O imperador africano

Sagração de Bokassa 1°

José Horta Manzano

O século 19 marcou o apogeu da colonização da África pelas potências europeias. No final do século, o continente estava fatiado e repartido entre poucos países colonizadores. França e Inglaterra detinham a parte do leão. Os ingleses controlavam boa parte da costa Leste, enquanto os franceses mandavam no Oeste – aquela protuberância rombuda da África, que se projeta no Oceano Atlântico.

As potências europeias saíram enfraquecidas da Segunda Guerra mundial. O nacionalismo africano encontrou terreno fértil para se afirmar. Nos anos 1950-1960, não houve como segurar o movimento: uma a uma, foram pipocando novas nações recém-independentizadas.

A República Centro-Africana alcançou a independência em 1960. Trata-se de um território sem saída para o mar, pouco populoso mas de bom tamanho (maior que a França e maior que o estado de Minas Gerais).

Nas primeiras décadas após a onda de independência, a França conservou forte influência sobre as antigas colônias. Hoje em dia, a presença francesa é menos marcante mas, naquele tempo, Paris era o fazedor de reis. Para ser bem sucedido, todo golpe de Estado tinha de ter o apoio do antigo colonizador.

Em 1965, por meio de um golpe e com apoio francês, Jean-Bédel Bokassa foi alçado à liderança da África Central. Enquanto o governo do novo ditador seguia conforme aos interesses de Paris, tudo foi bem. Em 1976, deslumbrado com o poder, Bokassa inventou que queria transformar o país em império, e que ele seria o imperador. Assim foi feito. Houve festa de coroação, com trono, manto, cetro, coroa, diamantes e pedras preciosas. Um remake da sagração de Napoleão.

Tornado imperador, Bokassa impôs uma política autoritária e excessivamente repressiva. Sua política tomou nova direção, que contrariava os interesses franceses. Três anos depois da proclamação do império, Bokassa foi destituído por um golpe de Estado fomentado e financiado pela França. Isso aconteceu em setembro de 1979.

Um mês depois, em outubro de 1979, o Canard Enchaîné, popular semanário francês de sátira política, revelou que Valéry Giscard d’Estaing, presidente da França, tinha sido presenteado pelo imperador Bokassa com 30 quilates de diamantes. Considerando que o preço médio do diamante lapidado é de 12.000 euros por quilate, isso dá um total de 360 mil euros (R$ 1,8 mi). O escândalo se alastrou mais rápido que fake news.

Giscard d’Estaing estava em plena campanha de reeleição à Presidência. A notícia não podia cair em momento pior. A oposição fez a festa e ajudou a pisar na ferida. Abafa daqui, abafa dali, a história nunca foi elucidada preto no branco. Fica ao gosto do freguês. Por minha parte, acredito que o propagador da notícia tenha sido o próprio imperador africano destituído. Foi vingança pelo golpe de Estado que o arrancou do trono, fomentado pelo governo francês. O caso entrou para a história como Les diamants de Bokassa (Os diamantes de Bokassa).

Giscard d’Estaing acabou perdendo a reeleição. O desastre de imagem causado pelos diamantes do imperador há de ter contribuído para a derrota.

Estourou semana passada, no Brasil, o caso dos diamantes de Bolsonaro. Assim que fiquei sabendo, lembrei imediatamente dos “diamants de Bokassa”. Se a história das pedras das Arábias tivesse vindo à tona antes, Bolsonaro poderia até ter perdido a eleição. Mas… que bobagem estou dizendo! Ele já foi derrotado!

A saga dos diamantes ainda vai dar pano pra manga. Ninguém dá um presente de 3 milhões de euros sem ter um bom motivo pra isso. Reis, xeiques e emires são podres de ricos, mas nem por isso saem distribuindo milhões assim, sem mais nem menos. Alguns pontos ainda estão nebulosos.

Por que razão esse mimo milionário foi dado a Bolsonaro? Qual foi a contrapartida?

Outra curiosidade é o fato de ter sido necessário designar o sub do sub para viajar à Arábia, tomar posse da encomenda e embarcar num avião de volta carregando essa fortuna numa mochila(!). Por que é que Bolsonaro não trouxe na bagagem presidencial? Por que é que o presente não veio por mala diplomática árabe, para ser entregue ao capitão em Brasília?

Quem sabe um dia teremos as respostas. Ou será que o escândalo vai continuar enevoado para todo o sempre?

La crevette de Bolsonaro

José Horta Manzano

Aproveitando o gancho da mais recente hospitalização de Bolsonaro, Aitor Alfonso, cientista político franco-espanhol, publicou artigo na revista Slate. O texto, bem-humorado e repleto de trocadilhos, lembra os grandes deste mundo que foram vítimas de acidente devido a um alimento ou a uma bebida. Vamos lembrar alguns deles.

O bretzel de Bush
Faz exatamente 20 anos, o presidente Bush (filho), deitado no sofá, assistia a um jogo de fotebol americano. Displicente, pegou um bretzel – aquele biscoito seco e salgado, de forma trançada. Logo na primeira mordida, engasgou. O sufoco foi tamanho, que seu ritmo cardíaco sofreu baixa súbita e o presidente, atordoado, caiu de cara no chão. Perigou empacotar ali mesmo, mas teve sorte: escapou com um “galo” azul abaixo do olho esquerdo.

O curioso caso de Fidel Castro
O Líder Máximo da revolução cubana detém o record do número de tentativas de assassinato. Foram 638 atentados, todos gorados. Dificilmente essa marca será superada. Dezenas, se não centenas, dessas tentativas passaram pelos alimentos ou pelas bebidas. A CIA tentou por todos os modos, mas nunca conseguiu atingir o objetivo. Castro faleceu de causas naturais aos 90 anos.

O bolo do rei Adolfo da Suécia
O rei Adolfo Frederico, da Suécia, gostava muito de comer. Na terça-feira do carnaval de 1771, como preparação para enfrentar as privações alimentares que a Igreja impunha na Quaresma, ele fez uma refeição reforçada. Engoliu caviar, sopa de repolho, arenque, lagosta com chucrute – tudo regado a champanhe. Para terminar a refeição com um gosto açucarado na boca, o rei optou por uma bomba glicêmica. Comeu uma especialidade sueca chamada semla, que é servida somente no mardi gras (terça-feira de carnaval). O doce lembra um pouco nosso sonho de padaria, só que é recheado com marzipan e creme Chantilly. Um ou dois não dão dor de barriga a ninguém. Mas o rei comeu quatorze. Não deu outra: o estômago travou, ele sentiu-se mal e morreu de um AVC provocado por indigestão aguda. Os estudantes suecos o conhecem como o rei que morreu de tanto comer doce.

O copo d’água do filho do rei Francisco da França
O rei Francisco I, da França, estava em Lyon com os filhos, já adultos. Fazia um calor sevilhano daquele mês de agosto de 1536. Apesar disso, Francisco, o filho preferido do rei, resolveu fazer uma partida de jeu de paume (= jogo de palma, antepassado do tênis). Terminado o jogo, cansado e transpirado, o jovem engoliu duma vez um copo d’água gelada. Logo começou a passar mal, sentiu-se fraco e morreu dias depois. Naquele tempo, era impossível saber se a morte era acidental ou se a água continha veneno. Na dúvida, o rei acusou o infeliz que tinha trazido o copo. O homem foi condenado à morte.

O melão de Maximiliano da Áustria
Era janeiro de 1519. O arquiduque Maximiliano I, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, estava passando uma temporada de cura de saúde nos Alpes austríacos. Um dia, um bufê foi organizado em sua honra. O imperador bateu o olho nuns melões que estavam num canto da mesa. É bom lembrar que janeiro não é tempo de melão. Hoje em dia, qualquer fruta chega por via aérea em qualquer época do ano. No século 16, não era assim. Os melões que encantaram o arquiduque tinham sido conservados desde o verão anterior. Ele se jogou em cima das cucurbitáceas. Comeu tanto, que acabou sofrendo uma crise de apoplexia. Empacotou. Dizem que o pai dele, Frederico III, teria morrido por ter abusado da mesma fruta mais de vinte anos antes.

La crevette de Bolsonaro
Crevette, em francês, é nosso camarão. No capítulo bolsonaresco, o autor se diverte com o camarão não mastigado de Bolsonaro.

Ele deve ter sabido da explicação dada pelo médico, de pé ao lado do capitão, sobre o estrago que um camarão causou no tubo digestivo do capitão.

Fiquei escandalizado com a tartufaria daquela cena. Pergunto a meus botões: será que alguém está interessado nos detalhes da masticação, da deglutição e da digestão do presidente?

Falo em tartufaria ao constatar a hipocrisia dessa mise-en-scène. O Brasil está pouco ligando para o camarão assassino. O país quer que o capitão explique direitinho essa história de usar nosso dinheiro para montar um bilionário “orçamento secreto” com o objetivo de favorecer os amigos. Pouco nos importa saber dos soluços e dos engulhos presidenciais.

Da infidelidade

José Horta Manzano

Da fidelidade, o dicionário diz que é «característica do que é fiel, do que demonstra zelo, respeito por alguém ou algo». Tem razão, mas falta ainda explicar de onde vem esse zelo, quanto dura e por que acaba. Cada caso é um caso.

Quebra de fidelidade amorosa, praticamente todos sabemos o que é. É raro encontrar quem nunca tenha sido autor, vítima ou coadjuvante. Além disso, zilhões de manuais de autoajuda autopsiam a infidelidade.

Fora do círculo amoroso, numerosos outros tipos de infidelidade correm por aí. A maior parte das pessoas depende de alguma atividade para ganhar a vida. É exatamente onde despendem mais tempo – oito horas por dia ou mais. É natural que as mostras mais frequentes de infidelidade ocorram nesse ambiente.

Na área política, os atores costumam estar particularmente excitados. Quanto mais alta a função, tanto mais exacerbado será o nível de infidelidade. Eleitos que abandonam partidos são multidão. Incontáveis são os que, uma vez empossados, ‘se esquecem’ de promessas de campanha. Viração de casaca é corriqueira. Na presidência da República, então, o fenômeno é especialmente agudo.

Não é coisa nova. Nos tempos do imperador, a infidelidade já estava na moda. A deposição de D. Pedro II, por exemplo, foi resultado de tremenda infidelidade dos galonados que haviam jurado defender o chefe de Estado e a Constituição. Presidentes infiéis para com o eleitorado, sempre houve. Ultimamente, no entanto, o problema parece agravar-se.

Logo em seguida à entrada do novo século, Lula da Silva, alavancado pela promessa de ‘acabar com a miséria’, chegou lá. Ainda há quem acredite que ele compriu o prometido. Não é minha análise. O desempenho do ex-sindicalista foi marcado por senso de oportunismo e soberbo desprezo à palavra dada. Ficou com os milhões e entregou migalhas. Seu programa de transferência de renda não passa de assistencialismo – um curral com entrada e sem saída, que transforma os assistidos em dependentes eternos. O Lula foi infiel às ideias e às esperanças dos que o puseram lá em cima. O resultado foi pífio pra tanta empáfia.

O presidente atual não fez melhor. De natureza paranoica, bombardeia todos os que possam representar ameaça – real ou imaginária. Já metralhou muita gente fina, companheiros de longa data, pessoas que o ajudaram a chegar lá. Todos os dias, o Brasil desperta inquieto e curioso pra saber se nova cabeça rolou.

Taí uma parecença entre as duas figuras mais impactantes deste começo de século: a constância na infidelidade. Se é que é permitido exprimir-se assim. Mas é permitido constatar que ambos têm feito um mal danado ao povo sofrido que tinha depositado esperança neles.

Autoproclamado

José Horta Manzano

Está ficando esquisito esse costume de chamar señor Guaidó de «presidente autoproclamado». Ou o homem é presidente ou não é. Dizer que é “autoproclamado” vai bem pra Napoleão de hospício, daqueles que se postam em frente à entrada principal do asilo, batem no peito e berram: “O presidente sou eu!”.

Ora, no caso venezuelano, o drama é mais cabeludo e menos irregular do que parece. A legitimidade de señor Guaidó vem de seu cargo de presidente da Assembleia Nacional do país, eleita pelo povo em votação aceita por todos como livre e democrática. Foi à vista do caos criado pelas intenções ditatoriais de Maduro que a Assembleia decidiu desgarrar-se e seguir rumo próprio. Deixou claro que não aceita imposições ditadas pela força bruta de um candidato a imperador.

Texto de O Globo, 1° março 2019

Engraçado mesmo foi o enroscado texto d’O Globo de hoje. Trata señor Guaidó de presidente autoproclamado pela Assembleia Nacional. Como é que é? O prefixo auto indica sempre um ato reflexivo, isto é, uma ação que o indivíduo pratica contra si mesmo. Nem que fosse composta por loucos de hospício, a Assembleia venezuelana conseguiria a proeza de “autoproclamar” alguém. Os autores, naturalmente queriam dizer que o moço foi proclamado presidente interino.

Foi o que aconteceu e é assim que se diz.

Sexta-feira 13

José Horta Manzano

Hoje é sexta-feira 13. Para uns, é dia de jogar na loteria ou fazer uma fezinha na Paratodos. Para outros, é dia de tomar cuidado ao sair de casa. Os mais exagerados preferem nem pôr os pés na rua. E se calha de cruzar com um gato preto? É azar garantido por sete anos. Te esconjuro!

Não sei se por sorte ou azar, temos hoje nova presidente da República. Não se trata da ressureição da doutora de triste memória, felizmente. Quem está hoje no trono é a discreta ministra Cármen Lúcia, do STF. Em realidade, ela é a quarta na linha sucessória da presidência. Só assume por estarem ausentes do país os três precedentes.

O primeiro sucessor é o próprio doutor Temer, que se tornou presidente permanente desde a destituição da doutora. O segundo é doutor Maia, presidente da Câmara. O terceiro é doutor Eunício Oliveira, presidente do Senado. Por razões que lhes são próprias, todos os três estão fora do país. Eis por que dona Cármen Lúcia é nossa presidente por um ou dois dias.

Ao embarcar para o exterior, doutor Temer entregou o poder a dona Cármen. Em princípio, ele vai levar a voz do Brasil à reunião de cúpula que terá lugar em Lima, no Peru. Só que a situação é grotesca. O bom senso ensina que é impossível ser e não ser ao mesmo tempo. Ora, a partir do instante em que entregou o poder a dona Cármen, doutor Temer deixou de ser presidente do Brasil. Quem vai à reunião de Lima é o cidadão Temer que, embora seja figura conhecida, não é o presidente da República. Trata-se de um usurpador. Bizarro, não?

O instituto da vice-presidência é uma excrescência, uma reminiscência que já devia ter sido abandonada há tempos. Fazia sentido no passado, quando uma viagem ao exterior do imperador ou do presidente podia levar semanas ou meses, período durante o qual o viajante ficava incomunicável. Hoje, com o avanço tecnológico, nenhuma viagem interfere no exercício da função. O presidente, ainda que esteja do outro lado do globo, dispõe das mesmas facilidades de que disporia se estivesse no gabinete.

As funções do vice-presidente estão vagamente estipuladas no Artigo 79 da Constituição. Diz lá que o vice «auxiliará o presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais». Mais vago, impossível. O vice, portanto, não tem função definida a não ser ficar, como urubu, à espreita da vacância do cargo maior. Apesar de não ter deveres nem obrigações, goza de todas as (caríssimas) benesses do cargo: um palácio só pra ele com a respectiva principesca mordomia.

Assim que baixar a poeira que atualmente estagna sobre a Praça dos Três Poderes, seria bom começar a pensar na eliminação do inútil cargo de vice-presidente. E do de vice-governador. E também vice-prefeito. É tão simples: na vacância do cargo principal, convoca-se nova eleição e estamos resolvidos.

Se não tivéssemos tido vice quando a doutora foi apeada, três meses mais tarde teríamos elegido novo presidente e muitos problemas teriam sido evitados.

República

José Horta Manzano

Na escola, aprendemos que o 15 de novembro marca aniversário da Proclamação da República. Sabemos que um certo general de nome Manuel Deodoro da Fonseca ‒ já sexagenário e, ainda por cima, adoentado ‒, foi tirado da cama de madrugadinha naquele dia. Meio atordoado, o militar acatou as sugestões que lhe foram feitas por sisudos senhores, e dirigiu-se ao palácio do imperador.

Sem se dar conta do alcance de seu ato, consumou o golpe de Estado ao fazer saber ao imperador que o regime monárquico estava extinto e substituído por uma república. Naquela altura, pouca gente conhecia o real significado da palavra. Os poucos que tinham conhecimento do assunto não imaginavam que o novo regime viesse a se revelar tão cheio de defeitos. Se soubessem, não teriam destronado o imperador. Teriam deixado as coisas como estavam.

Os republicanos esclarecidos, que não eram muitos, tinham boas intenções. Imaginavam instaurar um regime próximo da etimologia da palavra república: res + publica (= coisa pública). Acreditavam que a figura do imperador estivesse erigindo barreira entre cidadãos e dirigentes. Ao banir a figura do monarca, confiavam que o governante maior, escolhido pelo povo, passasse a ser mais sensível aos reclamos dos cidadãos.

Manchete do maior jornal do Brasil no dia seguinte ao da proclamação da República
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O futuro se encarregou de frustrar os idealistas. O regime republicano acabou diminuindo a influência do parlamento e atribuindo cada vez mais poder ao presidente. A confusão entre Estado e governo, já existente no império, foi agravada com a implantação da república. Abriu as portas para a promiscuidade entre interesses partidários e interesses da nação, disfunção que chegou ao apogeu durante os governos lulopetistas. Sem a república, não teria havido a ditadura Vargas nem a ditadura militar.

Em vez de destronar o imperador, os «republicanos» deviam ter exigido que se reformasse a Constituição. A figura do monarca seria conservada, mas seus poderes seriam fortemente diminuídos e transferidos ao congresso. Teríamos, assim, uma monarquia constitucional e parlamentar, nos moldes de países como Reino Unido, Japão, Espanha, Holanda, Suécia, Bélgica e diversos outros, tudo gente fina.

Restaurar a monarquia é tecnicamente possível, embora terrivelmente complicado. Instaurar regime parlamentar, no entanto, não é bicho de sete cabeças. Só funcionará após uma reforma que institua voto distrital e retire os poderes do presidente da República, deixando-lhe somente função representativa.

Sem isso, o país continuará, caótico, à espera do salvador da pátria. Convém esperar sentado, que periga demorar.

Viva a República?

José Horta Manzano

Qual é a diferença entre religião e seita? Religião é uma seita que deu certo. Parece cínico, mas assim é. Tome o cristianismo, por exemplo. Dois mil anos atrás, não passava de seita ‒ uma dissensão do judaísmo ‒ cujos fiéis eram obrigados a praticar às escondidas. O tempo passou, o número de fiéis cresceu e o reconhecimento público acabou por chegar. A consagração da seita veio quando o imperador romano Constantino a impôs como religião oficial de Estado. Pronto: o estatuto de religião estava adquirido.

D. Pedro II óleo de Delfim da Câmara (1834-1916)

D. Pedro II
óleo de Delfim da Câmara (1834-1916)

No calendário oficial brasileiro, comemora-se hoje o que se convencionou chamar de Proclamação da República, ou seja, a substituição do regime monárquico pelo republicano. Na escola, nos ensinam que, assim como quem não quer nada, um chefe militar chamado Manuel Deodoro da Fonseca, num dia em que se tinha levantado adoentado e de mau humor, dirigiu-se ao Paço Imperial e intimou ao imperador que descesse do trono porque a monarquia estava extinta.

Não passava de quartelada, descarado imbróglio oportunista apimentado com ignorância, desavenças pessoais, vinganças políticas e mal-entendidos. Dado que o imperador, homem pacífico e de bom senso, se recusou a acionar a tropa para defender o trono, o golpe militar deu certo. Nem os mentores imaginavam que a transição pudesse ser tão tranquila.

Embora tenha sido tramado em segredo por um punhado de conspiradores sem nenhuma participação popular, o estratagema foi bem-sucedido. Tanto o chefe de Estado quanto o governo inteiro foram derrubados à força, sem processo, sem impeachment, sem plebiscito. Como deu certo, comemora-se.

Primeiro (e único) número do Boletim da Republica Brasileira celebrando o 1° anno da luz (?)

Primeiro (e único) número do Boletim da Republica Brasileira
celebrando o 1° anno da luz (?)

No entanto, que se saiba, o novo regime não resolveu nenhum problema do país. Pelo contrário, o desaparecimento de um chefe de Estado permanente, garantido e de pouca influência no dia a dia da nação só fez aumentar a instabilidade. Eliminada a âncora, o barco balouça, aderna e ameaça soçobrar.

É certo que um descendente de Dom Pedro II ‒ engessado por uma Constituição e dotado de poder meramente representativo ‒ na chefia do Estado teria sido melhor que um Lula ou uma Dilma. Aliás, esses dois trágicos personagens da história recente deixam patente que nossa República, apesar da insistência dos livros de História, francamente não deu certo. É golpe que se prolonga há 127 anos. É religião que não chegou lá: continua no estágio de seita. Desde 1889, tentam nos vender a imagem de que nosso regime republicano é melhor que o monárquico. Continuo desconfiando que não é bem assim.

A tradição continua

Elio Gáspari (*)

by Ueslei Marcelino, jornalista e fotógrafo brasiliense

by Ueslei Marcelino, jornalista e fotógrafo brasiliense

O fotógrafo Ueslei Marcelino captou a doutora Dilma num momento Debret ao caminhar nos jardins do Palácio da Alvorada rumo a um helicóptero. Ela ia à frente de um grupo de quatro cidadãos, todos de roupa escura e em fila indiana. O primeiro a protegia com um guarda-chuva aberto. Já o quarto carregava um guarda-chuva fechado. O segundo levava pequena sacola de papel.

by Jean-Baptiste Debret (1768-1848), artista francês

by Jean-Baptiste Debret (1768-1848), artista francês

Em famosa gravura, o pintor Jean-Baptiste Debret retratou um fidalgo do Rio de Janeiro seguido por uma fila de dez pessoas. Provavelmente iam para alguma cerimônia.

No tempo do imperador, era comum ver D. Pedro II carregar sua valise.

(*) Elio Gáspari é jornalista. Seus artigos são publicados por numerosos jornais.

O rádio e a taxa – corrigenda

José Horta Manzano

Não é de hoje que a inventividade brasileira é sufocada no nascedouro por falta de incentivo. Desde que o golpe encabeçado pelo marechal Deodoro destronou o imperador e desterrou toda a família, a criatividade dos brasileiros passou a ter mais dificuldade para eclodir.

Padre Landell de Moura

Padre Landell de Moura

Para desenvolver seu talento, nossos conterrâneos mais dotados – cientistas, atletas, artistas – terão muito mais chance se se transferirem ao exterior. Em solo pátrio, a probabilidade de desabrochar é escassa.

A não ser, evidentemente, que o interessado se faça acolher sob asas oficiais, como fez um certo senhor cujas empresas terminavam com um X. Em casos assim, o sucesso pode ser fulgurante. A derrocada também. Mas essa é já é uma outra história, que fica para uma outra vez.

Faz alguns dias, postei um artigo sobre as taxas que se costumam cobrar dos cidadãos na Europa pelo direito de receber emissões radiofônicas e televisivas. Eu sabia que as primeiras emissões regulares e organizadas de rádio tinham ocorrido nos anos 1920. Para complementar meu parco conhecimento do assunto, procurei me informar.

Num desses sites aos quais a gente recorre quando nos escapa um nome ou um detalhe, encontrei não só a data exata da primeira emissão de rádio, mas também o lugar onde foi gerada: 28 de março de 1914, no Palácio de Laeken, Bélgica. Reproduzi a informação.

Uma atenta e fiel leitora acaba de me puxar a orelha. Zeza Loureiro, coordenadora do prestigioso Portal dos Jornalistas, conhece o assunto bem melhor que eu. Contou-me que, bem antes da experiência belga, já havia ocorrido a primeira transmissão sem fio da voz humana. Adivinhem onde? Exatamente: foi no Brasil.

Landell 2Faz tempo que o jornalista Eduardo Ribeiro, figura maior da Editora Jornalistas & Cia, e o historiador e jornalista Hamilton Almeida batalham para divulgar fato interessantíssimo, do qual, tenho certeza, muitos nunca ouviram falar. Incansável, Hamilton já escreveu quatro livros sobre o assunto.

Pois saibam meus distintos leitores que, quinze anos antes da experiência belga, o padre porto-alegrense Roberto Landell de Moura já havia levado a cabo, em São Paulo, a primeira transmissão de voz. Foi exatamente dia 16 de julho de 1899. E olhe que a experiência não teve lugar no escurinho de um laboratório, não, senhor: foi em público, na presença de empresários, professores, cientistas, jornalistas. Foi um padre arteiro, sim, senhor!

Pronto, está feito o reparo. A cada um o que é de cada um.

Radio 7Em matéria de prestígio a talentos nacionais, a gente fica com a desagradável impressão de que, desde que o golpe militar de 1889 impôs o regime republicano, nunca mais apareceu mandatário à altura do imperador escorraçado.

Dou-lhes um só exemplo: não fosse o amparo visionário que Dom Pedro II ofereceu ao jovem Antônio Carlos Gomes, o músico campineiro teria passado a vida tocando no coreto provincial. Não seria reconhecido hoje como o maior compositor lírico das Américas. De 125 anos pra cá, muita coisa mudou no Brasil. Umas melhoraram, enquanto outras…

Vamos deixar pra lá. Dias mais razoáveis hão de vir. Espero.

A cavala da Ilha Fiscal

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Sigismeno apareceu bastante excitado hoje de manhã, com aquela cara de um Arquimedes que houvesse feito uma grande descoberta.

«Estive pensando no baile da Ilha Fiscal.» ― foi logo dizendo.

«E por que, caro amigo?» ― tentei mostrar paciência.

Pausadamente, ele foi desenrolando seu pensamento: «Como aprendemos no curso de História do Brasil, a última festa dada pelo imperador Pedro II foi na Ilha Fiscal, um baile em homenagem a militares chilenos de passagem pelo Rio. O banquete teve lugar menos de uma semana antes do 15 de novembro. Daí, veio aquele golpe militar ― que chamamos pudicamente de ‘proclamação‘. O imperador foi despachado para o desterro e a República se instalou.»

«Até aí, estou acompanhando, Sigismeno. Mas por que você está tão excitado com esse baile do tempo do Onça?»

«Mas você não percebe? Não vê que estamos vivendo tempos perigosamente semelhantes?»

«Tempos semelhantes? Acho bom você explicar melhor. Não vejo o que o baile tem que ver com a atualidade» ― cortei seco.

«Pois então, raciocine comigo. Faltando uma semana para o fim do regime, o imperador consentiu dar uma festa de arromba. Com a participação de seu entourage, da corte em peso. Nem de longe desconfiavam que nuvens negras anunciavam a tempestade. Não foi assim?» ― insistiu Sigismeno.

«Parece que sim. Pelo menos, é o que a História guardou.»

«Pois então» ― prosseguiu ele. «As ruas andam fervendo, os que sustentam o país com seus impostos estão descontentes. Andei lendo que, na Copa, o Brasil vai gastar quatro vezes mais do que gastou a África do Sul. Por um sim, por um não, torcedores se trucidam, invadem sede de clube, quebram tudo.»

«Mas isso não é de hoje. Ainda que a retórica oficial continue ensinando que brasileiro é povo pacífico, todos sabem que, no fundo, sempre fomos gente violenta. Não é novidade» ― retruquei eu, sem entender aonde Sigismeno queria chegar.

«É, mas a coisa anda mais feia do que de costume. Antes, cada um resmungava no seu canto. Hoje, as tais redes sociais amplificam o clamor. Os descontentes não se sentem mais como velhos rabugentos e solitários. Isso ainda vai acabar mal» ― sentenciou ele.

«Ainda não entendi onde é que a Ilha Fiscal entra nessa história.»

«Puxa, mas tenho de explicar tudo! Não lhe escapou a notícia de que nossa presidente tentou mandar a imprensa para escanteio enquanto levava a corte a Lisboa para comer cavala escondido, pois não?»

Cavala com aspargos Crédito: Paracozinhar.blogspot

Cavala com aspargos
Crédito: Paracozinhar.blogspot

«Cavala? De onde você tirou essa ideia fora de esquadro?» ― balbuciei abismado.

«Pois andei lendo que dona Dilma não foi comer bacalhau, que é prato muito chué. Foi comer cavala, aquele peixe que os ingleses chamam mackerel. Na França, é maquereau. A ciência conhece como acanthocybium solandri

E continuou: «Pois agora, imagine você: o país fervendo, as contas estourando, a economia à deriva, o povo ao deus-dará, e a corte se refugiando de sorrelfo para degustar cavala em restaurante estrelado.»

E foi adiante: «Se fosse inócuo e ético, não teriam feito isso escondido. Sabiam que nós, que sustentamos a turma, não havíamos de gostar.»

«Mas, Sigismeno, eles disseram que cada um pagou sua parte.»

«É» ― atalhou ele ― «mas esqueceram de acrescentar que altos funcionários, quando viajam, têm uma ajuda de custo de uns 400 dólares por dia. Podem até ter pago com cartão pessoal, mas essa despesa, ao fim e ao cabo, vai ser paga por nós.»Interligne 18b

Devo admitir que Sigismeno tem lá sua dose de razão. Pagar pela cavala de privilegiados é dose pra cavalo. Os medalhões devem ter faltado à escola no dia em que foi dada a lição sobre o baile da Ilha Fiscal.

A Escola Normal

José Horta Manzano

Lá pelo último quartel do século XIX, a elite pensante do Brasil sentia-se pouco à vontade. As Américas, tanto a inglesa quanto a hispânica, haviam dado origem a novos países. Inspiradas no exemplo norte-americano, todas as antigas colônias espanholas tinham adotado ― pelo menos oficialmente ― o regime republicano.

O Brasil, na visão positivista daquele fim de século, fazia figura de patinho feio. Enquanto os vizinhos elegiam seu presidente, nós aqui mantínhamos uma monarquia hereditária baseada na lei do sangue, como na Idade Média. Pior que isso: o País era o último pedaço do continente onde ainda subsistia a escravidão. Por sinal, também ela baseada na lei do sangue.

Só um parêntese. Desde que, pela primeira vez, um agrupamento humano entrou em conflito com outra tribo, pareceu natural que os vencidos fossem escravizados pelos vencedores. Fazia parte dos costumes. Foi assim durante milênios. Já nossa escravatura era de outra natureza, uma bizarrice que fugia à lei da guerra. Era um servilismo de casta. A jus sanguinis ― a lei do sangue ― traçava a rota de cada indivíduo. Filho de escravo era escravo e filho de homem livre era homem livre. Fechemos o parêntese.

Quando a situação de uma comunidade não vai lá muito bem, é costume procurar um culpado. A Alemanha nazista designou o povo judeu como bode expiatório e apontou-o como responsável por todos os males do país. Outras civilizações, em outras épocas, apontaram culpados para suas mazelas.

Para muitos dos letrados daquela época, a razão do relativo atraso do País pareceu evidente: o que travava o progresso era o regime, simbolizado pelo Imperador. A abolição da escravidão, em 1888, não acalmou os ânimos. Pelo contrário. Os grandes proprietários agrícolas, subitamente privados da habitual mão de obra gratuita, aliaram-se aos republicanos.

Daí para a frente, sabemos todos o que aconteceu. Em novembro de 1889, o Imperador foi apeado do poder e despachado para a Europa com toda a família.

Escola Normal de São Paulo Inauguração - 1894

Escola Normal de São Paulo
Inauguração – 1894

A partir daí, um punhado de bem-intencionados decidiu que era chegada a hora de iniciar o caminho do progresso. Havia que regenerar o País. Precisava despertá-lo da letargia em que se tinha acomodado durante a era imperial. E por onde começar? Mas… por uma Instrução Pública de qualidade, cáspite!

Em São Paulo, homens de visão se empenharam em promover um ensino público de bom nível. Para ensinar alguém, é preciso aprender primeiro. E era justamente o que fazia falta. Numa São Paulo à qual aportavam diariamente levas de novos habitantes, era urgente formar professores.

Um prédio novinho em folha foi encomendado a Ramos de Azevedo, aquele mesmo arquiteto de cujas pranchetas sairia, alguns anos mais tarde, o Theatro Municipal da cidade.

O imenso edifício dedicado ao ensino público foi inaugurado em 1894. Para lá foi transferida a Escola Normal, que antes funcionava em local exíguo e inadequado.

Aquela que se tornaria, meio século mais tarde, a maior cidade do País, sentiu-se orgulhosa de seu pioneirismo. Bom número de jovens podiam agora ser acolhidas para serem lá preparadas para transmitir seu saber às novas gerações.

A foto que acompanha este artigo, recebida por cortesia de Wilma Legris, foi tirada dia 2 de agosto de 1894, quase 120 anos atrás. Mostra os integrantes do novo estabelecimento de ensino, situado na atual praça da República. O prédio ainda está lá, mas já não acolhe bandos de alunos como fez durante 70 anos: é hoje sede da Secretaria da Educação.

Cliquem sobre a foto para ampliá-la. Reparem na indumentária dos figurantes. Se a chapa fosse em cores, não faria muita diferença: fora uma que outra exceção, os trajes são quase unanimemente pretos ou brancos. A hierarquia é acintosamente marcada. Os personagens mais importantes, todos do sexo masculino, sentam-se à frente. Conforme as filas se vão sucedendo, aparecem figuras menos eminentes. Presumivelmente, os professores e, em seguida, as alunas. Por último, lá no fundão, há uma fileira de homens. Serão serventes, bedéis, auxiliares.

Todas as mulheres ostentam o mesmo penteado, em perfeita harmonia com os usos da época. Os homens trajam o que, com bastante propriedade, chamávamos terno, ou seja, um conjunto de três peças: paletó, colete e calça. O nome ainda perdura, mas o colete anda meio fora de moda.

Fico aqui a imaginar a incongruência que era esse povo se vestir como em Londres ou Paris para enfrentar nossas ruas poeirentas e barrentas, subindo e descendo de bondes puxados a burro, sob um calor tropical.

Enfim, bem ou mal vestidos, republicanos ou monárquicos, cada um deles deu sua contribuição. Não se pode dizer que o grosso da população do Brasil deste século XXI seja um modelo de erudição. Mas, sem o suor ― no sentido literal ― desses pioneiros, o nível geral de instrução seria ainda mais baixo.

Fica aqui expressa nossa reverência.