José Horta Manzano
Mês: agosto 2017
Santo de casa ‒ 3
José Horta Manzano
Você sabia?
No Brasil, temos estrangeiros muito conhecidos pelo público ― há artistas, mas não só. São personagens frequentemente desconhecidos em seu país de origem.
Enquadra-se nesse caso um simpático padeiro-confeiteiro-cozinheiro francês, há muitos anos estabelecido em nosso País. Na França, o moço é um perfeito desconhecido. Meia dúzia de chefs de cuisine, desconhecidos no país de origem, oficiam com sucesso no Brasil.
O fenômeno funciona nos dois sentidos. Há brasileiros pra lá de conhecidos ― famosos até ― fora das fronteiras, dos quais jamais se ouviu falar no Brasil. São dezenas de indivíduos.
No Brasil, poucos sabem, por exemplo, quem é Cristiana Reali, filha do falecido jornalista Reali Jr, correspondente em Paris do Estadão e da Rádio Jovem Pan durante décadas. A moça nasceu em São Paulo, mas, ainda pequena, acompanhou a família na mudança para Paris. Por lá foi escolarizada e lá formou família e plantou raízes.
Cristiana é atriz de cinema ultraconhecida ‒ boa atriz, por sinal. Quando jovem, seu bonito rosto personificou a indústria de cosméticos Lancôme. Cartazes de propaganda com sua imagem se espalhavam pelo mundo.
Outra celebridade brasileira praticamente desconhecida na terra natal é a Cristina Córdula. Nascida no Rio de Janeiro, trabalhou como manequim desde a adolescência. (Que me desculpe o distinto leitor pela linguagem arcaica: hoje se usa dizer «top model».)
De desfile em desfile, passou por Yves St-Laurent, Chanel, Dior. E acabou fixando-se em Paris. Extrovertida e espevitada, a moça se fez notar como animadora de programas de tevê. Chegou a escrever vários livros sobre cuidados que toda mulher deve tomar para conservar a beleza.
Seu sotaque característico e sua simpatia dão charme a seus pequenos erros de francês. Tanto é verdade que um canal comercial de tevê lhe deu o encargo de comentar o casamento de William, herdeiro do trono britânico. Até uma série de programas de costura a moça tem animado. Chama-se «Cousu main» ‒ costurado à mão. O sucesso é grande. A terceira temporada começa agora dia 4 de setembro.
Além de jogadores de futebol, há um punhado de brasileiros famosos no exterior e desconhecidos no país de origem. Santo de casa nem sempre faz milagre. Assim que souber de mais algum, volto ao assunto.
Estado, nação e pátria
José Horta Manzano
Certos conceitos são difíceis de exprimir em poucas palavras. Para um ouvido desatento, dá no mesmo que se diga o Estado brasileiro, a nação brasileira ou a pátria brasileira. Essa coleção de termos semelhantes é muito útil num texto, para evitar repetir quinhentas vezes a mesma palavra. No entanto, uma reflexão mais aprofundada vai revelar que o significado de cada uma delas não é exatamente o mesmo.
Nação é comunidade homogênea, cujos membros, em quase totalidade, falam a mesma língua, têm a mesma origem étnica e tradições em comum. Uma nação não constitui necessariamente um Estado. Aliás, raríssimos são os Estados que reúnem todas essas características. Assim, de chofre, me ocorrem dois exemplos em que Estado e nação coincidem: Dinamarca e Portugal. São países com uniformidade linguística, religiosa e, até certo ponto, étnica. Os membros que escapam à homogeneidade são minoria estatisticamente diminuta.
Estado é conceito político, um território autônomo e independente, com fronteiras definidas e reconhecidas internacionalmente. As fronteiras, em geral, não correspondem às de uma só nação. Ao redor do planeta, a imensa maioria dos Estados se enquadra nessa categoria. Os exemplos são numerosos. Espanha, Reino Unido, Itália, Canadá, China, Índia, praticamente todos os países africanos englobam diferentes etnias, línguas, religiões e tradições. O que caracteriza um Estado é a centralização da administração dos habitantes. Leis, regulamentos, política externa, instituições valem (em princípio) para todos.
Pátria é conceito mais poético do que político, linguístico, religioso ou étnico. Procede, antes, de livre escolha individual. Assim como Fernando Pessoa dizia que sua pátria era a língua portuguesa, é permitido a cada um orientar o próprio lirismo para onde bem entender. A pátria de um indivíduo pode coincidir com o país onde nasceu. Pode também ser o lugar onde cresceu. Pode ainda ser a região em que se sente em casa. Assim como é impossível fazer beber um burro que não tem sede, não se pode impor sentimento patriótico a ninguém.
Pra ser muito sincero, minha intenção, ao iniciar este artigo, era falar sobre dupla cidadania. Vai ficar pra uma outra vez. Não gosto de cansar o distinto leitor com muito blá-blá-blá de uma tacada só. Assim como não aprecio ler textos muito longos, reluto em escrever artigos muito compridos. Menos é mais ‒ valioso adágio!(*)
Nota etimológica
Adagio ‒ que vale ditado, sentença, máxima ‒ é expressão latina que se mantém tal e qual no italiano atual. É interessante notar que filhotes da raiz agium estão presentes em numerosas línguas com significado ligeiramente diferente.
Em francês, aise traz noção de conforto, de descontração. Em italiano, agio pode carregar também a ideia de lentidão, vagareza. Ease, o correspondente em língua inglesa, permitiu a formação do adjetivo easy, com sentido de facilidade.
Poucos sabem que temos, em nossa língua, um descendente da família. É azo, termo pouco utilizado. Significa oportunidade, ensejo, motivo.
Ex: O atraso do voo deu azo a que ele desistisse de viajar.
Frase do dia — 340
Todos culpados
José Horta Manzano
O Instituto Ipsos, especializado em pesquisa de opinião, testou a percepção que os brasileiros têm de 20 personalidades. Foram escolhidos 19 personagens políticos ou da alta administração. Para completar os 20, selecionaram ‒ sabe-se lá por que razão ‒ um homem de televisão.
Excluindo justamente o homem de televisão, todos os personagens são mais rejeitados que aprovados. Não sobra nenhum. Os entrevistados torcem o nariz para todos eles, sem exceção. Começa com doutor Michel Temer, alvo da desaprovação mais eloquente, e vai até doutor João Doria, que recolhe a rejeição menos brutal. A desaprovação de doutor Aécio é fenomenal. Há que reconhecer que aquele que recolheu metade dos votos nas mais recentes eleições presidenciais foi o que mais decepcionou. É mais repelido que o próprio Lula, que, por sua vez, é mais rejeitado que doutor Bolsonaro.
Nota-se que algumas figurinhas carimbadas da política ficaram fora do questionário. Penso em doutor Maluf, doutor Sarney, doutor Collor, dona Marta Suplicy. Enfim, a selva de gente enrolada com a justiça ou com a opinião pública é tão densa que fica difícil estabelecer uma lista.
O mesmo instituto testou também a aprovação popular de sete figurões da Justiça tomados ao acaso. (Ou, talvez, não tão ao acaso assim.) No topo da desaprovação, aparece doutor Gilmar Mendes. Doutor Sergio Moro é quem sai melhor na foto. Surpreendentemente, medalhões como doutores Lewandowski e Toffoli não entraram na seleção.
Ao fim e ao cabo, que me perdoe o distinto leitor pela vulgaridade, fica a impressão generalizada de saco cheio. Dado que boa parte dos entrevistados não deve ter ideia precisa de quem possam ser doutores Paulo Skaf, Tasso Jereissati ou Nélson Jobim, é de acreditar que a reprovação vale para todos. Parafraseando George Orwell, fica assim: embora alguns sejam mais culpados que outros, no fundo, são todos culpados.
O rodamoinho da corrupção traga todo o andar de cima, que sejam culpados, condenados, suspeitos ou juízes. Sobra para todos. Só não será reprovado… quem não for mencionado.
Observação
Seria extremamente interessante se a pesquisa tivesse ido mais fundo. Deveriam ter perguntado a razão da aprovação (ou desaprovação) de cada nome citado. Do jeito que está, embora pareça espetacular, a análise dos resultados não permite ir além de conjecturas.
Desmascaração astral
Myrthes Suplicy Vieira (*)
Inventei o neologismo acima para designar uma dolorida ação orquestrada por forças astrais para me forçar a um autoexame de consciência. Ainda não sei bem qual o propósito de passar por essa experiência, se o de apontar preconceitos, vulnerabilidades e defeitos de caráter que ainda existem dentro de mim – mesmo que eu os negue peremptoriamente – ou o de me induzir a dar mais alguns passos em direção à evolução espiritual.
Tudo começou com um sonho. Eu caminhava por uma estrada asfaltada, ao lado de várias pessoas. Não via o rosto de ninguém, só enxergava as panturrilhas dos que caminhavam à minha volta. De repente, um tumulto. Todos se aglomeram do lado esquerdo da pista e apontam para baixo. Comentam angustiados uns com os outros algo que não entendo, mas que me parece de mau augúrio. Inclino-me para frente para verificar com os próprios olhos o que aconteceu. Ao fazê-lo, acabo me dando conta que a estrada desbarrancou. Vejo areia por debaixo do asfalto e concluo que, apesar de sua aparente solidez, a estrada havia sido construída sobre uma base instável.
Mesmo com medo de cair, inclino-me um pouco mais e percebo que há uma vala de esgoto lá embaixo. Alguém grita que há um corpo de mulher caído dentro dela. Um homem a meu lado olha detidamente o rosto da mulher e a identifica. Quando ele pronuncia o nome de família da moça, me desespero: eu também a conheço. Era uma colega de trabalho que sempre me inspirou admiração por sua competência, disposição e senso de humor. Pergunto-me por qual razão ela teria tido um fim tão trágico. Acordo com uma sensação de injustiça, difícil de entender.
Por mais que eu relutasse em a aceitar, a mensagem do sonho parecia clara: um abismo me separava daquela mulher e o desnível entre nós estava atrelado ao seu sobrenome. Não havia como interpretar de outra forma: simbolicamente, eu estava sendo acusada de discriminação social. Essa possibilidade me desestabilizou emocionalmente por alguns dias. Sentia que não era merecedora da pecha de preconceituosa e, por mais que buscasse outras evidências nesse sentido, não encontrava nada. Quando minha consciência já estava um pouco mais apaziguada, lá veio um segundo sonho.
Eu estava coordenando um workshop, não sei bem com qual objetivo. Apesar de não ser intervalo para almoço, os participantes estavam dentro do restaurante, agrupados em torno de uma pilha de pratos e tigelas. Os ânimos estavam exaltados, todo mundo falava ao mesmo tempo e me incomodava muito a sensação de desorganização do evento. Eu tentava chamar a atenção de um funcionário, pedindo que ele me trouxesse mais peças com uma determinada decoração. Outras pessoas faziam pedidos similares. Perdido em meio ao tumulto, ele me responde que não havia mais nenhuma à disposição. Assim não vai dar, pensei com meus botões.
Irritada, comecei a me perguntar qual era, afinal, o sentido da tarefa proposta: só agrupar peças de porcelana com base no padrão de decoração ou haveria um propósito mais “filosófico” para ela, que me escapava? Fosse como fosse, tudo aquilo me parecia absurdo, superficial demais para um treinamento.
Cansada, sentei-me em um banco, tentando recuperar o controle da situação. De repente, um rapaz sai da cozinha, todo suado, de tamancos, e abanando-se com um pano de prato. Senta-se displicentemente a meu lado e começa a conversar com um colega, aos gritos. Minha irritação cresce com a descompostura dos dois. Acordo perturbada, mais uma vez com a sensação de estar estava sendo injustiçada. Desta vez, duplamente: de um lado, acusada de não saber fazer meu trabalho, e de outro, novamente de não saber lidar com as diferenças de classe.
O terceiro sonho veio após mais alguns dias. Eu dirigia meu carro por uma das avenidas mais movimentadas de São Paulo, com corredores de ônibus nos dois sentidos. Era uma tarde bonita de sol e o trânsito fluía bem. De repente, sinto vontade de estacionar e ir até uma concessionária de automóveis que ficava do outro lado da pista. Paro, desligo o carro, deixo a chave na ignição e atravesso a rua, com total despreocupação. A conversa com o gerente da concessionária foi ficando animada e eu fui-me deixando ficar. Ao sair, constato o óbvio: o carro não estava mais onde o deixei. Desta vez, não havia como me eximir da responsabilidade pelo infausto resultado.
Negligência, irresponsabilidade, imprevisão, incapacidade de planejamento, insensibilidade social, prepotência, arrogância. Sem dúvida, as forças astrais encontraram duras maneiras de me apresentar a mim mesma. Ainda estou cheia de hematomas causados por tantos golpes contra minha autoestima. Não que esse confronto com as zonas de sombra do meu psiquismo constitua propriamente uma novidade. Ao contrário, sempre me considerei uma fraude, prestes a ser desmascarada por um observador mais atento. Sei que minha doença tem até nome: a síndrome do impostor.
Mas uma coisa ainda me intriga: por que os sintomas voltaram agora? Minha vida parecia ter se estabilizado depois do trauma da perda de minha filósofa canina preferida. Num segundo, a ficha cai. Volta à minha cabeça uma frase emblemática: “Não apresente o olhar de admiração de seu cachorro como prova de que você é uma boa pessoa”.
É isso! Sem o espelho compassivo dos olhos da Molly, não tenho como explorar meus melhores ângulos, não pertenço mais à família dos leves de alma e caminho sem destino sobre um terreno falsamente sólido.
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.
Tenha modos, menino!
José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 agosto 2017.
Antigamente não havia pensão por velhice nem por viuvez. Tampouco havia bolsa família, seguro-desemprego e outras benesses para socorrer os menos favorecidos. O que funcionava mesmo era a solidariedade familiar. Debaixo do mesmo teto, viviam duas ou três gerações. Avó, tio solteiro, prima viúva, amiga necessitada e outros agregados integravam o núcleo ‒ naturalmente gerido por um patriarca ou uma matriarca.
Este escriba ainda pegou um finzinho dessa era em que uns se apoiavam nos outros. Comunidade familiar era como as casas de Veneza: se uma delas for derrubada, cai a cidade inteira. A convivência nos ensinava a lidar com diferentes caracteres. Este tem gênio difícil, aquela levanta sempre de mau humor, aquele outro não suporta barulho, uma gosta de gato, a outra fala cuspindo, aquele outro não come doce. E assim por diante, cada um com seu jeito.
Uma advertência dirigida aos pequeninos saía constantemente da boca dos mais velhos: «Tenha modos, menino!». O pito servia em muitas ocasiões. Mostrar a língua era falta de modos; falar mal dos outros também; desrespeitar alguém, então, era pecado capital. Não agradecer por um presente recebido, chamar a irmã de boba, fugir na hora de tomar o óleo de fígado de bacalhau rendiam bronca. «Tenha modos, menino!»
Era um sábio conselho. É inegável que, gostemos disso ou não, somos obrigados a viver em sociedade. Assim, é muitas vezes imprescindível sofrear-se para desarmar conflitos no nascedouro. Imagine se cada um dissesse o que lhe passa pela cabeça, a todo momento, a quem estivesse por perto. É a perfeita receita do caos garantido, um saco de caranguejos. A ralhação da avó nos ensinava a baixar a crista e a ter recato ‒ mercadoria hoje rara na praça.
Não sei se por má orientação quando pequenos ou se por desfrutarem de ego superinflado, políticos e figurões da alta administração da República mostram-se faltos de princípios elementares de savoir-vivre. Alguns anos atrás, a gente se divertia quando o então presidente se gabava de ser autor de façanhas mirabolantes, sempre arrematadas com o bordão «como nunca antes neste país». Ninguém podia imaginar, àquela altura, que a fanfarronice era apenas o sinal de largada para bravatas bem mais ousadas.
Ainda estes dias, o país assiste perplexo a declarações do arco da velha, incompatíveis com o cargo ocupado por quem as profere. O presidente da República, acossado por acusações de malfeitos, pede a suspeição do procurador-geral. Um deputado federal, eleito pelo povo, se exibe seminu ostentando tatuagem com o nome de um correligionário. O presidente do TRF tece comentários pessoais sobre sentença criminal imposta a um ex-presidente da República. A presidente do Supremo Tribunal Federal, chefe-mor de um dos Poderes da República, revela ao populacho que tem detectado machismo contra ela, seja lá o que essa expressão queira dizer. Um ministro do mesmo STF diz, com todas as letras, que o atual titular da Procuradoria-Geral da República é o mais desqualificado que por lá já passou.
Eu poderia alongar a lista de citações, mas o espaço de que aqui disponho é limitado. Acrescento apenas que é constrangedor ver que somos conduzidos por gente tão desenvolta e sem-modos. No fundo, alguns podem até ser competentes. No entanto, esses medalhões se esquecem de que não basta à mulher de César ser honesta ‒ tem também de parecer honesta.
O Sol costuma nascer todos os dias, e ninguém repara. Esta semana, bastou que ele fosse eclipsado pela Lua por dois minutos para que os que se encontravam sob latitudes adequadas se deliciassem com o espetáculo. Nossos figurões, que visivelmente não aprenderam a lição da vovó, deviam refletir sobre isso. Vale lembrar da regra três, que explica que menos vale mais. Aquele cuja palavra é rara costuma ser ouvido com maior atenção. Aquele que fala em voz baixa gera silêncio: todos querem saber o que ele tem a dizer. Muito antes do eclipse de 2017 e da fogueira de vaidades dos figurões da política brasileira deste começo de milênio, os romanos ‒ sensatos ‒ já ensinavam que «Æternum sub sole nihil» ‒ sob o sol, nada é eterno.
Mandato x mandado
José Horta Manzano
As tenebrosas revelações de corrupção se atropelam. Têm chegado às pencas. Diariamente. Hoje em dia, ter mandato eletivo já é passo importante em direção a receber mandado de prisão. No entanto, a língua (ainda) faz distinção entre os dois termos.
Mandato é missão, procuração, incumbência que se confia a alguém.
Exemplos:
O vereador cumpriu o mandato até o fim.
O procurador não aceitou o mandato que lhe queriam confiar.
Mandado é geralmente usado em linguagem jurídica. Designa ordem ou despacho expedido por uma autoridade.
Exemplos:
Sabendo que há mandado de prisão expedido contra ele, o vereador sumiu do mapa.
A residência do deputado foi objeto de mandado de busca e apreensão.
Amianto ‒ 2
José Horta Manzano
No mundo inteiro, regras conflitantes são por vezes editadas ‒ isso acontece, é da vida. Em terras mais civilizadas, procura-se corrigir o tiro rapidamente. Se necessário, o tribunal constitucional decide e clareia a situação. No Brasil, leis e regulamentos nem sempre primam pela clareza. Muitas vezes, fica por isso mesmo, deixando o cidadão num limbo de incerteza. É um dos aspectos da insegurança jurídica que nos atormenta. Afinal, pode ou não pode?
Já nos anos 1980, os primeiros estudos levantaram a suspeita de que o pó de amianto era cancerígeno. O lobby dos interessados (exploradores de minas, produtores e comerciantes) gritou alto. Foi preciso demonstrar que milhares de pessoas estavam doentes ou haviam já falecido de males ligados à inalação de fibras desse silicato.
Estudos mais recentes avalizados pela Organização Mundial da Saúde concluíram que metade dos casos de morte por câncer contraído no trabalho é ligada ao amianto. O contacto constante com esse material está na origem de câncer de laringe, de ovário, de pulmão. Sem contar a fibrose pulmonar, doença grave e mortal também conhecida como asbestose. Na Europa, quinze mil mortes são atribuídas a afecções causadas pelo contacto com amianto.
Já no fim do século passado, a extração e o uso desse material foram proibidos nos 27 países da União Europeia, na Noruega, na Suíça, na Islândia e até na Turquia. Na América Latina, a Argentina, o Chile, o Uruguai e também Honduras baniram o uso de amianto crisotila. Rússia e China, grandes produtores, continuam firmes explorando e exportando o perigoso produto.
Nosso STF debateu ontem sobre a Lei Federal 9.055, que permite o uso de amianto crisotila, usado principalmente na fabricação de telhas e de caixas d’água. Numa decisão difícil de compreender, ficou decidido que… nada estava decidido. Fica tudo como estava. Embora a maioria dos ministros tenham votado pela derrubada da lei, faltou um voto para ela ser considerada inconstitucional.
Como resultado, temos um imbróglio jurídico bem ao gosto nacional. O amianto crisotila continua proibido nos estados onde já estava banido, mas poderá continuar a ser comercializado e utilizado nas Unidades da Federação onde ainda não tiver sido proibido.
Mais uma vez, o interesse comercial de grandes grupos passou por cima do interesse maior ‒ a saúde da população. Se a Alemanha, a França, o Reino Unido e outros grandes países têm conseguido sobreviver sem envenenar o povo com pó de amianto, o Brasil também deveria poder fazê-lo. Mas, sacumé, o grito dos lobbies abafa o gemido dos que agonizam vitimados pela incúria oficial. E daí? Afinal de contas, os que morrem fazem parte do povão pobre, não é mesmo?
Observação
Quatro anos atrás, escrevi sobre o assunto. O artigo continua atual dado que, de lá pra cá, a situação não mudou. Se quiser recordar, clique aqui.
Falsidade ideológica
José Horta Manzano
Filosofias reencarnatórias enxergam um determinismo nas circunstâncias do nascimento. Data, lugar, sexo, filiação, nacionalidade, condições físicas e financeiras da família são definidas em função do carma acumulado pelo indivíduo em existências passadas.
Fazendo abstração dessa visão, há que admitir que ninguém escolhe as condições do próprio nascimento. As coisas simplesmente acontecem sem pedir licença. Certas particularidades podem até ser alteradas pelo indivíduo mais tarde na vida, se assim o desejar. Há quem mude de nacionalidade, há quem enriqueça ou empobreça, há os que se curam de enfermidades congênitas, há os que mudam de nome e há até quem mude de sexo. Já outros pontos são imutáveis. Entre eles, a data e o lugar do nascimento.
Com celeridade pouco habitual, o Senado aprovou ontem medida provisória proposta pelo Planalto quatro meses atrás. A nova lei faz alteração significativa no registro civil. Permite que, caso a criança tenha vindo ao mundo em município diferente daquele onde reside a mãe ‒ por inexistência de maternidade ‒, pode ser registrada como tendo nascido na cidade de residência materna.
Que lei mais estranha, sô! Costuma-se dizer que, contra fatos, não há argumentos. Taí um caso bizarro em que a lei permite que argumentos contrariem os fatos. Não sei qual terá sido a motivação do legislador. Seja ela qual for, colide com a verdade. Assim como a data de nascimento é imutável, o lugar também o é.
Tem mais. Por que a residência da mãe teria precedência sobre a residência do pai, posto que ele tenha reconhecido o filho? Por que razão consignar num documento oficial um dado sabidamente falso? O Artigo n° 299 do Código Penal determina que inserir em documento público declaração falsa a fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante é crime.
Das duas uma. Ou o lugar de nascimento não é fato juridicamente relevante. Nesse caso, só ocupa espaço no registro de nascimento, e não há por que mencioná-lo. Ou então ‒ hipótese tenebrosa ‒, o Código Penal foi ferido e ninguém se deu conta do sangramento. Algo está fora de lugar.
Observação
Para o crime de falsidade ideológica, tipificado no artigo mencionado, a pena é de reclusão de um a cinco anos mais multa. Caso seja aplicado, quem é que vai pra cadeia: o declarante ou o escrivão? Ou os dois?
Honoris causa
José Horta Manzano
Você sabia?
Em 2014, a Universidade de Notre Dame, fundada em 1842 no Estado de Indiana (EUA), outorgou doutorado honoris causa a señor José Antonio Abreu Anselmi, cidadão venezuelano. Misto de músico, educador e economista, señor Abreu já havia recebido diversos diplomas de mesmo teor assim como prêmios, láureas e homenagens ao redor do mundo.
Seu feito maior é ter dado início, ao final dos anos 1970, ao Sistema Nacional de Orquestras e Coros Juvenis e Infantis da Venezuela, conhecido simplesmente como «El Sistema». Bem antes do obscurantismo fomentado pela era chavista, o visionário se tinha dado conta de que a educação musical é uma das alavancas do processo civilizatório.
Nestes quarenta anos, «El Sistema» progrediu. Todo jovem venezuelano que sinta vontade de receber iniciação musical tem direito a ganhar o instrumento de sua preferência. Como resultado, o país tornou-se, nesse particular, exemplo para a América Latina. Proporcionalmente, conta com número de músicos mais elevado do que qualquer outro país da região. Muitos venezuelanos de origem humilde conseguiram mostrar talentos que, sem essa instituição, se teriam perdido.
De vez em quando, «El Sistema» descobre uma pérola. É o caso do maestro Gustavo Dudamel, que se formou apoiado pela instituição. O moço, hoje com 36 anos, é nada menos que diretor musical e artístico da Filarmônica de Los Angeles. Apesar da pouca idade, tem sido convidado a dirigir orquestras de primeira linha, tais como as Filarmônicas de Berlim e de Viena. Tem recebido prêmios e condecorações em numerosos países da Europa. Ele é igualmente diretor da venezuelana Orquestra Nacional da Juventude, que congrega a fina flor dos jovens músicos do país, conjunto que dá frequentemente concertos no exterior.
Para o mês de setembro, a orquestra de jovens tinha apresentações marcadas en quatro cidades americanas: Washington, Chicago, Los Angeles e São Francisco. Indignado com o descalabro que a incompetência e a ignorância de señor Maduro têm causado à Venezuela, maestro Dudamel publicou artigo no New York Times criticando o regime. Nem era tão virulento assim. Clamava por soluções imediatas “para abrir as portas a um jogo democrático mais sadio”.
Foi a conta. Señor Maduro, truculento e bronco, não admite opiniões divergentes. Mandou avisar que a Orquestra Nacional da Juventude estava proibida de viajar. Frustrou, assim, o sonho de alguns dos jovens que «El Sistema» tinha arrancado do mau caminho. Desapontou os que contavam assistir aos concertos. Mostrou mais uma vez ‒ como se necessário fosse ‒ que nossos infelizes hermanos estão vivendo sob a bota opressora de um regime injusto, incompetente e vingativo. O PT, que emprestou apoio incondicional ao regime de señor Maduro, não se manifestou sobre o episódio.
Falando em diploma
O Lula recebeu estes dias um doutorado honoris causa conferido pelos alunos da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Note-se que o diploma é inválido. Alunos não têm autoridade para outorgar título a quem quer que seja. Essa decisão é prerrogativa de escalão mais elevado.
Numa demonstração de que a formação dos alunos do estabelecimento “superior” deixa a desejar, o diploma carrega defeitos de raiz. Aqui estão alguns deles:
1) O nome do diplomado aparece escrito em duas linhas e com letras de mesmo tamanho que o resto do texto, grafismo inadmissível nesse tipo de documento.
2) O texto diz: «(…) senhor Luiz Inácio Lula da Silva, o torneiro mecânico, (…)». As vírgulas que envolvem ‘o torneiro mecânico’ indicam que haveria vários Lulas da Silva. Elas não deveriam estar aí. No cargo de presidente da República, só tivemos um. Por la gracia de Diós.
3) Estranhamente, o documento não é datado. Você já viu um diploma sem data?
4) A sentença comporta uma vírgula entre o sujeito e o verbo: «A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, concede (…)». Trata-se de inadmissível e imperdoável frasecídio. O sujeito não pode ser separado do verbo por vírgula. Jamais.
5) Por fim, os alunos da universidade sediada em Cruz das Almas assinam com uma sequência de garranchos e se proclamam «dicentes»(sic) da UFRB. Meus cultos leitores sabem que discente se escreve com ‘sc’, assim como discípulo, disciplina e toda a família.
Outorgantes e diplomado se equivalem. Tsk, tsk…
Inflação sindical
Políbio Braga (*)
O número de sindicatos no Brasil passou dos 17.200 este ano. Em setembro de 2015, antes do impeachment de Dilma, o total já era impressionante: 15.900 entidades.
Quando Lula foi reeleito, o Brasil virou campeão no número de sindicatos, com mais de 90% do total mundial.
Os Estados Unidos têm cerca de 190 sindicatos e o Reino Unido, 168. Na Dinamarca, são 164 e na Argentina, apenas 91.
(*) Políbio Braga é jornalista e blogueiro de grande popularidade especialmente no Sul do país.
Frase do dia — 339
«O mundo chora os 15 mortos do terrorismo em Barcelona, mas quem vai chorar os nossos 28 mil mortos pela violência descontrolada no primeiro semestre no Brasil?»
Eliane Cantanhêde, em sua coluna do Estadão, 22 ago 2017.
Semipresidencialismo
José Horta Manzano
Quando alguém que nos é simpático dá uma sugestão qualquer, ainda que nos pareça inaceitável, tendemos a levá-la em consideração. Ainda que estejamos em total desacordo, daremos ouvidos, argumentaremos e pode até ser que aceitemos a ideia nem que seja com reservas. Já quando a sugestão vem de alguém que nos é antipático, tendemos a rejeitá-la de bate-pronto, sem nem ouvir até o fim.
Estes dias, doutor Temer andou falando em reformular o sistema de governo do país. Palavras como parlamentarismo e semipresidencialismo surgiram sobre a mesa. Com diferença de poucos detalhes, ideia semelhante vem sendo emitida por doutor Gilmar Mendes, por doutor José Serra e até por doutor Maia, presidente da Câmara. Dado que essas figuras carimbadas sofrem forte rejeição popular, as propostas vêm sendo tratadas com indisfarçado desprezo. Muitos veem nelas simples subterfúgios para garantir aos figurões a permanência no poder.
Nenhum dos mencionados doutores me é especialmente simpático. No entanto, acredito que não se deva jogar o bebê com a água do banho. Melhor será concentrar-se sobre o conteúdo da mensagem e esquecer, por um momento, o(s) mensageiro(s).
Estamos todos de acordo num ponto: por razões que não cabe aqui discutir, a Constituição de 1988 nos conduziu a um impasse. Por melhores que tenham sido as intenções dos que a escreveram, o sistema engendrado pela carta magna mostrou seus limites. Esgotou-se. Vivemos em crise política permanente há 30 anos. É chegada a hora de reformular a máquina.
Muitos preconizam a convocação de assembleia constituinte para reconstruir o edifício. É problemático, demorado, caro, irritante e, sobretudo, dispensável. Mais vale seguir o atalho de alterações pontuais, caminho bem mais prático e rápido. Modificações limitadas não demandam a demolição do prédio, o que é menos traumático.
Apesar de ser considerado presidencialista, nosso sistema, na prática, é um «parlamentarismo presidencialista», se é que assim me posso exprimir. A meu ver, nossos 594 congressistas (513 deputados + 81 senadores) estão muito mais perto de representar a vontade popular do que o solitário presidente da República. Grosso modo, o conjunto dos parlamentares traduz a vontade de praticamente todos os brasileiros, ao passo que o presidente é eleito por pouco mais de 50% do eleitorado. A Câmara e o Senado congregam representantes de dezenas de partidos, enquanto o presidente é afiliado a um só deles. Portanto, é indiscutível que o Congresso está mais próximo do ideal da democracia representativa.
Quem afirma que «o presidente fez» ou que «o presidente deixou de fazer» se esquece de que o chefe do Executivo depende da aprovação do parlamento para pôr em prática qualquer medida. Nosso regime dito presidencialista, em que o presidente tem grande poder, colide com o Congresso, fato que está na raiz de muitos de nossos males. Cooptação, corrupção e compra de voto de parlamentares são consequência dessa confrontação.
No meu entender, uma drástica diminuição dos poderes presidenciais ‒ acompanhada da criação da figura de um primeiro-ministro ‒ contribuiria para a diminuição de tensões. Ordens e decretos deixariam de vir do Planalto e passariam a ser objeto de debate entre os legítimos representantes do povo. O presidente guardaria atribuições limitadas e específicas de representação do país.
Em sua ingenuidade, grande parte dos eleitores dá muita importância à escolha do presidente e pouco se importa com os parlamentares. Talvez seja essa a razão de elegerem congressistas tão medíocres. Na verdade, no sistema que imagino, o presidente não precisaria nem mesmo ser eleito por voto direto. Como na Alemanha, na Itália e em outros países civilizados, poderia ser eleito pelos parlamentares. Dado que teria poder pra lá de limitado, jamais seria fonte de crise.
Pode-se dar ao novo sistema o nome que convier: parlamentarismo, semipresidencialismo ou qualquer outro. Pouco importa. O que conta é que o país seja dirigido por seus representantes legítimos e não mais por um medalhão no qual 50% dos eleitores sequer votou.
Aspas merecidas
José Horta Manzano
Como sabem meus cultos leitores, as aspas são usadas principalmente em citações e para denotar ironia. Há outros casos, menos comuns, em que alguns usam os dois pares de urubus enquanto outros preferem a escrita em itálico, aqueles caracteres inclinados. Fazemos isso quando utilizamos neologismos, gírias, estrangeirismos, termos ou expressões regionais.
A mídia impressa costuma abusar das aspas. Por um sim, por um não, tascam o sinal gráfico aqui e ali sem que nada justifique a escolha. No entanto, vez por outra, acertam em cheio.
Foi o caso desta chamada da Folha de São Paulo de hoje. Esse «talvez» cercado de urubus escancara a ironia da frase.
O verbo complacente
Dad Squarisi (*)
É ou são? Cuidado. Trata-se do verbo ser. Com ele, ligue as antenas. O verbinho é complacente. Ora aceita uma forma, ora outra. Ora as duas. Especial, recebe tratamento diferenciado. Na concordância, a gramática reserva-lhe capítulo à parte. Hoje é 20 de agosto? Ou são 20 de agosto? Cem reais é muito? Ou são muito? É quase duas horas? Ou são quase duas horas? Dúvidas. Muitas dúvidas.
JOGO DUPLO
O verbo ser tem a cintura mais flexível do português. Nunca toma posição firme. Ora acha o sujeito simpático. Vai pro lado dele. Ora o predicativo o atrai mais. Eterno infiel, passa para o lado de lá.
• Tudo é flores ou tudo são flores?
O verbo olha para as flores. Acha-as simpáticas, coloridas e cheirosas. Decide: Tudo são flores.
Em outras horas, lembra-se do que aprendeu na escola (o verbo concorda com o sujeito). Muda de lado: Tudo é flores. Qual a forma correta? Ambas. Com o ser, quase sempre as duas construções estão certas. Há apenas três casos em que ele é durão, inflexível.
UM
É uma hora. São três horas. Na indicação de horas, o verbo só tem olhos para o predicativo. Concorda com o número que diz as horas:
• É meio-dia e meia. Seria uma hora da tarde. Eram umas 11 horas da noite.
Cuidado. Às vezes o número é antecedido por expressões que indicam aproximações. Não se confunda. O verbo continua o mesmo: Seriam quase duas horas quando ele chegou. São cerca de seis horas de voo. Eram mais ou menos três horas quando o presidente fez o anúncio.
DOIS
Um é pouco, dois é bom, três é demais.
Deu-se conta? As expressões de quantidade, medida, peso, valor, tempo — como é muito, é pouco, é suficiente, é caro, é barato — são invariáveis. Pretensiosas, não ligam para o sujeito. Com elas, só o singular. Veja exemplos:
• Dois mil reais é muito. Vinte quilos é suficiente. Dois minutos é muito tempo para quem está com dor de dente. Vinte reais é menos do que o produto vale.
TRÊS
Eu é que digo. Nós é que sabemos. A expressão é que recebe o nome de expletiva. Significa que pode cair fora. Mantém-se invariável:
• As rosas (é que) são belas. Nós (é que) somos patriotas.
É isso.
(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. Edita o Blog da Dad.
Barcelona e os atentados
José Horta Manzano
Nestes últimos cinquenta anos, nenhum país europeu sofreu tantos atentados quanto a Espanha. Os mais jovens talvez não se deem conta, mas o violento bando separatista ETA (Euskadi ta Askatasuna = País Basco e Liberdade), especialmente ativo nos anos 70, 80 e 90, terrorizou a nação ao cometer mais de 700 atentados, que deixaram centenas de mortos e milhares de feridos.
O grupo combatia o governo central espanhol e batalhava pela independência das províncias bascas ‒ região de Bilbao, San Sebastián e Biarritz (França). Noventa porcento do território basco se situa na Espanha e os dez porcento restantes, na França. A organização está hoje praticamente extinta. Mataram muita gente, causaram muita desgraça, mas não conseguiram o que queriam.

Esquema do atentado mais espetacular perpetrado por ETA. Foi em 1973, quando forte quantidade de explosivos projetou o carro do chefe do governo espanhol a uma altura de 30 metros.
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Em meio século de experiência em matéria de ataques terroristas, a polícia espanhola desenvolveu técnicas específicas, especialmente de prevenção de atentados. Uma vez explodida a bomba, é tarde demais. É importante agir a montante, na origem, antes que o atentado seja perpetrado. Por mais prática que tenha, nenhuma polícia será capaz de prevenir todos os atentados, mas o exercício constante contribui para inibi-los.
Estes últimos anos, tem-se exacerbado um sentimento nacionalista na Catalunha, região autônoma com território pouco mais extenso que o do Estado de Alagoas, povoada por sete milhões e meio de almas. A cidade capital é Barcelona. Dado que a Catalunha exibe um dos PIBs mais elevados da Espanha, seus habitantes têm a impressão de servir de locomotiva e de trabalhar para sustentar o resto do país.
Não se dão conta de que esse «resto do país» é justamente seu maior cliente. Não percebem que uma eventual (e improvável) independência lhes traria muito mais problemas do que vantagens. O «resto do país», por certo, não lhes facilitaria a existência. Muitas indústrias catalãs abandonariam o recém-criado estado para estabelecer-se na Espanha. Dificilmente seriam aceitos pela União Europeia, visto que o ingresso de novos membros depende de aceitação unânime e a Espanha, imagina-se, votaria contra.
A hostilidade entre Catalunha e as demais regiões tem crescido nos últimos anos. Uma das consequências é o menor entrosamento entre a polícia nacional espanhola e a polícia local catalã. Quando o contacto é tenso, problemas aparecem, a linha crepita e a circulação da informação sofre. Seria exagerado afirmar ser essa a causa principal de os recentes atentados terem sido planejados e executados em território catalão. Há outras razões. Assim mesmo, um bom entrosamento entre forças policiais sempre ajuda.
Daqui a mês e pouco, as autoridades catalãs vão organizar um plebiscito ‒ não autorizado por Madrid ‒ para consultar os habitantes sobre a independência. Os recentes atentados devem levar alguns eleitores à conclusão de que a união faz a força. Essa reflexão os pode impelir a votar pela união. Será decisão sensata.
Da boca pra fora
José Horta Manzano
Dois séculos atrás, Napoleão Bonaparte já tinha aprendido a lição dos antigos. Excluída a opção militar, só resta uma medida para amolecer o governo de um país e obrigá-lo a entrar na linha: o bloqueio econômico. Sem recursos financeiros, ninguém aguenta.
O Brasil e mais onze países hermanos publicaram nota conjunta exortando a Venezuela a voltar aos trilhos. Pelos códigos diplomáticos, é de bom tom, mas… sabe qual será a consequência? Nenhuma. Ou alguém imagina que señor Maduro tem medo de papel assinado? Declarações «da boca pra fora» não botam medo em ninguém.
Pensando bem, na sua agressiva ingenuidade, Mr. Trump estava mais próximo do bom caminho. Uma ameaça de intervenção militar no país vizinho ‒ se tivesse sido feita na surdina e com jeito ‒ teria sido mais eficaz. Pena que o presidente americano seja tão desastrado. Com seu gesto desengonçado, queimou o trunfo maior e pôs tudo a perder.
Grosso modo, a Venezuela só exporta petróleo enquanto importa todo o resto. Na medida que o mundo continuar comprando petróleo venezuelano e vendendo mercadorias a nosso vizinho de parede, a agonia vai-se prolongar. Se os doze signatários do dito Grupo de Lima ‒ entre os quais, naturalmente, o Brasil ‒ deixassem de comprar da Venezuela e se abstivessem de vender-lhe o que fosse, a ditadura estaria com os dias contados.
Francamente, nesta altura dos acontecimentos, a coisa por lá anda tão feia que vale a pena adotar atitude firme. Perseguida pelas milícias armadas, a procuradora-geral do país teve de se refugiar na Colômbia ontem. O distinto leitor se dá conta da gravidade do acontecimento? É como se doutor Janot, acossado por esbirros palacianos e com a vida em perigo, tivesse de pedir asilo ao Paraguai. O perfeito retrato do deus nos acuda.
As coisas estão de pernas pro ar. Quem devia estar pedindo refúgio é o caudilho e seu entourage truculento e ignorante. Que escapem todos rapidinho para Cuba (ou para a Coreia do Norte) e deixem o maltratado povo venezuelano respirar.
Juntos, venceremos!
José Horta Manzano
Com exceção de sunga, fio dental, vôlei de praia & afins, o Brasil não é lançador de moda. Ainda que chinelo de dedo pareça genuína invenção nacional, já era usado por chineses dois milênios antes da chegada de Cabral. (Falo de Pedro Álvares, não daquele que está na cadeia.)
O brasileiro é bastante permeável a modas importadas. Picolé mudou de nome, virou paleta, e o povo achou o máximo. Bife de carne moída, que minha avó aprendeu a fazer com a mãe dela cem anos atrás, virou hambúrguer, e o povo achou o máximo. Liquidação virou sale, desconto virou off, entrega virou delivery ‒ e o povo achou o máximo.
Tudo o que eu mencionei são leviandades. Pode-se sobreviver sem paleta, sem sale e sem delivery. Já quando se trata de assunto importante, o Brasil é bem mais renitente. Em matéria política e social, por exemplo. Aperfeiçoamentos como voto distrital, abolição de foro privilegiado e de cela especial, diminuição de empresas estatais são mudanças difíceis de introduzir. Li outro dia que os governos lulopetistas criaram 150 empresas estatais. Cento e cinquenta cabides de emprego! Pode?
Está chegando ao país nova moda, já adotada muito tempo atrás no estrangeiro. A selva de siglas partidárias, cujo significado poucos conhecem, está sendo substituída por nomes mais simpáticos, que evitam cuidadosamente a palavra ‘partido’, desgastada e malvista.
O exemplo vem de fora. Na França, temos legendas como «La France Insoumise» (A França Rebelde) e «En Marche!» (Vamos em frente!). Na Espanha, apareceram «Podemos» e «Ciudadanos» (Cidadãos). Na Itália, há «Movimento Cinque Stelle» (Movimento Cinco Estrelas) e «Forza Italia» (Força, Itália!). Até na vizinha Bolívia, já faz tempo que señor Morales chefia o «Movimiento al Socialismo».
É o Zeitgeist ‒ sinal dos tempos. Partidos, tanto os tradicionais quanto os de aluguel, andam pra lá de desgastados no Brasil. (Se é que, um dia, já significaram alguma coisa.) Por que não aderir à moda? Nomes têm surgido a cada dia : Patriotas, Avante, Democracia Cristã, Livres, Centro Democrático. Até o PMDB, pra lá de manjado, estuda retomar a denominação originária de MDB.
No final, por que não? Não há de fazer mal a ninguém. Duvido que alguém possa recitar, na ponta da língua, o nome por extenso dos quase quarenta partidos registrados atualmente no país. PRTB? PSL? PCO? PMB? PRB? O distinto leitor conhece todos? Nem eu.
Diferentemente de alguns analistas, não vejo nessa onda de mudança nenhuma jogada de marketing urdida pelos partidos para esconder espírito malévolo debaixo de pele de cordeiro. Exibir denominações em vez de siglas traz mais vantagem que prejuízo. E me parece facilitar a identificação de cada associação. Reconheçamos que um hipotético «Juntos, venceremos!» é mais sugestivo e bem mais atraente que um reles PXYZ ou coisa que o valha.
Viva a nova moda! Que mudem todos! Ah, e que aproveitem a oportunidade para despedir todos os eleitos atuais e substituí-los por sangue novo. Como já dizia o outro, pior do que está não fica. Que se aposentem. Política não é profissão.
Porque beleza de alma também é fundamental
Myrthes Suplicy Vieira (*)
Elimine de seu cardápio imediatamente a gordura das paixões desenfreadas. Corte já de sua dieta o açúcar dos afetos comprados a peso de ouro. Não ingira nada que contenha o glúten dos laços emocionais de conveniência. Eles são um perigo, vão se transformar em açúcar no seu sangue mais dia menos dia e acarretar profundo desconforto psíquico a longo prazo.
Afaste-se tão logo seja possível da lactose dos compromissos ideológicos e partidários. Além de demandarem muito esforço orgânico para serem digeridos, só beneficiam plenamente os neófitos. Resista o quanto possa ao sedentarismo da alienação social. Gigantescas placas de conformismo vão se acumular nas suas artérias e dificultar o livre fluxo do sangue vivo da coragem de transformar.
Abstenha-se de inalar a fumaça do derrotismo antecipatório, comprovadamente cancerígena. Não se deixe embriagar por tantas promessas inebriantes de fama e de sucesso financeiro. Vários estudos já comprovaram que ambos têm altíssimo poder aditivo. Quanto mais sedutores forem esses licores, mais eles o vão induzir ao abandono de outras conquistas relevantes, como a família, os amores gratuitos e a paz de espírito.
Fuja, como o diabo da cruz, do desejo de enrijecimento muscular do seu envoltório físico. Um dia você vai perceber que o bumbum na nuca, a barriga de tanquinho e as panturrilhas inchadas só o tornaram insensível para vivenciar as experiências enternecedoras de vida, como o sorriso de uma criança, a beleza de um pôr de sol, um silencioso abraço apertado de um amigo ou o olhar de admiração de seu cachorro.
Não se envolva em orgias sensoriais, a não ser que as planeje com total consciência das verdadeiras demandas de seu desejo e aceite a responsabilidade pelas consequências danosas de tanto estirar e encolher alienado de alma. Não carregue o sobrepeso das amarguras, dos remorsos, dos ressentimentos e da desesperança.
Exercite-se todos os dias na arte de doar. Doe seu tempo, sua energia, seu dinheiro e seu amor a quem não espera que você o faça. Torne-se um mestre faixa preta na arte de surpreender e ser surpreendido. Não se deixe abalar por inesperados desvios forçados do seu trajeto amoroso. Às vezes vale muito a pena deixar de lado o rigor dos projetos preconcebidos para perder-se no espaço aberto das oportunidades de novos encantamentos.
Acima de tudo, ganhe consciência do quanto sua fragilidade humana pode enriquecer seu portfólio afetivo – e não o contrário. Ninguém se basta e todos os vínculos são provisórios. A aceitação dos próprios contornos anímicos derrete toda forma de resistência, aproxima seres que se sabem imperfeitos e motiva na busca pela grandeza interior.
Já está cientificamente provado que o que adoece o espírito é o tédio, a falta de sentido do estar no mundo e a falta de um propósito claro para a própria existência.
Desintoxique-se, redescubra-se, perdoe-se pelo tempo perdido, abençoe seus desafetos, recomece uma vez e outra. Viver é perigoso, fascinante… e mortal.
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.