É fome?

José Horta Manzano

Quando um competidor está louco, vidrado, desesperado pra ganhar, se diz que está com “fome de vitória”. Mas é metáfora, força de expressão. Na hora de comer, há quem goste de feijão, há quem prefira pizza, outros não abrem mão de um hambúrguer. Já engolir metal é mais raro. Por que será então que tantos esportistas medalhados fazem pose mordendo a medalha diante das câmeras? Será fome?

É um costume bizarro, de origem obscura, talvez comparável ao (mau) hábito que quase todo futebolista tem de cuspir no gramado, comportamento nunca visto em esportista de nenhuma outra modalidade. (Exceção feita, talvez, dos ases da natação que, ao terminar a prova, encostam na parede da piscina, olham firme em direção ao painel eletrônico e aproveitam pra soltar pela boca um líquido que uns juram ser água clorada, enquanto outros asseguram que não é.)

Voltando às medalhas mordidas, por que fazem isso? A CNN se interessou pelo assunto e resolveu explorar. Constataram que não é somente em provas olímpicas que isso acontece. Um grande tenista como Rafael Nadal, por exemplo, é habitué de uma dentada no troféu. Morde cada prêmio com gosto, como se pretendesse tirar um pedaço.

Um tanto alarmados com o que têm visto, os dirigentes do comitê organizador dos Jogos Olímpicos de Tokyo resolveram lançar um alerta. Veio a bordo de um tuíte bem-humorado:

“Gostaríamos de confirmar oficialmente que as medalhas de #Tokyo2020 não são comestíveis!

Nossas medalhas são feitas de material reciclado a partir de aparelhos eletrônicos doados pelo público japonês.

Portanto, convém não morder… mas sabemos que vocês vão continuar mordendo.”

A melhor explicação para o estranho hábito de morder medalha ao posar para foto foi dada por um perito da Sociedade dos Historiadores Olímpicos. Diz ele que os atletas fazem isso numa tentativa de contentar a mídia. No início, foi uma solicitação de fotógrafos correndo atrás de uma foto sensacionalista. Com o tempo e com a insistência de mais e mais fotógrafos, acabou por se tornar tradição, uma passagem obrigatória.

Sabemos que a imensa maioria dos atletas olímpicos são estrangeiros. Todos eles conhecem o sushi, mas não estão familiarizados com a exótica culinária japonesa. Mas daí a comer medalha… precisa ter bons dentes.

A visita da duquesa

José Horta Manzano

Beatrix Amelie Ehrengard Eilika von Storch, duquesa de Oldenburg, é uma mulher política alemã. Nascida em 1971, tem sólida formação jurídica adquirida nas Universidades de Heidelberg (Alemanha) e de Lausanne (Suíça). Foi eleita deputada junto ao Parlamento Europeu em 2014 num grupo conservador. Três anos mais tarde, tendo sido eleita para o parlamento alemão, renunciou ao mandato europeu. A essa altura, já estava afiliada a novo partido.

Fundado em 2013, o novo partido da duquesa se chama AfD (=Alternativa para a Alemanha). O agrupamento segue um ideário rigoroso, que inclui: descrença na União Europeia, ultranacionalismo alemão, populismo de direita, negacionismo climático, oposição à imigração, anti-islamismo, antifeminismo. Propagam a saída da Alemanha da UE, a expulsão dos estrangeiros, a perseguição aos muçulmanos, a abolição de políticas feministas. Como se vê, os afiliados são gente fina.

A duquesa, que segue linha mais dura que a do partido, vai mais longe. Costuma ser descrita como “reacionária descomplexada”, homofóbica, violentamente contrária a tudo o que não for alemão. É o protótipo da xenófoba caricatural. É vista como anti-islamista militante, desejosa de “empreender uma cruzada contra o Islã”.

Como se não bastasse, Frau von Storch é visceral e agressivamente contrária à contracepção, ao aborto voluntário e ao casamento homossexual. A distinta senhora não esconde o fato de ter “chorado de alegria” assim que foi anunciado o Brexit. No seu raciocínio, era o prenúncio do desmanche da Europa unida.

Como se pode imaginar, já se declarou contrária à presença de jogadores não-descendentes de pura estirpe alemã na seleção nacional de futebol. Traduzindo em miúdos, fica assim: pretos, árabes e descendentes de estrangeiros… fora!

Pelo lado materno, é neta do conde Schwerin von Krosigk (1887-1977), jurista e homem político, que foi ministro das Finanças da Alemanha durante todo o período nazista. Com a derrota da Alemanha, o conde foi acusado de crimes de guerra, julgado em 1949 e condenado a 10 anos de cadeia. Dois anos mais tarde, no bojo de uma anistia, foi liberado.

Resumi o percurso de vida do avô só pra constar. Acredito que ninguém deva pagar pelos crimes de um outro, ainda que seja seu avô. Além do mais, o homem foi julgado e pagou a pena.

Contei a historinha de Frau Storch só pra dar ao distinto leitor umas pinceladas sobre a personalidade da deputada alemã que um sorridente capitão recebeu outro dia em palácio – fora da agenda, registre-se. Nosso presidente, conhecemos. Agora que temos melhor ideia de quem é a convidada, o encontro dos dois me faz pensar num abraço de afogados.

Chacoalhada na Alemanha em razão de seu extremismo, a duquesa precisava aparecer numa foto com o presidente de um país grande. Pouco importa que fosse Bolsonaro; quem está na situação dela não escolhe.

Chacoalhado no Brasil pelo conjunto de sua obra e visto pelo mundo como um pestilento do qual ninguém quer passar perto, o capitão precisava aparecer numa foto com uma personalidade estrangeira. Pouco importa que fosse uma duquesa extremista; quem está na situação dele não escolhe.

Ambos se equivalem. O marketing está de bom tamanho. Como dizia minha avó, “Pra quem é, goiabada basta”.

Esguicho

José Horta Manzano

O brasileiro é um povo criativo. A toda hora, dá pra sentir a força da inventividade de uma gente que nem sempre conta com instrução formal, nem com meios adequados. Quando a gente não sabe, sacumé, tem de ser esperto. Esperteza é o que não falta em nossa terra.

No entanto, na hora de dar nome às coisas e fatos novos, parece que há um engasgo. Não costumava ser assim. Até meio século atrás, talvez pelo isolamento de um mundo sem tevê e sem viagens, o engenho de nossa gente era mais ativo.

As brincadeiras que conheci nos anos 1960, por exemplo, embora viessem dos EUA, tinham o nome imediatamente adaptado a nossa fonética. O hula hoop, aquele anel que a criançada balançava em torno da cintura, guardou seu nome original na maioria das línguas. Na nossa, não: chamou-se bambolê. Foi febre naquela época e, dizem, responsável por traumatismo renal nos aficionados mais ferrenhos.

Há baciadas de exemplos de nomes adaptados para uso nacional. Hoje, parece que o empenho desapareceu. Toma-se a expressão inglesa no original, nua e crua. Por exemplo, ninguém diz escola em casa, mas “homeschooling”. O mesmo vale para o importado “homeoffice”, usado em vez de um simples e eficaz teletrabalho. Parece que a criatividade entrou em letargia. Quem sabe, um dia acorda.

Nestes dias de Jogos Olímpicos, temos muita notícia do Japão. Li outro dia esta frase: “Em diversas instalações, como no centro principal de mídia, há esguichos de água, que parecem jogar uma garoa.

Pela volta que o repórter deu pra descrever os “esguichos de água”, fico imaginando que ele nunca tenha visto nada parecido. Logo logo essas engenhocas chegam ao Brasil, se é que já não estão no porto, à espera de desembaraço alfandegário.

Taí uma excelente oportunidade de dar nome a esse dispositivo novo. Esguichos assim existem na Europa há alguns anos. Quando o calor era raro, não havia necessidade. Estes últimos tempos, porém, com as temperaturas saarianas que temos tido, tornaram-se imprescindíveis. São ligados no verão, naturalmente. E servem para amenizar o sufoco dos dias tórridos.

Os franceses, que gostam de dar nome a tudo, já decidiram: entre eles, esse esguicho é conhecidos como brumisateur. É simples, a palavra deriva de bruma (névoa, nevoeiro) e designa o aparelho que produz bruma. Fica a dica.

Quem sabe a criatividade brasileira acorda, esquece “esguicho” ou “chuveirinho” e opta por brumizador. Ou talvez nebulizador. Ou até um sofisticado garoizador. Seja qual for, sempre vai ficar melhor que “esguicho de água que parece jogar uma garoa”.

Briga de bandido

José Horta Manzano

Não sou especialista em política africana, mas sei que, perto do que acontece em alguns daqueles países, nossos trambiques nacionais ficam parecendo troca de figurinhas entre garotos batendo bafo. Será que alguém ainda bate bafo? Será que ainda existem cromos e figurinhas? Será que alguém ainda coleciona estampas e preenche álbuns?

Estive lendo n’O Observador, jornal português, um artigo abracadabrante sobre os caminhos da corrupção nas altas esferas da política angolana. Angola é uma das antigas colônias de Lisboa na África, daí o interesse lusitano pelo que lá ocorre.

Pra dizer a verdade, não entendi (nem procurei entender) o enredo de cabo a rabo. Trata-se de um monstruoso escândalo de corrupção, com dezenas de pessoas envolvidas entre portugueses, espanhóis e angolanos. Os montantes que passaram de mão em mão não fazem feio diante do que vimos na Lava a Jato. (Alguém se lembra da operação enterrada por Bolsonaro?)

Dezenas de milhões pra cá, outras dezenas pra lá, umas migalhas de 200 mil dólares pra um certo Manuel, 150 mil para um tal de Mangueira, 100 mil para o Gomes. Ministros, ministros sem pasta mas exercendo ‘de facto’, assessores que “mandavam mais que ministro”, ex-ministros aparecendo na folha de pagamentos de empresa fornecedora de serviços ao Estado angolano.

As investigações, que já se arrastam por mais de 7 anos, ainda não chegaram ao fim. Os crimes incluídos no balaio são de corrupção, fraude,  falsificação de documentos, organização criminosa (=formação de quadrilha) e branqueamento de capitais (=lavagem de dinheiro). Como se vê, em matéria de trambique, não temos mais nada a ensinar a eles. Já sabem tudo.

Recentemente, Bolsonaro enviou o vice-presidente a Luanda para tentar aliviar a barra da Igreja Universal de Edir Macedo, que anda com a imagem manchada por lá. Aliás, foi reprovado ao capitão ter mandado um político oficial, em viagem oficial paga pelos cofres públicos, pra resolver o problema particular de uma seita amiga. Até agora, não houve consequências. É possível que tudo fique por isso mesmo.

A tal Igreja amiga de Bolsonaro anda bem enrolada em Angola. Seus dirigentes são acusados de traquinagens como roubo, extorsão de fundos, adultério, atentado contra menores de idade, sonegação. Não é coisa pouca. Uma centena de membros graduados da igreja (pastores), todos brasileiros, já foram expulsos do país.

Choque de ministros
É permitido crer que ministros corruptos do governo angolano possam ter entrado em choque frontal com ministros corruptos da seita brasileira.  Talvez o problema seja a invasão de território. Fiquei imaginando que a implantação da seita de Macedo em Angola deve ter sido como se uma tropa do Comando Vermelho (CV, do Rio de Janeiro) elegesse residência em território do Primeiro Comando da Capital (PCC, de São Paulo). Não ia ficar por isso mesmo.

Quadro de medalhas fraudado?

José Horta Manzano

O colunista Renato Terra dá título sugestivo a seu artigo de hoje na Folha de São Paulo: “Bolsonaro afirma ter provas de que Quadro de Medalhas foi fraudado”.

O humorista, que só queria fazer graça, não deve ter se dado conta de que, ao mesmo tempo que ele redigia a crônica, um dos três grandes quotidianos do país se esforçava pra tornar realidade a imaginária fraude.

Estas duas capturas de tela foram feitas no mesmo momento, quando o Brasil havia conquistado suas primeiras 3 medalhas. Veja só.

Jornal A

 

 

Jornal B

 

No quadro do jornal A, com 3 medalhas, o Brasil aparece na 15ª. posição entre as nações. Na imagem do jornal B, com as mesmas 3 medalhas, o país é degradado ao 23° lugar. Como é possível?

“É fraude!” – exclamaria o capitão, “estão fazendo isso de propósito pra eu perder a eleição!”. (Ele provavelmente diria “pra mim perder”, mas não vamos nos perder nessas minúcias.)

Fraude, não é. Sobram duas possibilidades: ignorância ou desleixo. Opto pelas duas, um pouco de cada.

O jornal B, que nos mostra em 23° lugar, fez a conta certa. Estar no 23° lugar significa que, independentemente de quantos empates houver entre os demais, somos precedidos por 22 países no quadro final.

O jornal A, que nos põe em 15ª. posição, bobeou. Confundiu-se com o fato de vários países estarem empatados.

As regras olímpicas determinam que, quando dois atletas terminam empatados, o que é muito raro, a medalha seguinte não seja atribuída. Aconteceu nos Jogos Olímpicos de Inverno de Sotchi (2014). Numa das provas de esqui feminino, duas competidoras fizeram o percurso num tempo rigorosamente idêntico: 1 minuto e 41,57 segundos. Foi o melhor tempo. No pódio, ambas receberam a medalha de ouro. A concorrente seguinte ficou com a medalha de bronze. Naquele ano, a medalha de prata não foi atribuída.

Por analogia, a regra olímpica se estende também à classificação dos países no quadro de medalhas.

Depol

José Horta Manzano

Estava lendo hoje a sequência do relato daquele estranho incidente que vitimou doutora Hasselmann, deputada federal. Foi impressionante ver suas imagens com o rosto intumescido. Não se conhece ainda o fim da história, se é que se conhecerá um dia. Mas já deu pra aprender um detalhe que pelo menos este blogueiro, até ontem, ignorava.

Eu sabia da existência de um corpo de polícia especialmente dedicado à Câmara Federal. Imaginei que as atribuições dele se limitassem a cuidar da ordem no recinto parlamentar, como uma espécie de segurança reforçada. Pensava que servisse para expulsar visitantes inoportunos, para conter deputado surtado, para apartar briga entre excelências. Pois acabo de aprender que seu raio de ação é bem mais amplo.

Além de cuidar de incidentes menores, o Departamento de Polícia Legislativa (Depol) cuida também da segurança dos parlamentares, servidores “e quaisquer pessoas que eventualmente estiverem a serviço da Câmara”.

Essa disposição deve criar situações curiosas. Suponhamos que o distinto leitor se encontre no recinto da Câmara e, por um motivo qualquer, tem uma discussão com um parlamentar ou com um servidor. Os ânimos se exaltam e estoura uma briga. A polícia legislativa intervirá para garantir a segurança do parlamentar (ou do servidor). Quanto a você, cidadão rasteiro, terá de chamar a polícia comum e esperar que venha. Pode parecer brincadeira, mas, se forem respeitadas as atribuições, o Depol não está lá pra defender gente de fora. Só os do clube.

O Depol dá também segurança ao presidente da Câmara em qualquer ponto do Brasil e no exterior. Isso significa que quando doutor Lira, presidente da Câmara, viaja de passeio a Paris, tem direito a um par de seguranças postados à entrada do bistrot enquanto degusta uma bandeja de ostras regadas por um vinho branco da Alsácia. E você sabe quem paga a conta do festim.

Pra fechar o capítulo das incumbências, cabe ainda ao Depol apurar infrações penais cometidas no recinto legislativo, em suas dependências ou contra qualquer das excelências. Eis por que a deposição de doutora Hasselmann foi tomada pelo Depol, que, investigando sob sigilo, cuidará de apurar a denúncia de agressão.

Confesso que não sabia da existência dessa polícia paralela. E muito menos sabia que agisse na legalidade, abrigada na Casa do Povo. Sabia apenas da existência de milícias privadas estabelecidas geograficamente longe da Câmara. Cada dia dá pra entender melhor por que razão tanta gente sem eira nem beira procura se eleger. É pra fazer como um certo capitão que passou 28 anos no bem-bom, com polpuda remuneração, apartamento funcional, auxílio-gravata e outros balangandãs (alguns bem rachadinhos). E, ainda por cima, contando com uma polícia privada pra chamar de sua.

Eu me pergunto se a Câmara precisava realmente investir nosso dinheiro numa polícia especial, só dela, pra fazer um trabalho que a polícia comum já faz. Que tivessem um corpo de seguranças, vá lá. Mas… uma polícia que se encarrega de apurar infrações penais? Será que dispõem de um corpo técnico, com investigadores, frota de veículos, helicópteros, dactiloscopistas, psicólogos, que se comportam como nos filmes americanos, quando entra em cena a polícia técnica?

Nossa República é cheia de surpresas. Todo dia a gente fica sabendo de uma nova. Essa que acabo de descobrir é um resultado perverso do sistema em que legisladores legislam em causa própria. Em países normais, onde os eleitos são indivíduos de razoável bom senso, o autocontrole evita excessos, que, de qualquer maneira, não seriam aceitos pelo eleitorado. Nunca ouvi falar de nenhum país normal que disponha de corpo de polícia especial, agindo unicamente a serviço de parlamentares, seus servidores e seus familiares, a duplicar o trabalho da polícia comum. Mas nosso país, francamente, não é normal.

Não gostam de mim

by Kleber Sales/Estadão

José Horta Manzano

É possível que o distinto leitor não tenha tido oportunidade de estar presente ontem no cercadinho do Alvorada quando o presidente se dirigiu a seus devotos. Por problemas de agenda, eu também não estive lá. Mas li o relato nos jornais.

Referindo-se à avalanche de críticas de que é alvo, o capitão saiu-se com esta:

“O cara não gostar de mim, tudo bem, mas ser apaixonado pelo Lula? Desvios, roubalheira em tudo quanto é lugar. O que muita gente quer é o poder, a volta da impunidade e da corrupção. Será que não conseguem enxergar isso?”

Ao ver que o auditório concordava sem objeções, abotoou:

“Querem me criticar, critiquem, até gente que se diz de direita, né? Tudo bem, se eu sair fora, você vai ficar com quem em 2022?”

Foram poucas palavras. Assim mesmo, nem precisa refletir muito pra extrair um par de conclusões.

Primeiramente, ao dizer “querem me criticar, critiquem”, o presidente deixou claro que, apesar de viver dentro de sua bolha, está a par da baciada de críticas que recebe o tempo todo. Ao tapar os olhos pra não enxergar a verdadeira razão da impopularidade, ele põe tudo na conta daqueles “caras” que “não gostam de mim”. Nós, que não costumamos tapar os olhos nem fugir da realidade, sabemos que não é bem assim. Não é uma questão de simpatia, nem de “gostar” do presidente. É que ele é um indivíduo desonesto, traidor, covarde, enrustido, não-confiável, primitivo, ignorante. Um péssimo presidente. É por isso que imensa maioria dos eleitores quer mais é vê-lo pelas costas. Não é questão de “gostar”.

Segundamente, quando diz que “até gente de direita” o critica, deixa implícito que acredita ser “de direita”. Não quer admitir (ou simplesmente não se dá conta) de que é nada mais que um reacionário desprovido de ideologia e de objetivo que não seja o de continuar a se fartar das tetas do Estado e do fruto da corrupção que grassa em seu entourage.

Terceiramente, ao soltar um tímido “se eu sair fora”, Sua Excelência confessou admitir a possibilidade de vir a ser rejeitado nas próximas eleições.  Em se tratando de um candidato, não é atitude corriqueira. É raro ver um postulante abrindo o flanco dessa maneira. É que para ele, aos poucos, vai caindo a ficha. Daí sua obsessiva insistência num hipotético voto impresso que lhe permitisse judicializar a eleição, eternizar a apuração e, com a preciosa colaboração das milícias que julga ter, melar o jogo.

Quartamente, além de malcriado, Sua Excelência é topetudo. Ao confessar que não admite que alguém possa gostar do Lula, mostra ser dono daquele tipo de insolência que só a ignorância permite. Quem é ele pra querer controlar o arbítrio do eleitor? Não cabe a ele escolher o(s) candidato(s) que vai(vão) vencê-lo nas urnas.

Falando em urnas, as pesquisas indicam, com clareza cada dia maior, que qualquer adversário vencerá o capitão no segundo turno. Qualquer um deles. Há até excelentes chances de ele nem mesmo passar do primeiro turno. Taí um bom motivo de alegrar nossa semana.

Olímpica

Ascânio Seleme (*)

Excelente exemplo da delegação brasileira que desfilou na abertura dos Jogos de Tóquio com apenas quatro integrantes. Fazer bonito de vez em quando não custa nada e ajuda a diminuir a antipatia global causada pelo capitão. O número reduzido de desfilantes era para mostrar preocupação com a pandemia de coronavírus.

No Brasil, os atletas devem ter sido vaiados por você sabe quem.

(*) Ascânio Seleme é jornalista. Trecho de artigo publicado no jornal O Globo de 24 julho 2021.

Podendo substabelecer

José Horta Manzano

Alguma vez, o distinto leitor já deve ter passado procuração a alguém. Quando um cidadão dá a outro o poder de representá-lo, é comum o documento exibir, lá no finalzinho, a expressão “podendo substabelecer”. Isso significa que o procurador tem poderes para confiar a terceiros o cumprimento de parte ou até da totalidade do mandato.

Em alguns casos, essa modalidade de procuração é incontornável. Quando a gente dá poderes ao dono de um escritório de advocacia, por exemplo, para nos representar e agir em nosso nome, é bom lembrar que ele pode não ter condições de cumprir física e pessoalmente todos os pontos do mandato. Em determinados casos, a atribuição será estendida a um funcionário do escritório para executar. É o que se chama substabelecer.

Uma informação da semana passada me impressionou. Como todos sabem, o senador Nogueira, chefão do Centrão, foi agraciado com a “vaga” de ministro da Casa Civil da Presidência da República – um posto pra lá de importante, que põe seu titular no coração do poder. Quando se leva em conta que a principal promessa de campanha de Bolsonaro era uma grande faxina para purificar o governo e livrá-lo de todo resquício de corrupção e de fisiologismo, a notícia é impactante.

Mas o que me abalou foi um detalhe que não chegou a ser comentado quanto devia. Diferentemente do que ocorre na França, no Brasil não é possível exercer dois cargos políticos ao mesmo tempo. A lei francesa permite, por exemplo, que um deputado junto à Assembleia Nacional continue sendo prefeito de sua cidade. Muitos e muitos políticos estão nessa situação. Mas no Brasil não pode. O senador Nogueira tem de escolher: ou continua senador e declina o convite para o ministério, ou vai ser ministro e deixa o cargo no Senado.

Até aí, tudo bem. O interessante vem agora. Ao deixar o Senado, senhor Nogueira não se despede definitivamente. Ele apenas “tranca a matrícula”, expressão antiga que não sei se ainda se usa. Faz que vai, mas não vai. E a cereja em cima do bolo vem agora. Para substituir o senador, assumirá a mãe dele! Dona Eliane Nogueira há de ser excelente pessoa; para comprovar, basta observar a criação que proporcionou ao filho – expoente do Centrão não é para qualquer um. O problema não está aí; o esquisito é essa peculiar figura do “suplente”. É curioso que, entra Constituição, sai Constituição, o suplente permanece no nosso ordenamento.

A mim não parece justo nem republicano entregar uma cadeira de senador a um indivíduo que não teve nem um voto. O titular, bem ou mal, recebeu os milhões de votos necessários e tem legitimidade para representar os interesses da população de seu estado. Já o suplente, fruto de mera dedada, representa unicamente os interesses de seu padrinho. O caso dos Nogueiras combina bem com o espírito clânico do atual governo: a troca de cadeiras se faz entre mãe e filho. Em família.

Senador da República é cargo importante demais pra ser exercido por procuração. Para evitar aberrações como essa, seria útil que, se um dia sobrar espaço entre um e outro conchavo, Suas Excelências se debruçassem sobre o problema e debatessem sobre um modo de modificar essa norma cujo efeito é criar senadores biônicos, igualzinho aos tempos da ditadura.

Seria útil se o fizessem, digo eu, mas tenho pouca esperança. Os únicos beneficiários do sistema atual são exatamente eles, os que fazem as leis. E ninguém gosta de serrar o galho onde está sentado.

Contraste fascinante

No DNI (Documento Nacional de Identificação), Argentina inclui opção para pessoas não-binárias.
La Nación (Buenos Aires), 21 julho 2021

 

 

O Globo (Rio de Janeiro), 22 julho 2021

 

Observação
Quem escreve “Bolsonaristas” assim, com letra maiúscula, deve também escrever Malufistas, Flamenguistas, Garantistas, Aposentados – tudo com maiúscula. Questão de isonomia.

Quando aperta o peito

José Horta Manzano

Todo estudante de inglês, vez ou outra, já deparou com a palavra “nightmare”. É como os ingleses chamam nosso conhecido pesadelo. Quando eu ainda não conhecia a origem do ‘pesadelo inglês’, a palavra me parecia pra lá de estranha. De onde viria um termo tão diferente?

A história vem do tempo em que os bichos falavam e as florestas europeias eram povoadas de elfos, fadas, sílfides, druidas e bruxas. Entre essas entidades mitológicas, (umas boazinhas, outras menos), havia uma figura maléfica – feminina em certas culturas, masculina em outras – que passava o tempo a perturbar a vida dos mortais.

A figurinha entrava nas casas pelo buraco da fechadura e seu prazer era sentar-se no peito de quem estivesse dormindo. Isso causava ao infeliz uma tremenda opressão acompanhada de horrível sensação de não poder gritar, nem se defender, nem escapar.

Essa entidade não aparece nas lendas dos países latinos, mas está presente na mitologia das regiões germânicas, escandinavas e eslavas. Em alemão moderno, seu nome é Mahr. As demais línguas utilizam o mesmo étimo: mara (sueco), mura (tcheco), mora (servo-croata), kikímora (russo). E assim chegamos ao nightmare dos ingleses. Literalmente, é o “mare” que vem à noite, o diabinho noturno.

A língua francesa, embora não seja germânica, adotou o mesmo étimo. Na forma atual cauchemar, o primeiro elemento é o verbo cochier, do francês medieval, que significa apertar. E o segundo é o mesmo monstrinho descrito nas línguas germânicas.

Em italiano, o “mare” não é mencionado. Utiliza-se a palavra de origem latina íncubo. A raiz é diferente das que são usadas na Europa do norte, no entanto a imagem de opressão é a mesma. Incubar (que existe em português, e é a forma culta de dizer “chocar”) significa sentar em cima ou deitar por cima, como a ave que choca os ovos. É sempre a imagem do diabinho sentado em cima do peito, a atormentar os que estão dormindo.

Em espanhol (pesadilla) e em português (pesadelo), não temos a imagem do espírito malévolo. Mas o efeito continua presente: o peso da criatura aparece em pesadelo e pesadilla.

Todo pesadelo é experiência desagradável – um sufoco, na verdadeira acepção da palavra. No entanto, assim que a gente abre o olho e vê que está vivo e em boa saúde, o perigo se desmancha no ar.

Como chamar, então, o momento de angústia que vivemos neste Brasil que parece ter sido abandonado pelas entidades boas? Como descrever estes tempos em que todas as notícias que vêm da Corte parecem obra de seres do mal? Como qualificar o sufoco que Jair Bolsonaro nos impõe? Terá ele aberto as porteiras do inferno?

A cada manhã, ao abrir o olho, a gente tenta imaginar que o pior já passou… mas não! O capitão continua lá, atormentando a existência de todos, como um imenso demo sentado em cima do bom povo.

Todo pesadelo costuma acabar de manhã, mas – ai de nós! – este túnel que estamos atravessando parece não ter fim. É pesadelo interminável, mais pesado que qualquer pesadelo. Que nome se deve dar?

O bode na sala

Carlos Brickmann (*)

Dizem que há muitos anos, numa região muito pobre, um lavrador vivia com a enorme família numa casa minúscula, quase em ruínas. Um dia, ele se queixou ao padre da aldeia da vida que levava: a família toda vivia reclamando das más condições e do pouco espaço da casa, mas como mexer nisso sem dinheiro?

O padre o aconselhou: leve seu bode para dentro de casa, e daqui a uma semana voltamos a conversar. O lavrador obedeceu. Na semana seguinte, voltou dizendo que tudo estava muito pior: o espaço tinha diminuído, o bode destruía o que podia e ainda cheirava pior que as histórias de compra de vacinas. O padre lhe disse: tire o bode de dentro da casa. Dois dias depois, o lavrador agradeceu ao padre: sem o bode na sala, todo mundo estava mais feliz, se sentia melhor, e as queixas tinham virado elogios.

Essa história de o fundão eleitoral passar de R$ 2 bilhões (o que já é um despropósito) para R$ 5,7 bilhões não é igualzinha a botar o bode na sala? O presidente veta R$ 5,7 bi, se acertam todos em algo como R$ 4 bi, e todos ficam felizes: Bolsonaro fatura o veto, Suas Excelências comem o dobro da já enorme verba de campanha, e haverá quem acredite que o presidente que come picanha de R$ 1.700,00 o quilo por nossa conta defendeu o Tesouro.

O gasto público na campanha eleitoral brasileira já é o maior do mundo – isso antes do bode na sala. Como diria Dilma Rousseff, alcançada a meta, dobramos a meta. E continuamos trabalhando para alimentar pançudos.

De ponta a ponta
Quando se trata de sugar mais dinheiro da população, ideologia deixa de ser importante: deputados que adoram Lula e deputados que amam Bolsonaro votaram juntos para triplicar as verbas de campanha. Farinha do mesmo saco. Condenarão a tunga, embora tenham votado por ela. Aceitarão com ar de sofrimento, em nome do interesse nacional, a falsa redução de verbas que representará, na verdade, o dobro daquilo que já mamam.

Senhor juiz, pare agora!
A única solução para a indecente situação do financiamento de campanha é o pedido, já feito ao Supremo, para que suspenda o escândalo. Espera-se que o ataque a nossos bolsos vá contra a lei. Ou a politicalha vai tomar o nosso.

Em poucas palavras
O Fundo Eleitoral é o dinheiro que as Excelências tomam dos cidadãos para decidir quem ocupará os cargos que lhes permitirão continuar a tomá-lo.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

Terceira via

José Horta Manzano

Taí, gente, ninguém mais tem desculpa pra errar de novo. Se ambos – tanto Bolsonaro quanto Lula – são contra a terceira via, fica evidente que o caminho certo para o Brasil é exatamente esse: a terceira via.

O que é ruim pra esses dois estropícios só pode ser bom pra nós todos.

O brasileiro e o soluço

Ricardo Araújo Pereira (*)

Por que o brasileiro suporta a pandemia, mas se verga perante o soluço?

Veja como é caprichosa a medicina. Há pouco mais de um ano, o presidente do Brasil fazia aquela declaração célebre: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria, ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.

E, nesta semana, o atleta indestrutível que é indiferente a uma pandemia planetária foi hospitalizado com uma crise de soluços. A Covid, que mata milhões de pessoas no mundo inteiro, pode vir à vontade, que não causa transtorno, mas isto, hic, por amor de, hic, não se aguenta, hic, por favor, hic, alguém chame uma, hic, ambulância depressa, hic.

A teorização da invulnerabilidade nacional ao coronavírus atingiu novos cumes com a também famosa observação: “Brasileiro não pega nada, o cara pula no esgoto e não fica doente”. Mas, tal como o Super-Homem sucumbe à kriptonita, também o brasileiro, que resiste a vírus e a germes, não aguenta um soluço. Difíceis de entender os desígnios da natureza. Por que razão há de o brasileiro suportar a doce pandemia e o gentil esgoto, mas se vergar perante o cruel soluço?

Em defesa do brasileiro, talvez seja importante referir que o soluço tem intrigado o ser humano desde sempre. E que, ainda assim, permanece misterioso. O soluço não tem solução. Ou tem, mas não é muito eficaz.

A certa altura d’O Banquete, de Platão, chega a vez de Aristófanes falar. Sucede que não consegue fazê-lo porque é acometido por um persistente ataque de soluços. Erixímaco, o médico, sugere então: “Experimente, Aristófanes, ir para o hospital e tirar uma fotografia descomposto, intubado e sem roupa, para tentar excitar nos seus conterrâneos uma compaixão pelos seus soluços que você não teve pelas doenças graves deles”.

Minto. O que Erixímaco recomenda é que Aristófanes sustenha a respiração, gargareje com um pouco de água ou faça cócegas no nariz até espirrar. E resulta. A estratégia da fotografia no hospital é que já não convence ninguém.

(*) O português Ricardo Araújo Pereira é jornalista e escritor.

Mateus, a brasa, a sardinha e o pirão

José Horta Manzano

Não dá pra escapar: todo ser humano acredita ser o centro do universo. Por mais que regras de boa educação ensinem que não é bem assim, não tem jeito: é da natureza humana.

Para reiterar essa convicção, toda língua tem uma coleção de expressões e frases feitas. Ao dizer que fulano “Puxou a brasa pra sua sardinha”, estamos confirmando que fulano – que se vê como centro do mundo – tomou posse do que ele acredita que lhe é de pleno direito.

Se alguém, depois de haver narrado um fato qualquer, soltar um comentário do tipo “Mateus, primeiro os teus”, estará lendo a mesma partitura. O mesmo vale para aquele que disser “Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. São variações em torno do mesmo tema. “Quem parte, reparte e não fica com a melhor parte, ou é bobo, ou não tem arte” é outro exemplar da coleção. Há mais.

No passado, já devo ter escrito sobre o mapa-múndi chinês. Mas vale a pena voltar ao assunto, que continua interessante.

Quem já viu um planisfério de estilo chinês há de ter se surpreendido. Não falo de um mapa fabricado na China para ser vendido por aqui; falo de um confeccionado na China para uso interno.

Um bom exemplo é o que aparece na ilustração logo mais acima. É o pano de fundo que se vê nos comunicados do Ministério de Assuntos Exteriores da China.

À primeira vista, mesmo um distraído repara: o mapa não está configurado do jeito que costumamos ver. O Oceano Atlântico, que a gente costuma ver no centro do planisfério, tem um triste fim: é partido em dois e relegado a cada uma das extremidades. Mais um pouquinho e transborda – aberração de dar calafrios a qualquer terraplanista. Os oceanos Índico e Pacífico estão mais para o meio e, centrado mesmo, o que aparece é o território chinês. Não é por nada que, em chinês, o nome do país se traduz por “Estado central” ou “Império do Meio”.

Como os demais habitantes do planeta, o chinês também se enxerga no centro do mundo. Pensando bem, eles estão certos. Como certos estão todos os outros. Por que é que eles desenhariam seu país na extremidade do globo? Na minha já longa existência, tirando uma única exceção, nunca ouvi falar de um dirigente que menosprezasse o próprio povo a ponto de mandá-lo pra escanteio (não só no mapa).

A exceção, o distinto leitor já adivinhou, é Jair Bolsonaro, um impressionante entreguista. A pandemia de covid revelou um dirigente dotado de evidente psicopatia, carregado de antipatia pelo povo brasileiro e desprovido de empatia pelos que contavam com ele. Só não entregou o Brasil como colônia para os EUA porque não deu tempo. O governo de Trump acabou antes. E não há de faltar muito para o do capitão acabar também.الله أكبر (Deus é grande, em árabe).

Lições de vida

Carlos Brickmann (*)

Dia 13 de março de 1964. Este repórter ia a pé para a Folha de S.Paulo quando encontrou uma multidão no sentido oposto: era a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Foi difícil atravessá-la.

Chegando à Redação, vi muita gente discutindo o tamanho da Marcha que eu tinha acabado de cruzar. Diziam que ali só havia milionários; que a Igreja ordenara aos fiéis que marchassem; ou que havia dois milhões de pessoas – uns 30% da população da cidade, na época.

Bem, milhões não caberiam, milionários não lotariam o centro, a Igreja há milhares de anos recomenda a fidelidade conjugal, sem tanta adesão. Logo depois, o secretário de Redação, Woile Guimarães, me manda coordenar a cobertura.

Fiquei orgulhoso: 19 anos de idade, um ano de jornalismo, e recebia esta missão! Eu devia ser bom mesmo. Só depois descobri que era o único a não ter opinião prévia sobre o tamanho da Marcha. Dizia apenas que tinha gente pra burro (e não era essa a palavra que usava).

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.