Kintsugi

Prato de Rosina Wachtmeister após restauro Kintsugi

José Horta Manzano

Um dia um prato que estava pendurado na parede da cozinha despencou e se espatifou no chão. Eu gostava muito da peça, uma porcelana pintada pela artista austríaca Rosina Wachtmeister, especializada em retratar gatos estilizados.

Rosina teve um percurso de vida peculiar. Nascida na Áustria em 1939, emigrou para o Brasil, junto com a família, quando estava com 14 anos. Passou a adolescência e o início da vida adulta em Porto Alegre, onde aprendeu Pintura e Escultura na Escola de Belas Artes. Aos 28 anos, casou-se com um italiano e voltou para a Europa. Estabeleceu-se na Itália, onde vive até hoje. Está com 83 anos.

Chateado com o prato espatifado, fui à internet pra ver se conseguia encontrar outro igual. Nada feito, era uma série limitada. Nesses sites em que particulares vendem velharias, encontrei pratos semelhantes, mas nenhum tão bonito como o meu. De repente, não me lembro onde, li um artigo que falava de Kintsugi.

Trata-se de uma técnica japonesa de restauração de objetos de porcelana e cerâmica quebrados. Os japoneses são um povo que não despreza a velhice, antes, respeita e valoriza pessoas e coisas antigas.

A filosofia nipônica parte do princípio que peças antigas têm grande valor por carregarem uma longa vivência. Quando se quebram, devem ser restauradas. E as cicatrizes não precisam ser disfarçadas, ao contrário, devem ser acentuadas para mostrar que o objeto é antigo e tem valor. O reparo é feito com cola misturada com ouro em pó, de maneira que as cicatrizes fiquem bem aparentes.

Meu prato quebrado não tinha tanto valor, ao ponto de merecer ser consertado com pó de ouro. Numa loja de bricolagem, encontrei a cola e um pó dourado, feito não sei de quê, mas de cor bonita e preço abordável. Não foi difícil consertar o objeto, que voltou a ser dependurado exatamente no mesmo lugar de onde havia despencado.

Lembrei desse episódio estes dias, quando vi foto dos caquinhos a que ficaram reduzidos vasos chineses vandalizados nos palácios da República pelos discípulos de Seu Mestre. Os restauradores vão ter muito trabalho. Não acredito que venham a recorrer ao kintsugi.

De castigo

José Horta Manzano

Você sabia?

A Segunda Guerra deixou a Europa arrasada. Quando acabou, em 1945, a destruição era geral. Não tinha sobrado pedra sobre pedra. Cansada de guerra, tratou de construir uma estrutura que garantisse a paz. De lá pra cá, se guerras houve, estouraram em países que não faziam parte da União Europeia, como na antiga Iugoslávia. Fora esses enfrentamentos periféricos, o continente sossegou. Passou a resolver diferendos na mesa de negociações, não mais na boca do canhão.

Nem sempre tinha sido assim. A história do Velho Continente, desde a antiga Grécia, foi marcada por interminável sucessão de guerras, enfrentamentos, ataques, invasões, ameaças. Ao sabor das batalhas, fronteiras mudavam de lugar, impérios desapareciam, outros surgiam. Como aprendemos na escola, nosso país, na época colonial, chegou a sentir os efeitos dessas reviravoltas europeias.

Rei Felipe V, da Espanha

De fato, uma crise de sucessão na Coroa portuguesa deu origem à junção forçada dos reinos de Espanha e de Portugal. Esse período de sessenta anos (1580-1640) é conhecido na Espanha como União Ibérica, enquanto é chamado em Portugal de Domínio Espanhol. Questão de ponto de vista. Logo, o Brasil, terra lusitana naquela altura, tornou-se colônia hispânica por seis décadas. Hola, hermanos!

Uma guerra de sucessão entre os Bourbons e os Habsburgos corria solta no comecinho dos anos 1700. Tinha tido origem quando um rei da Espanha morreu sem deixar descendência. Uma batalha decisiva ocorreu em 1713 na região de Valencia, na cidadezinha de Xátiva. O enredo é demais complicado, e não vale a pena descer aos pormenores. A memória coletiva dos habitantes guarda gosto amargo dos massacres de que os antepassados foram vítimas. O ressentimento contra os Bourbons perdura até hoje.

Rei Felipe V, da Espanha

Acontece que a Casa de Bourbon continua até hoje no trono espanhol. O atual rei, Felipe VI, pertence a essa dinastia. Em Xátiva, hoje com 30 mil habitantes, há um museu de arte que abriga pinturas. Entre os quadros, há um que retrata o rei Felipe V, aquele que reinava na época da batalha de 1713. Artisticamente, não é nenhuma obra-prima, mas representa justamente o detestado opressor, fato que incomoda os nativos.

Nos anos 1950, o diretor do museu era um señor mais ousado que seus antecessores. Um dia, tomou a decisão de pendurar o quadro de cabeça para baixo. Está até hoje nessa posição. Ficou combinado que só voltará à posição original no dia em que um de seus descendentes pedir desculpas pelo massacre que os antepassados cometeram contra a cidadezinha.

Até hoje, nenhum dos reis da Espanha aquiesceu ao pedido. Para surpresa de visitantes do museu que não conhecem a história, o quadro continua de ponta-cabeça.