lei da seleção natural agindo sobre as palavras como age sobre os seres vivos. Algumas sobrevivem e até deixam descendentes (palavras derivadas, por exemplo), outras morrem e por vezes nem deixam vestígio.

Quanto à origem da palavra imbroxável, é um derivado parassintético do verbo broxar (parassíntese é um processo de derivação que consiste em prefixar e sufixar a palavra primitiva ao mesmo tempo). Trata-se de um termo um tanto chulo para designar a perda da ereção do pênis durante a relação sexual. Logo, imbroxável é o indivíduo que supostamente (apenas supostamente) nunca broxa. E broxar, de onde vem? Vem de broxa.

E broxa, todos sabem, é aquele pincel graúdo que os pintores usam para pintar paredes, especialmente com tinta à base de cal. A relação entre a broxa de pintura e a disfunção erétil é bem sugestiva: quando o pintor mergulha a broxa na tinta e depois a retira da respectiva lata, os pelos do pincel arqueiam todos para baixo sob o peso da tinta impregnada neles.

Como o leitor deve ter percebido, até o momento utilizei broxa, broxar e imbroxável com x, mas também existe em português a brocha com ch, só que com outro significado. Brocha é um tipo de prego, ao passo que o pincel se grafa broxa. Essa é mais uma das pegadinhas do nosso idioma que podem representar uma casca de banana no caminho de vestibulandos e concurseiros. Brocha e broxa são denominadas palavras homófonas, isto é, que têm a mesma pronúncia, mas grafias diferentes.

Portanto, se imbroxável deriva de broxar, e este de broxa, a grafia correta do primeiro é com x e não com ch, como tem saído na imprensa.

(*) Aldo L. Bizzocchi é doutor em Linguística, palestrante e blogueiro.

12 de setembro

Juscelino Kubitschek

José Horta Manzano

No meio de tantos horrores que fermentam no magma da classe política nacional e afloram à superfície durante campanhas presidenciais, é sempre refrescante relembrar coisas agradáveis. São coisas que estão obrigatoriamente no passado visto que, da política atual, não se pode esperar nada de bom.

Faz hoje exatamente 120 anos que nasceu em Diamantina, nas Minas Gerais, um menino que viria a ser um dos dois grandes presidentes que nossa República conheceu desde a redemocratização de 1945. Falo de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976). O outro grande foi Fernando Henrique Cardoso.

Fora esses dois, só estropícios subiram a rampa. E pelo que tudo indica, a desgraça não está perto de acabar. Considerando os dois principais pretendentes ao trono, seja qual deles for eleito, o Brasil vai continuar fazendo parte da periferia do mundo.

Continuaremos sendo um daqueles países folclóricos capazes de produzir soja para engordar gado, mas incapazes de contribuir para o processo civilizatório global.