Impeachment – atualização

José Horta Manzano

Como se sabe, qualquer cidadão da República pode solicitar a destituição do presidente. Não precisa ser parlamentar nem doutor. Basta seguir direitinho o manual e dar entrada da papelada na Câmara Federal. Em seguida, o desfecho vai depender da boa vontade do presidente da Casa e – principalmente – do clamor das ruas, medido pelos passeatômetros e panelaçômetros do país.

Em fevereiro, publiquei um artigo sobre pedidos de impeachment. Eu comparava o número de requerimentos recebidos pela Câmara Federal durante o mandato de cada um dos presidentes, de Collor até Bolsonaro. Passados 5 meses, a situação evoluiu bastante.

Como diz o outro, nada é tão ruim que não possa ser piorado. Pois o capitão continua descendo a ladeira. Veja só:

Itamar foi alvo, em média, de
um pedido de impeachment a cada 183 dias

FHC foi alvo, em média, de
um pedido de impeachment a cada 108 dias

Lula foi alvo, em média, de
um pedido de impeachment a cada 79 dias

Collor foi alvo, em média, de
um pedido de impeachment a cada 42 dias

Dilma foi alvo, em média, de
um pedido de impeachment a cada 30 dias

Temer foi alvo, em média, de
um pedido de impeachment a cada 26 dias

e agora, senhoras e senhores, o campeão estourado:

Bolsonaro, que, em fevereiro, estava na marca de um pedido a cada 11 dias, melhorou bem o record. Acaba de atingir a média de um pedido de impeachment a cada 7 dias!

Ele segue firme no esforço pra chegar a um pedido por dia!

Como diz Dona Cultura
Todo mal tem sua cura
Água mole em pedra dura

Tanto bate até que fura

Tranquilos, cidadãos! Não falta muito. Qualquer hora, nos livramos do homem.

Rodeios

José Horta Manzano

Às vezes é complicado abordar um assunto. Nessas horas, a gente dá voltas, enrola, tergiversa, rodeia, fica sem jeito e não encontra coragem. O tempo passa e o que tinha de ser feito vai ficando cada dia mais difícil. É o que está ocorrendo há mais de ano na política brasileira.

Logo que assumiu a Presidência, Jair Bolsonaro começou a dar sinais inquietantes de que não era o funcionário certo no cargo certo. Sua adoração por Trump, a história da mudança da embaixada em Israel, a ofensa à mulher de Macron acenderam luz amarela. “Será que esse homem bate bem da bola?” – era a pergunta que corria por becos e ladeiras.

A pergunta continua no ar, sem resposta definitiva. Será um bobão amalucado ou simplesmente um ignorante mal-intencionado? Saberemos um dia com certeza. O que, desde já, sabemos é que a prova de fogo da pandemia foi um revelador que desnudou o rei. O atual presidente não está capacitado pra exercer o cargo. Sua troca é mais que urgente. Só não enxerga quem não quer.

Os poderosos do andar de cima, no entanto, têm-se mostrado incapazes de atacar o problema. Rodeiam, rodeiam e sempre atiram para os lados sem mirar o centro. Faz tempo que estão nesse “faz que vai, mas não vai”. Parece que têm medo do tigre de papel.

Em vez de pressionar o presidente da Câmara para instaurar logo um processo de impeachment, instalaram uma CPI. Convocam gregos e troianos, gente fina e gente à toa, bem-intencionados e mentirosos. Mandaram que um determinado indivíduo seja trazido à força diante do comitê. Sabem todos perfeitamente que o nome do mal é um só: Jair Bolsonaro. Mas evitam atacá-lo de frente.

Será que todos têm medo de melindrar o capitão? Eleitoralmente, terá muito a ganhar quem se dispuser abertamente a desalojá-lo do pedestal. Essa atitude de “rabo no meio das pernas” não é produtiva. Num dos momentos mais dolorosos de sua história, não é disso que o Brasil precisa. Francamente.

Estratagemas

Rei Balduíno

José Horta Manzano

No dia 3 de abril de 1990, pouco antes da meia-noite, os ministros do governo belga se encontraram para uma reunião de crise. Após uns minutos de deliberação, constataram que o rei estava “impossibilitado de reinar”.

No dia seguinte, a decisão foi publicada em edição especial do jornal oficial do país, o que permitiu ao primeiro-ministro e aos demais ministros tomar as rédeas do governo e assumir as funções do monarca.

O rei Balduíno estava em perfeito gozo de sua saúde física e mental. Como é possível, então, que tenha sido julgado “impossibilitado de reinar”? Para entender, é preciso voltar no tempo. Uma semana antes, depois de anos e anos de hesitação, o parlamento tinha aprovado uma lei de descriminalização do aborto voluntário. Para a entrada em vigor, só faltava a sanção do monarca.

O problema é que o rei Balduíno, católico fervoroso, se recusava a promulgar a lei. Afirmou que não assinaria o documento nem se o papa lhe pedisse. Não queria que seu nome ficasse para sempre ligado a uma lei cujo teor colidia frontalmente com suas convicções. Diante do impasse, constitucionalistas encontraram uma saída – um tanto ousada e fora de esquadro, é verdade, mas servia pra contornar o problema.

Assim que a real interdição foi publicada no órgão oficial, os ministros, agora únicos responsáveis, assinaram e promulgaram a lei. No dia seguinte, o ministério se reuniu novamente. A ordem do dia era uma só: discussão sobre a interdição do rei. Após rápida deliberação, a interdição foi anulada e Balduíno foi de novo julgado “apto a reinar”. No dia seguinte, a boa notícia foi sacramentada pelo diário oficial e o monarca recuperou o trono.

No Brasil, faz uns dias, situação análoga estava se desenhando. Os deputados federais haviam votado um orçamento que desrespeitava as leis vigentes. Suas Excelências, cujo único interesse parece ser permanecer no poder para todo o sempre, sabiam o que faziam ao votar a peça. Mas deixaram o abacaxi para o presidente descascar.

Bolsonaro sabia que, se sancionasse o orçamento como foi votado na Câmara, estaria cometendo crime de responsabilidade, o que poderia levar à abertura de processo de impeachment. Se não o sancionasse, entraria em choque frontal com Suas Excelências que, em represália, poderiam até abrir… um processo de impeachment – há dúzias cochilando na gaveta da Mesa Diretora.

Foi quando surgiu a ideia de uma malandragem salvadora. (Afinal, nesta altura do campeonato, não é um trambique a mais que vai arruinar de vez o currículo do presidente.) Bolsonaro embarcaria num avião com destino ao exterior, para uma viagem de um ou dois dias. Por seu lado, Mourão, o vice-presidente, também deixaria o país. Assim, a via estaria livre para o presidente da Câmara, que é o nome seguinte na linha de sucessão, assumir a Presidência. Ele sancionaria a lei do orçamento, e pronto: Bolsonaro escaparia ao risco de destituição.

O cenário parecia bem desenhado. Quando chegou a hora dos finalmentes, veio a pergunta: “Muito bem, e Bolsonaro viaja para onde?”. Foi aí que caiu a ficha.

Os estrategos do Planalto foram obrigados a encarar a realidade: nenhum país está disposto a receber Bolsonaro. Nem vizinhos próximos, nem os mais distantes, nem Europa, nem Estados Unidos. À África, ele tem medo de ir. Viajar à Polônia, país que talvez o recebesse, fica complicado, porque a distância é muito grande.

Não, minha gente, não deu. E a ideia foi abandonada.

Impeachment, impedimento

José Horta Manzano

Pela nossa legislação, qualquer cidadão da República pode solicitar a destituição do presidente da República. O pedido fundamentado de impeachment(*) será acompanhado de provas documentais e mencionará 5 testemunhas. Deve ser apresentado à Câmara Federal, que proverá.

É interessante fazer as contas de quantos pedidos de impeachment foram apresentados contra os seis presidentes que antecederam Bolsonaro. Fiz as contas de quanto tempo cada presidente permaneceu no trono e comparei com os pedidos de destituição que sofreu. O resultado é interessante.

Itamar recebeu
um pedido de impeachment a cada 183 dias

FHC recebeu
um pedido de impeachment a cada 108 dias

Lula recebeu
um pedido de impeachment a cada 79 dias

Collor recebeu
um pedido de impeachment a cada 42 dias

Dilma recebeu
um pedido de impeachment a cada 30 dias

Temer recebeu
um pedido de impeachment a cada 26 dias

e agora, senhoras e senhores, o campeão estourado:

Bolsonaro recebeu
um pedido de impeachment a cada 11 dias!

Como diz Dona Cultura
Todo mal tem sua cura
Água mole em pedra dura

Tanto bate até que fura

Desde tempos antiquíssimos já se sabe que, no final, a insistência sempre acaba vencendo. Apesar da (frágil) barreira representada por cupinchas de circunstância instalados na Câmara, não custa insistir. Pedir o impeachment de Bolsonaro sai de graça e pode render dividendos inestimáveis. Livrar-se do homem não tem preço: vale mais que acertar no milhar. Já preparou seu pedido?

Na origem, o impedimento era feito por meio de um trabelho para entravar os pés e impedir a marcha.

(*) Impeachment é palavra que importamos diretamente do inglês. É substantivo derivado do verbo to impeach. Adotamos com casca e tudo, sem mexer em uma letra sequer.

O inglês importou essa palavra do francês empêcher, lá pelos anos 1300. Na travessia do Canal da Mancha, o verbo sofreu alteração de sentido. Em francês, equivalia a nosso impedir; em inglês, adquiriu o senso de impugnar, incriminar, acusar alguém de crime contra o Estado.

Por seu lado, o francês recebeu o termo do latim medieval impedicare, evolução do latim clássico impedire, que equivale a nosso impedir.

No original latino, o verbo é composto pela partícula in + pes/pedis (=pé). Impedire, na origem, traz a ideia de prender os pés, atravancar, não deixar andar, segurar.

Não é bem o sentido que atribuímos a nosso impeachment nacional. A intenção não é segurar o presidente. O que se quer é o contrário: vê-lo pelas costas. Que corra sem olhar pra trás, vá-se embora pra bem longe e não volte nunca mais.

Ódio à ciência

José Horta Manzano

Artigo do jornalista Vinicius Sassine, publicado no Estadão, dá a informação:

«O governo Jair Bolsonaro cortou 68,9% da cota de importação de equipamentos e insumos destinados à pesquisa científica. A medida afeta principalmente as ações desenvolvidas pelo Instituto Butantan e pela Fiocruz no combate à pandemia da Covid-19. Em 2020, o valor foi de US$ 300 milhões. Para 2021, serão apenas US$ 93,3 milhões.»

O distinto leitor leu corretamente. No meio da epidemia mais grave que o país já enfrentou, quando o pouco que temos de institutos de pesquisa se descabelam pra tirar do chapéu uma solução para prevenir o alastramento da doença, doutor Bolsonaro gira a faca na ferida. Cortou mais de 2/3 dos incentivos que deviam beneficiar a pesquisa.

Ele segue firme e bate o pé. Odeia a ciência. E continua apostando na derrocada do país. Em sua cabecinha, sobrevive a ideia fixa: com a nação em ruínas, montanha de mortos, caos total, ele se atribuirá plenos poderes e se tornará o salvador da pátria.

É por caminho semelhante que ditadores subiram ao trono. Napoleão se aproveitou do caos provocado pela Revolução Francesa. Josef Stalin valeu-se da bagunça que se seguiu à Revolução Bolchevique. Adolf Hitler surgiu das cinzas da Alemanha derrotada e humilhada em 1918. Só que tem uma diferença importante. Todos esses ditadores cresceram de um desmoronamento que não tinha sido provocado por eles. Já nosso doutor procura, por conta própria, provocar esse desmoronamento.

Essa teoria é a única que explica tim-tim por tim-tim todas as suas atitudes que, à primeira análise, parecem desconjuminadas e incompreensíveis. No delírio presidencial, há método.

A meu ver, a sua destituição não deveria passar pelo impeachment, caminho pedregoso e incerto; ele devia mesmo é ser interditado. Tinha de sair do Planalto direto para o hospital psiquiátrico. Lugar de Napoleão de hospício é o hospício.

Vaquinha

José Horta Manzano

Até o momento em que escrevo, os pedidos de impeachment contra o presidente já passam de 60. É um recorde; nem a Dilma conseguiu atingir essa marca.

O processo de destituição de um presidente da República é longo e doído. E deixa sequelas. Quando possível, é melhor evitar. Mas no caso de doutor Bolsonaro, não dá pra esperar. Tem de ser já, agora, antes que a destruição das instituições chegue a um ponto irrecuperável.

A interferência do lulopetismo no andamento da República também foi perniciosa. Mas o problema maior, além da roubalheira, era o aparelhamento – a instalação de capangas em órgãos oficiais. A estrutura em si não foi abalada. Quando o petismo foi derrotado, bastou dar uma ‘limpa’ nos postos-chave.

Com o doutor é diferente. Não são somente os postos de chefia que estão sendo aparelhados (com militares e outros cupinchas ineptos). O mal é mais profundo.

A estrutura pacientemente construída durante décadas está sendo destruída. Os órgãos responsáveis pelas questões agrárias e indígenas estão entre as vítimas. A cobertura vegetal do país, que a natureza levou milhares de anos para consolidar, foi entregue a madeireiros e a agrotrogloditas para demolição.

A imagem do Brasil no estrangeiro, que já não estava lá essas coisas nos últimos anos do lulopetismo, foi pr’as cucuias de vez.

Fiquei sabendo da existência de um site chamado Vakinha, talvez o distinto leitor já conheça. Ele abriga as mais variadas propostas de financiamento colaborativo (em bom português: crowdfunding). Estão lá centenas de vaquinhas para ajudar quem precisa.

Entre as propostas, uma me pareceu original. Era a «Vaquinha para comprar o Centrão e aprovar o impeachment do Bozo», título que dispensa explicação. A ideia era simples: se cada um dos 60% de brasileiros que desaprovam o governo doasse 1 real, estariam reunidos os milhões necessários.

Não prosperou. Conseguiram só cinco mil e poucos reais, doados por 150 apoiadores. Acho que faltou divulgação.

Pode parecer folclórico ou até pretensioso. Como é que alguém imagina que os parlamentares aceitariam pagamento assim, às claras, para derrubar Bolsonaro? Olhe, é melhor não duvidar! Tenho certeza de que haveria muitas mãos estendidas.

Cai ou não cai?

José Horta Manzano

Entre nós, a queda de alto dirigente não é tabu. Só no estado do Rio de Janeiro, nos últimos 4 anos, 5 governadores foram presos: Sérgio Cabral, Pezão, Garotinho (ele), Garotinho (ela) e Moreira Franco. Afastado ontem pelo Tribunal de Justiça, doutor Witzel está a um passo do presídio de Bangu.

No Planalto, não tem sido diferente. Nos últimos 25 anos, 2 presidentes foram destituídos (Collor e Dilma) e 2 outros foram presos (Lula e Temer). Portanto, figurão afastado e/ou preso não é novidade.

Se doutor Bolsonaro conseguir se segurar até o fim do mandato sem ser derrubado com base nos preceitos constitucionais, estará dada a prova de que nossa República está de fato desamparada. Ficará (ainda mais) evidente que os integrantes do Congresso e do STF são, em maioria, gente de mesmo nível que o presidente. Ou são oportunistas que, por interesse pessoal, a ele se igualam – o que dá no mesmo.

Se doutor Bolsonaro conseguir se segurar até o fim do mandato sem ser derrubado por manifestações populares como as de 2013, que acabaram por mandar Dilma de volta pra casa, estará dada a prova de que somos todos bundões.(*)

(*) Não está nos hábitos deste blogueiro empregar aquele padrão de palavras que, antes de serem pronunciadas, exigem que se retirem as crianças da sala. Estou aqui citando literalmente o epíteto que o presidente pespegou aos que ousaram questioná-lo sobre atos suspeitos.

Para evitar impeachments

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 julho 2020.

Quem se lembra daquele presidente de Honduras, caricatura do típico caudilho latino-americano bigodudo, aquele señor que queria se tornar ditador? Zelaya era o nome dele. O moço fez travessuras. Percebendo que o país ia desandar, militares de alta patente não hesitaram. Mandaram tirá-lo da cama no meio de uma tépida madrugada tropical, sem direito a trocar de roupa: foi desterrado de pijama. Não se ouviu mais falar dele.

Evo Morales, da Bolívia, era outro que dava sinais cada dia mais inquietantes de que pretendia se instalar em definitivo no Palacio Quemado. Um belo dia, foi discretamente informado pelo Estado Maior do Exército de que não podia mais contar com apoio militar e que era melhor afastar-se. Renunciou na hora, embarcou num avião das Forças Aéreas Mexicanas e asilou-se na turística Acapulco. Com as acusações que lhe pesam nas costas, dificilmente pisará de novo os picos áridos e gelados do país natal.

No Brasil, também costumava ser assim. Washington Luís em 1930, Getúlio Vargas em 1945 e Jango Goulart em 1964 seguiram figurino de justiça expeditiva. Hoje o procedimento está mais civilizado. Assim mesmo, com duas destituições em 25 anos, a rotatividade continua acelerada.

Os constituintes de 1988 decerto não imaginaram que processos de destituição pudessem repetir-se com tal frequência. Prova disso é que, apesar de detalhista, a Carta Magna não regulamentou a matéria. Em pleno século 21, impeachments continuam arrimados numa lei sancionada de 70 anos atrás. Recorrer à destituição a cada vez que o chefe do Executivo escorrega é processo desgastante, que trava o andamento normal do país durante meses. A conduta errática da atual presidência – e o espectro de impeachment que a acompanha – devem despertar uma reflexão nacional sobre a oportunidade de instaurar-se o parlamentarismo.

Para quem receasse sentir-se órfão, consola saber que o regime parlamentar não prescinde necessariamente da figura presidencial. O presidente pode até continuar a ser eleito pelo voto popular. A diferença mais notável é a drástica diminuição de seus poderes. Em alguns poucos países, como França e Portugal, embora o governo seja exercido por um primeiro-ministro eleito pelo Congresso, o presidente conserva certas atribuições de Estado; pode, em certos casos, interferir na política externa. Na maioria dos países, nem isso. Presidente é figura representativa – quem governa, de fato, é o parlamento.

Mas, atenção! Para um regime desses funcionar, é essencial estreitar a relação entre eleitores e eleitos. No sistema atual, com parlamentares eleitos pelo voto proporcional, o divórcio é total: nem o eleitor sabe quem o representa, nem o eleito se sente compromissado com quem o elegeu. É a perfeita negação da democracia. É verdade que mexer nisso é como enfiar a mão num saco de caranguejos. Mas não há outro jeito: quando um sistema de governo começa a dar sinais de exaustão como nosso presidencialismo de coalizão (ou de cooptação ou de confrontação, como preferir), é chegada a hora de aperfeiçoá-lo.

O voto proporcional tem de ceder lugar ao voto distrital puro. É simples. Divide-se o país em 513 distritos de população equivalente, cada um correspondendo a um assento na Câmara. Cada distrito escolherá um representante – o SEU deputado – em eleição de dois turnos. Esse sistema tem numerosas vantagens. A campanha eleitoral sai muito mais barata, dado que os candidatos só apertam mãos e distribuem santinhos no interior do distrito no qual concorrem.

O eleitor saberá a qualquer momento quem é seu deputado, fato que lhe permitirá acompanhar o trabalho do eleito e cobrar-lhe as promessas. O sistema distrital tende a enxugar a dispersão de votos, deixando à míngua partidos de aluguel. Com o método distrital, sumirá também o candidato puxador de voto, aquela figura conhecida que, ao receber enorme votação, elege mais quatro ou cinco companheiros inexpressivos.

Com o presidente atual, sempre em equilíbrio precário entre lutas no interior do clã e problemas com a Justiça, toda mudança é improvável. No dia em que ele deixar a presidência, será chegado o momento. Não vai ser fácil vencer as resistências, mas vale a pena – o Brasil merece essa chance.

O país de ressaca

José Horta Manzano

Pra quem achava que os (longos) anos do lulopetismo eram o pior que se podia imaginar em matéria de governo, aqui está doutor Bolsonaro pra provar que o que já é ruim pode sempre ser piorado.

O lulopetismo roubou os dinheiros da nação; o bolsonarismo está roubando a alma do povo. Dinheiro, trabalhando e economizando, sempre se consegue juntar de novo; alma, já fica mais complicado. Não há trabalho nem economia que conserte alma arranhada.

Se não for logo interditado, este governo vai deixar um rastro de desolação em que todos sairão perdendo. Dirigentes que desprezam a cultura, desdenham a ciência e destroem a natureza estão agindo pior do que os que assaltaram o erário: estão hipotecando o futuro do Brasil como nação civilizada.

Não sei quantas reuniões ministeriais já houve desde que doutor Bolsonaro assumiu. Alguém acredita que as anteriores tenham sido diferentes dessa que foi desvelada? Moro não apontou a reunião de 22 de abril porque havia nela palavrões, mas porque escorava sua acusação de que o presidente tencionava intervir na PF.

Reunião ministerial

Incivilidades, impropérios e rasteiras parecem ser o prato do dia, servido em todas as refeições àquela gente insaciável. Todos os presentes, excluídos o cinegrafista e a mulher do café, estão na mesma salada. Ainda que alguns aparentem constrangimento, não leve a sério. Se constrangidos estivessem, já faz tempo que teriam entregado o chapéu. Se lá continuam, é porque se sentem entre iguais. Damares inclusive, com toda a pureza que exibe, deve ter os ouvidos acarpetados de palavrões.

Falando em Moro, é curioso que tenha se segurado quietinho durante ano e quatro meses, calado, apagado, apático. Há de ter ouvido muito palavrão, muita impropriedade, muitos planos antidemocráticos. No entanto, não soltou um pio. Só decidiu abandonar o barco quando a água já estava batendo na cintura.

O Centrão acaba de aceitar, com volúpia, convite pra integrar essa caravana de insanos. Como moscas atraídas pelo mel, os do baixo clero só têm olhos para as vantagens que virão em troca de apoio ao governo. Esquecem que toda moeda tem dois lados.

Ao fazer barragem a um processo de impeachment, estão levando água ao moinho do aprendiz de ditador e contribuindo para o sucesso de seu projeto autoritário. Caso o pior acontecesse e o golpe se consumasse, o Congresso seria fechado e eles – tolinhos! – seriam as primeiras vítimas. Perderiam o mandato e só com muita sorte não terminariam na cadeia. A cupidez é defeito muito feio.

Democracia?

José Horta Manzano

Em tese, o Brasil vive sob regime democrático. Democracia é sistema de governo no qual o poder é exercido pelo conjunto dos cidadãos. Essa é a teoria. No entanto, entre teoria e prática, a distância é às vezes ampla. Tem horas em que o regime é posto à prova. Estamos numa delas.

Todo cidadão de boa vontade sabe – e até estudos sobre as tuitadas das últimas 48 horas mostram – que folgada maioria de compatriotas quer mais é ver doutor Bolsonaro pelas costas. ¡Basta ya! – Chega!, como diriam os espanhóis. Encheu os picuá, como se dizia antigamente. Toda língua e todo dialeto tem expressão pra dizer que passou da conta. Nunca o Brasil teve presidente tão minguado e governo tão ruim.

É agora que a democracia tem de mostrar os músculos. É o governo do povo, pois não? O povo, decepcionado, não quer mais o líder. A lógica ensina que basta trocar de presidente. Infelizmente, não é tão simples. Nosso sistema político-eleitoral é travado. Os iluminados que costuraram a Constituição de 1988 não calcularam que uma Dilma ou um Bolsonaro pudessem ocupar a Presidência. Não previram porta de saída. Não há meios de convocar plebiscito de recall (recolha), como em outras terras.

Os duzentos e tantos milhões de brasileiros estão de mãos amarradas. O futuro imediato do país está na dependência do veredicto de um punhado de indivíduos, nossos verdadeiros grandes eleitores . São eles: o procurador-geral da República, os senadores, os deputados federais e os ministros do STF. Ao todo, não dá mil pessoas. A saída de Bolsonaro tem necessariamente de contar com a anuência deles.

Cada um dos grandes eleitores tem interesses pessoais, nem sempre sintonizados com a vontade do eleitor comum. Pra chegar ao desfecho que a maioria de nós espera, precisa haver convergência desses interesses particulares em direção a um objetivo comum, o que é difícil.

Sozinho, o distinto leitor pode se enervar, gesticular, gritar, bater panela, xingar a mãe – nada vai acontecer. Para pressionar os figurões e dobrá-los à vontade da maioria só há um jeito. É preciso que a grita popular se concerte, se alevante, se sobreponha ao ruído de robôs e milícias digitais. É o que se fez pra mandar Dilma pra casa, só que agora o prêmio é maior: um Bolsonaro vale duas Dilmas. Por baixo.

Pra ejectar o doutor

José Horta Manzano

Até casos que parecem incongruentes acabam clareando, veja só. Um deles está aqui.

Por um lado, pedidos de impeachment do presidente se empilham na lista de espera da Câmara dos Deputados. Por outro, doutor Bolsonaro continua atacando diariamente Rodrigo Maia, o presidente daquela Casa. Sabendo que cabe justamente a Rodrigo Maia decidir se põe ou não põe em pauta um pedido de impeachment, a primeira impressão é de que Bolsonaro pirou de vez. Afrontar aquele que lhe pode cortar o pescoço? Coisa de louco.

Ontem Bolsonaro se deixou filmar quando assistia a uma fala de Roberto Jefferson (lembra dele?), na qual o deputado cassado delata Rodrigo Maia, que estaria armando complô para chegar ao impeachment do presidente. Cheguei à conclusão de que a farsa estava grosseira demais pra ser verdadeira. Louco, ainda vá, mas louco a esse ponto… não é possível. Alguma coisa está errada.

Acho que encontrei a chave do mistério. Explico. Doutor Bolsonaro, que mamou nas tetas da Câmara durante 28 anos e tem certo conhecimento do funcionamento da Casa, percebeu que não há clima para impeachment neste momento. Coronavírus, confinamento, PIB desabando e aumento do desemprego impedem que um processo de destituição do presidente da República prospere. Bolsonaro sabe também que, se um processo de impeachment não tiver sucesso, ele sairá fortalecido e vacinado até o fim do mandato.

Portanto, paradoxalmente, o que interessa ao presidente é conseguir que Rodrigo Maia inicie imediatamente um processo de destituição – que certamente vai dar chabu. Pra conseguir isso, decidiu dar pedradas e flechadas diárias a fim de irritar o presidente da Câmara. Só isso explica o que o comportamento alucinante do doutor. (Se não for isso, só chamando o pessoal do hospício; e que venham com camisa de força.)

Resta torcer pra que Maia não caia na cilada. Que espere o momento favorável pra ejectar o doutor.

Tuíte – 6

José Horta Manzano

Artigo da Folha de São Paulo, 17 abril 2020

Doutor Bolsonaro continua a dar provas de persistente déficit de inteligência. Não falha um dia. Acaba de acusar o presidente da Câmara de conspiração. Culpa doutor Maia de desempenhar mal suas funções e também de tramar a deposição do presidente da República. Bolsonaro esquece que é justamente o presidente da Câmara que tem a prerrogativa de decidir se dá ou não sequência a um processo de impeachment. O mandato de Maia vai até janeiro de 2021, e numerosos pedidos de impeachment já se empilham na caixa de entrada.

Lula em Berlim

José Horta Manzano

O quarto em que Lula da Silva esteve acomodado em Curitiba por ano e meio não era nenhuma masmorra. Assim mesmo, não há de ter sido um prazer ter de viver em espaço confinado por tanto tempo. Acima de tudo, faltou a nosso guia o calor de plateias amestradas.

É surpreendente constatar que os presidentes de nossa República, tanto o Lula quanto o atual, recusam contacto com audiência que não esteja pronta a aplaudir e a dizer amém. Ambos temem enfrentar plateia heterogênea. Lula da Silva deixou de se arriscar diante de público normal desde o dia em que foi vaiado nos Jogos Pan-americanos de 2007, faz 13 anos. Quanto a Bolsonaro, é paranoico de nascença. E tudo sugere que vai piorando. Não sai da bolha de jeito nenhum.

Aproveitando que está livre, Lula da Silva foi-se para a Europa. Passou por Paris e Genebra, visitas que renderam quatro artigos neste blogue: Lula no palanque, Lula em Paris, Lula em Genebra e Lula levanta poeira. Em seguida, já que estava em terras europeias, seguiu viagem. Seus admiradores organizaram uma apresentação para 500 pessoas em Berlim.

Nosso guia, exprimindo-se em português para uma plateia entusiasmada, disse o que se imagina que pudesse dizer. Criticou o governo atual mas confessou não achar que o presidente venha a sofrer impeachment – “Temos que amargar Bolsonaro por quatro anos”. Mas garantiu que o povo brasileiro “lutará pela democracia”. Insinuou apoio ao ditador Maduro ao criticar Señor Guaidó, o autodeclarado presidente.

Quanto às eleições de 2022, deixou o suspense no ar: não se declarou candidato. Por enquanto.

Dilma continua a mesma

José Horta Manzano

Precedida por um dirigente sindical e sucedida por uma militante climática, doutora Dilma Rousseff deu o ar de sua graça, sábado 14 de setembro, na Fête de l’Humanité (Festa da Humanidade), o encontro anual de simpatizantes comunistas na França. O nome da festa faz alusão a “L’Humanité”, o jornal oficial do Partido Comunista Francês.

Organizada todos os anos nesta época, a festa é evento importante, com a colaboração de cantores, artistas populares, homens políticos e personagens conhecidos. Estende-se de sexta a domingo. Embora possa parecer surreal, o Partido Comunista ainda subsiste na França – um dos raros remanescentes na Europa. A cada eleição, propõem candidatos. Para a presidência, não têm a menor chance, mas numerosos prefeitos levam a etiqueta do partido.

Dilma Rousseff em Paris, 14 set° 2010

Doutora Dilma compareceu a uma noitada especial dedicada à liberação do Lula. Discursou. Após cada frase, uma intérprete traduzia para o francês. Madame cometeu as confusões de linguagem habituais. A certa altura, falando das últimas eleições presidenciais, disse: «Foi necessário criar um ambiente propício para que o ódio fosse gertado(?) e a mentira fosse a primeira vítima da luta contra a democracia liderada pelos golpistas». A mentira foi vítima da luta! Ai, ai, ai. Esperta, a tradutora deu a volta por cima, fez um esforço e traduziu do jeito que havia entendido. Ficou bonito, mas não se sabe se era isso que a ‘presidenta’ queria dizer. Como se sabe, discurso em dilmês tem de ser legendado.

A doutora disse ainda que a Lava a Jato foi «montagem golpista feita especialmente para destruir inimigos». Dado que a operação teve início durante seu governo, numa época em que todas as instituições aparelháveis se encontravam aparelhadas pelo PT, o blá-blá de «destruir inimigos» fica capenga.

No mais, a doutora repetiu a tese do ‘golpe parlamentar’ de que foi vítima. (Ela se refere ao impeachment.) E martelou firme o bordão único que paralisa seus correligionários: Lula livre. Queixou-se ainda da Lava a Jato com o argumento de que, se é possível prender uma pessoa com a liderança do Lula, então não há mais limites. Portanto, no entender da ex-presidente, ‘uma pessoa com forte liderança’ é inimputável e paira acima da lei.

Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei.

Bolsonaro, o insulto e a Macedônia

José Horta Manzano

Se o distinto leitor não sabe muito sobre a Macedônia do Norte, não há por que ficar encabulado: quase ninguém sabe nada. O minúsculo país, com dois milhões de habitantes e superfície menor que a do estado de Alagoas, é produto da explosão da antiga Iugoslávia. Sem saída para o mar, está encravado entre Grécia, Bulgária, Sérvia e Kosovo. Como se dizia antigamente, fica pra lá do fim do mundo.

Em média, doutor Bolsonaro costuma protagonizar um escândalo por dia. A maioria é para uso interno e não atravessa fronteiras. Alguns, no entanto, são de alcance internacional. O deste fim de semana, produzido sábado passado, é tipo exportação. Repercutiu forte na mídia europeia. Chegou até à longínqua Macedônia – uma façanha!

Reporter – Jornal online da Macedônia
Tradução da manchete: “Macron tem inveja de eu ter mulher melhor que a dele”- Bolsonaro insulta Brigitte por causa da aparência física

Aos que ainda não sabem e quiserem conhecer os detalhes sórdidos da história, aconselho consultar a mídia ou as redes. Aqui ou também aqui, por exemplo. Resumo: doutor Bolsonaro endossou um comentário, postado numa rede social, que zombava da aparência física de Madame Brigitte Macron, mulher do presidente da França. Se o pecado já é repugnante em si, é surrealista que um chefe de Estado tenha ousado cometê-lo. E é desesperador que esse chefe de Estado seja o presidente de nosso país.

Na França é, compreensivelmente, o assunto do dia. No resto da Europa, idem. Ai, senhor, que vergonha! Já tirei, faz anos, a bandeirinha verde-amarela que estava grudada no porta-malas do carro. Não são as molecagens desse presidente ignorante e malcriado que me farão içar de novo o pavilhão.

Ofensas como essa não se esquecem facilmente. Guerras já estouraram por menos que isso. Um dia, os brasileiros, mesmo não sendo diretamente culpados, acabarão pagando a conta. A não ser que se redimam destituindo o presidente. Porquoi pas? – por que não? De todo modo, o próximo não poderá ser pior. Ou?

Recolha

José Horta Manzano

Uma das lembranças que guardo da infância é a dos ônibus que circulavam com o letreiro «Recolhe». Nem iam ao destino habitual, nem voltavam ao ponto de partida. Aquela palavrinha informal, pura expressão de português caseiro, ia direto ao que interessava. Sem floreios. Quem recolhia? Recolhia o quê? Não tinha importância. A informação era despretensiosa mas eficaz. De um relance, a gente entendia que aquele veículo não estava de brincadeira. Não ia parar. Acontecia, de raro em raro, que o motorista – que a gente chamava então de ‘chofer’ –, condoído da sorte de quem esperava no ponto, desse uma paradinha camarada e embarcasse algum passageiro. O homem atropelava o regulamento mas fazia a alegria de quem se dispusesse a compartilhar aquela viagem ao repousante destino. «Recolhe»…

Não sei se ainda se veem ônibus com convite tão explícito ao descanso e ao adeus às armas como aqueles da minha infância. Espero que sim. Afinal, ônibus também são seres humanos, como diria o outro, e têm direito a um descansozinho.

Li estes dias que a ideia de uma versão moderna de recolhimento perpassa o Congresso. Não visa a mandar veículos para o descanso. Bem mais ambicioso, o objetivo é aposentar o próprio presidente da República. Recolhida ou recolha há de ter soado jeca para os ouvidos de nossos sofisticados parlamentares. Vamos banir esse jeito primitivo de falar, que diabos! O projeto fala em «recall». A realidade é a mesma, mas a palavra estrangeira soa tão melhor. Fica muito chique.

O objetivo é deixar cair um grão de areia na engrenagem da Presidência. Dessacralizá-la. Fazer que o ocupante não se sinta onipotente e blindado contra vento de boreste ou tempestade de bombordo. Em princípio, tudo o que possa levar o presidente a refletir é bem-vindo. O projeto em tramitação, no entanto, parece-me de difícil aplicação. Para lançar um plebiscito revocatório, será preciso colher um número de assinaturas equivalente a 10% dos votantes na eleição precedente. Parece pouco, mas estamos falando de mais de dez milhões de peticionários, uma enormidade! Fica no ar um problema complementar: quem é que vai atestar a veracidade de cada assinatura? Com base em quê? Como evitar assinaturas repetidas?

Nosso país não tem tradição plebiscitária. Não há um órgão depositário da amostra da assinatura de cada cidadão. Não temos um registro de residência dos habitantes. Não vejo como um voto popular revocatório possa um dia ser implantado. O bom e velho impeachment – que já serviu um par de vezes – ainda me parece o único caminho viável. A recolha de presidente por iniciativa popular direta vai ficar pra uma próxima vez.

Estagiário consegue efetivação

José Horta Manzano

Num curto mas bem estruturado artigo publicado hoje, a britânica The Economist insinua, em 750 palavras, que o mandato de Jair Bolsonaro pode ser curto. O escrito se atém ao essencial, podendo ser entendido até por um turista extraterrestre recém-chegado de Marte. O título é sugestivo: Jair Bolsonaro, Brazil’s apprentice president ‒ Jair Bolsonaro, o presidente aprendiz do Brasil”.

À vista do caminhão de trapalhadas que vêm sendo patrocinadas pela família Bolsonaro e por seu entourage, a profecia parece realizável. De fato, a persistirem os desencontros, as ofensas gratuitas, os escorregões na pista do bom senso e as rajadas de ‘fogo amigo’, o governo que está aí não vai longe. As portas estão abertas pra um desenlace abrupto.

No entanto, embora legalmente possível ‒ com um impeachment, por exemplo ‒ um abreviamento do mandato de doutor Bolsonaro está longe de ser provável. Se estivesse diante de um tapetão verde, eu apostaria minhas fichas na permanência do presidente. A não ser que motivos de acidente ou saúde não lhe permitam ficar, evidentemente.

Crédito: The Economist

Por um lado, acredito que, aos trancos e barrancos, doutor Bolsonaro & família vão acabar aprendendo que a sacola de votos que receberam não lhes dá carta branca pra segurar o país na rédea curta. Podem muito, mas não podem tudo. E que se cuidem, porque se um dos superministros (Guedes ou Moro) pedir as contas, o buraco será bem maior.

Por outro lado, não interessa a muita gente que o presidente seja destituído. Apesar de trapalhão, já mostrou ser inofensivo. Suas trapalhadas não atrapalham (com o perdão do eco) os interesses dos que realmente mandam no país. Que meninos se vistam de azul ou de amarelo, não tem importância. Que a embaixada do Brasil em Israel esteja em Tel-Aviv ou Jerusalém, pouca diferença faz. Que o 31 de março seja festejado nas casernas, o andamento da nação não estará perturbado.

Por pior que seja, o presidente ainda está a anos-luz de cometer as barbaridades dos antecessores. Com um país mais vigilante que nunca, hoje em dia seria difícil depenar a Petrobrás ou o erário. Grandes empresários, grandes produtores rurais e grandes banqueiros sabem disso. O mundo político e a intelligentsia também.

Tem mais. Na hipótese de o presidente ser apeado, o substituto seria doutor Mourão, homem bem mais inteligente e mais difícil de manipular. Portanto, um elemento perigoso. Ninguém sabe que caminho tomaria o país com o general na boleia. Não tanto por ser militar, mas por ter demonstrado ter ideias próprias ‒ um risco que ninguém quer correr.

Que durmam todos em paz. A menos que seja ceifado por um acontecimento fora do controle, doutor Bolsonaro chegará ao fim do mandato. E, apesar de ter declarado ser contra a reeleição, periga se desdizer, se recandidatar, e ganhar no voto mais quatro anos no Planalto. Quem é que nunca mudou de ideia? Assim é a vida.

Samba de um homem só

José Horta Manzano

Somos duzentos e tantos milhões. Pra enquadrar a marcha da nação e marcar o compasso dos cidadãos, há dezenas de ministros, centenas de parlamentares federais e estaduais, milhares de magistrados, prefeitos, vereadores, altos funcionários. Esse povo todo está lá, numeroso, justamente pra dar equilíbrio ao andamento da máquina. A multiplicidade de atores é garante dessa harmonia. Quando exercido por milhares de autoridades ao mesmo tempo, o poder se dilui, assegurando a despersonalização das diretivas. É importante para o bom funcionamento da democracia representativa.

Entre estarrecido e deprimido, o Brasil assistiu a espetáculo desagradável no fim de semana que passou. O drama representado no palco do Senado Federal foi grotesco, indigno de um país que se quer ‘emergente’. (Bem longe de emergir, ficou claro que ainda falta muito pra botar a cabeça fora d’água.) Só faltaram sopapos, porque o resto se viu: gente falando errado, discursos trôpegos, traições, gritos, atropelos, tentativa primária de fraude, casuísmos, decisões conforme a cabeça do cliente, indisciplina generalizada. Uma barafunda.

E tudo isso por quê? Que é que há de tão importante no cargo de presidente do Senado pra provocar tamanho apetite entre 81 marmanjos? Aí é que reside a negação do poder difuso e equilibrado. O presidente da Câmara Alta detém nas mãos imenso poderio. Cabe a ele ‒ e a ele só ‒ determinar a pauta das deliberações. Um projeto de lei que não lhe agrade? Vai pra gaveta. Um pedido de impeachment de ministro do Supremo, que não lhe pareça oportuno? Vai pra gaveta. Um pedido de impeachment do presidente da República, que não lhe convenha? Vai pra gaveta. Um pedido de suspensão da imunidade de um colega simpático? Vai pra gaveta e lá fica.

by R. Paschoal, ilustrador

Esse poder desmedido dado a um só homem abre as portas pra obscuras transações. Não é à toa que um despeitado Renan, ao jogar a toalha, lamentou ter sido traído por um dos Bolsonaros juniores ‒ aquele que é senador e que anda enrolado com a Justiça. Ficou subentendido que o enrolado dava seu voto em troca do apoio de Renan em caso de pedido de suspensão de imunidade parlamentar. É o toma lá dá cá florido e vigoroso.

O presidente da República tem o direito de governar por decretos, se assim o desejar. Isso lhe confere poder discricionário. Um solitário ministro do STF tem o direito de expedir decisões que balançam as estruturas da República. Isso lhe confere poder discricionário. Agora sabemos que também o presidente do Senado detém o controle do que será ou não votado. Isso lhe confere poder discricionário.

Conclui-se que, no frigir dos ovos, passando por cima dos milhares de pequenas autoridades que exercem um nacozinho do poder global, o grosso mesmo está concentrado nas mãos de um punhado de indivíduos, que se podem contar nos dedos das mãos. Cada um deles, quando age solitário, nos faz dançar o samba de um homem só.

Observação
Davi Samuel Alcolumbre (1977-) é o novo presidente do Senado. O intrigante e raro sobrenome é judeu sefardi(*). Os antepassados de doutor Alcolumbre hão de ter deixado um dia a Espanha, muito provavelmente quando da expulsão de 1492, para se estabelecerem nalgum país do leste do Mediterrâneo, de onde, séculos depois, emigraram para o Brasil. A grafia do nome flutua conforme a transcrição: Alcolumbre, Alculumbre, Alkulumbre são algumas das variantes.

O «Al» inicial denota arabização. De fato, ‘al’ é o artigo em árabe. Essa característica do nome Alcolumbre reforça a tese de a família estar estabelecida na Espanha à época do domínio mouro, que durou sete séculos.

(*) Diz-se sefardi (plural: sefardim) dos judeus originários da Península Ibérica. Em hebreu moderno, Sefarad é o nome dado à Espanha.

Urgência urgentíssima

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 janeiro 2019.

Muitos anos de maus governos maltrataram o país. Apesar de sacolejado por golpes e revoluções, o brasileiro não se lembra de ter assistido antes a tanto descaminho por tão longo tempo. O horizonte trancado durante quase duas décadas gerou sensação de impotência. A bateção de panela de 2013 foi bonita, empolgou, mas não resolveu. A destituição da doutora foi um começo de solução, mas não passou disso: um começo. Serviu pra desanuviar, mas não afastou o espectro do retorno vigoroso da rapina institucionalizada. Como náufragos, os brasileiros procuravam uma tábua à qual se abraçar.

Eis senão quando, na última campanha eleitoral, um candidato obscuro e desconhecido emergiu das profundezas do baixo clero do Congresso. No princípio, ninguém teria apostado um real furado no sucesso do homem. Estava mais pra figura folclórica, um daqueles candidatos que parecem estar lá só pra dar um tchauzinho na televisão e pra receber uns caraminguás do fundo eleitoral. À medida que o tempo foi passando, como quem não quer nada, a candidatura engrossou, ganhou peso e tomou lastro. Sem ser radical, do tipo ‘todos al paredón’ ou ‘à guilhotina os burgueses’, a fala do postulante denunciava o descalabro instalado nas altas esferas. O discurso não vinha tricotado com fios de oratória arrebatadora, mas dizia o que os brasileiros, cansados de guerra, queriam ouvir. Aquele em quem, seis meses antes, nenhum apostador teria botado fé venceu a corrida e ganhou direito ao trono do Planalto. Terminada a corrida e conquistada a taça, é hora de sentar e cogitar sobre o rumo a tomar.

Em princípio, preocupação com filhos termina assim que eles atingem a maioridade, deixam o lar e vão viver a própria vida. No clã dos Bolsonaros, no entanto, filhos já grandinhos continuam grudados ao pai. A mostra explícita de família unida sai bem na foto, mas os rebentos têm dado sérias dores de cabeça ao patriarca. Nas semanas escoadas desde a tomada de posse, francamente, mais atrapalharam que ajudaram. Já antes da entronização, era perceptível que os juniores se comportavam como crianças mimadas, daquelas que, na hora do recreio, desdenham dos coleguinhas: «Meu pai é mais forte que o seu!». Agora, que o chefe virou presidente, a dor de cabeça virou enxaqueca.

Os herdeiros não são a única fonte de problemas de doutor Bolsonaro. Um vozerio descontrolado percorre o mundinho que lhe está em torno ‒ secretários, conselheiros, assessores, ministros. Talvez em virtude daquele natural deslumbre que subjuga todo noviço, as declarações do entourage do presidente andam abrindo remoinhos e levantando ondas que lambem o país inteiro. São falas desencontradas, cada um se sentindo livre de afirmar o que lhe passa pelo bestunto, numa cascata de tagarelice bizarra que vai desde política externa até vestuário infantil.

Unanimidade de opiniões, concedo, é característica de regime totalitário. Como exemplo máximo, temos a bem-comportada torrente de aplausos que coroa todo anúncio de decisões tomadas pelo comitê central do partidão, na China ou em Cuba. Não é sadio, nem é o que gostaríamos de ter em nossa incipiente democracia. Nem por isso, o inverso é aceitável. As estrepolias dos filhos do presidente adicionadas à inabilidade dos que lhe orbitam em torno está gerando algaravia. Botar remédio nesse estado de coisas é caso de urgência urgentíssima.

Um outro ponto que vem gerando atrito é a radicalização religiosa de alguns dos novos componentes do andar de cima. É importante ter presente que Estado laico é invenção relativamente recente. Desde sempre, o Estado foi ligado à religião, o que não é um mal em si. Mais importante do que a crença pessoal de membros do governo é o ambiente de tolerância que deve reinar. Há países civilizados com religião oficial ‒ Inglaterra, Dinamarca, Noruega, Grécia ‒ onde, nem por isso, os habitantes se sentem aprisionados por uma teocracia em que nada existe fora da fé. A tolerância e a benevolência, se bem aplicadas, são precioso anteparo contra excessos.