Cala-te, boca

Carlos Brickmann (*)

O problema do presidente Bolsonaro não é dizer o que pensa: é pensar o que diz. Desta vez conseguiu provocar uma onda de simpatia por uma pessoa famosa por ser irritanta, desagradável, prepotenta.

Dilma passou três anos na prisão, na época daquela ditadura militar que Bolsonaro tanto elogia embora diga que não existiu. Foi torturada, como era praxe na época; a tortura foi confirmada pela Justiça. Agora, 50 anos depois, sem qualquer motivo, a não ser a vontade de falar demais, Bolsonaro pôs em dúvida, às gargalhadas, as torturas a que Dilma foi submetida. Diz que espera as provas, por raios X, da fratura que ela sofreu durante a tortura.

Bobagem, por dois motivos: 1) todos os documentos estão em poder das autoridades; 2) ele reuniu, em solidariedade a Dilma, personalidades dos mais diversos partidos, como Fernando Henrique, Rodrigo Maia, e naturalmente toda a ala esquerda da política brasileira.

Fez o possível para reviver uma personalidade esquecida.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

Feliz ano-novo ou feliz ano novo?

José Horta Manzano

O ano de 2020 não foi fácil. Pandemia nas ruas e destrambelhados no governo criaram uma combinação tóxica que nos envenenou a todos. Salvou-se quem pôde, mas muitos ficaram pelo caminho. Todos nós almejamos por um 2021 melhor. O que queremos mesmo é ver 2020 pelas costas.

Pessoalmente, o ano que finda vai deixar uma única saudade: é ter sido número redondo. O próximo só daqui a dez anos. Ano redondo facilita contas do tipo ‘faz 30 anos’ ou ‘daqui a 25 anos’ – o resultado sai numa conta de cabeça, rápida e sem erro. Além disso, 2020 tinha o jeitão simpático de duas dezenas que se repetem, um fenômeno raro. Pra revê-lo, precisa esperar até 2121. Temo que nenhum de nós consiga chegar lá. Infelizmente.

Estes dias, todos querem desejar aos amigos um novo ano feliz. Falar é fácil, escrever é mais complicado. Ano-novo ou ano novo? Com tracinho ou sem? Ambas as formas são aceitas, só que elas não dão o mesmo recado. Vamos conferir.

Ano-novo (com hífen) é expressão que consta nos dicionários brasileiros. Tem o significado de «a passagem de 31 de dezembro para o 1° de janeiro» ou «o dia 1° de janeiro». Portanto, ano-novo (com hífen) delimita um momento preciso: o nascimento do novo ano, que é o espaço de tempo englobando, grosso modo, o último dia de um ano e o primeiro do ano seguinte.

Ano novo (sem hífen) é reles sequência de substantivo + adjetivo; não aparece no dicionário. Refere-se ao ano inteiro.

Quando a gente quer exprimir os votos, fica assim. Se o desejo for expresso oralmente, o problema desaparece. Com ou sem hífen, a pronúncia é a mesma. Já se for por escrito, é bom saber que:

Feliz ano-novo! (com hífen)
exprime o desejo de que a pessoa passe um réveillon feliz. Equivale à saudação ‘Boas entradas!’.

Feliz ano novo! (sem hífen)
exprime o desejo de que a pessoa passe um ano inteiro feliz.

Desejo a todos os distintos leitores um feliz ano-novo e um feliz ano novo.

Observação
Em inglês, francês, alemão, italiano, espanhol, ninguém dá atenção a essas sutilezas. Não se usa hífen. Maiúscula ou minúscula? Fica ao gosto do freguês, mas geralmente se vê com maiúsculas. Nossa obsessão com minúcias gráficas não combina com um povo que devia mais é se preocupar em despoluir a escrita a fim de simplificar a instrução de sua massa de iletrados.

Poubelle

José Horta Manzano

O distinto senhor retratado acima é Filippe Poubel. Foto instantânea é às vezes ingrata e pode dar imagem negativa do fotografado, portanto é bom esclarecer: Senhor Poubel é deputado estadual, eleito pelo povo do Rio de Janeiro. A foto foi publicada pelo próprio numa rede social.

Segundo sua assessoria de imprensa, ele se encontra atualmente “sob proteção do Estado após a Polícia Civil do RJ constatar, através de escutas, alto risco contra sua vida”. Essea ameaça pode explicar a pose de “venha me buscar se for homem”.

Na Europa, lá pelo final do século 19, cidades importantes começavam a virar metrópoles, com milhões de habitantes amontoados em espaço exíguo, com ruelas estreitas e malcheirosas. Em Paris, a coleta de lixo já existia. À espera da carroça do lixeiro, a população enchia as ruas com pilhas de entulho, transformando a cidade num espetáculo sórdido.

Em 1883, Monsieur Eugène Poubelle, autoridade regional com jurisdição sobre a cidade de Paris, assinou decreto impondo aos proprietários de imóveis que fornecessem a cada inquilino um recipiente padronizado para armazenar o lixo – o que chamamos hoje lixeira. Dimensões, características e formato estavam definidos no decreto. A novidade foi tão impactante, que o povo acabou dando o próprio nome da autoridade ao recipiente: até hoje, na França, lata de lixo não tem outro nome senão poubelle, substantivo feminino.

Na origem, o sobrenome francês Poubel (e sua variante Poubelle) é uma alcunha. Conto a história. Na época em que nomes de família começaram a ser atribuídos, 700 ou 800 anos atrás, essa estirpe foi iniciada por um indivíduo «pouco belo», um modo eufemístico (e sarcástico) de dizer que ele era muito feio. Na época e no dialeto de determinadas regiões, era assim que se dizia pouco belo: “pou bel”; em francês padrão atual ficou “peu bel” ou “peu beau”. A descendência do patriarca acabou herdando a alcunha, que virou sobrenome.

Pelo que se vê na foto, o nobre deputado, que belo não é, faz jus ao significado originário do sobrenome. Já quanto ao recipiente padronizado inventado por Monsieur Poubelle, cabe ao distinto leitor julgar se a pose do parlamentar merece terminar na lata do lixo. Ou não.

Praia sem covid

José Horta Manzano

A Folha de São Paulo publicou esse instantâneo com cena domingueira de uma pequena família na praia. A legenda não esconde uma quase admiração pela iniciativa dos três, de delimitar a área em torno do acampamento. Só faltou aplaudir um exemplo de comportamento responsável, de gente preocupada em manter a distanciação social a fim de conter o alastramento da epidemia.

A intenção dos que demarcaram terá sido certamente essa. Só que a prepotência do modus operandi foge às regras de civilidade. No Brasil, as praias são de uso público. Em princípio – digo bem em princípio –, a ninguém é permitido apropriar-se de um canto de praia, seja qual for a extensão da área. O que é de todos, de todos é.

O que eu vejo na foto é a expressão da cotovelada (ou da carteirada?). «Cheguei primeiro, e aqui mando eu. Ninguém pode pisar pra dentro dessa linha aí, talquei? Vai encarar?» Reparem que a área de exclusão é bem superior ao que seria razoável para a pequena família. Até o gestual do personagem parece confirmar a atitude desafiadora de quem se imagina por cima do populacho.

Ora, quem não quer se contaminar não frequenta lugares onde há risco de cruzar com outras pessoas. Não está correto ir à praia no domingo e mandar que os outros se afastem. Quem quer tomar sol sem perigo de infecção se estende na grama do jardim de casa. Se não tiver jardim, vai ao terraço. Se não tiver nenhum dos dois, fica branco. E espera até passar a epidemia.

Espero que a família da foto tenha aproveitado o passeio. Mas eles não são os únicos frequentadores. Fico aqui imaginando se cada grupinho se pusesse a delimitar uma área para seu uso exclusivo. A costa brasileira inteira não seria suficiente para acomodar todos os banhistas.

Será que estou enxergando prepotência onde outros só veem virtude?

Rindo da desgraça

José Horta Manzano

A pandemia tem causado stress no mundo todo. Mas a pressão não é uniforme e pode variar conforme as circunstâncias específicas de cada país. Na maior parte da Europa, o que mais tem chateado são os intermináveis períodos de confinamento. As autoridades não têm sido nada camaradas nesse aspecto. Quando decretam um confinamento, não brincam em serviço. A ordem é para a população permanecer em casa mesmo.

Pra sair, precisa levar no bolso uma atestação indicando o motivo da escapada. São poucas as razões aceitas. Entre elas: ir ao (ou voltar do) trabalho, ir ao (ou voltar do) médico, dar assistência a alguém entrevado ou doente, espichar as pernas num raio de 1km em volta da residência durante meia hora. O atestado só vale para uma saída e tem de estar preenchido e assinado antes de eventual controle. Caso o cidadão seja abordado e o atestado falte, a multa chega a R$700; reincidentes pagam o dobro. Não é mole.

Muitos fatos novos apareceram este ano, para os quais não havia palavras. O povo tratou logo de inventá-las. Algumas são mostrengos, mas há pequenas pérolas de inventividade. Em balanço de fim de ano, a mídia de língua francesa (França, Suíça, Bélgica e Canadá) destacou algumas expressões. Algumas são novas, enquanto outras, antigas, passaram a ser intensamente utilizadas.

covid          covid
coronavirus    coronavírus
quarantaine    quarentena
antimasque     antimáscara(os que se opõem à máscara)
antivax        antivacina
isolement      isolamento
faux positif   falso positivo
faux négatif   falso negativo
présentiel     presencial
coronapéro     aperô virtual(happy hour sem contacto)
bulle sociale  bolha social
distanciel     distancial
confinement    confinamento
déconfinement  desconfinamento

A casa editora do Robert, dicionário tão popular quanto nosso Aurélio, também entrou na dança. Incentivou o público a inventar palavras para descrever realidades trazidas pela epidemia. Normalmente, é malvisto criar palavras por conta própria. Neste caso, no entanto, visto que é o respeitado Robert que autoriza, ninguém será criticado.

Já há centenas de sugestões de leitores. A maioria são intraduzíveis, por serem composições de palavras. Umas poucas aguentam a transposição para nossa língua. Por exemplo, mascourir (=mascorrer), que é quando a gente volta pra casa correndo porque se esqueceu de pôr a máscara obrigatória. Ou ainda as reuniões de hydroalcooliques anonymes (=alcoolgélicos anônimos); o trocadilho é atroz, mas o resultado é simpático.

Tem mais uma que me diverte. Os franceses criaram a expressão gestes barrière (=gestos barreira) para dar nome ao conjunto de providências que cada um tem de tomar para conter o alastramento da doença: usar máscara, lavar as mãos, manter distância. Alguém com espírito mais criativo sequestrou a expressão e a transformou em gestes carrière (=gestos carreira). É quando, numa reunião Zoom, o indivíduo veste uma bonita camisa para dar aos superiores a impressão de que é pessoa séria, enquanto, na parte de baixo, está de calção e chinelo de dedo.

Bem, caros amigos, o que eu contei até aqui foi o que espirrou da válvula de escape de populações conscientes de que suas autoridades estão cuidando da saúde e do bem-estar dos habitantes. Já no Brasil, as coisas não são exatamente assim. Enquanto a vacinação já começou em uma quarentena de países, não sabemos ainda nem que vacina nos será proposta. Como consequência, não temos a menor ideia de quando será iniciada a imunização dos brasileiros. Janeiro? Fevereiro? Março? Abril? Como já disse o outro, «Pra que tanta ansiedade?».

Proponho seguir o exemplo interessate dos francofalantes. Mas não precisa inventar palavras para a epidemia e seu entorno, que essas já têm nome. No Brasil, é simples. Em vez de espremer as meninges, costumamos importar o que nos vem do inglês. E engolimos tudo cru, com casca e tudo. Lockdown, homeschooling, self isolation, home office, social distancing – e o problema está liquidado.

Não. Proponho criar palavras e expressões para contar os comportamentos que povoam estes tempos estranhos. Nossa coleção de adjetivos não dá conta, por exemplo, de descrever as barbaridades cometidas por nosso presidente. Repórteres, jornalistas e analistas esgotaram o reservatório contido nos dicionários; já não há expressões suficientemente eloquentes.

Quando é que se viu, no passado, o chefe do Estado Brasileiro ser chamado (com propriedade) de idiota, apalermado, imbecil, parvo, tapado, irresponsável? Pois esses qualificativos, antes impensáveis, estão gastos de tanto ser usados atualmente. Já não bastam. Que a criatividade da nação desperte e se manifeste! Cartas para a Redação, por favor.

E 2021, como é que fica?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 dezembro 2020.

Cinco anos atrás, quando 2015 estava para terminar, escrevi um artigo aqui neste espaço. Falava das dificuldades que nos atormentavam. Eram tempos complicados. O Brasil atravessava período de turbulência braba, daqueles que, fosse avião, as asas estariam ondeando. Na economia, o ano tinha sido catastrófico, com inflação à solta e fuga de capitais. No Planalto, as coisas iam de mal a pior, com a doutora enfrentando processo de impeachment por gestão fraudulenta das finanças, subterfúgio contábil que ficaria conhecido como o das ‘pedaladas fiscais’ – uma quase ofensa aos amantes do ciclismo. Por seu lado, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, respondia por corrupção e lavagem de capitais. Para coroar o trágico buquê, a taxa de desemprego corria em direção aos 10%.

Colei no ano de 2015 o rótulo de annus horribilis – por sinal, o título do artigo. Lembrei que a expressão, com seus ares latinos, tinha sido repaginada pela rainha Elisabeth II, quando do Discurso do Trono de 1992. Com sua série de querelas e escândalos, aquele ano tinha marcado o reino e atormentado a real família. Até incêndio num dos castelos da rainha houve. A expressão, fisgada no latim, arremedava annus mirabilis – ano maravilhoso, título de conhecido poema escrito 300 anos antes por autor inglês. A rainha (ou o cavalheiro encarregado de redigir seus discursos) foi feliz na referência. Certos anos, mais que outros, marcam uma nação.

Para nós, o ano que se acaba foi um sufoco. Milhões de brasileiros estão se arrastando, língua de fora, pra ver se alcançam, vivos e ilesos, a soleira da porta de 2021. O Brasil que chega ao novo ano é um país sofrido, abalado pela perda de 200 mil cidadãos, atazanado pelas privações, martirizado pelo malquerer que o presidente da República dedica às mazelas da população. E, como se fosse pouco, o brasileiro está angustiado diante das perspectivas sombrias. O descaso cruel e repetido com que o Planalto nos hostiliza só faz aumentar nossa sensação de desamparo. Com quem contar? De quem esperar bom senso?

(Kleber Sales/CB/D.A Press)

Como 2015 parece longínquo! O desvario em que se atolam nossos dirigentes nos traz saudades daquele tempo. Desde que a pandemia se instalou entre nós, pulamos de incerteza em incerteza. A informação que valia ontem periga já ter perdido validade. Fronteiras, escolas, lojas são fechadas e reabertas. Ponha a máscara, tire a máscara, saia de casa, fique em casa, vacina vem, vacina vem não – o cidadão comum está dilacerado entre ordens e contraordens que se desdizem sem parar.

No meio desse pandemônio, uma voz clara e forte continua a nos dar o norte: é a voz presidencial, saída da garganta de um homem com histórico de atleta, segundo avaliação dele mesmo. Graças a essa voz, que nunca vacila nem retrocede, sabemos que a covid não passa de uma gripezinha. Temos a confirmação de que vamos todos morrer um dia. Fomos informados, já no longínquo 10 de abril, que o vírus estava indo embora – informe confirmado 8 meses depois, em dezembro, quando de novo o presidente preveniu estarmos no finalzinho da pandemia. Também por seu intermédio, estamos inteirados de que a Europa será bem mais atingida que nós. Fomos ainda avisados de que a hidroxicloroquina é remédio supimpa. E recebemos a informação suprema, o esclarecimento maior: de fonte oficial, sabemos que Sua Excelência não é coveiro.

Para infelicidade de todos os brasileiros, temos, na Presidência, um buraco negro que, além de não emitir luz, ainda engole o brilho e as luzes dos que se aproximam. Mas deixemos metáforas astronômicas e voltemos ao plano terrestre. O presidente é caso de escola sobre egoísmo exacerbado que, reforçado pela ignorância, resultou num indivíduo paralisado, que não faz nem deixa fazer.

Como será, para os brasileiros, o ano de 2021? Annus nefastus, annus mutandis, nefasto, cambiante? Não é fácil encontrar boa definição. Se bem que – vejam só – a resposta está às vezes bem à nossa frente, e basta abrir os olhos para enxergar. A realizar-se a escura profecia lançada por um presidente que tratou o próprio povo de maricas, 2021 será o annus crocodili, o ano em que todos nos transformaremos em jacaré. E daí?

Martinica

José Horta Manzano

De criança, eu achava que Martinica era um lugar imaginário onde as mulheres se vestiam com casca de banana nanica. Essa curiosa crença vinha de uma marchinha de Carnaval de João de Barro e Alberto Ribeiro lançada em 1949. A letra, simplesinha e fácil de memorizar, dizia:

Chiquita Bacana lá da Martinica
Se veste com uma casca de banana nanica
Não usa vestido, não usa calção
Inverno pra ela é pleno verão
Existencialista com toda a razão
Só faz o que manda o seu coração.

(Desconfio que a Martinica só entrou na dança pra fazer rima com a Chiquita e com sua banana nanica.) Está aqui a versão original, na voz de Emilinha Borba.

Foi só muito mais tarde que vim a saber que a Martinica é uma migalhinha de território, uma relíquia do imenso império colonial francês. É uma ilha pequenina, com cerca de 400 mil habitantes acomodados numa área equivalente à do município de Joinville (SC). Situa-se nas Pequenas Antilhas, Mar do Caribe (ou Caraíbas, se preferirem). A principal fonte de renda do território é o turismo; os visitantes mais numerosos são franceses que escapam das brumas europeias para se aquecer sob o sol tropical.

Josephine Baker e a Revue Nègre
Paris, 1927

A letra da marchinha, embora curta, evoca duas imagens. Em primeiro lugar, vem à mente a artista americana Josephine Baker (1906-1975), que chegou à França jovem, ainda nos anos 1920, fugindo do racismo e da discriminação que a sociedade de seu país reservava aos não-brancos. Ela fez imenso sucesso em teatro de revista. Desinibida, vestia-se como uma Carmen Miranda com menos roupa. Com muito menos roupa, por sinal. Veja a ilustração.

Em segundo lugar, a letra da Chiquita Bacana faz alusão ao existencialismo, doutrina muito em voga quando a musiquinha foi lançada, num pós-guerra em que uma juventude cansada de sangue queria mais é aproveitar da vida. Era uma época em que os livros do guru Jean-Paul Sartre apareciam entre os mais vendidos.

Mas nem só de casca de banana vive a Martinica. Antenados ao que ocorre no mundo, os martinicanos ficaram sabendo da vergonhosa apalpadela de que foi vítima a deputada paulista Isa Penna por parte de um eleito cafajeste. Não é o primeiro cafajeste que o povo elege, temos outros exemplos. Mas esse aí estourou o teto da decência. Ao tentar seguir o cordão da baixaria puxado pelo Planalto, estrepou-se.

O jornal digital Carib Creole News, que se proclama o n° 1 da informação na Martinica e vizinhança, convoca seus leitores a assinarem uma petição que reclama castigo exemplar para o agressor da deputada. A petição exige nada menos que a destituição do deputado ofensor.

É impressionante como as notícias voam hoje em dia. Quem diria que uma jovem brasileira, vítima de agressão de caráter sexual, receberia apoio dos martinicanos! Sem dúvida, a globalização tem seu lado bom.

Falando difícil

José Horta Manzano

Folha de SP, 25 dez° 2020.

Como será esse “efeito cicatriz”? Fico curioso pra saber.

É que este blogueiro é do tempo em que bastava dizer “Pandemia deixa cicatriz” e todo o mundo entendia. Naquele tempo, o país era pobre e a gente costumava economizar palavras.

Hoje, imagino que todos estejam muito ricos, visto o desperdício. Atirar letra pela janela? Que coisa feia! E se cair na cabeça de alguém?

Réveillon de Natal

José Horta Manzano

Chegou o Natal de um ano pra lá de especial. Natal, temos todos os anos; mas o deste ano parece mais um filme de Fellini, com festa de mascarados e um balé de convidados racionados dançando ao passo da distanciação social. Não é muito alegre, mas é o que temos.

No fundo, até que temos sorte de ainda estar aqui – milhares ficaram pelo caminho. Não deve haver nenhum brasileiro que não conheça alguém que morreu de covid, um parente, um amigo, um vizinho, um colega, um conhecido.

O Natal é a festa maior da cristandade, tanto na Europa ocidental quanto nas antigas colônias, Brasil incluído. Mas este ano, além do significado religioso, o que estamos festejando mesmo são duas coisas: nossa sobrevivência à pandemia e a chegada da tão esperada vacina.

E vamos em frente, de bacalhau com batatas, ou o que lhe apetecer. Com rabanada pra arrematar.

Uma curiosidade vale ser mencionada. Franceses, belgas, suíços e canadenses se preparam hoje para o réveillon de Natal. Para nós, parece esquisito misturar Natal com réveillon, que nos parecem coisas distintas.

Em francês, até o século 19, se usava a palavra réveillon para designar uma refeição tomada tarde da noite, fosse em que dia fosse. Hoje essa acepção saiu de moda. Réveillon se especializou em dar nome aos festejos da véspera de Natal e também da passagem de ano. Pra distinguir, basta especificar: réveillon de Noël (de Natal) ou réveillon de la Saint-Sylvestre (de fim de ano).

Réveillon descende do verbo latino vigilo, que significa estar desperto. Em nossa língua, a parentela é extensa: vigia, vigiar, vigilante, velar, vigília (véspera de certas festas religiosas). Vela e velório fazem parte do clã. Todas essas palavras carregam o sentido de estar desperto para cuidar.

Feliz Natal a todos!

A sutileza do general

A arrogância do líder

Otávio Santana do Rêgo Barros (*)

Os filmes de faroeste produzidos nos estúdios de Hollywood nos faziam torcer por muitos mocinhos e abominar alguns vilões. Na maioria das vezes retratavam a saga da colonização e a expansão americana rumo ao Oeste.

O “General” George Armstrong Custer foi um desses personagens, e desde já o escalo no time dos vilões, cuja ambição o tocava até no desejo de ser presidente americano, embora de sua história o que mais despertou meu interesse tenha sido seu perfil de liderança.

Custer (1839-1876) estudou na Academia Militar de West Point (equivalente aqui à Academia Militar das Agulhas Negras), formando-se em último lugar de sua classe. Não era nem aplicado nos estudos (limitado intelectualmente), nem muito rígido na observância das regras (indisciplinado).

Muito jovem, ainda como tenente, combateu na Guerra de Secessão, comissionado temporariamente no posto de general de brigada. Ao término do conflito, foi promovido a capitão e depois a tenente-coronel, assumindo o comando do lendário 7º Regimento de Cavalaria.

General Rego Barros

Antes da batalha do rio Little Bighorn, efeméride das Guerras Indígenas, batedores índios informaram ao “general cabelo comprido”, no comando de 647 homens, que estavam diante de um enorme acampamento indígena. Custer duvidou dos batedores. Como gente de uma sub-raça podia deduzir efetivos, baseando-se na profundidade das pegadas de cavalos? Ordenou o ataque. O vaidoso líder era obcecado, quase louco, por glória.

O 7º Regimento de Cavalaria atacou em várias direções, esperando provocar a dispersão dos inimigos, levando-os a uma fuga precipitada. Nesse dia, o General Custer incorreu em diversos erros. Acostumara-se a ver os índios entrarem em pânico diante de sua cavalaria. Imprudente, não valorizou as informações de seus batedores. Deparou-se com cerca de 15.000 índios de diversas tribos, liderados por Touro Sentado e Cavalo Louco. Usavam armas tradicionais e até modernos rifles de repetição.

Se fosse previdente, Custer teria estudado melhor o terreno e aguardado reforços. Ao sofrerem um contra-ataque, duas de suas colunas debandaram. Cercado numa pequena colina, pediu reforço a um subordinado, comandante de outro contingente, que recebeu a mensagem e a ignorou.

A batalha – uma carnificina – durou cerca de 20 minutos. Custer e seus comandados, incluindo seus dois irmãos, foram chacinados. Apenas um cavalo sobreviveu. Muitos estudiosos na arte da guerra o culparam pelo massacre, afirmando que ele cobiçava receber todo o prestígio pela vitória que lhe parecia destino.

A história de sua morte é plena de ensinamentos e deve ser considerada por aqueles que se encontram em posições de mando. Dela depreende-se que:

  • É impositivo planejar com segurança a hora do ataque;
  • é preciso ouvir assessores experientes;
  • não se divide forças contra inimigos poderosos;
  • é preciso cautela, mesmo que a ansiedade por fama fale mais alto;
  • há infiltrados que são mercenários e se vendem pelo melhor preço;
  • os inimigos não ficam inertes, fazem alianças e estudam os adversários e
  • os verdadeiros guias de uma nação chegam ao poder e passam à história por terem conduzido e superado com serenidade e determinação as crises e as catástrofes.

Arrematando, líderes que decidem de forma figadal podem fenecer, levando consigo seus subordinados e deixando apenas um trôpego cavalo para contar a história.

Oxalá esses ensinamentos ajudem nossos Custers contemporâneos a reverem seus conceitos de liderança, incorporando no seu alforje de atributos a humildade, a serenidade, a temperança, a maturidade, a empatia e, acima de tudo, a verdade.

Estamos ficando angustiados. Estamos chorando. Não queremos mais perdas. Nossa batalha de Little Bighorn é a da covid-19. É preciso mais ponderação e menos arrogância para enfrentá-la.

Índios ensandecidos, da temida e poderosa tribo coronavírus, desejam arrancar o nosso escalpo e demonstrar que erramos, mais uma vez, ao escolhermos esses atuais líderes.

Senhores políticos, provem que eles estão errados! É o presente de Natal que desejamos. Somos reféns de suas idiossincrasias.

Feliz Natal! E um ano novo com mais esperanças! Paz e bem!

(*) Otávio Santana do Rêgo Barros é general. Foi porta-voz da Presidência da República até 7 out° 2020.

Assédio: adequação vocabular

José Horta Manzano

Desde que o movimento #MeToo ganhou o noticiário mundial, a noção de assédio tem estado presente em todas as conversas. A palavra assumiu conotação predominantemente sexual. Quem diz assédio, subentende assédio sexual.

O verbo assediar é antigo, mas seu uso nessa acepção é relativamente recente. Sua presença crescente no vocabulário do dia a dia é sintoma da evolução da sociedade. Atitudes e gestos que, poucas décadas atrás, passavam ignorados deixaram de ser aceitos. É passo importante em direção a um patamar mais civilizado.

Faz uns dias, um deputado estadual paulista teve a péssima ideia de apalpar o seio de uma colega sem seu consentimento – em público, ao sol do meio-dia e sob o olho das câmeras. Talvez o paspalhão imaginasse que tudo ia ficar por isso mesmo. Não ficou. O país inteiro se inteirou da traquinagem primitiva de Sua Excelência que, agora, corre risco de ver seu mandato encurtado.

Ao comentar o fato, todos os órgãos da mídia falaram (ainda falam) em assédio. Apesar da unanimidade, a mim não parece a melhor palavra pra definir o caso. Vamos ver por quê.

O verbo assediar, presente em todas as línguas latinas, descende do verbo latino sedere (=sentar, parar, postar-se, estar parado). Portanto, assediar contém a ideia de ação contínua, de demora, de repetição, de insistência.

Na acepção original, assédio é termo de guerra. Na Idade Média, quando ainda não havia canhões nem aviões, o único jeito de conquistar uma cidade fortificada era assediá-la, isto é, cercá-la com tropas de modo a não deixar ninguém entrar nem sair. E esperar até que os habitantes não aguentassem mais de fome e se rendessem. Podia levar meses ou até anos, mas um dia a cidade caía.

Assim, para que se possa falar em assédio (sexual, moral ou escolar), é preciso estar presente o fator repetição insistente. No caso da deputada paulista, a não ser que o apalermado indivíduo seja um habitué nas artes de apalpá-la, não se deve falar em assédio. Melhor será utilizar: importunar, incomodar, molestar.

Aquela (ou aquele) que passa dias, semanas ou meses sendo atormentado sexual ou moralmente, esse sim, poderá dizer que foi assediado.

De criança que vive atormentada por coleguinhas, costuma dizer-se que sofre bullying. A importada é chique, mas difícil de escrever e de pronunciar; além disso, a importação é desnecessária por haver similar nacional. Assédio é assédio, seja no trabalho, em casa ou na escola. Assédio escolar diz exatamente o que quer dizer.

Para quem quiser ousar caminhos novos, há outra opção. Acosso ou acosso escolar é expressão rara mas autoexplicativa. Aliás, é a palavra que os espanhóis utilizam pra dizer assédio: acoso.