Quiroprata

Chamada do Estadão

José Horta Manzano

Se é seguro entregar o pescoço para um quiroprata manipular? Olhe, fosse o meu pescoço, não deixava de jeito nenhum. Sabe-se lá que formação tem esse camarada?

A primeira parte da palavra [quiro] é raiz grega que significa mão. Quanto à segunda, tudo indica que seja prata mesmo.

Logo quiroprata pode ser um garimpeiro que gira a bateia com as mãos pra encontrar prata.

Outra possibilidade é que seja um rei Midas pobre, que não consegue transformar em ouro o que toca com as mãos, por isso vai-se contentando com prata mesmo.

Pensei ainda num carregador de mochila presidencial que tivesse poderes especiais. Mas não bate; se fosse mochileiro do ex-presidente, não se diria quiroprata, mas quiro-ouro.

Deixando brincadeiras de lado, o termo utilizado na chamada do Estadão não está dicionarizado. Nem nunca ouvi.

Essa técnica de manipulação se chama quiropraxia ou quiroprática. Quanto ao terapeuta, descarte todo quiroprata. Prefira sempre um quiroprático. É mais seguro.

Caminho traçado

José Horta Manzano

Em março último, faz exatamente 6 meses, o Estadão passou a publicar um agregador de pesquisas eleitorais. Com metodologia própria, colhe os dados levantados por 14 diferentes institutos e chega a um resultado depurado.

A ferramenta é interessante, visto que atenua imprecisões, distorções e até dados fora da curva que algum instituto individualmente possa ter publicado.

Consulto com frequência esse agregador. Com respeito às pesquisas da corrida presidencial, tenho notado uma surpreendente constância nos resultados.

 


Em 12 de abril deste ano, bem antes do início da campanha oficial, Lula era creditado com 44% das intenções de voto; naquela altura, Bolsonaro estava com 30%.


 

De lá pra cá, tivemos distribuição de dinheiro a rodo via orçamento secreto, milhões torrados na campanha oficial, propaganda gratuita em rádio e tevê, aumento substancial da mensalidade da Bolsa Família, exposição tímida do projeto de cada um, debates entre candidatos, exposição na mídia, posicionamento firme de figurões (cada um apoiando seu candidato). E qual foi o resultado?

 


Na última atualização, publicada ontem, o agregador mostra Lula com 45% e Bolsonaro com 33%.


 

Constata-se que, pouco mais ou menos, ambos oscilaram dentro da margem de erro. Seis meses se passaram e as intenções não arredaram pé. É notável essa estabilidade. Parece que todo esse frenesi e essa gastança de dinheiro público não serviram para nada.

O astral não deve estar muito alto na equipe de campanha do capitão. Ele continua garantindo que vence no primeiro turno, mas a gente se pergunta qual é a receita para mudar em 10 dias um cenário que está congelado há 6 meses.

A menos que uma catástrofe venha chacoalhar o picadeiro – tipo assassinato, morte súbita, terremoto ou bomba atômica – o caminho parece traçado.

Butcha

José Horta Manzano

Uma guerra de conquista travada na Europa em pleno século 21, de tão anacrônica e assustadora, não pôde passar despercebida. Repórteres, jornalistas, cinegrafistas do mundo todo estão de olho grudado no desenrolar dos acontecimentos.

Se a intenção de Putin era lançar uma Blitzkrieg (=guerra relâmpago), deu-se mal. Analisando desse ponto de vista, já perdeu. O bumerangue voltou mais rápido e com mais força. Em maior ou menor medida, o planeta inteiro vai sofrer; mas as consequências da insanidade serão ainda mais pesadas para Putin e seu povo.

Filmado por repórteres e sacramentado por imagens de satélite, um massacre foi cometido numa cidadezinha tranquila, situada na periferia de Kiev, povoada por 35 mil pessoas antes da guerra.

Agências internacionais deram a notícia. Como se sabe, despachos vêm em inglês. Sonolentos, alguns encarregados de traduzir para a mídia nacional descuidaram de adaptar para nossa fonética o nome da cidade agredida.

A grafia cirílica Буча, transliterada para o inglês, dá Bucha, sequência de letras que, lida por um inglês, corresponde à pronúncia original. Não sei como o nome está sendo pronunciado pelo rádio e pela tevê no Brasil. O que sei é que boa parte de nossa mídia escrita adotou, sem refletir, a grafia inglesa.

O problema é que, em inglês, as duas letrinhas “ch” são pronunciadas “tch” – coisa que a gente aprende na primeira aula. Portanto, para permitir que um leitor brasileiro pronuncie corretamente o nome da cidade, é preciso escrever Butcha, não Bucha.

Sempre alerta, a Folha de São Paulo entendeu.

Folha de São Paulo

Já os outros dois grandes órgãos da imprensa nacional continuam cochilando.

Estadão

O Globo

 

O ladrão e o larápio

José Horta Manzano

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Orgulhoso de estar dando um furo de reportagem, o autor da façanha não se deu conta da contradição e mandou para publicação. O estagiário não pensou duas vezes: paginou a manchete conforme as instruções recebidas. Ficou esquisito.

Primeiro, a notícia aponta dedo acusador a youtubeiros (=youtubers) que conseguem obter informações privilegiadas do Planalto. Em seguida, não mais que uma linha abaixo, conta que o Estadão teve acesso a mais de mil páginas de um inquérito sigiloso que corre no STF.

Ora, se a acusação é contra cidadãos que receberam informação privilegiada vinda do topo do Executivo, não fica bem ter-se inteirado do ilícito por meio de informação privilegiada vinda do topo do Judiciário.

Taí exemplo uivante do roto falando do rasgado. Ou do ladrão falando do larápio.

100.000 mortos

José Horta Manzano

“Construiu-se essa tragédia porque desde a eclosão da pandemia no País o presidente Jair Bolsonaro adotou um comportamento aviltante diante da maior dor sofrida pelos brasileiros em mais de um século. Por tudo o que se viu e ouviu, infortúnio maior não houve para a Nação do que ter na Presidência um líder tão incapaz e indiferente em momento tão grave da história nacional.

Capa do Estadão, 8 agosto 2020.

Não se sabe se Jair Bolsonaro um dia sofrerá sanções políticas ou jurídicas por seu descaso. Mas ele deveria temer pelo que pode vir a sofrer se acaso experimentar um despertar de consciência adiante.”

Trecho de editorial do Estadão, 8 agosto 2020.

O preço está caro?

José Horta Manzano

“Nessa base, dificilmente os articuladores governistas conseguirão evitar mais derrotas, porque as juras de apoio dos adeptos do toma lá dá cá são esquecidas assim que os ventos mudam – e, quanto pior a crise, mais caro será o preço do governismo.”

O trecho é citação de um dos editoriais do Estadão desta quarta-feira. Equilibrado e bem costurado, não há que contradizer: assino embaixo. O que me incomoda é o uso do adjetivo caro como modificador do substantivo preço.

Noto aí uma impropriedade – aliás, bastante comum. É daquelas esquisitices que costumam passar em branco e que só alguém muito chato consegue notar. Bem, o chato está aqui. Hello!

Caro/barato são conceitos subjetivos. O artigo que João acha caro pode até parecer barato para Pedro.

Preço não é noção subjetiva e não envolve julgamento de valor. O preço que João lê na etiqueta é exatamente o mesmo que Pedro lê. Preço não é caro nem barato; preço é preço, o valor do artigo. O artigo pode ser considerado caro ou barato – o preço, não.

by Martine ‘Althéia’ Vinsot, artista francesa

Voltando à citação do Estadão, ficaria melhor assim:

“… quanto pior a crise, mais elevado será o preço do governismo.”

“… quanto pior a crise, mais caro será o governismo.”

Viram? Se aparece a palavra preço, some o adjetivo caro; se aparece o adjetivo caro, some a palavra preço. Pôr os dois juntos é briga na certa.

Se você disser ao feirante: “Ô, seu Manuel, o preço do tomate está caro hoje, hein!”, não tem importância nenhuma. Seu Manuel não vai fazer cara feia. Em linguagem descompromissada, isso (e muito mais) é permitido. Já num editorial de jornal sério, não fica bem.

Ninguém fica para trás

José Horta Manzano

Sexta-feira, o Estadão publicou um editorial sobre o trabalho que vem sendo executado pelo Ministério das Relações Exteriores para repatriar conterrâneos que se encontrem em terra estrangeira e em palpos de aranha em razão da pandemia. O artigo é bastante elogioso e deixa a impressão de que a editoria do jornal está surpresa com a diligência do Itamaraty.

O Brasil de 2020 não é o mesmo de meio século atrás. Brasileiros hoje viajam, vão pra fora de férias, estudam fora, trabalham fora, se estabelecem fora. E não é um punhadinho de gente, não. Visto que não há obrigação de se registrar no consulado, é impossível dar um número oficial, mas as melhores estimativas indicam que somos mais de 3 milhões estabelecidos no exterior.

Sem contar os que saem de férias ou por temporada mais curta. Portanto, não me parece extraordinário que o Ministério esteja equipado pra socorrer conterrâneos em apuros no exterior. Muitos conterrâneos no exterior foram surpreendidos pela pandemia. Querem voltar para o Brasil e não conseguem, por falta de avião ou por motivo de confinamento rigoroso. Pedem que o governo dê um jeito de repatriá-los.

O editorial repercute uma nota do Itamaraty: “A prioridade continua a ser dada para que os brasileiros possam ser acomodados em voos comerciais”. Apesar de curta, a frase é torturada. Do Itamaraty, espera-se um pouco mais de cuidado. Prioridade dá-se a alguém (ou algo); não se dá prioridade para que. Corrigindo, fica assim: «A prioridade continua a ser dada à acomodação de brasileiros em voos comerciais».

O editorial cita ainda uma declaração de doutor Ernesto Araújo, o chanceler. Diz ele que, na ausência de voos ou em caso de fechamento de espaço aéreo, “estamos vendo maneiras de pagar voos fretados”,. Até aqui, tudo em ordem. É onde o ministro devia ter terminado a declaração. Mas ele preferiu continuar: “Tentaremos, claro, negociar pelo valor mais em conta possível com as companhias aéreas para trazer de volta os brasileiros. Será a única possibilidade em muitos casos.”

Não precisava ser deselegante e confessar que os compatriotas serão repatriados pelo «valor mais em conta possível». Esse pão-durismo, endereçado aos que estão em situação complicada, é desnecessário. Por que essa rispidez? Será que a palavra de ordem «Ninguém fica para trás» não passa de slogan?

Tosco como outros integrantes do atual governo, o chanceler confirma não passar de aprendiz alçado descabidamente a um cargo maior que ele.

De municípios

José Horta Manzano

Você sabia?

No Brasil, é comum os termos município e cidade aparecerem como sinônimos. Em outras partes do mundo, essa equiparação nem sempre pode ser feita. Dependendo do país, o conceito de cidade varia.

Na Suíça, a lei é clara: um povoado passa a ser chamado de cidade (=ville) a partir do momento em que sua população atinge 10 mil pessoas. Abaixo disso, é village, que se pode traduzir por vilarejo ou cidadezinha. (Em Portugal, dizem aldeia.)

Na Bélgica, no Canadá e no Reino Unido, a denominação de cidade é honraria concedida pelo poder central. O número de habitantes pouco importa. Por aquelas bandas, ainda vigora o sistema do Brasil colonial. Todos nós já aprendemos algum dia, na aula de História, que tal localidade foi elevada a vila ou elevada à categoria de vila por real decreto chegado direto de Lisboa.

Na Algéria, o critério é o número de habitantes, como na Suíça. Naquele país, aglomerados de mais de 20 mil pessoas têm direito à denominação de cidade. No Reino Unido, ainda vale a antiga tradição ibérica, a mesma do Brasil de antigamente. Não é cidade quem quer. Para ostentar o título de city, o município tem de ter obtido do monarca uma letter patent. É honraria concedida com parcimônia. As mais antigas datam da Idade Média. As mais recentes foram outorgadas por Elisabeth II por ocasião de seu jubileu de diamante, em 2012. Assim mesmo, somente 51 municípios ingleses têm direito ao título de cidade.

Nos Estados Unidos, como no Brasil atual, não há esse rigor na atribuição de estatuto a vilas, vilarejos e cidades. Fica a cargo do bom senso. De um povoado de 500 habitantes, não se dirá que é uma city. Mas ninguém cairá da cadeira se você chamar town ou city um aglomerado de 50 mil viventes. Fica, assim, ao gosto do freguês.

Na França – ah! o país das regulamentações rigorosas – a lei não deixa margem a dúvida. O INSEE (Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos), o IBGE francês, ditou norma clara e precisa: um município deixa de ser chamado vilarejo (=village) e passa à categoria de cidade (=ville) quando a população ultrapassa 2000 habitantes. Mas há uma segunda condição: a zona habitada tem de ser contínua. As casas não podem estar distantes umas das outras mais de 200 metros. Se houver quebra na continuidade, cai por terra o direito ao título de cidade. A sede do município será chamada de vilarejo (=village) e cada pequeno povoado isolado, embora dentro do mesmo município, será conhecido como hameau(*) (= povoado, arraial).

No Brasil, desde que foi votada a Constituição de 1988, políticos enxergaram vantagens e oportunidades de negócios na criação de municípios. Vantagens para eles, naturalmente. Volta e meia vem algum grupo de políticos pregar desmembramento de municípios. Em vez de um só, acham mais vantajoso que haja dois ou três. É iniciativa pra lá de discutível. No entanto, toda vez que se aproximam eleições, esse tipo de «bondade» volta ao noticiário. Às vezes, pega.

Na Europa, assiste-se a um movimento inverso. Na França há hoje 1500 municípios a menos do que em 1920. E isso não é resultado de eventuais territórios perdidos em guerras. É produto da junção voluntária de pequenas comunidades. Os cidadãos, mais instruídos, fazem as contas e, deixando pra lá rivalidades locais, chegam à conclusão de que o aumento da arrecadação e as economias de gestão compensam amplamente a perda de autonomia.

Não precisa ser nenhum gênio financeiro para se dar conta de que dois prefeitos custam mais que um. Duas câmaras, dois conjuntos de vereadores, duas estruturas de arrecadação de impostos municipais ― essa duplicidade vai ter de ser sustentada. E o dinheiro tem de sair do bolso de alguém. No final, quem acaba pagando é o próprio povo. A população do País é chamada a contribuir para o favorecimento de grupos políticos amigos do rei.

A atitude dos mandachuvas brasileiros continua igualzinha à do Brasil colônia. Lugarejos continuam a ser elevados a vila, exatamente como na Idade Média. Nossos políticos têm dificuldade para se dar conta de que o povo já não é tão alienado como naquele tempo de trevas. Ou é?

(*) O francês hameau é termo de origem germânica. Descende da mesma raíz que deu ham em inglês, hem em neerlandês e heim em alemão e norueguês. Birmingham e Tottenham (Reino Unido), Arnhem (Holanda), Mannheim (Alemanha), Trondheim (Noruega) são todos primos. Em inglês, o diminutivo de ham é… hamlet. Lembra alguém, não?

Publicado originalmente em 17 jun° 2013.

Dos males, o pior

José Horta Manzano

Pra saber o que vai acontecer neste ziguezagueante governo que nos cabe tolerar, só tendo bola de cristal guardada no armarinho da farmácia do banheiro. Bem à mão, como escova de dente e cortador de unha.

No momento em que escrevo, a mídia séria (ainda) afirma que um dos bolsonarinhos – aquele que é deputado estadual – desistiu de postular posto de embaixador da República do Brasil junto aos Estados Unidos da América do Norte. Nada garante que, quando este post tiver sido mandado ao éter, a notícia já não se tenha modificado. You never know – nunca se sabe.

No país, os que têm ouvidos de ouvir ouvem. Os que ainda têm um olho aberto observam. Os que guardam capacidade de cogitar cogitam. E todos eles se perguntam: «Que será pior? Guardar o filho deslumbrado junto ao regaço do pai ou despachá-lo pra além-mar?».

Se ficar por aqui, periga reforçar o time da maldade, aquele grupelho já conhecido como ‘gabinete do ódio’. Bom para o país é que não há de ser. Pode-se ter certeza de que as intrigas palacianas só tenderão a aumentar.

Se for mandado pra longe, sua exposição internacional será necessariamente maior. Sabe Deus a vergonha que nos fará, então, passar! E tudo junto à corte do país mais vigiado do planeta, aquele de que todos escrutam o menor suspiro. Vai ser um sufoco.

Confesso que, as duas opções traduzem o real significado da palavra dilema, qual seja, uma escolha obrigatória entre duas possibilidades más. Seja o que acontecer, será ruim para o Brasil. Valha-nos, São Benedito!

Chamada Esdatão, 22 out° 2019

Ao dar a notícia, o repórter do Estadão escorregou. Disse que o bolsonarinho desistiu da embaixada em meio à resistência de seu nome no Senado.

Enganou-se. Devia ter dito que o rapaz desistiu em meio à resistência a seu nome no Senado. Quem resiste, resiste a algo, não de algo. Existe resistência a alguma coisa, não de alguma coisa. Exemplos:

Resistiu à ideia de ir ao cinema.

Resiste a aceitar a oferta.

Não ofereceu resistência à prisão.

Fundo eleitoral crescidinho

José Horta Manzano

Nossa língua é muito difícil. Principalmente pra quem não aprendeu. A crise que assola a mídia tradicional – falo dos grandes jornais – deve ser realmente bem mais acachapante do que imaginamos. Os cortes salariais não estão atingindo só o porteiro e a mulher do café; já chegam à redação.

Estranhas chamadas de primeira página andam aparecendo. Algumas são tão absconsas que só podem ser compreendidas por iniciados; outras tiranizam a língua. Hoje o Estadão online estampou esta pérola:

Chamada Estadão, 19 set° 2019

A maior parte das vezes, o verbo crescer é intransitivo. Algo cresce. Ponto e basta, sem complementos.

Em casos mais raros, pode aparecer como transitivo indireto. Por exemplo:
À medida que discursava, o deputado transpirava mais e mais abundantemente e seu verbo crescia em furor.

Crescer não será jamais transitivo direto. Ninguém pode crescer algo.

Portanto, pra retomar o texto do jornal, a brecha aberta pela Câmara não crescerá o fundo eleitoral. Pra consertar, há diversas soluções. À escolha do freguês.

A brecha fará fundo eleitoral crescer.

A brecha aumentará fundo eleitoral.

A brecha inflacionará fundo eleitoral.

A brecha ampliará fundo eleitoral.

A brecha inchará fundo eleitoral.

A brecha expandirá fundo eleitoral.

Essa história deixa um gosto amargo. Constata-se, mais uma vez, que Suas Excelências estão legislando em causa própria. Isso não me parece republicano. Acho que certas decisões que dizem diretamente respeito aos parlamentares deveriam ser tomadas por outras instâncias.

Não faz sentido que eles fixem o próprio salário, as mordomias, os adicionais, o número de assessores, a remuneração do pessoal, as condições de aposentadoria, o valor do fundo eleitoral. Essa tarefa deveria ser atribuída a um coletivo independente de cidadãos, que nada tivesse que ver com o Congresso. Pode-se discutir sobre a composição do plantel e a forma de escolher os componentes. O importante é que cessasse essa aberração de congressistas legislarem em benefício próprio.

Não é admissível que subsistam cidadãos ‘mais iguais que os outros’, gente que tem a faca e o queijo na mão. E a boca.

Não dava

Vera Magalhães (*)

Mesmo não tendo em sua trajetória de deputado sindicalista, corporativista, pró-estatais e infiel a partidos nenhuma obra dedicada ao combate sistemático a privilégios, corrupção estrutural e desmandos de políticos, Bolsonaro conseguiu fazer prosperar na campanha o discurso de que era o mais indicado para empunhar essa bandeira. Como se apenas o contraponto ao PT lhe desse essas credenciais.

Não dava. O histórico político dos gabinetes da família Bolsonaro é o das mais velhas práticas da política: empregar cabos eleitorais, alguns deles fantasmas, muitos deles com ligações perigosas com milícias e outros grupos, com indícios fortes de prática de rachadinha de salários. Jair nunca atuou em nenhuma das grandes CPIs ou no Conselho de Ética da Câmara. Quem caiu na balela o fez porque quis.

(*) Vera Magalhães é jornalista. O texto integral foi publicado no Estadão de 11 set° 2019.

Favas contadas?

José Horta Manzano

Quando foi anunciada, a provável nomeação de um dos bolsonarinhos para chefiar a representação diplomática mais importante do Brasil no exterior parecia boato. Ou ‘fake news’, como convém dizer hoje. Era tão fora de esquadro, que nem as carolas frequentadoras da capela dos Aflitos acreditaram.

O passar do tempo, que cicatriza feridas, serve também pra acostumar o homem a consentir com ideias que, ainda ontem, rechaçava. É o que se deduz da chamada de hoje do Estadão: o moço terá de completar uma tarefa antes de se mudar para o palacete de Washington. Está subentendido que a mudança está no papo, que são favas contadas. Será mesmo?

Chamada Estadão, 2 ago 2019

Não é tão garantido assim. Ainda tem ainda uma pedra no caminho. Ou o primeiro-filho contorna essa pedra, ou não passa. Refiro-me ao Senado da República. Como bem sabe o distinto leitor, os senadores são 81, três pra cada unidade federativa. Considerada a votação que receberam, são mais legítimos do que o próprio presidente da Republica. Enquanto doutor Bolsonaro recebeu em torno de 57 milhões de votos, o conjunto dos senadores foi eleito com mais de 100 milhões. Ou seja: aqueles 81 personagens representam a totalidade do eleitorado; estão lá pra defender todos os brasileiros.

Todo embaixador, antes de ser efetivado no cargo, tem de ser aprovado pela maioria dos senadores. Doutor Bolsonarinho, goste ou não, recém-casado ou não, filho de presidente ou não, fâ ardoroso de Trump ou não, respeitado fritador de hambúrguer ou não, ignorante de questões internacionais ou não, terá de passar pelo crivo dos sisudos senadores. Em votação secreta! Vamos ver se passa.

Coleção de imprecisões

José Horta Manzano

Logo de manhã, costumo dar uma olhada nas manchetes de meus jornais habituais. Algumas merecem reflexão. As de hoje estão aqui.

Portal BR18, 6 julho 2019

Do Portal BR18
Maia não vê ‘crime’. Fico aqui tentando adivinhar qual teria sido a misteriosa razão que levou o estagiário a proteger a palavra “crime” com um par de aspas. Esses urubus gráficos se usam em citações. Não é o caso. Podem-se também usar pra sublinhar palavra usada em sentido irônico ou desvirtuado. Não parece ser o caso – doutor Maia acredita realmente que a divulgação não constitui crime. Portanto, salvo melhor juízo, as aspas podem voltar pro armário. (De onde nunca deviam ter saído.)

Até agora, falamos da forma. Agora, vamos ao fundo. A manchete diz que doutor Maia não vê crime. E daí? Ainda que ele esteja no topo do Legislativo, não lhe cabe emitir opinião sobre o grau de criminalidade do que quer que seja. A opinião dele vale tanto quanto a minha ou a de qualquer vivente. Quem deve dizer se há ou não há crime é a Justiça. Ponto final.

Estadão, 6 julho 2019

Do Estadão
Quando o político se vê encurralado e sem argumentos convincentes, costuma apelar para a velha saída do julgamento popular. Costumava aparecer ao pé do patíbulo, como última declaração do supliciado. Getúlio Vargas, que se autossupliciou, escreveu que deixava a vida pra entrar na história. Fidel Castro foi pelo mesmo caminho e disse, com voz trêmula, que a história o absolveria. (Até hoje, não ocorreu.) Lula da Silva ressuscitou a formulação do caudilho cubano ao repetir que a história o absolveria. (Por enquanto, continua cumprindo pena na cadeia.) Doutor Bolsonaro, ao lançar mão desse tipo de argumento, está indo pelo mau caminho. (Pode dar azar.)

Estadão, 6 julho 2019

Do Estadão
Maia de olho em 2022! No andar de cima, a compostura anda fazendo muita falta. Doutor Maia é presidente da Câmara. O cargo, pra lá de importante, deveria absorver todo o seu tempo. Sua preocupação deveria ser com o hoje, com o que está acontecendo agora, com os acertos que serão feitos amanhã de manhã. Não é hora de se preocupar com apoios políticos a vigorar daqui a três anos. Doutor Maia deixa claro que não está nem aí para o que acontece hoje na Casa que preside. Parece mais preocupado com assegurar a continuidade da boquinha.

Estadão, 6 julho 2019

Do Estadão
Um esquema de segurança que deixa passar uma mala com 39 quilos de cocaína num avião da frota presidencial não merece o nome que tem. Esse, sim, merece aspas: esquema de «segurança». Estava na hora de reforçá-lo. Assim mesmo, fica a interrogação sobre o que terá acontecido. Quem carregou a mala? Quem entrou com ela no avião? Por que não passou pelo raio X como toda bagagem? Houve cumplicidades? Quem ganhou com isso? A quem seria entregue? Quem forneceu a mercadoria? Saberemos um dia. Ou não.

Folha de São Paulo, 6 julho 2019

Da Folha
De novo, gente de olho em 2022. Será por isso que somos invadidos por essa sensação difusa de que não há governo. Estão todos fixados no que vai acontecer daqui a três anos. E daqui até lá, como é que fica? Continuamos empurrando com a barriga?

O Globo, 6 julho 2019

Do Globo
Por mais bem-intencionado que esteja o secretário da Desestatização, a afirmação é obtusa. As estatais não são corruptas. Nem mesmo a Odebrecht é corrupta. Nenhuma empresa é corrupta. Quem se deixa corromper são os diretores e demais funcionários dessas empresas. Dizer que uma empresa é corrupta, além de incorreto, é perigoso: acaba criando uma imagem distorcida. Durante os governos petistas, a Petrobrás foi conduzida por gente corrupta e criminosa. A empresa, em si, nunca foi corrupta.

Acordo Mercosul-UE

Os frutos do acordo

Vera Magalhães (*)

Além do enorme impacto comercial e econômico que a retirada de barreiras trará para o Brasil, devolvendo o país ao tabuleiro global, do qual estava escanteado, o acordo com a União Europeia funciona também como uma bem-vinda garantia de que o ímpeto bolsonarista em áreas como meio ambiente também terá de ser contido. O capítulo político do tratado inclui o compromisso dos países signatários com o Acordo de Paris e com outras metas ambientais.

A assinatura do acordo faz letra morta da cantilena bobalista da ala ideológica do governo. Ela pode até continuar entoando seus mantras no Twitter, comemorando como sua uma construção que é anterior e mais plural. Mas o fato é que, na vida real, falaram mais alto o pragmatismo e a disposição pelo liberalismo econômico e pela abertura do País ao resto do mundo.

(*) Vera Magalhães é jornalista. Trecho de artigo de 30 junho 2019.

Hora e vez de Bolsonaro

Eliane Cantanhêde (*)

Bolsonaro sai vitorioso do G-20. A seu jeito, um tanto estabanado, ele ganhou elogios de Trump, respondeu à altura a Merkel, surpreendeu Macron, foi malcriado com Xi Ji Ping com boas razões, comprometeu-se com o Acordo de Paris e abriu mais a porta da OCDE para o Brasil. Tomara que aproveite o acordo com a UE e o bom momento para parar de fazer e falar “besteiras”, controlar os excessos do seu entorno e passar a governar, ou seja, a focar as prioridades do País.

(*) Eliane Cantanhêde é jornalista. Trecho de artigo de 30 junho 2019.