Traição

Manchete da Folha, 3 junho 2021

José Horta Manzano

É inacreditável observar trem de subúrbio: por mais cheio que esteja, sempre cabe mais um. É também impressionante observar a corda dos caprichos de Bolsonaro: por mais que ele estique, ela não se rompe e continua, galharda, à espera de mais um puxão. Mas nada é eterno, nem a corda, nem muito menos Bolsonaro. Mais dia, menos dia, um deles vai ter de ceder: ou o presidente pula fora, ou a corda arrebenta. O que acaba dando no mesmo.

Pelas minhas contas (a não ser que nova barbaridade tenha surgido hoje de manhã), o puxão mais recente que ele deu na corda foi ontem. Ao representar o tradicional papel de desaforado, que os devotos tanto apreciam, ele se saiu com a pérola que está aí na manchete da Folha.

Depois de 30 anos pendurado nas tetas da República, o capitão está de tal modo distante da vida real que já não se dá conta de que o Brasil está habitado por um povo – por sinal, aquele que o elegeu. E que esse povo é constituído, em imensa maioria, de famílias pobres, para as quais um real é um real.

Bolsonaro passou três décadas auferindo polpudos vencimentos de parlamentar (sem falar dos extras, ‘rachados’ ou não). Promovido a presidente, faz dois anos e meio que não precisa mais nem fazer conta. À sua passagem, as portas se abrem, os serviçais se inclinam, automóveis e aviões estão sempre à espera para conduzi-lo aonde desejar. Já não tem contas a pagar – luz, água, combustível, restaurante, feira, supermercado, empregados, secretárias, seguranças. Tornou-se o habitante mais poderoso e mais privilegiado do território.

Se, para um indivíduo com a cabeça medianamente no lugar, esse estilo de vida pode dar vertigem, imagine para um mequetrefe como o capitão. É perdição na certa. O infeliz, cuja formação mental e moral já não era lá essas coisas, perdeu todo contacto com a vida real.

Daí a impossibilidade de reconectar-se com o povo a quem jurou servir. Ele se refere a “essa gente” como se se referisse a habitantes do planeta Marte. Não consegue ligar uma coisa à outra, ou seja, aqueles que imploram por uns caraminguás para poderem se alimentar são os mesmos que lhe deram o voto em 2018.

Se trair cônjuge já é feio, trair os milhões de pessoas que se jurou servir é o quê?

A solução

José Horta Manzano

Tenho cá minha teoria para o azedume que reina nas altas esferas da República. Gabinete do ódio, troca de farpas, Executivo que convoca multidões a manifestar-se contra os demais Poderes, STF que abre inquérito contra o Executivo, o Legislativo que instaura CPIs contra o Executivo… ufa! Aquilo está parecendo uma sacola de caranguejos ou um ninho de víboras – é ferroada, é veneno.

Alguma coisa está perturbando a cabeça daquele pessoal. Saem daqui bonzinhos e, quando chegam lá, viram pelo avesso. Uns dirão que é a vertigem do poder, outros assegurarão que é a ganância diante da visão do pote de melado. Minha teoria é outra.

Olhem bem essa foto, onde se espreme meia República. É impossível não sentir desconforto à visão desses rostos torturados, azedos, descompostos. Pra começar, é gente demais em espaço pequeno – nem cabem todos na foto. Mas o problema maior, aquele que oprime essa gente fina é… o pé direito do salão.

Reparem como salas, salões e gabinetes de Brasília têm pé direito baixo. Compare-se com a amplidão, a majestade e os ouros do Kremlin (Moscou), da Moncloa (Madrid), do Eliseu (Paris) ou do Quirinale (Roma). Não sei se o projeto original do arquiteto era esse, mas o resultado atual é oprimente.

Que se alcem os tetos da Praça dos Três Poderes! Presidente, ministros, parlamentares e magistrados precisam respirar. Que se abram janelas. Ar fresco expulsa miasmas e clareia as ideias. Os brasileiros, aflitos, esperam por uma solução. Custa pouco, e os resultados serão espetaculares. Pode crer.

Que país é este?

José Horta Manzano

Que país é este em que um semianalfabeto é convidado a assumir a chefia do Ministério da Educação e… aceita sem se sentir embaraçado?

Que país é este em que um funcionário graduado da República insulta publicamente nossa maior atriz, figura emblemática do teatro nacional?

Que país é este em que o presidente da República ofende publicamente o presidente de países hermanos e, não satisfeito, insulta despudoradamente a esposa do presidente de grande nação europeia – tradicional aliada do Brasil?

Que país é este em que o presunçoso indivíduo que comanda a Instrução Pública se permite ofender publicamente o Marechal Deodoro, ícone que habita nosso panteão, ao lado de outras glórias da nação?

Essa turma arrogante é composta por aprendizes de feiticeiro. Incultos, estão-se deixando inebriar pelo (que imaginam ser o) poder, descurados de que, se a coisa vai, a coisa volta. A maré sobe e a maré desce. A terra gira, e nós vamos junto.

A soberba é pecado que não perdoa. Esses ignorantes serão ceifados pelos bumerangues que eles mesmos soltaram. O fim do homem público indigno não é necessariamente a cadeia: pode ser o ostracismo, que dói pro resto da vida. Da cadeia, se sai rápido. Já o ostracismo, quando vem, é pra ficar.

Fim do Mercosul?

José Horta Manzano

Uma maldição pesa sobre chefes de Estado quando fazem visita ao estrangeiro. Não acontece só com o Brasil, mas com o planeta inteiro. Faz alguns anos, o papa fez declarações de arrepiar os cabelos quando de um voo transatlântico. Jacques Chirac e François Hollande, que foram presidentes da França, fizeram o mesmo: abriram-se em confidências que nunca deveriam ter saído dos salões aveludados do governo francês. Até nosso Lula da Silva andou confessando o que não devia, faz muitos anos, quando de viagem à Inglaterra.

Doutor Bolsonaro não escapa à maldição. No caso dele, o problema é duplo. De ordinário, seu quotidiano já costuma ser recheado das barbaridades que profere – e que convivem com as cobras e os lagartos criados no gabinete do ódio, vizinho ao seu. Quando viaja, então, nosso presidente se torna perigo maior. Ao ver-se rodeado de jornalistas nacionais e estrangeiros, empolga-se, solta o verbo e profere desatinos pesados.

O mais recente exemplo de disparate acaba de ser proferido no Japão. Doutor Bolsonaro confessou ter mandado avaliar os comos, os porquês e as consequências de uma saída do Brasil do Mercosul. Consistente, valeu-se da ocasião para criticar de novo o mais que provável próximo governo argentino.

A queda do Brasil derrubaria todos os vizinhos

Não passaria pela cabeça de nenhum empresário, ainda que fosse medíocre, ofender seu terceiro maior cliente. Muito menos assim, gratuitamente, sem ter sido provocado. Só a cabeça de um incapaz pode parir esse tipo de coisa. Pois é justamente o que Jair Messias faz, em nosso nome, contra o terceiro parceiro comercial do Brasil. O drama é que esse incapaz ainda vai segurar, por algum tempo, as rédeas de nosso destino coletivo.

«Sair do Mercosul», como planeja Sua Excelência, significa acabar com o bloco, enterrá-lo e rezar missa de réquiem. O Brasil representa mais de 70% do peso demográfico e econômico do Mercosul. Os parcos 30% que restariam não dão camisa a ninguém. Sem o Brasil, o mercado comum não se sustenta.

Espero que o sistema de pesos e contrapesos da República não permita que esse presidente sem eira nem beira destrua um edifício que vem sendo construído, com muita dificuldade, há quase 30 anos. Seria o tipo de coisa em que não haveria vencedor: Brasil e demais sócios sairiam perdendo. Decisão dessa magnitude não pode ser tomada por um só, ainda que fosse indivíduo extremamente capaz. E nosso presidente, infelizmente, não é.

O Senado e a bandeira

José Horta Manzano

Você sabia?

O Decreto n° 4 saiu dia 19 de novembro de 1889. Era assinado por personalidades ligadas ao regime que acabava de ser imposto ao povo brasileiro pelo golpe militar de quatro dias antes: a República. Entre outras personalidades, Deodoro da Fonseca, Quintino Bocayuva e Ruy Barbosa assinavam o documento.

O decreto determinava que se adotasse a bandeira republicana – mera adaptação da tradicional bandeira imperial – e incluía uma estampa à guisa de regulamentação da forma do pavilhão. Vigorou sem grandes modificações durante mais de 80 anos.

Em 1° de setembro de 1971, foi sancionada a Lei n° 5700, em vigor até hoje. Bem mais abrangente que as anteriores, ela define os símbolos nacionais e regulamenta, nos conformes e nos pormenores, o aspecto, a forma e o uso de cada um deles. Entre os símbolos, naturalmente, está a bandeira verde-amarela.

Os principais elementos já instituídos pelo decreto de 1889 são mantidos e explicitados. Diferentemente da impressão que se possa ter, as estrelinhas brancas não são jogadas a esmo para enfeitar o azul da abóbada celeste. Cada uma tem seu lugar preciso.

As estrelas, uma para cada unidade federativa, são mostradas na posição que ocupavam no céu do Rio de Janeiro às 8h30 da manhã de 15 de novembro de 1889 – o momento do golpe militar que derrubaria o regime e despacharia o imperador para o exílio.

No entanto, há controvérsias no campo astronômico. Alegam os peritos que há erros grosseiros na disposição dos astros. Minhas qualificações nessa matéria não me permitem emitir apreciação. É bem possível que, para obter um resultado harmonioso, os desenhistas que se dedicaram a posicionar estrelas se tenham deixado levar por uma certa dose de, digamos assim, liberdade artística. Ou licença poética, se preferirem.

O fato é que tudo é milimetrado na bandeira. Desde a proporção entre largura e comprimento até os 5 diferentes tamanhos de estrelas, cada uma conforme sua grandeza aparente. A altura das letras do lema Ordem e Progresso é regulamentada. O tamanho e a posição do losango, naturalmente, também são objeto de prescrição rigorosa.

Bandeira do Brasil - proporções Crédito: Wikipedia

Bandeira do Brasil – prescrições e proporções
Crédito: Wikipedia

A lei de 1971 é rica em detalhes. Ninguém pode alegar desconhecimento. Ninguém? Como se sabe, em nosso País há os que são obrigados a seguir a lei e os que escapam a esse constrangimento. Curiosamente, os que fazem as leis são, com frequência, os primeiros a ignorá-las ou a burlá-las.

Senado Federal do Brasil Brasília

Tribuna do Senado Federal do Brasil
Brasília

A tribuna principal do Senado Federal, empoleirada sobre um estrado, impõe respeito. Em seu revestimento de cor azul-bandeira, ângulos retos são evitados, como numa tentativa de aplainar a aspereza de certas decisões que ali são tomadas. Freud deve poder explicar.

No centro do frontispício, num belíssimo material aveludado, está desenhada, ton sur ton, a bandeira nacional. A ideia é excelente, mas a execução é desastrosa: contraria a lei, justamente no coração da Casa onde instrumentos legais são fabricados. Um contrassenso.

Observe o esquema oficial que rege nossa bandeira e compare com a foto da tribuna do Senado. Não precisa ser técnico, nem astrônomo, nem desenhista para se dar conta imediatamente de que, no Senado, o losango está descentrado – o espaço que o separa da borda direita é bem maior que o do lado esquerdo. A faixa branca no centro do globo está colocada de forma absolutamente fantasiosa. A foto não permite examinar a posição das estrelas, nem mesmo saber se estão representadas. Às vezes é melhor nem saber. À vista do desleixo maior, eu ficaria muito surpreso que as estrelinhas estivessem salpicadas conforme o figurino legal.

Tenho dificuldade em admitir que num Senado – onde senhores engravatados se tratam por Vossa Excelência, declamam discursos inflamados e costuram leis para regular a República – ninguém se tenha dado conta até hoje de que o símbolo maior afronta a lei.

O distinto leitor pode argumentar que, naquela Casa, há coisas piores. É verdade. Em matéria de afrontas, isso é café-pequeno. Mas um «malfeito» não justifica outro. Pega muito mal aquela bandeira torta num recinto que já foi excelso e que um dia pode até voltar a ser. Ou não.

Publicado originalmente em julho 2013.

República

José Horta Manzano

Na escola, aprendemos que o 15 de novembro marca aniversário da Proclamação da República. Sabemos que um certo general de nome Manuel Deodoro da Fonseca ‒ já sexagenário e, ainda por cima, adoentado ‒, foi tirado da cama de madrugadinha naquele dia. Meio atordoado, o militar acatou as sugestões que lhe foram feitas por sisudos senhores, e dirigiu-se ao palácio do imperador.

Sem se dar conta do alcance de seu ato, consumou o golpe de Estado ao fazer saber ao imperador que o regime monárquico estava extinto e substituído por uma república. Naquela altura, pouca gente conhecia o real significado da palavra. Os poucos que tinham conhecimento do assunto não imaginavam que o novo regime viesse a se revelar tão cheio de defeitos. Se soubessem, não teriam destronado o imperador. Teriam deixado as coisas como estavam.

Os republicanos esclarecidos, que não eram muitos, tinham boas intenções. Imaginavam instaurar um regime próximo da etimologia da palavra república: res + publica (= coisa pública). Acreditavam que a figura do imperador estivesse erigindo barreira entre cidadãos e dirigentes. Ao banir a figura do monarca, confiavam que o governante maior, escolhido pelo povo, passasse a ser mais sensível aos reclamos dos cidadãos.

Manchete do maior jornal do Brasil no dia seguinte ao da proclamação da República
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O futuro se encarregou de frustrar os idealistas. O regime republicano acabou diminuindo a influência do parlamento e atribuindo cada vez mais poder ao presidente. A confusão entre Estado e governo, já existente no império, foi agravada com a implantação da república. Abriu as portas para a promiscuidade entre interesses partidários e interesses da nação, disfunção que chegou ao apogeu durante os governos lulopetistas. Sem a república, não teria havido a ditadura Vargas nem a ditadura militar.

Em vez de destronar o imperador, os «republicanos» deviam ter exigido que se reformasse a Constituição. A figura do monarca seria conservada, mas seus poderes seriam fortemente diminuídos e transferidos ao congresso. Teríamos, assim, uma monarquia constitucional e parlamentar, nos moldes de países como Reino Unido, Japão, Espanha, Holanda, Suécia, Bélgica e diversos outros, tudo gente fina.

Restaurar a monarquia é tecnicamente possível, embora terrivelmente complicado. Instaurar regime parlamentar, no entanto, não é bicho de sete cabeças. Só funcionará após uma reforma que institua voto distrital e retire os poderes do presidente da República, deixando-lhe somente função representativa.

Sem isso, o país continuará, caótico, à espera do salvador da pátria. Convém esperar sentado, que periga demorar.

Deodoro, o arrependido

Marco Antonio Villa (*)

Sou um soldado, um velho soldado. Aprendi em casa com os meus pais que os interesses do Brasil estão sempre em primeiro lugar. Perdi três irmãos na guerra do Paraguai: Hipólito e Afonso, que morreram na batalha de Curupaiti, e Eduardo, que tombou em Itororó ‒ todos no mesmo ano.

Minha querida mãe, dona Rosa, ao receber a notícia da morte dos filhos, só quis saber se tinham morrido com honra. Fiquei cinco anos na guerra. E voltei com mais dois irmãos que lá lutaram. Gosto de brincar dizendo que devo a minha carreira ao [ditador paraguaio] Solano López.

Quando vejo o que acontece no Brasil, dá um desânimo… Uma vez disse que gostaria de pegar os ministros e levá-los à praça pública para que o povo os julgasse. E em seguida iria ao Parlamento e exporia as razões do meu gesto. Vejam que não há nada mais antipolítico do que isso. Mas sou assim.

Sou militar e não compartilho a forma como os políticos tratam o governo. Não gosto da forma como os partidos agem. Já fui presidente e não entendo nada de confabulações ou acordos políticos. Na verdade, não é que não entendo, é que os acordos geralmente envolvem transações que meu espírito de militar repugna.

marechal-deodoro-2Vocês sabem que até cheguei a fechar o Congresso Nacional ‒ a bem da verdade, não fui o único, e muita gente pensa nisso até hoje. Queriam votar uma lei sobre crimes de responsabilidade para me atingir. Logo eu, que moro na mesma casa há anos, não tenho filhos e nunca fui acusado de nenhum delito no trato da coisa pública.

Lembro até de um quadro que me foi ofertado. Dias depois vieram cobrar um favor e recordaram do presente. Imediatamente paguei o quadro, porém fiz questão que o finório assinasse um recibo.

Mas eu estava falando do Congresso. Foi reaberto duas semanas depois pelo Floriano [Peixoto]. Antes, renunciei à presidência. Deixei claras minhas razões: «Assino a carta de alforria do derradeiro escravo do Brasil».

Certamente, alguém deve estar perguntando por que quero novamente ser presidente. Bem, peço desculpas por ficar lembrando a toda hora o que fiz, mas há muito tempo disse que República, no Brasil, é desgraça completa.

(*) Marco Antônio Villa é historiador e comentarista político. O texto reproduzido é parte de artigo publicado há dez anos. A íntegra está aqui.

Viva a República?

José Horta Manzano

Qual é a diferença entre religião e seita? Religião é uma seita que deu certo. Parece cínico, mas assim é. Tome o cristianismo, por exemplo. Dois mil anos atrás, não passava de seita ‒ uma dissensão do judaísmo ‒ cujos fiéis eram obrigados a praticar às escondidas. O tempo passou, o número de fiéis cresceu e o reconhecimento público acabou por chegar. A consagração da seita veio quando o imperador romano Constantino a impôs como religião oficial de Estado. Pronto: o estatuto de religião estava adquirido.

D. Pedro II óleo de Delfim da Câmara (1834-1916)

D. Pedro II
óleo de Delfim da Câmara (1834-1916)

No calendário oficial brasileiro, comemora-se hoje o que se convencionou chamar de Proclamação da República, ou seja, a substituição do regime monárquico pelo republicano. Na escola, nos ensinam que, assim como quem não quer nada, um chefe militar chamado Manuel Deodoro da Fonseca, num dia em que se tinha levantado adoentado e de mau humor, dirigiu-se ao Paço Imperial e intimou ao imperador que descesse do trono porque a monarquia estava extinta.

Não passava de quartelada, descarado imbróglio oportunista apimentado com ignorância, desavenças pessoais, vinganças políticas e mal-entendidos. Dado que o imperador, homem pacífico e de bom senso, se recusou a acionar a tropa para defender o trono, o golpe militar deu certo. Nem os mentores imaginavam que a transição pudesse ser tão tranquila.

Embora tenha sido tramado em segredo por um punhado de conspiradores sem nenhuma participação popular, o estratagema foi bem-sucedido. Tanto o chefe de Estado quanto o governo inteiro foram derrubados à força, sem processo, sem impeachment, sem plebiscito. Como deu certo, comemora-se.

Primeiro (e único) número do Boletim da Republica Brasileira celebrando o 1° anno da luz (?)

Primeiro (e único) número do Boletim da Republica Brasileira
celebrando o 1° anno da luz (?)

No entanto, que se saiba, o novo regime não resolveu nenhum problema do país. Pelo contrário, o desaparecimento de um chefe de Estado permanente, garantido e de pouca influência no dia a dia da nação só fez aumentar a instabilidade. Eliminada a âncora, o barco balouça, aderna e ameaça soçobrar.

É certo que um descendente de Dom Pedro II ‒ engessado por uma Constituição e dotado de poder meramente representativo ‒ na chefia do Estado teria sido melhor que um Lula ou uma Dilma. Aliás, esses dois trágicos personagens da história recente deixam patente que nossa República, apesar da insistência dos livros de História, francamente não deu certo. É golpe que se prolonga há 127 anos. É religião que não chegou lá: continua no estágio de seita. Desde 1889, tentam nos vender a imagem de que nosso regime republicano é melhor que o monárquico. Continuo desconfiando que não é bem assim.

Corrupto importado

José Horta Manzano

Não é fácil explicar por que razão uns são senhores de fortunas bilionárias enquanto outros não têm o que comer. Pode parecer paradoxal, mas miséria extrema costuma ser mais fácil de explicar do que fortuna colossal.

Miséria é consequência da associação de múltiplas causas. Um coquetel que agrupe rudeza climática, ignorância, má gestão, ausência de Instrução Pública e corrupção tem cem por cento de risco de engendrar bolsões de miséria ‒ se não for miséria generalizada.

dinheiro-9Já fortunas descomunais são mais difíceis de explicar. O mais das vezes, são fortunas antigas, dessas que passam de pai para filho, geração após geração. Em casos assim, as origens do enriquecimento se perdem na poeira do passado. A coisa pode vir de séculos atrás e ser resultado de crescimento paulatino.

É ainda mais complexo desvendar os mistérios que se escondem por detrás de fortunas recentes, fermentadas subitamente. As eleições americanas, previstas para daqui a alguns dias, me fazem refletir sobre o assunto. De fato, Mister Trump, um dos candidatos, é podre de rico, como se costumava dizer. Segundo institutos especializados em medir riqueza alheia, é dono de quatro bilhões de dólares ‒ uma baciada de dinheiro pra ministro nenhum botar defeito.

Relatos biográficos do personagem pipocam aqui e lá. Pelo que se lê, o pai não era nenhum joão sem-terra, ainda que não chegasse a ser propriamente um nababo. O grosso da fortuna foi amealhado pelo atual candidato. Não se deve atirar pedra sem ter certeza, mas é permitido desconfiar que os bilhões de Mister Trump sejam em boa parte resultado de acertos, jeitinhos e truques pouco ortodoxos. Por mais que trabalhe direito, cumpra suas obrigações e pague seus impostos, dificilmente um cidadão comum chegará a poupar quatro bilhões de dólares.

trump-1Como se não nos bastassem nossos corruptos nacionais, que já são numerosos e bastante ativos, eis que nos surge um importado! Não acreditam? Pois doutor Anselmo Henrique Cordeiro Lopes(*), procurador da República, declarou estes dias o seguinte:

«A respeito do grupo econômico The Trump Organization, verificamos que este também foi beneficiado por meio de investimento do FI-FGTS no Fundo de Investimento Imobiliário (FII) PM (Porto Maravilha), que foi veículo de investimento para aporte de recursos na Trump Towers Rio, e que favoreceu, de forma suspeita, o grupo econômico The Trump Organization»

A sintaxe, mesmo tortuosa, deixa entrever um rasgo de verdade: o contribuinte brasileiro, além de ser esfolado pelos corruptos da terra, ainda leva uma bicada de populistas estrangeiros. Fico imaginando que seria cômico a Justiça brasileira se debruçar sobre medalhão americano. Normalmente ocorre o contrário: é a Justiça de lá que ajuda a encurralar os de cá.

Donald Trump - facsimile da assinatura

Donald Trump – facsimile da assinatura

Também, de um indivíduo cuja assinatura apresenta traços de confusão, de aspereza, de forte agressividade e até de tendência à perfídia, o que é que se poderia esperar?

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(*) O procurador Cordeiro Lopes é bacharel em Direito pela USP. É mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha.

Pesquisa eleitoral

José Horta Manzano

O Instituto Datafolha publicou estes dias o resultado de recente sondagem das intenções de voto para as eleições presidenciais previstas para 2018. Foi proposto aos entrevistados que escolhessem um nome entre os diferentes candidatos que se haviam apresentado às eleições de 2014.

Apesar dos escândalos trazidos à tona pela Operação Lava a Jato, nosso guia ainda aparece entre os bem cotados. É resultado surpreendente. Quem vem acompanhando o descalabro revelado de um ano para cá tem direito a ficar boquiaberto, sem entender o que possa estar se passando na cabeça dos eleitores.

Pesquisa DataFolha, jul° 2016

Pesquisa DataFolha, jul° 2016

No entanto, um exame mais acurado pode explicar a incongruência. O distinto leitor, que está certamente indignado e enojado com a ladroagem e com a rapina, há de imaginar que todos os conterrâneos estejam a par dos acontecimentos. Pois não é assim. Nem todos os brasileiros estão antenados.

A prova é que 1/3 dos pesquisados (um em cada três!) sequer sabe quem é o presidente da República em exercício. A pergunta não foi feita, mas não é impossível que muitos cidadãos acreditem que o Lula ainda ocupa o posto máximo.

Pesquisa DataFolha, jul° 2016

Pesquisa DataFolha, jul° 2016

Por mais que procuremos disfarçar e fazer de conta que não enxergamos, a realidade, teimosa, deixa clara a perniciosa estratificação ‒ econômica, social e cultural ‒ da população de nosso país. Um terço dos brasileiros não faz a menor ideia do que está ocorrendo. E por que é assim?

A resposta me parece evidente: porque sempre foi, ué! A preocupação com o social, declarada e louvada por nossos mandatários, embora prometesse mundos e fundos, não mostrou os efeitos apregoados.

Variados programas de inserção, bolsas diversas, estabelecimento de quotas para desvalidos, auxílio financeiro a famílias, acesso à casa própria, intercâmbio universitário, facilitação de crédito & companhia estão longe de ter sido eficientes. Se trouxeram geladeira e automóvel a numerosos cidadãos, não lhes incutiram o sentimento de pertencimento à nação. De cada três brasileiros, pelo menos um vive fora da realidade. Não estão nem aí ou, pior, não estão em condições de «estar aí».

Pesquisa DataFolha, jul° 2016

Pesquisa DataFolha, jul° 2016

Más línguas diriam que o objetivo dos que nos governaram por 13 anos era exatamente esse: manter o povo, de propósito, na ignorância. Recuso-me a acreditar que fosse essa a intenção do lulopetismo. O resultado, desgraçadamente, é esse. Está aí a pesquisa a escancarar o alheamento de parte importante da população.

Que caminho seguir para integrar todos no mundo pensante? Não tenho a resposta. Nem que a tivesse, não teria meios de agir sozinho. A pergunta vai continuar no ar à espera do dia em que mandatários bem-intencionados confiem a especialistas a missão de debruçar-se sobre o problema e encontrar solução.

Minuto de silêncio

José Horta Manzano

Você sabia?

Minuto de silencio 1Minuto de silêncio é o nome que se dá a um momento solene, observado em ocasiões especiais, aquele instante em que todos se calam e cada um é convidado a uma reflexão sobre a importância da celebração. Pode-se tratar de comemoração de vitória ou de derrota, pode-se estar homenageando a memória de pessoa ou de acontecimento.

Forças republicanas, Lisboa 1910

Forças republicanas, Lisboa 1910

É momento grave e profundo. Embora costume durar bem menos de um minuto, o nome está consagrado. Sua universalidade se prende ao fato de não evocar nenhuma religião, nenhuma corrente política, nenhum regime, nenhuma figura histórica. Eis por que é aceito aqui e na Cochinchina, por pretos, brancos, azuis e verdes.

De onde vem essa tradição? Como em toda velha história, as versões variam, embora o registro mais antigo seja atribuído à Assembleia Portuguesa. O relato é curiosíssimo e merece ser repetido aqui.

Hermes da Fonseca

Hermes da Fonseca

Em 1910, recém-eleito presidente da República brasileira, o marechal Hermes da Fonseca empreendeu viagem à Europa. Embarcou no encouraçado São Paulo, que ostentava pavilhão brasileiro e fazia sua viagem inaugural. Já no caminho de volta, aportou em Lisboa dia 1° de outubro de 1910 para encontrar-se com o rei e cumprir visita oficial de 8 dias.

À sua chegada, já percebeu movimento atípico, tropas à vista, cheiro de revolta no ar. O país vivia dias febris. Fato é que, quando o marechal chegou, Portugal era uma monarquia. Quando partiu, dias depois, o país havia-se transformado em República. Se tivessem combinado antes, não teria dado tão certo. Sem querer, o visitante transformou-se em testemunha ocular da História.

Semanas mais tarde, ao assumir a presidência da República, o marechal Hermes determinou que o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, comunicasse oficialmente que o Brasil reconhecia o novo regime português. Foi o primeiro país a dar legitimação ao novo governo. De fato, as nações europeias, dominadas por monarquias, não tinham visto com bons olhos a destituição de um rei. Fizeram corpo mole e tardaram a reconhecer a República Portuguesa.

Encouraçado São Paulo

Encouraçado São Paulo

Quando o barão do Rio Branco faleceu, dois anos mais tarde, a Assembleia Portuguesa fez questão de manifestar-lhe, uma derradeira vez, o agradecimento da nação. Foi proposta ‒ e cumprida! ‒ uma hora de silêncio. Há de ter sido interminável. Dias mais tarde, o Senado lusitano repetiu a dose, encurtando para dez minutos.

Não demorou muito para o costume ser adotado pelos britânicos, que o espalharam pelo mundo. Os horrores da Primeira Guerra mundial se encarregaram de dar motivos de sobra para comemorações ‒ que, aliás, se prolongam até hoje.

Barao Rio Branco 1É isso aí. Da próxima vez que lhe propuserem um minuto de silêncio, tome o distinto leitor como homenagem indireta ao barão do Rio Branco, herói de um tempo em que relações exteriores eram levadas a sério e, em vez de se amoldar aos interesses de um partido político, serviam ao interesse maior do Estado brasileiro.

Um elenco de golpistas

Ruy Castro (*)

Já vivi vários golpes de Estado e todos me pegaram de surpresa. Nada demais nisto, nunca participei de qualquer governo, nem podia saber que havia um golpe em curso. O incrível é que esses golpes pegaram de surpresa também os governos que derrubaram. Claro ‒ ou não seriam golpes.

O golpe que vem sendo denunciado pelo governo Dilma é diferente. Dá-se à luz do dia, tramado por 73% da população, que desaprova o dito governo, sob as barbas do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, de membros do STF, da Procuradoria Geral, do Ministério Público, da Polícia Federal, da OAB e de outras instituições da República, que nada fazem para impedi-lo, e obedece a um complexo ritual de trâmites, todos com data marcada com meses de antecedência.

E, contrariando a natureza dos golpes, em que os golpistas atuam embuçados e na sombra, neste eles vêm à boca de cena e se identificam publicamente.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Na terça última (29), inúmeras categorias profissionais ocuparam as páginas dos jornais dizendo que gostariam de ver a presidente pelas costas. E se assinaram: fabricantes de sorvete, chocolate, biscoitos, balas, doces e derivados; plantadores de milho, cana e amendoim e produtores de óleos e azeites, leite, soja e macarrão.

Sindicatos das indústrias de tintas e vernizes, cerâmicas e olarias, parafusos, porcas, rebites e similares, de artefatos de metais ferrosos e não ferrosos, de curtimento de couros e peles e de extração de mármores, calcários e pedreiras.

Industriais da cerâmica de louça e porcelana, da recauchutagem de pneus e retífica de motores e do beneficiamento de fibras vegetais e descaroçamento de algodão. Alfaiates, gráficos, farmacêuticos, misturadores de adubos, criadores de suínos e controladores de pragas urbanas. Etc. etc. etc.

Nunca se viu um elenco tão variado de golpistas.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. O texto foi publicado na Folha de São Paulo.

Insegurança de raiz

José Horta Manzano

Você sabia?

Insegurança é componente importante do espírito brasílico.

A desonestidade e a criminalidade geram insegurança e transformam o honesto cidadão em refém da violência de criminosos.

Caravela 2As artes da política transmitem tremenda insegurança – fica a impressão de que todos os do andar de cima, embora podres, sejam intocáveis.

A insegurança jurídica é proverbial. Vai-se dormir à noite sem ter certeza de que, no dia seguinte, leis e regulamentos ainda serão os mesmos.

Essas incertezas não vêm de hoje. Marcam a história do país desde o dia em que foi lavrada sua «certidão de nascimento». Falo da carta de Pero Vaz de Caminha, bordada com arte e carinho pelo escriba da esquadra de Cabral.

A missiva é cristalina ao datar a descoberta – ou o achamento, como prefiram – da terra tropical. Diz ela: «nos 21 dias de abril (…) topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho». No dia seguinte, foi avistado um «monte mui alto e redondo», além de serras e de terra chã com grandes arvoredos. Pronto o Brasil estava achado. E era 22 de abril.

Acontece que essa carta, devidamente guardada nalgum escaninho da burocracia lusa, não foi consultada durante 300 anos e acabou esquecida. Só viria a ressurgir no século XIX. Enquanto isso, o Brasil já se havia declarado independente da metrópole. Na complexa organização do novo país, foi buscada uma data de fundação. Na falta de informação segura, foi privilegiado o dia 3 de maio. E por quê?

Descobrimento 1A insegurança gerada pela ausência de provas documentais fez supor que o primeiro nome dado à terra – Vera Cruz – viesse do dia que a hagiologia católica consagra à celebração da verdadeira cruz, justamente o 3 de maio. (Entre parênteses: com o nome de Cruz de Mayo, esse dia ainda é festejado em alguns países da América Hispânica.)

Carta de Pero Vaz sobre o achamento

Carta de Pero Vaz sobre o achamento

Ao fixar os feriados oficiais, a República fundada em 1889 manteve a comemoração da chegada dos primeiros europeus em 3 de maio. Por essa altura, a carta de Pero Vaz já havia reaparecido – portanto, já se sabia que a verdadeira data não era aquela. Assim mesmo, por comodidade, deu-se preferência a manter a celebração no dia de Vera Cruz. Como o dia de Tiradentes, 21 de abril, já era dia de festa, não convinha impor dois feriados seguidos.

Não foi senão durante a ditadura de Getúlio Vargas que a História se rendeu oficialmente à evidência: estava-se comemorando no dia errado. De uma pedrada, derrubaram dois coelhos: o descobrimento passou a ser celebrado dia 22 de abril que, ao mesmo tempo, deixou de ser dia feriado.

Eu não seiMeus pais me contavam que o Brasil tinha sido descoberto em 3 de maio e eu não entendia por que, na escola, me ensinavam data diferente. A insegurança sobre as datas só se desfez muitos anos depois, quando eu descobri que eles me ensinavam tal como haviam aprendido na escola.

O distinto leitor há de convir que, numa terra que já começou com provas documentais desaparecendo de circulação, não espanta que a insegurança continue sobressaindo. Fazer sumir provas tornou-se esporte nacional. Decididamente, vivemos na terra do «eu não sabia de nada».

De má-fé?

José Horta Manzano

Aspas 2Aspas são sinal gráfico utilizado em praticamente todas as línguas. Forma e hábitos de uso podem variar de um idioma a outro. Vários desenhos são empregados. Nestes tempos de globalização, tanto faz, todos os modelos dão o mesmo recado.

Em nossa língua, as aspas são utilizadas em dois casos principais: em citações e em ironias. Embora alguns gramáticos torçam o nariz, há quem use aspas rodeando palavras estrangeiras.

Tem gente fina que hesita no uso das aspas. A indecisão as faz aparecer mais frequentemente do que deviam. Raramente faltam – em geral, sobram.

Aspas 1Exemplo de aspas usadas em citação:
«Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma» – é máxima atribuída ao químico francês Antoine Lavoisier (1743-1794), embora já tivesse sido enunciada pelo filósofo grego Anaxágoras, 500 anos antes de nossa era.

Exemplo de aspas usadas para denotar ironia:
Na floresta equatorial, quando a temperatura desce abaixo de 20°, os habitantes se queixam do «frio polar».

Chamada da Folha de São Paulo, 15 ago 2015

Chamada da Folha de São Paulo, 15 ago 2015

«Descendente da ‘família real’ brasileira é um dos líderes de grupo anti-Dilma» – é o título que a Folha de São Paulo deu a artigo publicado na edição online de 15 ago 2015.

Por que, raios, a «família real» aparece cercada de dois pares de urubus? Pode ser que o autor do título sofra de falta de familiaridade com regras gramaticais. Nunca se sabe, tudo é possível nestes tempos estranhos – há até escriba brigado com as letras, um despropósito.

Manif 10Tenho tendência, no entanto, a privilegiar outra hipótese: o responsável pela manchete terá agido de caso pensado, guiado por razões vaga e burramente ideológicas. O autor da frase deixa transpirar irritação com os protestos contra o partido do governo marcados para este domingo. Valendo-se de expediente típico dos que nos governam, misturou alhos com bugalhos. Na tentativa de depreciar os manifestantes, houve por bem cercar de aspas a família real brasileira, como se a expressão não passasse de fantasia da zelite.

Vamos passar por cima do erro factual: Luiz Philippe de Orléans e Bragança é membro da família imperial, não real. O regime republicano, imposto pelo golpe militar de 1889, não desterrou um rei, mas um imperador.

Sobra a bizarrice de ver descendentes do imperador tratados com ironia por gente que deve imaginar que o Brasil começou em 2003. «Família real», entre aspas, pode-se aplicar à dinastia dos Kirchner argentinos, dos Kim norte-coreanos, dos Castros cubanos, dos Al-Assad sírios. Os descendentes de Dom Pedro dispensam os urubus.

Chamada d'O Globo, 16 ago 2015

Chamada d’O Globo, 16 ago 2015

Digno de ser mencionado:
Mostrando orientação menos enviesada, O Globo tratou do assunto com delicadeza. Chamou o príncipe de príncipe. Sem aspas.

Coisa do outro mundo

José Horta Manzano

Não é todos os dias que se lê notícia tão espantosa. O presidente do Senado Federal estuda processar a Polícia Federal! Vamos por partes.

A Constituição da República distingue três poderes independentes e – de preferência – harmônicos. Trocada em miúdos, a informação trazida pela manchete é preocupante: um dos três poderes vale-se de um outro para atacar o terceiro. Não se passasse entre excelências, pareceria briga de condôminos. Não deixa de ter seu lado cômico.

É boa nova? É ruim? Tirando o aspecto circense, a manobra não deixa de ser salutar. Dentro das regras, está. Em tempos normais, seria sinal inquietante de desarmonia nas esferas elevadas. No entanto, no ponto em que estamos, um processo a mais ou a menos tanto faz.

Ca bouge 1Tem muita coisa mudando neste Brasil velho. Dado que a gente está envolto pelos acontecimentos, fica difícil dar-se conta. O recuo necessário para análise serena só virá daqui a alguns anos.

Uma coisa é certa: do jeito que estava, era impossível continuar. As atuais turbulências dão a prova de que muita coisa está mudando. Pode até ser que os caminhos que se abrem não sejam excelentes. Mas vale a pena tentar, que não temos outra saída. Com o tempo, vamos acabar aprendendo.

O Brasil, a Argentina, a Venezuela e a Grécia são a demonstração gritante de que o populismo – pouco importa se de esquerda, de direita, de cima ou de baixo – não leva nunca a bom porto. Mais cedo ou mais tarde, a conta chega. E bem salgada.

O fim do amém

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jul 2015

Revolution 1O dicionário ensina que revolução, no contexto político, é rebelião contra o poder vigente, com vista a implantar mudanças profundas. Diz ainda que pode ocorrer de maneira progressiva ou repentina. Quanto maior for a rudeza, mais caracterizada estará a reviravolta.

A transição do regime militar para a democracia plena, que os manuais situam em 1985, não pode ser catalogada como revolução. Na verdade, a eleição presidencial daquele ano marcou o desfecho de um processo paulatino, gradual e sobretudo consentido. A mudança pode não ter agradado aos mandatários da época, contudo não ocorreu à revelia deles. Tendo sido autorizada, revolução não era.

Já a ruptura havida em 1964, dado o grau de brusquidão, encaixa-se melhor, stricto sensu, no conceito de revolução. Aliás, foi assim qualificada nos primeiros anos, embora seja hoje mais usual designá-la como golpe.

Dilma e Lula 4Nossos pais e nossos avós – esses, sim – conheceram tempos bem mais turbulentos. Na primeira metade do século XX, revoluções e golpes (bem sucedidos ou não) sobrevinham a cada par de anos. Por um sim, por um não, entrincheiravam-se cidadãos, desembainhavam-se espadas, granadas explodiam, casernas eram sitiadas. Visto com óculos atuais, esse rebuliço nos parece longínquo, intangível, empoeirado, perdido nos livros de história.

Os brasileiros que assistiram, já em idade de entender, ao golpe de 1964 já estão todos, há anos, agasalhados sob o manto do Estatuto do Idoso. Mais velhos ainda estão os que viveram uma revolução de verdade, daquelas boas, com canhão e tropa nas ruas. São hoje anciãos.

Os tempos mudaram. Não se pega mais em armas pra impor ideias, que isso está completamente démodé. Armas, hoje, são muito mais numerosas que antigamente, circulam bem mais rápido, estão em mãos de muito mais gente, mas servem pra outros fins.

Revolution 2No que diz respeito à política, os jovens adultos brasileiros, aqueles que entram agora na casa dos vinte e poucos anos, andam desencantados. Levantamento recente do TSE informa que, no espaço de sete anos, nossos cinco maiores partidos perderam dois terços dos afiliados menores de 25 anos. O desinteresse da banda jovem é flagrante e inquietante: são precisamente eles que, daqui a vinte anos, conduzirão o País.

Quais serão as razões desse desamor? Poderíamos culpar internet, redes sociais, materialismo, facilidades do mundo moderno. Será? Se assim fosse, o desinteresse dos jovens pelas coisas da política seria planetário, o que está longe de ser verdade. As causas são domésticas.

Pra começo de conversa, os que chegam hoje aos vinte aninhos só conheceram, no topo do Executivo, a dupla Lula & Dilma. Não nos esqueçamos que o presidente anterior, ao impor a sucessora, fez questão de apregoar que ela era ele e que ele era ela. Ou seja, ficou claro que eram angu da mesma tigela.

Dilma e Lula 5Tem mais. Desde que se conhecem por gente, os jovens de hoje vêm sendo diariamente bombardeados com escândalos, roubalheiras, prisão de medalhões. E mais roubos, e mais escândalos, e falcatruas, e mentiras, e caraduras. Convenhamos: é muita água pra pouco pote. Compreende-se que se sintam enfastiados e que menosprezem política e políticos.

O que anda fazendo falta é o debate de ideias, a troca de argumentos, o empenho pelo bem comum, a demarcação rigorosa entre o público e o privado. O Executivo onipresente destes últimos dez anos tem relegado o Legislativo a papel de figurante de opereta.

A crise de governança gerada pela ação desastrada da presidência da República está mostrando corolário positivo: o fortalecimento do parlamento. Deputados e senadores, desacostumados que estavam de fazer aquilo para que foram eleitos, andam meio aturdidos. O momento parece confuso, mas o tempo se encarregará de pôr ordem na casa.

Senado federal 1Suas excelências já dão mostras de que a era do amém chegou ao fim. Não é revolução de tanque e canhão, mas é como se fosse: as consequências serão notáveis.

No Brasil, a prática costuma contradizer a teoria. Nosso presidencialismo está-se transmutando em parlamentarismo de facto. Após tantos anos de um Executivo onipotente acolitado por congresso submisso, a virada é notícia animadora.

Aperfeiçoamentos terão de vir, ressalte-se. Para viabilizar o novo modelo, é imperioso implantar voto distrital e cláusula de barreira. Mas há um tempo pra tudo. Por ora, festejemos a revolução que se desenrola diante de nossos olhos e façamos votos para que o reequilíbrio entre poderes seja duradouro. Será bom para todos nós. Que os anjos digam amém.

Frase do dia — 217

«Pode ser chegado o tão esperado momento de ruptura que estamos aguardando desde 15 de novembro de 1889. A República, anunciada naquele dia, aguarda até hoje, ansiosamente, ser proclamada.»

Marco Antonio Villa, historiador, em artigo publicado no jornal O Globo de 6 jan° 2015.

Feriado

José Horta Manzano

Li ontem que o tráfego estava pesado por causa do feriado. Feriado? Que feriado? Olhei pro calendário – que eu, teimosamente, ainda chamo de ‘folhinha’. Pensei: «Mas… o 15 nov° já passou. Que feriado é mesmo esse dia 20?»

Crédito: Jodi Cobb

Crédito: Jodi Cobb

Hoje de manhã, rádio e jornal me ensinaram. É celebração nova, eis porque eu não estava a par. Marca a data de falecimento do jovem Zumbi, figura controversa de cuja existência não há provas sólidas. Os estabelecimentos lusos em terras sul-americanas no século XVII não eram conhecidos por rigorismo documental. Poucos eram os que sabiam escrever. Pouca era a preocupação em deixar memória escrita, e pouco escrito deixaram.

O feriado novo me fez refletir sobre os tradicionais. Constatei que, com uma ou duas exceções, os dias em que assalariados ganham sem trabalhar rememoram alguma ruptura histórica, alguma conquista de grupo minoritário com relação à lei vigente. Senão, vejamos.

Festas cristãs
Natal, Páscoa, Na. Sra. Aparecida, Corpus Christi são elas. Essas festas parecem tão evidentes que deixam a impressão de que sempre existiram. Não é exato. Dois mil anos atrás, os seguidores do Cristo eram escassa minoria.

Considerados ‘iluminados’, eram gente disposta a dar a vida em sacrifício por um ideal. O grosso da população não concebia lógica nessa obstinação. Para os padrões da época, a doutrina introduzida por aqueles ‘destrambelhados’ representou, sem sombra de dúvida, uma ruptura e tanto.

TiradentesTiradentes
Aprendemos todos na escola: Tiradentes é o ‘protomártir’ da independência do Brasil. Um parêntese para comentar que o epíteto não é o mais adequado. Protomártir, em rigor, quer dizer o primeiro a sacrificar-se. Ora, vários cidadãos se tinham, por motivos vários, alevantado contra a metrópole bem antes do tira-dentes mineiro. Atribuir a ele a primazia é problemático. Fechemos o parêntese.

Para nossa história de hoje, pouco importa ter ele sido ou não o primeiro. Ao fim e ao cabo, a verdade é que o 21 de abril marca a mais vistosa tentativa de abolição do regime vigente. Seu objetivo era a ruptura.

Independência
Essa é moleza, todo o mundo sabe. Nos bancos escolares aprendemos que, depois de subir a serra em direção a São Paulo, o buliçoso e imprevisível Pedro, filho do rei, decidiu dar um golpe em família. Era um 7 de set°. Menosprezou as ordens do pai e autodeclarou-se ‘defensor perpétuo’ do território onde se encontrava. A rebeldia do jovem príncipe causou profunda e irreparável ruptura.

Marechal DeodoroRepública
Essa também nos ensinaram no grupo escolar. (Para quem não sabe, era assim que se chamavam os primeiros quatro anos do ensino elementar.) Num 15 nov°, o Exército Imperial Brasileiro – personificado na ocasião pelo general Deodoro da Fonseca – deu golpe militar, destituiu imperador, derrubou governo e rasgou Constituição. Se isso não foi ruptura…

Trabalho
O Dia Internacional dos Trabalhadores é consequência direta da Revolução Industrial, de fins do séc. XVIII. A máquina a vapor viu pipocar fábricas por toda parte e criou nova casta de cidadãos: os empregados assalariados. Nas primeiras décadas, aqueles trabalhadores eram tratados como se escravos fossem. Folga, feriado, pausa, aposentadoria, salário mínimo, segurança no trabalho eram noções desconhecidas.

De conquista em conquista, a classe trabalhadora conseguiu melhorar condições de trabalho e de remuneração. É o que se comemora no 1° de maio: a abolição dos resquícios de ordem feudal e a instituição da relação empregatícia. Uma ruptura e tanto.

ZumbiZumbi
No meu tempo, se aprendia que a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 maio 1888, marcava o fim da escravidão, uma senhora ruptura da ordem vigente. Foi guinada tão impactante que selou o destino do regime monárquico. De fato, um ano e meio mais tarde, ele seria derribado.

Confesso que me escapa a razão pela qual se parece querer atribuir ao falecimento do Zumbi importância maior do que à abolição da escravatura. Costumo passar ao largo de considerações ideológicas – principalmente quando amplificam o risco de dividir a população em castas do tipo «nós contra eles».

Há de ser por isso que não atino com o objetivo por detrás dessa recomendação que nos chega do andar de cima. Parece que não sou o único nesta situação. Outros também hesitam em abraçar valores que exaltam diferenças raciais.

A Lei n° 12.519, sancionada pela presidente da República em 2011, institui o Dia Nacional do Zumbi, mas não determina que o trabalho assalariado cesse nessa data. Dentre os mais de 5500 municípios brasileiros, apenas cerca de 1000 comemoram a data com feriado.

Detalhe curioso
O Quilombo dos Palmares, onde teria vivido o Zumbi, situava-se entre os atuais Estados de Alagoas e Pernambuco. Acredite o distinto leitor ou não: o 20 novembro não é dia feriado em nenhum dos municípios do Estado de Pernambuco.

O putsch

José Horta Manzano

Comemora-se, neste 15 nov° 2014, a dita «Proclamação da República», ocorrida faz 25 lustros. A meu ver, não há diferença entre o putsch militar de 1889 e o de 1964. Foram ambos golpes inconstitucionais e como tal devem ser considerados.

Interligne vertical 7Pequena digressão
A importância deste 15 nov° está um bocado ofuscada pela assombrosa prisão de gente graúda – falo dos elementos envolvidos no assalto à Petrobrás. Como dizia o outro, roubo de bilhões não pode ser obra de um ou dois: tem de ser feito coletivo, com dezenas de salafrários acumpliciados. Agora, a coisa está começando a fazer sentido.

Voltando à vaca fria
Nós, brasileiros, aprendemos na escola que a república se opõe à monarquia. Dizendo melhor: que o regime republicano é a alternativa ao regime monárquico. Não é assim tão simples.

Bandeira Brasil 1República é o regime em que uma população se governa a si mesma, por meio de representantes livremente eleitos. Na república, não existe a figura do chefe «por direito divino», por hereditariedade, nem por força das armas. O sistema republicano se opõe, na verdade, a regimes ditatoriais ou paraditatoriais, nos quais a escolha dos representantes é negada, desvirtuada, usurpada ou fraudada.

A história oficial do Brasil ensina que, «proclamada» a república em 1889, a família imperial foi despachada para o exterior e que, de lá pra cá, o País vive dias republicanos felizes e ininterruptos. Não é bem assim.

Nosso regime republicano já foi interrompido em numerosas ocasiões. Golpes puseram a legalidade entre parênteses por períodos mais ou menos longos. Alguns duraram dois ou três dias, enquanto outros se instalaram por décadas.

A ditadura de Vargas (1930-1934) e (1937-1945) marcou o período mais longo, desde o banimento de Dom Pedro II, durante o qual o Brasil foi dominado por um mesmo homem. Já a ditadura instalada a partir de 1964 foi mais longa, mas os militares permitiram rodízio no topo do Executivo.

Bandeira do Império do Brazil

Bandeira do Império do Brazil

Leis e decretos costumam ajuntar, à data de promulgação, uma menção indicando a contagem de tempo a partir de 1889. Os documentos garantem que estamos hoje entrando no 126° ano da República. Estaremos mesmo? Não concordo.

Sem ser demasiado rigorista, estamos em nossa Terceira República. A primeira começou com a saída do imperador e a entrada de Deodoro. A segunda, em 1945, com o apeamento de Getúlio. E a atual, a Terceira República, teve início no momento em que João Baptista Figueiredo deixou o Planalto – pela porta dos fundos, dizem – largando as rédeas do País nas mãos de José Sarney.

Melhor, mesmo, seria evitar a contagem de anos desde o golpe que aboliu nossa monarquia constitucional. É assunto demasiado complexo, daqueles que não reúnem consenso.

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O Neue Zürcher Zeitung , jornal suíço de referência – assim como são o francês Le Monde, o americano The New York Times e o brasileiro Estadão –, publicou extenso e interessante artigo sobre a mudança de regime pela qual o Brasil passou 125 anos atrás. Dá, aos bois, nomes verdadeiros. Trata a transição de golpe e de putsch. Como, de fato, foi. Quem se sentir à vontade em alemão pode dar uma espiada clicando aqui.