José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 30 setembro 2017.
«Eu nasci naquela terra num ranchinho à beira-chão
Todo cheio de buraco, onde a lua faz clarão…»
Esses são versos da toada Tristezas do Jeca, composta por Angelino de Oliveira em 1918, faz exatos 99 anos. Com palavras simples, o autor captou uma faceta da realidade nacional de então. O ranchinho, plantado à beira-chão, exprimia a pobreza do habitante, cujas posses não tinham sido suficientes pra cavar um porão nem pra construir um sobrado.
A falta de dinheiro não é, em si, condenável. Cada um tem sua história. Os altos e baixos da vida explicam a condição financeira de cada um. Mas atenção: se pobreza não é defeito, desleixo é. Que o cidadão não tenha tido recursos para erguer um palacete, compreende-se. Já o fato de a casinha ‒ presumivelmente de sapé ‒ estar cheia de buraco mostra triste singularidade da alma nacional: o descaso.
Tive, faz algumas décadas, um colega de trabalho português. Vivíamos ambos fora do país, situação propícia para diálogo entre expatriados. Ele, que não conhecia o Brasil, me narrava traços típicos de sua terra. Uma vez me contou que, no seu país, quando algo se estragava ‒ se avariava, dizia ele ‒, ninguém se preocupava em consertar. Acabava ficando por isso mesmo. Podia ser objeto, imóvel, rodovia ou o que fosse, o destino era o mesmo: quebrou, fica quebrado.
Não visitei a terra do moço por tempo suficiente para confirmar o que me dizia. Assim mesmo, os comentários me soaram familiares. Entre as múltiplas características que fazem que o Brasil seja o que é, está o desmazelo, traço incontornável da personalidade nacional. Pode chamar de incúria, de leviandade, de descautela, de imprudência, de superficialidade, de ligeireza. São todos parentes e dão todos, bem ou mal, o mesmo recado.
Mês passado, o norte do país foi palco de dois acidentes com embarcações, que resultaram em dezenas de mortos e feridos. Só ficamos sabendo porque o número de vítimas foi elevado. Não fosse isso, nem teria saído na mídia. Relatório de 2016 da Marinha confirma que, no Brasil, sete em cada dez acidentes náuticos são fruto de negligência. Deixam centenas de vítimas.
Ano após ano, nas esburacadas estradas do país, dezenas de milhares de cidadãos se estropiam ou perdem a vida por desleixo. Se não for por incúria da autoridade, que descura a manutenção, será pela imprudência do motorista, que hipoteca sua vida e a dos passageiros em manobras arriscadas.
As eleições gerais de 2018 estão aí, na virada da esquina. No entanto, nem parece que, daqui a um ano, estaremos escolhendo presidente, governadores, deputados, senadores. As regras ainda não estão definidas, fato que não dá insônia a ninguém. Fala-se vaga e molemente em «reforma política» sem que fique claro em que consiste e quando entrará em vigor. Isso tampouco parece estar no centro das preocupações.
No Brasil, faz mais de trinta anos que se adota a hora de verão. Apreciada ou não, tornou-se prática costumeira. Cidadãos com menos de 40 anos não se lembram do tempo em que a hora não mudava. No momento em que comecei a escrever este artigo, a pouco mais de duas semanas do avanço dos ponteiros, as autoridades não tinham ainda definido se a prática seria mantida este ano. Como é que é? Suas Excelências imaginam que a mudança se resume a um torcer de dedos para acertar o relógio da sala? Não é bem assim.
A mudança de hora afeta o funcionamento de companhias aéreas, de aeroportos, de linhas de ônibus ‒ em resumo: de todo transporte sujeito a horário. Incide sobre comunicações e relações internacionais. Alarmes e relógios de ponto têm de ser ajustados. Grandes relógios públicos instalados em torre de igreja têm de ser acertados, o que requer programação rigorosa do trabalho de especialistas. Horário de pessoal hospitalar e policial tem de ser organizado com boa antecedência. Como é possível que mudança tão significativa permaneça no estágio do «vamos ver» a duas semanas da data fatídica?
Agora, ao terminar de escrever o artigo, consulto a internet e constato que teremos, sim, hora de verão este ano. O descaso nacional atravanca até a vida de articulistas. Mas deixe estar, que até para desmazelo há limites. Se buracos num ranchinho à beira-chão são poéticos, buracos na estrada são mortais. E legislação hesitante trava o andamento do país.
PS
Alguns dos recibos de aluguel exibidos por Lula ao juiz Moro mencionam datas fantasiosas, num excelente exemplo do desmazelo que entulha nosso futuro.