O presidente da Itália

Palazzo del Quirinale, Roma
Sede da Presidência da República Italiana

José Horta Manzano

A Itália é uma república parlamentar em que os representantes do povo se distribuem em duas Casas: a Câmara e o Senado, num sistema bicameral como o nosso. Como ocorre também aqui, os parlamentares italianos são eleitos pelo povo, em sufrágio universal e direto. A grande diferença no topo da organização do Estado está no modo de escolha e nas atribuições do presidente da República.

Na Itália, a eleição do presidente é indireta. O eleitorado elege seus representantes e, por sua vez, são estes que escolhem o presidente. Dessa forma, os partidos ganham importância, dado que cada parlamentar costuma acompanhar as diretivas partidárias. O presidente, que é o chefe do Estado, é escolhido pelos “grandes eleitores” – o conjunto de deputados, senadores e representantes dos governos regionais –, num total de 1009 votantes.

Estes dias está sendo eleito o novo chefe do Estado italiano. A presidencial italiana é bastante peculiar, na medida que não há candidatos. Nesse ponto, assemelha-se à eleição de um papa. Noves fora conciliábulos de corredor, não há campanha aberta. As papais e as italianas devem ser as únicas eleições em que não há candidatos inscritos. Pela Constituição, qualquer um pode ser escolhido desde que preencha três condições: ser cidadão do país, ter cumprido 50 anos de idade e gozar dos direitos civis e políticos.

Em princípio, a eleição parece realmente aberta a todos. No entanto, desde a instauração do regime republicano, ao final da Segunda Guerra, o presidente sempre foi escolhido entre os parlamentares, com muito poucas exceções. O desenrolar das eleições pode contar com um ou mais turnos. O número é ilimitado. Funciona assim. Nos três primeiros turnos, vence aquele que obtiver 2/3 dos votos. A partir do quarto turno, a maioria absoluta (50%) é suficiente. Vence quem tiver mais votos que todos os outros reunidos.

Houve (raríssimos) casos de um presidente ser eleito logo no primeiro turno. No outro extremo, a eleição mais demorada necessitou 23 turnos para um candidato chegar à maioria dos votos. Em geral, organizam-se dois ou três turnos por sessão parlamentar. Assim, o processo eletivo pode levar dias ou até semanas.

O presidente tem mandato de 7 anos. Seus poderes não são tão amplos, visto que o sistema é parlamentar. Ele é chefe do Estado, mas não do governo, que é exercido pelos parlamentares. Assim mesmo, o presidente está longe de ser figura decorativa, como em certas repúblicas parlamentares (Alemanha, por exemplo). Ele representa um “poder neutro”, independente do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Exerce um poder conciliador.

É o representante do país perante autoridades estrangeiras. Algumas de suas atribuições são: enviar mensagens à Câmara, autorizar a apresentação de projetos de lei, promulgar leis, determinar a realização de referendos, nomear o chefe do governo (em concordância com o Parlamento), nomear membros da Corte Constitucional, conceder graça e comutar penas. Há muitas outras.

Os três primeiros turnos da atual eleição já correram, e nenhum nome se destacou. Hoje começa a parte séria, a partir do 4° turno. Vamos ver quantos serão necessários.

Esse sistema de organização do Estado deve parecer exótico para o brasileiro, acostumado com um presidente onipresente e quase onipotente. Na minha opinião, a experiência parlamentarista valeria a pena de ser tentada em nosso país. Vejo, em princípio, duas vantagens.

Em primeiro lugar, sem ter de escolher presidente, o eleitorado escolheria seus representantes, deputados e senadores, com muito mais cuidado. Já seria um bom começo.

Em segundo lugar, desapareceria essa figura de “presidente super-homem” que decide tudo, que pode tudo, que manda em todo o mundo, que governa por decreto, que nomeia 20 mil funcionários comissionados, que se agarra ao poder, que imprime o ritmo ao país (em marcha acelerada ou em marcha à ré, dependendo do ocupante do cargo). Seja quem for o(a) presidente, a distorção será sempre a mesma: ter um indivíduo com tamanho poder entre as mãos não é bom para o país.

Quem sabe um dia, no futuro, o Brasil acorda e muda o regime. Quem viver verá.

Para evitar impeachments

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 julho 2020.

Quem se lembra daquele presidente de Honduras, caricatura do típico caudilho latino-americano bigodudo, aquele señor que queria se tornar ditador? Zelaya era o nome dele. O moço fez travessuras. Percebendo que o país ia desandar, militares de alta patente não hesitaram. Mandaram tirá-lo da cama no meio de uma tépida madrugada tropical, sem direito a trocar de roupa: foi desterrado de pijama. Não se ouviu mais falar dele.

Evo Morales, da Bolívia, era outro que dava sinais cada dia mais inquietantes de que pretendia se instalar em definitivo no Palacio Quemado. Um belo dia, foi discretamente informado pelo Estado Maior do Exército de que não podia mais contar com apoio militar e que era melhor afastar-se. Renunciou na hora, embarcou num avião das Forças Aéreas Mexicanas e asilou-se na turística Acapulco. Com as acusações que lhe pesam nas costas, dificilmente pisará de novo os picos áridos e gelados do país natal.

No Brasil, também costumava ser assim. Washington Luís em 1930, Getúlio Vargas em 1945 e Jango Goulart em 1964 seguiram figurino de justiça expeditiva. Hoje o procedimento está mais civilizado. Assim mesmo, com duas destituições em 25 anos, a rotatividade continua acelerada.

Os constituintes de 1988 decerto não imaginaram que processos de destituição pudessem repetir-se com tal frequência. Prova disso é que, apesar de detalhista, a Carta Magna não regulamentou a matéria. Em pleno século 21, impeachments continuam arrimados numa lei sancionada de 70 anos atrás. Recorrer à destituição a cada vez que o chefe do Executivo escorrega é processo desgastante, que trava o andamento normal do país durante meses. A conduta errática da atual presidência – e o espectro de impeachment que a acompanha – devem despertar uma reflexão nacional sobre a oportunidade de instaurar-se o parlamentarismo.

Para quem receasse sentir-se órfão, consola saber que o regime parlamentar não prescinde necessariamente da figura presidencial. O presidente pode até continuar a ser eleito pelo voto popular. A diferença mais notável é a drástica diminuição de seus poderes. Em alguns poucos países, como França e Portugal, embora o governo seja exercido por um primeiro-ministro eleito pelo Congresso, o presidente conserva certas atribuições de Estado; pode, em certos casos, interferir na política externa. Na maioria dos países, nem isso. Presidente é figura representativa – quem governa, de fato, é o parlamento.

Mas, atenção! Para um regime desses funcionar, é essencial estreitar a relação entre eleitores e eleitos. No sistema atual, com parlamentares eleitos pelo voto proporcional, o divórcio é total: nem o eleitor sabe quem o representa, nem o eleito se sente compromissado com quem o elegeu. É a perfeita negação da democracia. É verdade que mexer nisso é como enfiar a mão num saco de caranguejos. Mas não há outro jeito: quando um sistema de governo começa a dar sinais de exaustão como nosso presidencialismo de coalizão (ou de cooptação ou de confrontação, como preferir), é chegada a hora de aperfeiçoá-lo.

O voto proporcional tem de ceder lugar ao voto distrital puro. É simples. Divide-se o país em 513 distritos de população equivalente, cada um correspondendo a um assento na Câmara. Cada distrito escolherá um representante – o SEU deputado – em eleição de dois turnos. Esse sistema tem numerosas vantagens. A campanha eleitoral sai muito mais barata, dado que os candidatos só apertam mãos e distribuem santinhos no interior do distrito no qual concorrem.

O eleitor saberá a qualquer momento quem é seu deputado, fato que lhe permitirá acompanhar o trabalho do eleito e cobrar-lhe as promessas. O sistema distrital tende a enxugar a dispersão de votos, deixando à míngua partidos de aluguel. Com o método distrital, sumirá também o candidato puxador de voto, aquela figura conhecida que, ao receber enorme votação, elege mais quatro ou cinco companheiros inexpressivos.

Com o presidente atual, sempre em equilíbrio precário entre lutas no interior do clã e problemas com a Justiça, toda mudança é improvável. No dia em que ele deixar a presidência, será chegado o momento. Não vai ser fácil vencer as resistências, mas vale a pena – o Brasil merece essa chance.

Presidencialismo, pero no mucho

José Horta Manzano

Nós, brasileiros, acreditamos que nosso regime é presidencialista puro e duro, com o chefe do Executivo dotado de força suficiente pra passar por cima do Congresso. Pois isso, embora não chegue a ser fake news, é meia verdade. No frigir dos ovos, a coisa não é tão nítida assim.

Exame atento revela que o Congresso tem, sim, grande poder. Os exemplos mais patentes são a derrubada de doutor Collor de Mello e a de doutora Dilma Rousseff. Eram ambos presidentes que, inebriados pelos eflúvios do poder, enfiaram na cabeça a ingênua ideia de enfrentar o Congresso. Na queda de braço, danaram-se: foram ambos despachados de volta pra casa.

Em outubro, vamos à urna. A eleição presidencial já ocupa quase todo o espaço midiático. Bolsonaro, Ciro, Alckmin, Marina são as estrelas do momento. Não contesto que a escolha do presidente seja importante. No meu entender, porém, a composição do Senado e da Câmara é ainda mais crucial. De pouco valerá entregar a faixa a um bom presidente se ele não conseguir se entender com o Parlamento. Seu caminho será pedregoso.

O presidente, para aprovar leis de interesse do governo, precisa do Congresso, sem o qual não aprovará grande coisa. Caso decida forçar a barra e seguir pelo atalho do decreto, os parlamentares podem puxar-lhe o tapete, derrubando o texto. Em última instância, presidente não tem o poder de destituir congressistas, mas estes têm nas mãos a permanência do presidente. Têm o poder de votar o impeachment presidencial. Assim, presidente que não conseguir costurar uma rede de apoio parlamentar terá vida curta: acabará destituído.

Deveríamos dar maior atenção à escolha de deputados e senadores. São figuras tão ou mais importantes que o presidente. Volto a dizer o que já exprimi aqui: presidente e congressistas deveriam ser escolhidos em eleições separadas. Ao votar em todos ao mesmo tempo, estamos fazendo escolha às cegas.

O mais lógico será votar para presidente primeiro e, em seguida, para Senado e Câmara. Dessa maneira, só escolheremos parlamentares depois de conhecer o nome do presidente, já sabendo qual é sua orientação e quais são suas ideias. Aí, sim, terá chegado a vez de votar pra senador e pra deputado. Em conhecimento de causa, escolheremos os candidatos que estiverem mais afinados com o presidente ‒ o que diminuirá a necessidade de conchavos e acordos subterrâneos no Congresso pra conseguir apoio.

Esse sistema ainda não é realidade. Portanto, resta-nos escolher muito bem os nomes que vamos mandar a Brasília. Contam mais que o presidente. Sem eles, o mandatário maior estará de mãos amarradas, seja ele quem for.

A África do Sul e nós

José Horta Manzano

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Esse é trecho da nota emitida pelo movimento Save SA ‒ Salve a África do Sul, que, há tempos, vem manifestando oposição ao governo do ora caído presidente Jacob Zuma. Declaram-se absolutamente radiantes de ver pelas costas o «pior presidente que o país teve até hoje».

Quando Nelson Mandela conseguiu a inimaginável façanha de evitar um banho de sangue ‒ por ocasião da transição do país do regime de apartheid à democracia universal ‒, o mundo passou a enxergar a África do Sul com outros olhos. De terra fadada ao fracasso e à guerra civil, o país passou a ser visto como emergente e promissor.

A África do Sul é república parlamentar. Sua Constituição, diferentemente da de outros regimes parlamentaristas, prevê que o presidente seja, ao mesmo tempo, chefe do governo e chefe do Estado. A diferença entre esse sistema e o presidencialismo puro é que o mais alto dirigente sul-africano não depende diretamente das urnas, mas da confiança do parlamento. Caso os parlamentares votem uma moção de desconfiança, ele é apeado do cargo.

Foi o que aconteceu dois dias atrás com Jacob Zuma, terceiro sucessor do velho Mandela. Seu partido, que é amplamente majoritário, pediu-lhe que renunciasse à presidência. Caso não o fizesse, moção de desconfiança estava pronta pra ser votada. Bem a contragosto, o presidente se foi. Não sem antes apresentar um balanço de seus anos de governo. É um balanço típico de ‘contabilidade criativa’, em que, escamoteados os passivos, só os ativos são mencionados. Só o lado sorridente aparece.

Mas o lado sombrio é tenebroso. O presidente caído está enroscado em 783 acusações de corrupção(!) ‒ volume pra deixar qualquer envolvido na Lava a Jato babando de inveja. O país-modelo da África deixou-se gangrenar pela corrupção erigida em sistema de governo. Bem longe das promessas de vinte anos atrás, a África do Sul tem hoje 50% dos habitantes abaixo da linha de pobreza. E a taxa de desemprego atinge 30% da população em idade de trabalhar.

O fator mais preocupante é o desencanto do povo: a maioria acredita que o substituto de Mister Zuma será tão corrupto quanto ele. Nós, no Brasil, que atravessamos um longo período de corrupção e de roubalheira análogo ao da África do Sul, pelo menos guardamos esperança de que o futuro seja mais risonho. Não há dúvida: o brasileiro é um povo cordial.

República

José Horta Manzano

Na escola, aprendemos que o 15 de novembro marca aniversário da Proclamação da República. Sabemos que um certo general de nome Manuel Deodoro da Fonseca ‒ já sexagenário e, ainda por cima, adoentado ‒, foi tirado da cama de madrugadinha naquele dia. Meio atordoado, o militar acatou as sugestões que lhe foram feitas por sisudos senhores, e dirigiu-se ao palácio do imperador.

Sem se dar conta do alcance de seu ato, consumou o golpe de Estado ao fazer saber ao imperador que o regime monárquico estava extinto e substituído por uma república. Naquela altura, pouca gente conhecia o real significado da palavra. Os poucos que tinham conhecimento do assunto não imaginavam que o novo regime viesse a se revelar tão cheio de defeitos. Se soubessem, não teriam destronado o imperador. Teriam deixado as coisas como estavam.

Os republicanos esclarecidos, que não eram muitos, tinham boas intenções. Imaginavam instaurar um regime próximo da etimologia da palavra república: res + publica (= coisa pública). Acreditavam que a figura do imperador estivesse erigindo barreira entre cidadãos e dirigentes. Ao banir a figura do monarca, confiavam que o governante maior, escolhido pelo povo, passasse a ser mais sensível aos reclamos dos cidadãos.

Manchete do maior jornal do Brasil no dia seguinte ao da proclamação da República
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O futuro se encarregou de frustrar os idealistas. O regime republicano acabou diminuindo a influência do parlamento e atribuindo cada vez mais poder ao presidente. A confusão entre Estado e governo, já existente no império, foi agravada com a implantação da república. Abriu as portas para a promiscuidade entre interesses partidários e interesses da nação, disfunção que chegou ao apogeu durante os governos lulopetistas. Sem a república, não teria havido a ditadura Vargas nem a ditadura militar.

Em vez de destronar o imperador, os «republicanos» deviam ter exigido que se reformasse a Constituição. A figura do monarca seria conservada, mas seus poderes seriam fortemente diminuídos e transferidos ao congresso. Teríamos, assim, uma monarquia constitucional e parlamentar, nos moldes de países como Reino Unido, Japão, Espanha, Holanda, Suécia, Bélgica e diversos outros, tudo gente fina.

Restaurar a monarquia é tecnicamente possível, embora terrivelmente complicado. Instaurar regime parlamentar, no entanto, não é bicho de sete cabeças. Só funcionará após uma reforma que institua voto distrital e retire os poderes do presidente da República, deixando-lhe somente função representativa.

Sem isso, o país continuará, caótico, à espera do salvador da pátria. Convém esperar sentado, que periga demorar.

Semipresidencialismo

José Horta Manzano

Quando alguém que nos é simpático dá uma sugestão qualquer, ainda que nos pareça inaceitável, tendemos a levá-la em consideração. Ainda que estejamos em total desacordo, daremos ouvidos, argumentaremos e pode até ser que aceitemos a ideia nem que seja com reservas. Já quando a sugestão vem de alguém que nos é antipático, tendemos a rejeitá-la de bate-pronto, sem nem ouvir até o fim.

Estes dias, doutor Temer andou falando em reformular o sistema de governo do país. Palavras como parlamentarismo e semipresidencialismo surgiram sobre a mesa. Com diferença de poucos detalhes, ideia semelhante vem sendo emitida por doutor Gilmar Mendes, por doutor José Serra e até por doutor Maia, presidente da Câmara. Dado que essas figuras carimbadas sofrem forte rejeição popular, as propostas vêm sendo tratadas com indisfarçado desprezo. Muitos veem nelas simples subterfúgios para garantir aos figurões a permanência no poder.

Nenhum dos mencionados doutores me é especialmente simpático. No entanto, acredito que não se deva jogar o bebê com a água do banho. Melhor será concentrar-se sobre o conteúdo da mensagem e esquecer, por um momento, o(s) mensageiro(s).

Estamos todos de acordo num ponto: por razões que não cabe aqui discutir, a Constituição de 1988 nos conduziu a um impasse. Por melhores que tenham sido as intenções dos que a escreveram, o sistema engendrado pela carta magna mostrou seus limites. Esgotou-se. Vivemos em crise política permanente há 30 anos. É chegada a hora de reformular a máquina.

Muitos preconizam a convocação de assembleia constituinte para reconstruir o edifício. É problemático, demorado, caro, irritante e, sobretudo, dispensável. Mais vale seguir o atalho de alterações pontuais, caminho bem mais prático e rápido. Modificações limitadas não demandam a demolição do prédio, o que é menos traumático.

Apesar de ser considerado presidencialista, nosso sistema, na prática, é um «parlamentarismo presidencialista», se é que assim me posso exprimir. A meu ver, nossos 594 congressistas (513 deputados + 81 senadores) estão muito mais perto de representar a vontade popular do que o solitário presidente da República. Grosso modo, o conjunto dos parlamentares traduz a vontade de praticamente todos os brasileiros, ao passo que o presidente é eleito por pouco mais de 50% do eleitorado. A Câmara e o Senado congregam representantes de dezenas de partidos, enquanto o presidente é afiliado a um só deles. Portanto, é indiscutível que o Congresso está mais próximo do ideal da democracia representativa.

Quem afirma que «o presidente fez» ou que «o presidente deixou de fazer» se esquece de que o chefe do Executivo depende da aprovação do parlamento para pôr em prática qualquer medida. Nosso regime dito presidencialista, em que o presidente tem grande poder, colide com o Congresso, fato que está na raiz de muitos de nossos males. Cooptação, corrupção e compra de voto de parlamentares são consequência dessa confrontação.

No meu entender, uma drástica diminuição dos poderes presidenciais ‒ acompanhada da criação da figura de um primeiro-ministro ‒ contribuiria para a diminuição de tensões. Ordens e decretos deixariam de vir do Planalto e passariam a ser objeto de debate entre os legítimos representantes do povo. O presidente guardaria atribuições limitadas e específicas de representação do país.

Em sua ingenuidade, grande parte dos eleitores dá muita importância à escolha do presidente e pouco se importa com os parlamentares. Talvez seja essa a razão de elegerem congressistas tão medíocres. Na verdade, no sistema que imagino, o presidente não precisaria nem mesmo ser eleito por voto direto. Como na Alemanha, na Itália e em outros países civilizados, poderia ser eleito pelos parlamentares. Dado que teria poder pra lá de limitado, jamais seria fonte de crise.

Pode-se dar ao novo sistema o nome que convier: parlamentarismo, semipresidencialismo ou qualquer outro. Pouco importa. O que conta é que o país seja dirigido por seus representantes legítimos e não mais por um medalhão no qual 50% dos eleitores sequer votou.

Parlamentarismo à francesa

José Horta Manzano

Em teoria, a França vive sob regime parlamentarista. Entretanto, a Constituição em vigor, promulgada em 1958 sob medida para o general de Gaulle, dá poderes não habituais ao presidente da República. A costura acabou inventando um regime híbrido, a meio caminho entre parlamentarismo e presidencialismo. Diferentemente do que costuma ocorrer em outros países, o chefe do Estado francês (o presidente) tem projeção muito maior do que o chefe do governo (o primeiro-ministro). Quer uma prova?

Vamos ver. Quem é que conhece o nome do atual primeiro-ministro francês? Todos sabem que sua colega alemã é Frau Merkel. Quem governa o Reino Unido é Mrs. May. Señor Rajoy é quem dirige o governo espanhol. Mas… e na França, quem será? Pois o primeiro-ministro ‒ e chefe do governo ‒ é Monsieur Édouard Philippe. Isso mesmo: Philippe é o sobrenome.

Assembleia nacional francesa

A Constituição do país garante ao chefe do Estado poderes que, em outros países europeus, são atribuídos ao primeiro-ministro. É eleito pelo voto popular. Pode dissolver a Assembleia e convocar eleições. Pode propor plebiscitos, nomear e demitir ministros, assinar decretos, nomear embaixadores, conceder graça a condenados, negociar e assinar tratados. É ele quem preside a reunião governamental, realizada todas as quartas-feiras, com a presença de todos os ministros. Em cúpulas internacionais como o G7 e o G20, é o presidente quem representa o país.

A cada cinco anos, um mês depois da eleição presidencial, os franceses vão às urnas para renovar a Assembleia. O voto é distrital puro. O país é dividido em 577 distritos de população equivalente. Cada um elege um deputado que o representará na Assembleia Nacional. Em cada distrito, será eleito o candidato que tiver obtido maioria absoluta, ou seja, 50% mais um dos votos válidos. É raro que isso aconteça já no primeiro turno, daí a necessidade de um segundo. Qualificam-se para a segunda rodada os candidatos que obtiverem voto de pelo menos 12.5% do eleitorado (não somente dos que tiverem efetivamente votado).

No domingo 11 de junho, ocorreu o primeiro turno de votação. Somente quatro deputados conseguiram eleger-se diretamente, com mais de 50% dos votos do distrito. Os eleitores das demais 573 circunscrições voltarão às urnas uma semana depois, em 18 de junho, para escolher entre os dois primeiros colocados. Este ano, há um único caso dito «triangular», em que três candidatos se qualificaram para o segundo turno.

Assembleia Nacional francesa

O sistema de voto distrital puro tem vantagens e desvantagens. Do lado bom, cada cidadão sabe perfeitamente qual é o deputado que o representa em Paris. A campanha tem custo muitíssimo menor do que no Brasil, por exemplo. O candidato, que percorre um território relativamente pequeno, fica mais próximo do eleitor, distribui santinhos pessoalmente, multiplica apertos de mão, beija crianças, tira «selfies» com apoiadores, visita feiras-livres, exposições, pequenos comércios.

Além disso, os franceses residentes no exterior também são representados. O planeta foi dividido em onze distritos eleitorais, conforme a concentração de expatriados em cada um. Portanto, dos 577 deputados, 566 representam os franceses residentes no território nacional e onze trazem a voz dos que vivem fora. Os três milhões de brasileiros que moram fora do Brasil não gozam de direito equivalente.

Do lado menos positivo, a tendência ao bipartidarismo é forte. A composição da Assembleia não reflete necessariamente a proporção de votos obtidos por cada partido. Ao final das atuais eleições francesas, a Frente Nacional, partido de extrema-direita antieuropeu e anti-imigração, não conseguirá eleger mais que uma dezena de deputados. O número de eleitos não bate com o número de eleitores do partido. No caso específico de partidos extremistas (de esquerda ou de direita, pouco importa), a distorção não incomoda os cidadãos de orientação moderada, que formam, ao fim das contas, a maioria da população.

Se um dia tal sistema for instituído no Brasil, a consequência mais imediata será o desaparecimento de siglas de aluguel, chaga nacional. Ganharemos todos.

Salve a Seleção!

José Horta Manzano

Até não faz muito tempo, um jogo de futebol entre Brasil e Argentina, ainda que amistoso, ofuscaria todo e qualquer acontecimento e faria a manchete unânime da mídia. Dizem até as más línguas que, entre nossa Seleção e a dos hermanos, não existem partidas «amistosas», que são todas pra valer.

O mais recente encontro entre as duas, realizado hoje do outro lado do planeta, terminou há pouquinho. Curioso, vim conferir o resultado. Abro o Estadão online. Está lá uma manchete em letras enormes com o placar. Placar do jogo? Não, senhores. O placar do voto de Suas Excelências sobre o julgamento do pedido de cassação do presidente em exercício. Aliás, nem placar é, que não passa de projeção.

Dão nome, foto, idade e currículo da «seleção» de magistrados, exatamente como nas figurinhas de futebolistas que se colavam nos álbuns de antigamente. Exatamente como se descrevessem a expectativa de desempenho de cada jogador, dão a probabilidade de voto de cada um dos magistrados. A diferença mais notável entre os astros do gramado e os do tribunal é que aqueles são onze, enquanto estes não passam de sete. No mais, o entusiasmo pelo julgamento é o mesmo.

Vou descendo o elevador do jornal online à cata do resultado do jogo. Depois da manchete principal, vem uma notícia sobre a inflação de maio. Em seguida, nova manchetinha falando de acordos de leniência possíveis entre instituições financeiras e o Banco Central. Mais abaixo, uma chamada para os editoriais do dia informa que um deles discorre sobre o caráter pedagógico do julgamento.

Só depois disso é que aparece o resultado do jogo de futebol. Fico sabendo que o Brasil foi derrotado. Um pensamento me ocorre: se tivesse vencido, será que a notícia teria subido um ou dois degraus na ordem de apresentação do jornal? Nem Nostradamus tem resposta.

Bom, talvez seja eu o único a me surpreender com o que acabo de escrever. É possível que pareça natural a uma maioria de conterrâneos que a permanência ou não de doutor Temer na chefia do Executivo seja o assunto mais importante. Quanto a mim, não vejo com esses olhos, que fazer? Cada um enxerga através das próprias lentes.

Será que ‒ realmente ‒ faz alguma diferença que o presidente seja A, B ou C? Que Temer fique, que Temer caia ou que Temer balance, no fundo, que vantagem Maria leva? O que é que há de acontecer de tão importante para cada um de nós? Espremendo bem, analisando sem paixões, qualquer um chegará à mesma conclusão: nada vai mudar. É muito difícil, pra não dizer impossível, encontrar um homem público sem manchas no currículo. Qual deles nunca deu uma carteirada, nunca pegou carona num jatinho amigo, nunca empregou um parente, nunca inchou uma nota de despesa, nunca deixou a Casa no meio do expediente, nunca furou uma fila, nunca usou nenhum centavo de dinheiro público para fins pessoais?

Vai ser difícil encontrar a pérola rara, o imaculado, o honesto absoluto. Mas tem pior. Se, por um milagre do Espírito Santo, encontrassem o homem providencial, quem garante que fosse bom administrador? Honestidade e retidão não são necessariamente sinônimos de boa capacidade política e administrativa.

Em vez de insistir no «Fica, Temer!» ou no «Fora, Temer!», deveríamos pensar no «E depois de Temer?». Parlamentarismo? Voto distrital? Presidente da República desprovido de poder? Monarquia? O debate importante tem de passar por cima de querelas passageiras e enxergar mais longe. Pra frente, Brasil! Salve a Seleção!

O retrato

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 2 abril 2016

Faz ano e meio. Assim que Dilma Rousseff conquistou, pela segunda vez, vitória nas urnas, utilizei este espaço para dar-lhe meus parabéns. Aproveitei para pedir-lhe que não perseverasse na tática de alargar brechas entre classes de cidadãos, estranho método inaugurado por seu predecessor. Sugeri que não exacerbasse antagonismos e que pusesse fim à retórica do «nós» contra «eles».

A bem da verdade, é de constatar que o recurso ao antagonismo entre categorias de brasileiros se atenuou no discurso presidencial. O mérito é menos da presidente e mais do deslocamento da imaginária linha de fratura. O encorpamento do campo adverso acendeu luz vermelha no Planalto e deixou claro que era melhor botar a metáfora de molho.

Manif 3Dá tristeza, contudo, perceber que, antes mesmo que Dilma Rousseff assumisse o cargo maior, o mal já estava feito e a ferida, aberta. Nem nos tempos em que nosso povo se debateu sob feroz ditadura ‒ varguista ou militar ‒ hostilidades e ressentimentos entre cidadãos foram tão palpáveis. Se o objetivo tático dos que ora nos governam era segmentar e categorizar o povo, podem gabar-se de ter atingido o intento. Para seu desalento, no entanto, a parcela que os apoia vem-se apoucando a cada dia. O chavão do tiro que saiu pela culatra se aplica.

Ao ritmo em que avança a carroça, o caminho se estreita e o horizonte se fecha. Prever o futuro, como diz o outro, não é tarefa fácil. Tudo indica, no entanto, que os humores do Congresso se preparam a abreviar o mandato de Dilma. Se assim for, a ordem constitucional dispõe que Michel Temer ocupe o trono vacante. Missão espinhosa.

Numa primeira análise, tirando a honra de ganhar retrato na galeria de presidentes, o encargo será áspero. As finanças vão mal, a economia vai pior, a inflação come solta, o desemprego cresce, o PIB encolhe, a confiança na classe política esfarelou-se. O regime político de países vizinhos, antes considerados parceiros preferenciais, dá sinais de esgotamento. Na comparação internacional, o Brasil desaponta. Com tantas goteiras no teto, como impedir a inundação da casa?

Dilma e TemerChavão por chavão, aqui cabe outro: há que fazer das tripas coração. Paradoxalmente, é menos complicado erguer sobre escombros do que consertar um buraco aqui, uma avaria acolá. Com o país do jeito que está, não sobra alternativa, há que refundá-lo. Michel Temer, senhor de vasta experiência em coisas da política, tem o estofo necessário para a tarefa e dispensa palpites. Assim mesmo, deixo aqui algumas reflexões.

O atual vice-presidente, caso assuma a chefia do Executivo, terá chegado lá sem ter recebido um voto sequer. Longe de sombrear sua gestão, essa particularidade lhe confere amplitude de ação. Dado que não fez promessas, não poderá ser acusado de trair eleitores ‒ uma vantagem e tanto! A situação do Brasil desceu a um estado tal de degradação que qualquer ação que não se assemelhe a manobra para escapar da Justiça só poderá ser benfazeja. O alívio que a maioria do povo sentirá ao se dar conta de que o pesadelo terminou há de traduzir-se em simpatia ‒ e até em certa condescendência ‒ para com o novo mandatário.

Será um mandato curto, pouco mais de dois anos. Se senhor Temer quiser deixar marca positiva e relevante na história do país, terá de agir rápido. Para começar, tem de alinhavar um ministério com titulares capazes e de ficha limpa. Dividir por dois o número de ministros será medida apreciada.

Surfando na onda que clama por um Brasil decente, o chefe do Executivo deveria engajar pleno esforço na implantação do parlamentarismo. A hora é agora, que não dá mais pra esperar. Nosso regime presidencialista simplesmente se exauriu, mostrou seus limites, está gasto até a lona. Não tem remédio.

Galeria de presidentes da República

Galeria de presidentes da República

Outra reforma importante, sem a qual o parlamentarismo não funcionará, é a instauração do voto distrital puro, majoritário, com deputados eleitos em dois turnos. É a única maneira de aproximar representantes de representados. Cada eleitor conhecerá o deputado que o representa. Um benefício extra virá no bojo do voto distrital: a diminuição radical do número de partidos e a extinção das legendas de aluguel. Não é coisa pouca.

Essas são as grandes medidas, complicadas para governante eleito, mas ao alcance de um presidente sem voto, que nada prometeu. Claro está que senhor Temer pode optar pela facilidade e deixar tudo como está. Nesse caso, sua biografia desertará os livros de história e sua memória se resumirá a um retrato na galeria.

O bebê e o banho

José Horta Manzano

Um ditado francês manda ter cuidado para não jogar o bebê junto com a água do banho. Nada é inteiramente bom, assim como nada é totalmente ruim. Por pior que seja o caso, sempre dá pra salvar alguma coisa.

Senhor Luiz Roberto Barroso, juiz do STF, foi apanhado de surpresa ontem ao proferir opinião sem se dar conta de que a fala estava sendo gravada. Falou livre e solto até que percebeu a indiscrição.

Bebe eau du bain 1Análises e comentários raivosos apareceram hoje de manhã, focados todos nas críticas que o ministro fez à incompetência dos que deverão substituir a atual presidente caída. Segundo os articulistas, o passado petista do ministro o condena. Bobagem. Que os titulares de um passado absolutamente imaculado atirem a primeira pedra!

O furor dos comentaristas parece considerar que a alma humana é unifacetada e imutável. Não é bem assim. Mesmo a personalidade do pior dos facínoras tem aspectos menos sombrios.

Ainda que desagradem aos críticos, algumas considerações de senhor Barroso foram lúcidas e pertinentes. Ele disse, por exemplo, que a amplitude do dito «foro privilegiado» é desastre para o país. Preconiza que seja restrito ao presidente de cada um dos três poderes, a mais ninguém. Considera que o modelo atual estimula fraude de jurisdição. Tem razão.

by Jacques Sardat (aka Cled'12), desenhista francês

by Jacques Sardat (aka Cled’12), desenhista francês

Argumenta ainda que o atual sistema eletivo não reflete a vontade popular. O voto majoritário faz que o cidadão vote num candidato e, sem se dar conta, acabe elegendo outro. Recomenda o voto distrital, pelo qual cada eleitor escolhe o seu representante, do qual poderá cobrar as promessas de campanha. Do jeito que está, o cidadão não se sente representado e os representantes não se sentem vinculados aos que neles votaram. É belo exemplo de esquizofrenia.

A posição do ministro é equilibrada ‒ subscrevo. Um presidencialismo exaurido, como o nosso, deveria ‒ esse, sim ‒ ser jogado com o bebê e com a água do banho. No ponto a que chegamos, a instauração de parlamentarismo com voto distrital será mudança pra lá de bem-vinda.

Esqueça a mediocridade dos representantes atuais. Com o passar do tempo, um vínculo mais sólido se estabelecerá entre o povo e seus parlamentares. Será solução benéfica para todos.

O fim do amém

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jul 2015

Revolution 1O dicionário ensina que revolução, no contexto político, é rebelião contra o poder vigente, com vista a implantar mudanças profundas. Diz ainda que pode ocorrer de maneira progressiva ou repentina. Quanto maior for a rudeza, mais caracterizada estará a reviravolta.

A transição do regime militar para a democracia plena, que os manuais situam em 1985, não pode ser catalogada como revolução. Na verdade, a eleição presidencial daquele ano marcou o desfecho de um processo paulatino, gradual e sobretudo consentido. A mudança pode não ter agradado aos mandatários da época, contudo não ocorreu à revelia deles. Tendo sido autorizada, revolução não era.

Já a ruptura havida em 1964, dado o grau de brusquidão, encaixa-se melhor, stricto sensu, no conceito de revolução. Aliás, foi assim qualificada nos primeiros anos, embora seja hoje mais usual designá-la como golpe.

Dilma e Lula 4Nossos pais e nossos avós – esses, sim – conheceram tempos bem mais turbulentos. Na primeira metade do século XX, revoluções e golpes (bem sucedidos ou não) sobrevinham a cada par de anos. Por um sim, por um não, entrincheiravam-se cidadãos, desembainhavam-se espadas, granadas explodiam, casernas eram sitiadas. Visto com óculos atuais, esse rebuliço nos parece longínquo, intangível, empoeirado, perdido nos livros de história.

Os brasileiros que assistiram, já em idade de entender, ao golpe de 1964 já estão todos, há anos, agasalhados sob o manto do Estatuto do Idoso. Mais velhos ainda estão os que viveram uma revolução de verdade, daquelas boas, com canhão e tropa nas ruas. São hoje anciãos.

Os tempos mudaram. Não se pega mais em armas pra impor ideias, que isso está completamente démodé. Armas, hoje, são muito mais numerosas que antigamente, circulam bem mais rápido, estão em mãos de muito mais gente, mas servem pra outros fins.

Revolution 2No que diz respeito à política, os jovens adultos brasileiros, aqueles que entram agora na casa dos vinte e poucos anos, andam desencantados. Levantamento recente do TSE informa que, no espaço de sete anos, nossos cinco maiores partidos perderam dois terços dos afiliados menores de 25 anos. O desinteresse da banda jovem é flagrante e inquietante: são precisamente eles que, daqui a vinte anos, conduzirão o País.

Quais serão as razões desse desamor? Poderíamos culpar internet, redes sociais, materialismo, facilidades do mundo moderno. Será? Se assim fosse, o desinteresse dos jovens pelas coisas da política seria planetário, o que está longe de ser verdade. As causas são domésticas.

Pra começo de conversa, os que chegam hoje aos vinte aninhos só conheceram, no topo do Executivo, a dupla Lula & Dilma. Não nos esqueçamos que o presidente anterior, ao impor a sucessora, fez questão de apregoar que ela era ele e que ele era ela. Ou seja, ficou claro que eram angu da mesma tigela.

Dilma e Lula 5Tem mais. Desde que se conhecem por gente, os jovens de hoje vêm sendo diariamente bombardeados com escândalos, roubalheiras, prisão de medalhões. E mais roubos, e mais escândalos, e falcatruas, e mentiras, e caraduras. Convenhamos: é muita água pra pouco pote. Compreende-se que se sintam enfastiados e que menosprezem política e políticos.

O que anda fazendo falta é o debate de ideias, a troca de argumentos, o empenho pelo bem comum, a demarcação rigorosa entre o público e o privado. O Executivo onipresente destes últimos dez anos tem relegado o Legislativo a papel de figurante de opereta.

A crise de governança gerada pela ação desastrada da presidência da República está mostrando corolário positivo: o fortalecimento do parlamento. Deputados e senadores, desacostumados que estavam de fazer aquilo para que foram eleitos, andam meio aturdidos. O momento parece confuso, mas o tempo se encarregará de pôr ordem na casa.

Senado federal 1Suas excelências já dão mostras de que a era do amém chegou ao fim. Não é revolução de tanque e canhão, mas é como se fosse: as consequências serão notáveis.

No Brasil, a prática costuma contradizer a teoria. Nosso presidencialismo está-se transmutando em parlamentarismo de facto. Após tantos anos de um Executivo onipotente acolitado por congresso submisso, a virada é notícia animadora.

Aperfeiçoamentos terão de vir, ressalte-se. Para viabilizar o novo modelo, é imperioso implantar voto distrital e cláusula de barreira. Mas há um tempo pra tudo. Por ora, festejemos a revolução que se desenrola diante de nossos olhos e façamos votos para que o reequilíbrio entre poderes seja duradouro. Será bom para todos nós. Que os anjos digam amém.

Coincidência de eleições

José Horta Manzano

by Felipe Parucci, desenhista catarinense

by Felipe Parucci, desenhista catarinense

Como de costume, as grandes decisões – aquelas que realmente pesam e modelam o futuro do País – vêm a varejo, pingando, aos pedacinhos. Tradicionalmente, a atitude de nossos legisladores e dirigentes é reativa, raramente proativa. Estamos sempre correndo atrás do bonde da história. Parece que somos incapazes de produzir uma peça acabada, coerente, abrangente, com começo, meio e fim.

Temos agora parlamentares discutindo reforma política como se se tratasse de reforma de casa de campo. Não é. Reforma política tem de ser analisada de cabo a rabo e tratada como um conjunto. Exige tempo e muita reflexão. Tem de começar pelo começo: parlamentarismo ou presidencialismo?

Voto 1Já estamos tratando de coincidência de mandatos sem ao menos ter definido qual será o formato do regime. Puseram a carroça à frente dos bois. Enfim, já que o assunto do momento é frequência de eleições, vamos lá.

Democracia não é uma evidência. O natural de todo grupo humano – vale também para grupo de animais – é ter um chefe imposto pela força bruta. Quem pode mais, manda. Artificial, a democracia é conceito relativamente recente. Como toda novidade, tem de ser aprendida. E aprendizado, como sabem meus distintos leitores, se faz pela repetição. Quanto mais treino, melhor.

Voto 2O exercício do voto é como cartilha de alfabetização: quanto mais repetida, repassada e repisada for, mais resultados produzirá. A coincidência de mandatos é a negação desse aprendizado. O intervalo entre eleições tem de ser o menor possível. No mínimo, um voto por ano tem de ser organizado.

Urna 7Como fazê-lo? Cabe ao legislador decidir. Voto frequente, além de habituar o eleitor a participar do processo de escolha, tem a vantagem de servir como “recall”, como mecanismo de correção de rota. Partidos caídos em desgraça serão menos votados. Representantes que tiverem decepcionado a população serão despachados de volta pra casa e substituídos.

Dizem alguns que custa caro realizar eleição. Discordo. A longo prazo, sai bem mais caro suportar as consequências da não participação da população no processo de escolha de dirigentes. Afasta os liderados de seus líderes. Aliena, entorpece e embota.

Empurrando a culpa

José Horta Manzano

Lado A
Dois anos atrás, François Hollande ganhou de Nicolas Sarkozy e foi eleito presidente da França. O sistema político francês ― a meio caminho entre o presidencialismo e o parlamentarismo ― dá grande poder ao presidente, mas impõe que ele nomeie um primeiro-ministro, que, por sua vez, deverá receber o voto de confiança da assembleia. É cargo que funciona como fusível: está na linha de frente para receber choques. Quando queima, é substituído.

Jean-Marc Ayrault

Jean-Marc Ayrault

Ao ser eleito, Hollande concedeu o posto de primeiro-ministro a um amigo de muitos anos, Monsieur Ayrault. Mas os tempos são difíceis, com estagnação econômica e taxa de desemprego nas alturas. Indústrias abandonam o território para se instalar em país de mão de obra barata. Como resultado, a popularidade de Hollande baixou a níveis jamais registrados para um presidente.

Faz poucos dias ― como lhes contei em post de 27 de março ― realizaram-se eleições para prefeito em todos os municípios do país. O povo não perdeu a ocasião de mostrar seu descontentamento: o partido do presidente levou uma surra nas urnas. Os socialistas perderam a prefeitura de dezenas de cidades importantes.

Em países civilizados, certas regras do jogo democrático, embora apenas consensuais e não escritas, costumam ser respeitadas. Quando um figurão não tem mais o apoio popular, melhor dizer adeus e ir-se embora. Foi o que fez Monsieur Ayrault, o primeiro-ministro. Fechadas as urnas, contados os votos e constatada a lavada, convocou a imprensa. Em breve discurso diante das câmeras, assumiu pessoalmente a inteira responsabilidade pelo insucesso. Dia seguinte, apresentou sua demissão ao presidente da República. E se foi.

Lado B
Estamos todos assistindo, estes dias, a espetáculo consternante proporcionado por dona Dilma. Diante da evidência de que houve «irregularidades» ― para usar palavra gentil ― nos negócios da Petrobras nos EUA durante sua gestão, vem ela com a versão 2.0 do conhecido «eu não sabia de nada».

Petrobras 3Não contente de confessar sua ignorância sobre o que se passava na empresa que estava sob sua guarda, vai mais longe: desce à baixaria de acusar um subordinado. «A culpa é daquele ali, ó! Eu sou boazinha, gentil, reta e proba ― jamais faria uma coisa dessas. Assinei sem ler! Fui traída!»

Para uma antiga revolucionária, que se vangloriou de jamais ter denunciado um companheiro, nem sob tortura, cai mal. Para quem ocupa o cargo maior da República, cai pior ainda. Um pouco de dignidade não lhe faria mal.

Não se exige a verdade integral, mesmo porque talvez nem ela a conheça. Que dê a desculpa que lhe parecer mais conveniente, mas que, pelo menos, não entregue o companheiro. Coisa feia.

Francamente, não se fazem mais revolucionários ― nem revolucionárias ― como antigamente.

Nada é perfeito

José Horta Manzano

Estamos comemorando a passagem de um quarto de século do dia em que a atual Constituição entrou em vigor. Não sou especialista em Direito Constitucional, mas tenho prestado atenção ao que dizem peritos e também ao que opinam abelhudos. Não há consenso, as opiniões são por demais divergentes. Há quem aplauda de pé a carta de 1988 e há também quem a considere execrável.

A atual Constituição da República é acusada de ter saído imperfeita por ter sido elaborada na sequência de uma mudança de regime político, num momento especial e conturbado. Quem assim pensa se esquece de que praticamente todas as constituições são votadas em momentos críticos da vida de um país. Salvo casos excepcionais, todas costumam assinalar mudança de regime.

A lei maior dos EUA foi fabricada justamente quando os colonos europeus da Nova Inglaterra decidiram que era hora de fundar um novo país, independente da metrópole britânica. Foi uma senhora quebra de regime!

A carta magna da Espanha marcou o enterro da ditadura franquista e o advento da democracia. A italiana data de 1946, quando o fascismo foi banido e deu lugar à atual república parlamentar. Na França, a atual lei maior data de 1958 e indica a transição de um regime parlamentarista para o atual presidencialismo.

Portanto, eventuais imperfeições da Constituição brasileira de 1988 não devem ser atribuídas à agitação daquele momento.

A constituição francesa se escreve com cerca de 2300 palavras. A americana tem pouco mais de 8 mil. Os italianos e os espanhóis ― povos de natureza mais prolixa ― utilizam respectivamente 15 mil e 18 mil palavras para consignar no papel suas diretivas legais básicas. Já a atual Constituição da República do Brasil ultrapassa… 49 mil palavras(!). Um despropósito. Já dizia minha avó que quem fala demais dá bom-dia a cavalo.

Constituição federal do Brasil

Constituição federal do Brasil

O amazonense Bernardo Cabral, veterano homem político que chegou até a «estar» ministro da Justiça por alguns meses em 1990, atuou como relator da Constituição de 1988. Esta semana, em entrevista à Folha de São Paulo, confessa que guarda algumas frustrações da época da confecção da nova carta.

Seu maior desapontamento vem de não ter conseguido convencer seus pares a adotarem um regime parlamentarista, que lhe parecia o mais apropriado para o Brasil. Nessa mesma linha, Cabral lamenta que a lei maior autorize o presidente da República a editar medidas provisórias, as famigeradas MPs. Segundo ele, esse instituto confere ao chefe do Executivo poderes dignos de um ditador. As medidas provisórias ― de que todos os presidentes costumam lançar mão com maior ou menor frequência ― permitem que o titular do Planalto passe por cima do Congresso. Como nos tempos de Getúlio Vargas.

A Assembleia Constituinte de 1988 foi convocada justamente para atirar ao lixo todo resquício de autoritarismo herdado da ditadura militar. Que aqueles deputados tenham deixado passar um instrumento que hoje dá poderes ditatoriais ao presidente da República é estonteante. Os ilustres constituintes fizeram vista grossa ― ou simplesmente não enxergaram ― essa enorme distorção. Vê-se que, em sua maioria, não estavam à altura da empreitada para a qual tinham sido eleitos. Uma oportunidade esbanjada.

Tem nada, não. Da próxima vez, faremos melhor. Ou não.