Ministros do Supremo

José Horta Manzano

Suponho que todo país democrático, como o nosso, conte com uma corte suprema. Em certas repúblicas, a magistratura suprema é exercidas por duas diferentes instituições.

Na França, por exemplo, a única atribuição da Corte Constitucional é certificar a constitucionalidade (ou não) das leis feitas pelos parlamentares. Em caso de controvérsia, é essa Corte que dá a palavra final.

Em paralelo, há também a Corte de Cassação, que corresponde a nosso tribunal de terceira instância. Na França, sua função não é julgar processos. A primeira e a segunda instâncias são as que julgam. Esta terceira instância, se for provocada, analisa o processo e dá sua aprovação à decisão tomada na instância inferior ou, se for o caso, cassa a decisão da segunda instância – daí o nome de Corte de Cassação. Nesse caso, o processo dá um passo atrás e faz o caminho de volta para ser de novo julgado.

No Brasil, uma mesma instituição – o Supremo Tribunal Federal – exerce as duas funções: corte constitucional e última instância judicial. Com a particularidade de não somente cassar decisões anteriores, mas também, em casos específicos, de agir como tribunal comum e julgar processos.

Nosso sistema não é melhor nem pior que o dos outros, com a ressalva de que essa dupla função representa enorme volume de trabalho para os ministros. Espero (e acredito) que eles estejam sendo bem assessorados.

Nos países com os quais tenho contacto mais chegado (Europa ocidental), não me lembro de ter visto ou ouvido algum membro de corte suprema se pronunciar em público ou dar entrevista. Em geral, a população sequer conhece o nome dos componentes do colegiado.

Já no Brasil, não sei por que razão, todos conhecem os 11 ministros do Supremo, com nome, sobrenome, idade, estado de origem, situação familiar, salário. Também, pudera: dia sim, outro também, os magistrados aparecem na mídia. Dão entrevista, arriscam palpite em assuntos delicados, parecem adorar um palco iluminado. É curioso.

Lula fez hoje um pronunciamento em que abordou o assunto da discrição dos ministros do STF. O presidente gostaria que os votos de cada magistrado fosse emitido discretamente, sem anúncio público, o que evitaria espetáculos selvagens como torcida, apostas, apupos, insultos por rede social.

Olhe, quem me lê sabe que não costumo concordar com Luiz Inácio. No entanto, exceções às vezes acontecem: estou perfeitamente de acordo com ele nessa matéria.

Depois de anos de estrelato por parte de ministros do STF, a população está desorientada. Imagina que o normal seja esse: aplaudir o Ministro X em avião ou agredir o Ministro Y no aeroporto.

É complicado dar ordens a Suas Excelências. Assim mesmo, os gênios da comunicação que se encarregam de propaganda institucional deveriam ser convocados para porem mãos à obra. O povo brasileiro tem de entender que o STF funciona em sistema de colegiado, ou seja, o que conta é o voto final. Como votou cada ministro individualmente é ponto irrelevante, que deveria ficar entre quatro paredes. Não sei se isso pode ser feito sem ferir a Constituição.

Artista de palco, de show e de streaming é uma coisa; ministro do STF é outra. As duas carreiras não se confundem. Precisamos devolver a serenidade ao debate nacional, e isso começa com a discrição de Suas Excelências.

Que Lula anote bem o elogio. Que não se acostume porque é raridade.

Cadeia pra quem xingar

José Horta Manzano

Essa história de o governo arquitetar projeto de lei aumentando para 40 anos a pena de prisão para quem for condenado por ter “atacado” o presidente ou algum ministro do STF ou o chefe de uma casa do Legislativo me deixou encafifado.

Em princípio, não se deve legislar na rabeira de um escândalo recente. Em geral, passado o clamor popular, percebe-se que a lei foi longe demais, por ter sido feita sob medida como resposta a um determinado delito. Nem sempre é adequada para todas as situações do mesmo espectro.

A recente agressão denunciada pelo ministro Alexandre de Morais contra sua família num aeroporto de Roma gerou uma onda de reprovação na República. Fica evidente o elo entre o projeto do Executivo e o desassossego criado pelo episódio do aeroporto. Não faz sentido propor uma lei no calor da emoção.

A impressão que me dá é que o lulopetismo está aproveitando o clima de indignação, já levantado pelo 8 de janeiro e agora reforçado pelo ataque ao ministro, para avançar algumas casas na implantação do projeto autoritário do partido.

Se há um ponto em que as ideologias petista e bolsonarista se dão as mãos é exatamente este: a fantasia de um chefe supremo forte, autoritário, inatacável, seguido fiel e cegamente pela totalidade dos súditos. Me parece claro que o objetivo do projeto de lei é, em primeiríssimo lugar, blindar o presidente da República, o chefe soberano.

Com a nova lei, que o protege mesmo de ataques verbais, ele estará tranquilo durante todo o mandato e até depois. A extensão das mesmas garantias aos membros do STF e aos chefes do parlamento parece mero afago a essas instituições.

É precipitado e desnecessário entrar com esse projeto imediatamente. O Brasil tem outros problemas mais sérios a resolver.

A legislação que temos é suficiente para intimidar cidadãos que se dispuserem a atacar figurões de primeira linha. Basta aplicar a lei. Se os três agressores de Roma imaginassem qual seria a repercussão e quais seriam as consequências de seus atos, certamente teriam passado reto pelo ministro, sem ao menos fixá-lo nos olhos.

Esses comportamentos exaltados e incivis fomentados por Jair Bolsonaro estão em nítido declínio. Se ainda pipocam aqui e ali, é por inércia. Mais um pouco de paciência e irão para o baú do esquecimento, lá fazer companhia a seu criador.

Se nossos congressistas estiverem alerta, essa lei não passa. Suas segundas intenções são demais evidentes. Vamos ver se são espertos.

Pra que serve um ministério?

Reunião ministerial

José Horta Manzano

Nossa Constituição não é específica ao falar de ministérios e de seus titulares. Parece partir do princípio que as funções desses auxiliares do presidente da República são de conhecimento de todos, portanto não vale a pena se estender em explicações detalhadas.

Vivemos num país de forte tradição cartorial. Já reparou nas intermináveis linhas de palavrório que aparecem na escritura de um lote de 10m x 10m situado num grotão qualquer? É um blablá tão comprido que te dá a impressão de estar comprando um castelo.

O fato é que essa fixação em dar a volta completa, abarcar um tema inteirinho e trancar a porta, sem deixar brecha para interpretações divergentes, acaba sendo perniciosa. Quando uma lei ou um regulamento não vem já esmiuçado, os cidadãos acabam raciocinando de forma extravagante: “Se não é proibido, forçosamente é permitido”.

Pela Lei Maior, a única condição para atribuir a chefia de um ministério é que o titular seja brasileiro. Explicitamente, não há limite de idade, não há exigência de notório conhecimento da área, não há proibição de nepotismo, não há imposição de reputação ilibada, não há obrigação de apresentar certidão negativa de antecedentes criminais.

Segundo nossa percepção, o que não está explicitamente proibido, só pode ser permitido. A razoabilidade não está entre as qualidades principais de nosso andar de cima. Eis por que o ministério do presidente – não só de Lula, mas de todos os predecessores – lembra mais um amontoado de figuras díspares, saídas não se sabe de onde, manifestamente incompetentes para assumir o encargo que lhes foi confiado.

A escolha de ministros não segue um padrão lógico, que vise a colocar o melhor especialista em cada área. Lula, como Bolsonaro, tem distribuído cargos de ministro segundo critérios que pouco têm a ver com qualificação do titular. Amizade pessoal, cumprimento de promessa de campanha, “indicação” de alguém, afiliação a este ou àquele partido – esses são os parâmetros. Como resultado, o conjunto dos ministros dá contribuição importante para que o país continue bloqueado e parado no tempo.

Lula tem ministro encrencado com a justiça, ministro incompetente, ministro apadrinhado por figurão, ministro que requisita avião da FAB para ir a leilão de cavalos. É uma pilha de figurinhas repetidas, daquelas que não têm valor. Há muita figura decorativa com título de ministro.

Como consertar a situação? A solução mais rápida e certeira só pode vir do Congresso, afinal são os parlamentares que fazem as leis. Teriam de ser especificados (e gravados na pedra) os critérios obrigatórios para a nomeação de ministro de Estado. Em país cartorial, as regras têm de ser explicitadas tim-tim por tim-tim.

Salvo pelo gongo

José Horta Manzano

O culto leitor e a esforçada leitora já tevem ter ouvido a expressão “salvo pelo gongo”. O significado de ‘ser salvo pelo gongo’ é escapar, no último momento, a um perigo ou a uma situação delicada.

Mas… de onde vem essa frase feita? Procurei saber qual é a origem. Nenhuma das fontes tem certeza absoluta da explicação que dá. Mas vamos lá.

Uma das explicações é de arrepiar os cabelos. Recorda que um dos pavores ancestrais da humanidade é ser enterrado vivo. Houve tempos em que, para remediar situação tão sufocante, famílias atavam uma corda ao pulso do defunto, sendo que a outra extremidade era amarrada a um sino (um gongo). Em caso de desconforto, bastava ao enterrado fazer um leve movimento de braço pra tocar o sino, chamar a atenção e ser liberado de tão incômoda situação. De dar medo, não?

Há outras versões. Entre elas, a desventura de um guarda palaciano de Londres que, acusado de dormir em serviço, safou-se relatando que, naquela noite, tinha ouvido o sino desregulado da igreja ao lado soar 13 vezes em vez de 12. “He was saved by the bell” – foi salvo pelo sino (ou gongo).

Todas as explicações são divertidas, mas pouco convincentes. Fico com a que me parece menos fantasiosa. Veja como a edição de 4 agosto 1929 do jornal Folha da Manhã descrevia o final de uma luta de box. (Conservei a grafia e a pontuação do original).


Eugenio e Armandinho abrem a “soirée” com um movimentado combate em quatro assaltos e cuja victoria cabe ao segundo. Juiz foi Cesar. Em seguida sobe Savino e lógo após, Bozzato. Lucta violenta. No terceiro assalto, Bozzato cahe tres vezes por sete segundos cada, tendo sido salvo pelo “gong”.


Foi só nos anos 1920 que a expressão começou a aparecer na imprensa brasileira, sempre relacionada ao pugilismo. Isso parece excluir a medonha explicação medieval. Nas primeiras décadas do século 20, escrevia-se “gong”, grafia fiel à palavra javanesa, provavelmente de origem onomatopaica.

Já a partir da década de 1940, o “gong” foi abrasileirado para “gongo” – que passou a soar também em programas radiofônicos de calouros. Quando o âncora considerava que o candidato era muito ruim, não tinha piedade: tocava o gongo e mandava o infeliz embora.

Hoje em dia, usa-se a expressão pra indicar que um indivíduo escapou por um triz a uma situação cabeluda. O Lula, por exemplo. Com a sorte que o tem acompanhado a vida inteira, está escapando de fininha de um problema espinhoso. Se não, vejamos.

Juscelino dos Santos Rezende Filho, ministro das Comunicações, requisitou jato da FAB sob falso pretexto de comparecer a encontros oficiais quando, na verdade, passeou quatro dias num leilão de cavalos de raça. Recebeu as diárias pelos dias de viagem. Na última declaração, tinha ocultado alguns milhões de reais em patrimônio. Quando deputado, utilizou a verba do orçamento secreto para pavimentar a estrada que conduz a sua fazenda no Maranhão. Enfim, um primor de comportamento. De fazer revirar-se no túmulo o Juscelino original, um dos maiores presidentes que o Brasil já teve.

Seria o escândalo do momento se não tivesse surgido outro de dimensões internacionais: a crise dos diamantes de Bolsonaro. Um escândalo suplanta outro, e o dos brilhantes venceu. A mídia tem se dedicado tanto a escarafunchar o “presente” das Arábias pela frente e pelo avesso, que acabou esquecendo os cavalos árabes do nobre ministro.

Lula foi salvo pelo gongo.

Dizem…

José Horta Manzano

Certas declarações são inacreditáveis. Não, não estou falando de nosso capitão. Há gente que, com um pouco menos de grosseria, diz asneiras iguais ou piores que as dele. Vamos ver.


“Tem gente dizendo que já começou a terceira guerra mundial.”


Quem teria pronunciado essa sentença tão vaga quanto ameaçadora? Pelo impreciso “tem gente que”, supõe-se que seja um indivíduo distante dos círculos de decisão onde se prepara o futuro da nação. Quem terá sido?

Vamos a mais um indício. O mesmo sujeito, na mesma ocasião, emendou com ar sério: “[Nos fóruns internacionais] perguntam se estamos com as democracias ou do outro lado do mundo (com a Rússia)”. E acrescentou: “Já está havendo um estremecimento e o Brasil é tão abençoado que as pessoas disputam o poder sem perceber que lá fora pode ter uma guerra em andamento”.

Bem, pelo teor do palavreado, dá pra perceber que se trata de alguém que fez estudos mas que está distante do poder. Será um palestrante, um professor universitário, um empresário. Certo?

Errado, senhôras & senhores! O nome do homem é Paulo Guedes, ministro da Economia desde o início da (indi)gestão Bolsonaro. Num ato falho, talvez para impressionar a plateia ao revelar que frequenta importantes fóruns, acabou confessando dois pecados.

Em primeiro lugar, mostrou o pouco interesse que o ministro da Economia da maior potência da América Latina tem pela inserção de seu país nos negócios globais. O homem parece ter pouca leitura. Se este blogueiro, que não participa de “importantes fóruns internacionais”, está a par do que Sr. Guedes só conhece de ouvir dizer, ele também deveria estar sabendo. Basta ler a imprensa internacional.

Em segundo lugar, ao falar durante cerimônia no Ministério das Comunicações, o ministro escolheu hora e lugar errados. Assuntos dessa gravidade  têm de ser imediatamente repassados ao mais alto escalão. A informação de que ficou sabendo por ouvir falar cabia numa reunião ministerial, com o presidente e toda a tropa. Quem sabe algum ministro deixaria, por um instante, de apenas bajular o capitão, e determinasse que o corpo técnico de seu ministério encampasse a questão.

Do presidente, é sabido que nada se pode esperar. Nos numerosos ministros, tampouco se pode ter muita confiança.

Resta-nos São Benedito, que não costuma falhar. Quase nunca.

Monsieur Pap Ndiaye

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 28 maio 2022

O semipresidencialismo imposto pela Constituição francesa criou um país bicéfalo, em que um presidente (chefe do Estado) convive com um primeiro-ministro (chefe do Executivo). Em teoria, o poder de cada um é equivalente, embora distinto. Na prática, o do presidente é muito maior do que “as quatro linhas da Constituição” lhe atribuem – parodiando expressão em voga em nossas altas esferas. Seu poder é diretamente proporcional à força de sua maioria no Parlamento.

Uma vez reeleito o presidente, a tradição manda que a totalidade dos ministros, incluindo o primeiro-ministro, deem demissão do cargo. O presidente nomeia então novo primeiro-ministro, e a maioria dos ministros são substituídos por caras novas. Foi o que aconteceu estes dias. Entre os estreantes, surgiu um nome vindo da sociedade civil, um cidadão que nunca havia ocupado cargo político. Trata-se de Monsieur Pap Ndiaye, novo titular do Ministério da Educação Nacional.

Sua nomeação provocou uma onda de choque que balançou as estruturas do país. Todos ficaram surpresos, muitos protestaram, alguns se indignaram. Percebe-se até uma não disfarçada revolta proveniente das bordas do espectro político. Faz uma semana que analistas políticos não param de discutir a nomeação. Vamos ver por que razão.

Monsieur Ndiaye é um intelectual brilhante. Seu currículo é de dar inveja a muita gente fina. Ele é diplomado em História pela Escola Normal Superior, o nec plus ultra do ensino universitário nacional. É titular de um doutorado obtido na Escola de Estudos Superiores de Ciências Sociais, onde é palestrante especialista em História dos Estados Unidos e em temas ligados às minorias. É diretor do Museu da História da Imigração. Além disso, seu currículo inclui cinco anos de estudos na Universidade da Virgínia (EUA), onde preparou sua tese de História. É ainda autor de meia dúzia de livros, entre os quais “Obama na América Negra”.

Ninguém contesta a bagagem cultural do novo ministro nem sua capacidade a assumir a elevada função. A grita que se alevanta vem de círculos ultraconservadores (mas não só deles). O problema maior é o seguinte: Monsieur Ndiaye é negro. Sua mãe é francesa e branca, enquanto seu pai é senegalês e negro. O novo ministro nasceu em família atípica. Além de resultar de miscigenação pouco habitual no país, seu pai foi o primeiro negro africano diplomado pela Escola Nacional de Engenharia da França, uma façanha. O ministro se autodefine como “um puro produto da meritocracia republicana”.

Já faz quarenta anos, desde o governo Mitterrand, que a França se habituou a conviver com ministros não-brancos. Já houve ministros da Integração e dos Direitos Humanos negros. Madame Taubira, negra originária da Guiana Francesa, foi titular do cobiçadíssimo Ministério da Justiça durante quatro anos. Nenhum desses personagens foi objeto de rejeição explícita. Por que razão a nomeação do novo ministro da Educação enfrenta uma onda de repúdio tão forte?

É que o ultradiplomado ministro possui duas características incompatíveis aos olhos de muita gente: é negro e pensa, o que é imperdoável. Se tivesse sido nomeado somente para dar um verniz de diversidade ao conjunto de ministros e acrescentar um pingo de cor à foto de grupo, ninguém reclamaria. Mas o homem pensa, e todos sabem disso. Um negro que pensa – e que vai cuidar da Educação Nacional – assusta.

Monsieur Ndiaye é conhecido e respeitado nos círculos universitários. Todos conhecem seus trabalhos e seu posicionamento em defesa dos imigrantes e das minorias. Uma vista d’olhos ao título de seus livros dá uma ideia: “Os negros americanos: da escravidão a Black Lives Matter”, “A condição negra: ensaio sobre uma minoria francesa”, “Os negros americanos: a caminho da igualdade”.

Os que o rejeitam provavelmente nunca leram suas obras. Pouco importa. Um negro dotado de ideias próprias aceitar comandar o Ministério da Educação lhes parece de uma petulância insuportável. No Brasil, essa polêmica parece um exagero, coisa de gringo. Mas há que tomar cuidado. A persistir a palavra de ordem do “nós x eles”, instaurada pelo lulopetismo e insuflada pelo bolsonarismo, em pouco tempo estaremos como a França.

Falou pouco, mas bem

José Horta Manzano

O Estadão de hoje traz o relato de uma palestra dada por um antigo morubixaba do Google. O empresário americano ocupou o maior cargo da empresa de 2001 a 2011, o que não é coisa pouca.

Não conheço o grau de rotatividade de caciques no Vale do Silício. Permanecer por dez anos em função tão elevada me parece uma façanha. O homem deve ser bom mesmo.

Declarou:


O Brasil tem tudo, menos um governo estável. Vocês têm uma única língua, um país de 200 milhões de habitantes, uma cultura fantástica e são pessoas ótimas.”


Até aí, tudo tranquilo. Quem é que não gosta de receber flores?

E o figurão continuou:


Para mim, os problemas do Brasil são muito mais sobre as regras do governo. Conheci quase todos os presidentes brasileiros e acredito que vocês precisam de um jeito de ter um presidente e instituições experientes para evitar que mais presidentes acabem presos.”


O grifo das últimas palavras é meu. Não sei em que tom o palestrante as pronunciou, mas pouco importa: ele acertou o tiro. Em poucas linhas, mostrou ser bom conhecedor de nossos problemas.” Tudo está aí, resumido.

Vantagens e problemas
Na primeira frase, estão as vantagens. O país é habitado por um mundaréu de gente cuja língua de escola é a mesma, o que facilita enormemente as comunicações e as interações. É um privilégio observado com inveja por outros países.

Não temos conflitos étnicos. Essa história de “nós x eles” (inventada pelo lulopetismo e reforçada pelo bolsonarismo) é artificial. Existem fraturas sociais, como por toda parte, mas elas não podem ser resumidas a “nós de um lado, eles do outro”. A fórmula é vaga e redutora. Nós quem? Eles quem?

Na segunda frase do palestrante estão nossos problemas.

Presidente experiente
Que precisamos dar um jeito de eleger um presidente experiente é evidente verdade. Quem haverá de constestar? A Presidência não pode continuar sendo utilizada como pátio de recreação de aprendizes, como vem ocorrendo há duas décadas.

Que precisamos de instituições mais experientes é outra verdade. Eu diria até mais: que, além de experientes, sejam eficazes. Temos anomalias intoleráveis:

  • presidente com poder de anistiar correligionários,
  • ministro do STF que dá entrevista pra divulgar sua opinião pessoal,
  • deputados que fazem a festa com dinheiro extorquido do povo por meio de orçamento secreto,
  • presidente da Câmara com poder de bloquear centenas de pedidos de impeachment,
  • presidente da República que comete crimes de responsabilidade um atrás do outro.

Tumor invisível
Essas mazelas que acabo de citar – e que, de tão acostumados que estamos, nos parecem inofensivas e naturais – são o tumor que ninguém quer ver. Um estrangeiro, que não pode ser acusado de ser petista nem bolsonarista, vê com maior clareza o que o brasileiro comum não consegue enxergar.

Nossas leis e nossos costumes políticos estão distorcidos e corrompidos. O debate político desapareceu. Não há mais argumentação. O que interessa é insultar, caluniar, demolir, desmontar, cancelar adversários (verdadeiros ou imaginários), tratados sempre como inimigos.

Se os dois principais candidatos à Presidência tivessem de enfrentar um exame tipo vestibular para avaliar a aptidão para o cargo, dificilmente passariam. Teriam de cair fora da lista de candidatos, o que seria um alívio para a República.

Um “Enem presidencial” tem de ser instituído para candidatos ao cargo maior. É o único caminho para termos um dia “um presidente que não acabe preso”.

Se alguém souber

José Horta Manzano

Segundo o Houaiss, moralidade é conjunto dos princípios morais, individuais ou coletivos, como a virtude, o bem, a honestidade.

Por ocasião da seleção de novo ministro para o TCU, auditores da Fazenda Nacional pedem que o noviço tenha “moralidade administrativa”.

Ganha uma passagem de ida simples para Cabul quem for capaz de definir, com exatidão, “moralidade administrativa”. A expressão joga no time de outras tolices, tais como: “honestidade intelectual”, “pensamento militar” e “solidariedade bolsonarista”.

Por estas alturas, aliás, o novo ministro já foi escolhido. Espero que ele tenha boa dose de “honestidade administrativa”.

A palestra do ministro

Observador, Portugal

José Horta Manzano

Segunda-feira passada, doutor Queiroga, ministro da Saúde do triste governo Bolsonaro, deu um pulo a Lisboa para dar uma palestra. Discorreu sobre “As ações do Brasil no enfrentamento da covid-19” – tema escolhido por ele mesmo. Detalhe sintomático: ao final de 45 minutos de falatório, ninguém se animou a fazer perguntas. Fico deveras admirado com a cara de pau de Sua Excelência de se prestar a essa encenação oca.

O Brasil começou o combate à epidemia de maneira desastrada, com atraso em relação a países comparáveis. Todos se lembram de quando o capitão, que tinha rejeitado insistentes propostas da Pfizer, implorou à Índia que lhe mandasse meia dúzia de vacinas, só pra aparecer no telejornal antes do arqui-inimigo Doria. Chegou a mandar um avião buscar as preciosas ampolas. Voltaram desenxabidos e sem vacina.

Desde que a pandemia pegou feio, a área crucial da Saúde foi confiada a nada menos que 4 (quatro) ministros: Mandetta, Teich, Pazuello (de triste memória) e Queiroga. Os dois últimos, que realmente pegaram o período mais crítico da covid, tiveram comportamento negacionista e trabalharam contra tudo o que a ciência determina. Pazuello foi o desastre que todos viram. Queiroga já afirmou, por exemplo, ser contrário à máscara de proteção e ao distanciamento social.

Expresso, Portugal

Portugal também foi mal no início. Logo no começo, ano e meio atrás, figurou entre os países que mais sofriam, com hospitais e cemitérios lotados. Só que os portugueses tiveram a sorte de contar com um governo que trabalhou contra a disseminação da doença e a favor da saúde da população. Foi bem diferente de nós, que tivemos a infelicidade de ter um governo trabalhando a favor do alastramento da epidemia e contra a saúde do povo.

As boas medidas tomadas pelo governo luso, acompanhadas do espírito cívico de um povo que confia em suas autoridades, fizeram a diferença. Portugal recuperou o terreno perdido e tornou-se campeão mundial de vacinação. Neste momento, quase 87% da população já cumpriu integralmente o esquema vacinal. As autoridades sanitárias já estão preparando a dose de reforço (3ª dose). Mortes em decorrência da covid tornaram-se raras. Para efeito de comparação: o Brasil já vacinou 51% de sua população.

Carregando nas costas um passivo que ultrapassa 600 mil mortos, faço de novo a pergunta: o que é que Sua Excelência foi dizer aos portugueses? Será que foi pedir desculpas? Ou, humilde, tentar aprender como é que se enfrenta uma pandemia?

Jornal de Notícias, Portugal

Fica a incômoda impressão de que a palestra era apenas o pretexto para uma agradável etapa lisboeta, com direito a uma visita ao Castelo de São Jorge, seguida por um Bacalhau à Brás regado a vinho do Dão. De arrebitar-se-lhe as orelhas, ó pá!

Doutora Dilma fez isso uma vez, lembram-se? Voltando não me lembro de onde, mandou o avião fazer uma parada clandestina em Lisboa, onde toda a comitiva apeou para devorar uma bacalhoada. Na saída do restaurante estrelado, todos tiveram direito a sair carregando uma ou duas garrafas de vinho “p’ra viagem”. Tudo no cartão corporativo.

Direita? Esquerda? Quá! Tudo igual. Na hora da malandragem, todos comem à mesma mesa. E quem paga a conta somos nós, evidentemente.

Rápido como um raio

José Horta Manzano

No dia 23 de maio de 2021, participou da macabra “motociata”(*) promovida pelo Presidente da República em algumas cidades do país para comemorar os cerca de 500 mil mortos vítimas da covid. O ato – inspirado no passeio de moto promovido pelo líder fascista Benito Mussolini em 1933 para impressionar a população – ajudou a causar aglomerações por onde passou e a disseminar a doença entre mais brasileiros. A foto de Tarcísio na garupa da moto do Presidente foi destaque no jornal britânico The Guardian, que classificou o evento como “obsceno”.

O parágrafo acima não saiu da minha fábrica. Foi acrescentado às pressas, de ontem para hoje, na biografia de doutor Tarcísio Gomes de Freitas na Wikipédia. Carioca de 1975, o biografado é ministro da Infraestrutura do governo Bolsonaro. Sua carreira política começou quando foi nomeado diretor executivo do DNIT, no governo Dilma Rousseff. Militar da reserva, aderiu ao governo Bolsonaro e agora é apresentado como possível candidato do capitão ao governo de São Paulo. Como se vê, notícia ruim corre o mundo rápido como um raio.

Neologismos
(*)Motociata é termo ultrarrecente. Até outro dia, para fazer contraponto a “carreata”, usava-se “motociclata”. São todos neologismos. A palavra carreata já está dicionarizada; as outras duas, ainda não.

Carreata me parece termo simpático e de formação legítima (carro + [e]ata). Já motociata, além de lembrar negociata, é de formação esquisita.

Para seguir o modelo de carreata (carro + [e]ata), precisava ser moteata (moto + [e]ata), palavra que também soa mal.

Assim, melhor mesmo é conservar motociclata (motociclo + ata). Soa bem e diz o que quer dizer.

Mas isso é só minha opinião. Se o povo consagrar motociata, vamos de motociata. É gaiata, mas… que remédio?

Lição de distributivismo

Sede da OMS, Genebra (Suíça)

José Horta Manzano

Vamos imaginar uma situação. É um bocado irreal, mas serve para ilustrar o que quero dizer. Digamos que o distinto leitor, ao caminhar no centro da cidade, topa com um grupo de pessoas maltrapilhas, adultos e crianças. Dois homens, que parecem liderar o grupo, estendem a mão. Faz sol, o dia está bonito, você se levantou feliz e de bem com o mundo. Por isso, se dispõe a ajudar. Vasculha a carteira e tira de lá uma nota de 5 reais (ou 10, ou 20, ou 50 – dependendo do nível de generosidade do leitor).

Você estende a nota em direção aos dois, movimenta levemente o braço de um lado para o outro e diz: “Isto é para os dois; não tenho trocado, mas fica metade pra cada um”. Neste ponto, em vez de agradecer, um dos homens retruca: “Ei, moço (ou moça, se for o caso), metade pra cada um não está certo! O companheiro aqui tem dois filhos e eu tenho três. Mereço mais.”

Quem achou que a situação é absurda acertou. Ela é. Pra início de conversa, nos dias atuais, seria imprudente parar na rua diante de um grupo de cidadãos desconhecidos e, ainda por cima, remexer na carteira (ou na bolsa). Porém, há mais importante que isso: as regras básicas da civilidade ensinam que não cabe ao suplicante dar instruções ao socorrista sobre a repartição do auxílio.

Pois esse princípio elementar acaba de ser violado por um ministro de Bolsonaro. Foi na semana passada. Durante coletiva de imprensa organizada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), doutor Queiroga, ministro da Saúde do Brasil, lançou um apelo. Falando de vacina anticovid, implorou a todos os países que tivessem doses sobrando que compartilhassem lotes com o Brasil.

Até aí, tudo bem. Pedir, todo o mundo pode. O enrosco vem agora. Petulante, o doutor aproveitou os holofotes para dar instruções aos hipotéticos doadores. Em verdadeira lição sobre distributivismo, acrescentou que “o acesso ao imunizante deve ser proporcional à gravidade da emergência sanitária”. Com isso, quis dizer que o Brasil merece receber mais que os demais, visto que nossa situação é mais embolada.

Tenho dois reparos. Primeiro, como já disse antes, não cabe ao suplicante dar instruções ao socorrista sobre a repartição do auxílio. Esse tipo de arrogância pega mal pra caramba.

Segundo, não se pode esquecer que o governo Bolsonaro – ao qual o ministro serve – não tem perdido ocasião, desde que a pandemia se instalou, para desancar a OMS, difundir notícias falsas sobre ela, acusá-la de ser partidária e de estar a serviço da China. O capitão imitou o comportamento de Donald Trump, seu ídolo, nesse desvario. Só que, agora que Trump se foi, Bolsonaro ficou no mato sem cachorro tendo de implorar à pérfida OMS umas sobras de vacina. Um vexame.

Não tivessem nossos dirigentes sido tão estúpidos e pretensiosos, o planeta inteiro estaria socorrendo o Brasil espontaneamente, como um punhado de países mais civilizados estão fazendo com a Índia. Não precisaria nem pedir, e muito menos ensinar aos socorristas como distribuir as doações.

Hasta la vista, baby!

José Horta Manzano

«A verdade liberta e a mentira escraviza. Hoje, a mentira é despudoradamente utilizada para um projeto materialista que visa a escravizar o Brasil e os brasileiros, a escravizar o próprio ser humano e roubá-lo de sua dignidade material e, principalmente, espiritual.»

A frase delirante consta da carta de demissão de Ernesto Araújo. A visão estrábica do chanceler o faz enxergar ‘verdade’ nas teorias delirantes que lhe invadem a mente, e ‘mentira’ na cabeça dos que não ruminam as mesmas fantasias.

De um ministro encarregado de cuidar da relação entre o Brasil e os quase 200 países do globo, podem-se admitir alguns defeitos – afinal, trata-se de um ser humano. Aceita-se que seja dispéptico, eupéptico ou céptico. Pode ainda ter dor nas costas, falta de cabelo ou unha encravada. Se tiver medo de cachorro, de tempestade e de assombração, ninguém vai nem perceber. Tagarelice, mau gosto vestimentar e fanhosez são defeitos que não desonram ninguém.

Mas tem um defeito que nunca, jamais, em tempo algum, ministro das Relações Exteriores pode se permitir: a ingenuidade. As relações internacionais do Brasil (assim como de qualquer outro país) não podem ser entregues a um homem ingênuo. Um irresponsável Bolsonaro conseguiu cometer o sacrilégio.

O discurso de Ernesto Araújo, pronunciado no dia em que tomou posse do cargo, já anunciava as tintas do que estava por vir. Os delírios do chanceler ingênuo, com anuência do capitão ignorante, foram a receita perfeita para desmerecer o país perante o mundo civilizado.

Consertar o estrago vai dar trabalho. Com todos os problemas que já tem, o Brasil bem que dispensava mais este.

A ministra que não foi

Santa Ludmila

José Horta Manzano

A doutora que recusou o convite de Bolsonaro (não sem antes ter se deslocado a Brasília para ser sabatinada, note-se) grafa seu prenome Ludhmila. É uma das numerosas maneiras de escrever esse nome.

Ludmila é a forma mais comum. De origem eslava, o nome é bastante difundido na Rússia e na República Tcheca. Ocorre também nos demais países eslavos e, de certa maneira, no resto do mundo.

É composto de duas raízes: liud (povo, gente) + mila (graça, bondade). Não há que buscar um ‘significado’ na junção dessas duas raízes. Como os germânicos, os eslavos simplesmente associam, ao compor os nomes próprios, duas ideias agradáveis ou positivas.

Santa Ludmila foi uma princesa da Boêmia (uma das regiões da Tchéquia atual). Morreu assassinada faz exatamente 1100 anos, em 921, por volta do dia 15 de setembro. Embora seu assassinato tenha decorrido de intrigas palacianas e não se tenha dado exatamente por motivos de fé, foi canonizada pouco depois da morte e é considerada mártir da Igreja. A hagiografia católica fixou sua festa em 16 de setembro.

Seu nome tem numerosas variantes de grafia: Ludmilla (em alemão), L’udmila (em eslovaco), Ludzimiła ou Ludomiła (em polonês). Nas línguas que usam caracteres cirílicos, como o russo e o búlgaro, escreve-se Людмила (Liudmila).

Não resisto a uma observação mordaz. Os componentes do nome Ludmila (povo + bondade) definitivamente não combinam com o estilo bolsonárico. A parceria entre a doutora e o presidente não tinha como dar certo.

Quem não gosta de samba

José Horta Manzano

No quesito harmonia, o Bando da Lua foi pioneiro entre os conjuntos vocais brasileiros. Constituído já na primeira metade dos anos 1930, foi na virada para a década seguinte que, na trilha do triunfo internacional de Carmen Miranda, subiu à notoriedade. É que, convidados a acompanhar a ‘Pequena Notável’ na nova carreira, os rapazes permaneceram anos nos EUA, onde trabalharam em espetáculos e em quase dez filmes ao lado da estrela.

Entre outros sucessos, gravaram em 1940 Samba da minha terra, composição de um então pouco conhecido Dorival Caymmi, jovem de 26 anos. Nem Caymmi nem o Bando da Lua poderiam imaginar que, 80 anos mais tarde, gravado e regravado por uma coleção de artistas, o samba ainda estaria no ouvido de todos.

Quem não gosta de samba
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé

Quem é que não conhece?

O estribilho vale como metáfora permanente. Me lembrei dele hoje de manhã. É que, ao abrir o jornal, me dou conta de que, nas altas esferas da República, o desfile de insanidades continua.

O doutor que nos governa acaba de contratar seu quarto ministro da Saúde. É o homem que, no papel, deve cuidar da saúde dos brasileiros e conduzir o país a bom porto nesta pandemia. No papel, disse eu. Vamos ver se, na prática, a teoria é a mesma. É permitido ficar com um pé atrás.

A esta altura do campeonato, em que a forte perturbação que acomete a mente do presidente é conhecida de todos, o que é que levaria essa gente fina a aceitar um posto no governo do capitão?

  • A atração do vil metal
    tipo ‘agora vou abrir conta na Suíça’?
  • A vaidade irresistível
    tipo ‘vejam até onde cheguei’?
  • Um irrefreável masoquismo
    tipo ‘adoro ser humilhado em público’?
  • A necessidade de fugir da justiça
    tipo ‘devo, não nego, mas se me cobrarem, tenho foro privilegiado’?
  • Convicção sincera de que o presidente está com a razão
    tipo ‘ele é meu ídolo, portanto está sempre certo’?
  • A ingenuidade absoluta
    tipo ‘dãããã’?

Alguma razão haverá. O mistério parece insondável. No entanto, a solução é às vezes tão evidente, que ninguém vê. A resposta, de tão simples, parece estar na cara. Não precisa buscar nos escritos de Freud. Basta reler a metáfora de Caymmi e adaptá-la ao nosso tempo. Assim.

Quem aceita convite de Bolsonaro
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
Ou doente do pé.

Quem fez a Índia mudar de ideia?

José Horta Manzano

Faz poucos dias, doutor Bolsonaro se viu diante de um dilema. Ele, que por longos meses tinha desdenhado da imunização contra a covid, viu-se obrigado a optar: ou caía a ficha, ou caía ele.

Às carreiras, mandou fretar um avião de empresa comercial, adornou com faixa e fita (e adesivo), e ameaçou despachá-lo para Bombaim para buscar um punhado de doses de vacina. Não era importante o número de pessoas a vacinar, o principal era fazer bonito e disfarçar aquela imagem de inação.

Deu tudo errado. A improvisação não funcionou. Os indianos, que bobos não são, foram logo avisando: «Nem vem, que não tem». Desativado, o avião adesivado encalhou no Recife. O adiantamento de doses não veio e a coleção de fracassos de Bolsonaro enricou com mais um carão. Desta vez, internacional.

Sem vacina e com o titico que lhe resta de prestígio abalado, o doutor achou que era hora de tomar uma atitude decidida. Quem insistiu junto aos indianos, quem conversou, como foi a negociação – ninguém sabe. Esta parte não consta das lives caseiras nem foi objeto de nota à imprensa.

O fato é que, no espaço de menos de uma semana, a justificativa dos indianos para a não-entrega de um adiantamento de vacinas começou a soar esquisita. Tinham dito que a prioridade era vacinar seus zilhões de habitantes, e que isso ia demorar meses, desculpa assaz compreensível. No entanto, de repente, o avião fretado levantou voo, deu um bate-volta a Bombaim e trouxe um lotezinho de vacinas.

Quem fez a Índia mudar tão rápido de ideia?

Na época em que o astronauta improvisado (o mesmo que hoje é ministro improvisado da Ciência e Tecnologia) deu uma voltinha no espaço, foi voz corrente que o governo do Lula tinha pago 10 milhões de dolares pelo passeio prestigioso, apresentado ao distinto público como conquista da tecnologia nacional.

Na aventura das vacinas trazidas da Índia, ainda não vi menção de pagamento, nem por cima, nem por baixo do pano. No futuro, vai acabar aparecendo.

Teria sido bom que tivessem tratado com o mesmo empenho o caso dos hospitais de Manaus antes que o oxigênio acabasse – descaso que gerou uma das maiores vergonhas que o poder público nacional jamais protagonizou.

Mas fica a pergunta inicial: quem fez a Índia mudar tão rápido de ideia?

Soberana

José Horta Manzano

Pobre Brasil, obrigado a viver sob o mando de um grupelho de incompetentes. Se a situação já é dramática ao natural, o molho de pimenta da epidemia só fez piorar. O prato ficou intragável. Hospitais transbordando, presidente apinhando praias, doença se alastrando – tudo sem solução no imediato.

Ao despreparo do presidente e de seus pajens, somam-se baciadas de má-fé. Antes da pandemia, até que dava pra ‘passar boiada’ sem que o povão se desse conta. Hoje ficou impossível. Com a intenção de criar factóides e distrair a plateia, Bolsonaro profere enormidades. Mas não tem jeito: no dia seguinte, a covid e seus desdobramentos voltam ao centro do noticiário.

Num dos raros momentos de verdade que a política nacional nos tem oferecido, um intimidado aprendiz que ostenta o título de ministro da Saúde deu a dica: “– Um manda, o outro obedece”. Com isso, revelou que seu papel é de boneco de ventríloquo, aquele que só mexe a boca pra ampliar a fala de seu mestre. O país entendeu que essa é a mecânica vigente entre o chefe e todos os ministros e assessores. Todos ecoam o pensamento do capo. Portanto, a trapalhada que hipoteca a saúde e a vida de 210 milhões de brasileiros é obra da mente solitária e maligna de Sua Excelência, o presidente da República.

Se hoje faltam vacinas, seringas, ampolas, supercongeladores e centros de vacinação, não se ponha da conta da Anvisa ou do Ministério da Saúde. O responsável tem nome e endereço: é doutor Jair Bolsonaro, o presidente por acidente.

Ele tem instilado no povo o receio de receber vacina e virar jacaré ou outro bicho. Ou bicha. Parece que essas enormidades têm feito crescer o campo dos antivax, aqueles que são contra a vacinação. Gente que recusa imunização não é novidade: esse grupo existe desde que a vacina contra a varíola apareceu, faz dois séculos.

No entanto, ao fim e ao cabo, o instinto de conservação costuma falar mais alto. A lógica é elementar. O cidadão hesitante vai pôr na balança as vantagens e desvantagens da imunização e vai chegar à conclusão de que o risco de não se vacinar e apanhar uma forma grave de covid é bem maior do que o risco de se vacinar e desenvolver uma forma grave de reação à vacina. Dos males, o menor.

À medida que o programa avança, com milhões e milhões de cidadãos imunizados, a resistência dos antivax diminui. É irônico pensar que grande parte desse povo que é «do contra» não faria mais parte deste mundo se não houvesse vacina; já teriam morrido de varíola, tuberculose ou outras doenças infecciosas que a vacinação praticamente varreu do planeta.

Nessa história de vacina, a incompetência estrutural de nossos governantes, aliada à natural preguiça dos que são cercados por mordomia, nos pôs em situação bicuda. Doutor Bolsonaro, sacerdote-mor da nação, vetou a Coronavac por ser de origem chinesa (e principalmente por ser produzida num estado governado por um desafeto). Vetou essa, mas não encomendou nenhuma outra. Imaginava que os fabricantes nos bateriam à porta implorando por uma encomenda.

Não lhe passou pela cabeça que o mundo inteiro está correndo atrás de vacina. Laboratórios estão sobrecarregados e não dão conta. São, em teoria, 7,5 bilhões de humanos a imunizar. A população brasileira não chega a 3 porcento desse total. Como costuma acontecer quando o assunto é encontrar o lugar do Brasil no mundo, a turma do Planalto errou. As encomendas tinham de ter sido passadas seis meses atrás. Agora, a fila é longa. As compras que forem feitas agora têm pouca chance de ser entregues no primeiro semestre.

Mas tem nova vacina despontando. Chama-se Soberana e está em adiantada fase de desenvolvimento. Deve estar disponível já neste primeiro semestre de 2021. Poderia ajudar a sanar os erros cometidos por nossos imbecis de plantão. Ainda não há fila, o que é boa notícia. Só tem um pequeno defeito, que periga desagradar a doutor Bolsonaro: está sendo desenvolvida em Cuba. Mas será que, sempre preocupado em primeiro lugar com a saúde do próprio povo, ele não faria uma exceção e passaria por cima da ideologia pelo menos desta vez?

Bochecha com bochecha

José Horta Manzano

Todos os brasileiros não-robotizados têm uma sensação de desconforto quando doutor Bolsonaro solta suas barbaridades. Elas são costumeiras, mas – que remédio? – a gente não se acostuma. Para nós que vivemos longe da pátria, então, o desconforto é maior; chega a ser vergonha. Quando alguém começa a falar do presidente do Brasil, a gente se mexe na cadeira e quer mais é que a conversa se desvie logo pra outro assunto. É muito chato ter de explicar o tempo como é que esse estropício chegou lá.

Quanto aos ministros, enquanto seus insultos não atingem personalidades do exterior, ninguém fala deles. Felizmente. Só entram para o noticiário quando algum, mais ousado ou com mais pressa de agradar ao chefe, agride um país estrangeiro ou um figurão internacional. Aí, de novo, a gente pode ir se preparando para uma sessão desculpa.

Estes dias foi a vez de senhor Guedes, ministro que gere os dinheiros da nação. Em videoconferência patrocinada por The Aspen Institute – uma célula de reflexão frequentada por investidores estrangeiros –, o auxiliar de Bolsonaro rodou a baiana. Ele falou em inglês. Procurei o vídeo em versão original, infelizmente só circula a versão semidublada, aquela em que a voz do locutor cobre a fala original. Portanto, tenho de botar fé na (má) tradução.

O ministro foi instado a dar explicações sobre a política ambiental do governo do qual participa. Em vez de responder, decidiu, malandro, imitar a manjada linha de defesa lulopetista: arreganhou os dentes e partiu para a agressão pra cima dos mensageiros – no caso, os jornalistas. Disse horrores. Esbravejou lembrando que os EUA já tinham matado seus índios e destruído suas florestas, portanto, que nos deixassem e paz pra matar os nossos e destruir as nossas. Classudo, não?

Cheek to cheek
by Romero Britto (1963-), artista pernambucano radicado nos EUA

Acusou os EUA de serem Estado escravagista e racista. Denunciou a política econômica daquele país por estar dançando «de rosto colado» com a China (a tradução, digna de um aplicativo de tradução automática, diz ‘bochecha com bochecha’, mas desconfio que o original fosse mesmo ‘cheek to cheek’). Num insuperável rasgo de elegância, disse que nem um brasileiro bêbado ousaria conduzir o sistema bancário como fizeram os EUA quando da crise bancária de 2008 – repare na classe! Numa passagem um tanto obscura, mencionou o Lula e disse que estaria dando «apertos de mão» a Obama porque havia corrupção e compra de pessoas no Brasil. Esse pedaço, confesso, não entendi.

Entender o que dizem auxiliares de Bolsonaro é tarefa árdua. Esse senhor Guedes não foge à regra. Petulante, rosna e atira insultos assim que um microfone lhe aparece. Se o objetivo era afastar investidores, o sucesso está garantido. Se era resgatar a confiança do empresariado internacional num governo aprumado, o tiro saiu pela culatra. Se era desviar a atenção da criminosa destruição da Amazônia, em cartaz atualmente, conseguiu o efeito contrário: todos se deram conta de que Guedes tentou fugir às respostas. Fugiu às respostas, mas seu chefe não fugirá às consequências.

Aqui na Europa, a conferência não foi divulgada. Melhor para nós, que não teremos de dar explicação. Tenho pena de nossos conterrâneos que vivem nos EUA – e são muitos. Desta vez, a canseira e a vergonha são para eles. Ânimo, patrícios!

Publicado também no site Chumbo Gordo.

A conta chega

José Horta Manzano

O povo diz que ‘aqui se faz, aqui se paga’. Em linguagem mais elevada, o axioma newtoniano diz a mesma coisa: ‘A toda ação corresponde uma reação oposta e de igual intensidade’. No frigir dos ovos, todos sabem que nada sai de graça, tudo tem seu custo. Mais cedo ou mais tarde, a conta chega.

Um dia, logo no início do mandato, com aquela incúria de adolescente mal-educado cuja mãe nunca botou fé em simancol, doutor Bolsonaro achou uma graça comentar uma tuitada que ofendia Brigitte Macron, esposa do presidente da França. Acumpliciou-se ao autor da patacoada e ainda completou com um MDR (morto de rir).

A ofensa, em si, estava mais pra deboche que pra insulto. Fazia alusão ao fato de madame já ter perdido o frescor e o encanto da juventude. Piada de sarjeta. Só que doutor Bolsonaro ainda não tinha se dado conta – não se deu até hoje – de que não era dono do botequim da esquina, mas chefe do Estado brasileiro.

Na ocasião, vi pela televisão o semblante de Monsieur Macron, colhido assim que lhe deram a notícia, em plena reunião do G7. Fez, por breve instante, aquela cara de quem não estava acreditando no que ouvia. A pedrada era suficiente para derrubar qualquer Golias.

Inteligente e bom orador, engoliu em seco, pronunciou meia dúzia de palavras e fechou: «Je pense que les Brésiliens, qui sont un grand peuple, ont un peu honte de voir ces comportements – Acho que os brasileiros, que são um grande povo, sentem vergonha de ver esse tipo de comportamento». Uma saída elegante, diferente do nível rasteiro que vigora no Planalto. No final, ficou tudo por isso mesmo.

Ficou tudo por isso mesmo? Não acredite, distinto leitor. Nada fica por isso mesmo. Aqui se faz, aqui se paga. Vindo da boca de um chefe de Estado, a ofensa passou de desacato: na França, foi interpretada como agressão. Um obtuso Bolsonaro instilou ressentimento no espírito do colega francês. Todo agredido costuma ter desejo de vingança.

Hoje o episódio anda esquecido. Para azar nosso, Monsieur Macron, que ainda tem dois anos de mandato, não se esqueceu. São coisas que marcam para a vida toda. Como resultado da brincadeira de um irresponsável Bolsonaro, o Brasil pode dizer adeus – e por muitos anos – à ratificação do acordo de comércio entre a UE e o Mercosul, aquele que levou 20 anos pra ser costurado. Enquanto Macron estiver na presidência, não será assinado porque a França vai bloquear.

A conta chega. Não adianta correr.

Tem mais. A covid-19 revelou fragilidades que ninguém imaginava. A Europa descobriu que a desindustrialização das últimas décadas privou o continente de rapidez de reação. Não há mais fábrica de máscaras, por exemplo. Tudo vem da China. Por seu lado, as estrepolias de nosso ministro Salles estão puxando os holofotes para a Amazônia brasileira e o desmatamento que a destroça. Em Paris, as autoridades encarregadas de pensar o futuro do país se deram conta da total dependência, em matéria de alimentação animal, da soja estrangeira, importada principalmente do Brasil.

Macron, com o tuíte de Bolsonaro ainda zunindo no ouvido, está embarcando em nova cruzada. Tem dito, a quem quer ouvir, que seu país – grande importador de soja – tem de diversificar, procurando novos fornecedores. Países interessados em tomar o lugar do Brasil é o que não falta. É só uma questão de tempo, que essas coisas não se fazem do dia para a noite.

Sozinho, o presidente francês não tem o poder de determinar de onde seu país vai importar soja. Mas seu prestígio tem peso, e ele está se valendo disso. Tem mexido os pauzinhos no sentido de alargar o leque de fornecedores e deixar o Brasil à míngua. Para isso, conta com o apoio entusiasta de Greenpeace e de outras centenas de ongs. Agindo assim, dá satisfação à ala ecologista de seu eleitorado, colhe pencas de votos e, de quebra, dá o troco a Seu Jair.

Pois é, a conta do jantar acaba chegando um dia, embora nem sempre seja cobrada de quem encheu a pança. No caso da imbecilidade cometida por nosso presidente, quem vai pagar a dolorosa é você, sou eu, somos todos nós. Ao fim do mandato – quer siga como previsto, quer seja encurtado – o verdadeiro ofensor estará livre e solto, com pensão vitalícia, carro, motoristas, secretários e seguranças pagos com nosso dinheiro. Nós, sem ter pedido a conta, vamos ter de enfiar a mão no bolso.

Publicado também no site Chumbo Gordo.

Bom sujeito não é?

José Horta Manzano

Acaba de ser nomeado o novo ministro da Educação, o quarto nome em ano e meio de governo Bolsonaro. Em vez de discorrer sobre sua experiência como educador, a mídia ressalta que o nomeado é prelado numa organização religiosa de tipo evangélico. O que isso tem a ver com a Instrução Pública, ninguém explicou.

Não se deve condenar sem julgar, mas o ministro já dá a partida com uma penalidade: quem foi escolhido por doutor Bolsonaro – e aceitou! – atrelou sua imagem a uma engrenagem de risco.

by Suélen Becker, desenhista carioca

Só fica no posto se se mantiver calado, inativo, apagado, sem fazer sombra ao chefe – uma mancha no currículo. Será demitido ao menor sinal de pensamento independente ou de popularidade superior à do chefe – se assim for, levará pra casa vergonha dupla: ter sido ministro de Bolsonaro e ter sido despedido.

Não há escapatória.

Caladão

José Horta Manzano

Convocado a depor, ministro Weintraub mantém-se calado.

Cá entre nós, não é banal ser convocado a dar explicações à polícia por ter feito travessuras. Quando se está ministro, então, é mais grave. Quando se é ministro da Educação, ser chamado à ordem por ter proferido insultos é vexame a figurar em futuros livros de história.

Ajuizados, os romanos já haviam previsto a situação. Veja:

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