Cretinice

José Horta Manzano


Em matéria de futebol, a catástrofe está sempre à espreita. Ontem foi o dia da Suíça, que perdeu para Portugal com placar caudaloso: 6 x 1. O choque equivale ao ‘mineiraço’ brasileiro de 2014. Vou aproveitar para publicar um artigo que escrevi anos atrás. Traz curiosidades do país alpino.


Você sabia?

Todo país, por menor que seja, sempre dá uma contribuiçãozinha à humanidade. É natural que países maiores e mais populosos sejam responsáveis pela criação de maior número de palavras internacionais, produtos, conceitos, invenções. Mas os pequenos também têm vez.

A Suíça, por exemplo, apesar do território exíguo e da população diminuta, está por trás de ideias, objetos e conceitos que se espalharam pelo mundo. Vamos fazer um teste pra ver se você sabe.

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Gruyère
É queijo tipicamente suíço conhecido por ser cheio de buracos. Ingrediente indispensável em qualquer fondue. Certo?

Depende. Produzido na região de Gruyère, é tipicamente suíço, sem dúvida. É o ingrediente chave de toda boa fundue. No entanto, diferentemente do que muitos acham, o queijo Gruyère não tem furos. É lisinho, lisinho. Quem tem furos é o emental, produzido no Emmenthal (Vale do Rio Emmen).Queijo 1

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Swatch
É criação suíça. Certo?

Certo. Foi bolado pelo grupo relojoeiro que hoje leva o nome do modelo: Swatch.

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Velcro
É invenção suíça. Certo?

Certo. Foi inventado pelo engenheiro suíço George de Mestral (1907-1990).

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Relogio Swatch 1

Albert Einstein
Era cidadão suíço. Certo?

Certo. Nasceu no Império Alemão, mas naturalizou-se suíço aos 22 anos. Adquiriu outras nacionalidades ao longo da vida, mas conservou a suíça até o fim.

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Cuco
O relógio de pêndulo conhecido como cuco é antiga invenção suíça. Certo?

Errado. O cuco foi criado na Alemanha ‒ mais especificamente na Floresta Negra ‒ no século 18.

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Polilinguismo
Todos os suíços são poliglotas ou, pelo menos, bilíngues. Certo?

Errado. O país é composto de cantões. Cada um deles tem sua língua oficial. Alguns têm até duas. A maioria dos suíços, no entanto, fala uma única língua. Mais curioso ainda é o fato de a língua inglesa estar-se impondo, cada vez mais nitidamente, como segunda língua. Hoje em dia, é comum ver dois suíços de língua materna diferente se comunicarem em inglês.

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Relogio cuco 1.jpg

Cretinismo
A palavra cretino é de origem suíça. Certo?

Certíssimo. O distúrbio conhecido como cretinismo, que perturba fortemente o desenvolvimento físico e mental, é causado principalmente por carência de iodo. Nos tempos de antigamente, os habitantes de aldeias de montanha salgavam os alimentos com sal gema (não marinho), pobre em iodo. A incidência de distúrbios ligados ao cretinismo era elevada.

No Valais, cantão montanhoso e então pouco desenvolvido, a patologia ocorria com frequência. O povo chamava os infelizes doentes de “pauv’ crétin”pobre cristão, no dialeto local. Descoberta a origem da doença, iodo passou a ser adicionado ao sal. O distúrbio desapareceu, mas o nome ficou. Não só ficou, como se instalou em grande número de línguas. Assim:

Português: cretino
Russo:     кретин (kretin)
Inglês:    cretin
Sueco:     kretin
Polonês:   kretyn
Lituano:   kretinas
Húngaro:   kretén
Francês:   crétin
Finlandês: kretiini

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Curiosidade final
Corrupção, corrupto & derivados não são de origem suíça. Nem brasileira, diga-se logo. Corrupção é mais velha que o rascunho da Bíblia. A raiz rup vem de longe. Encontrada já no sânscrito, passou às línguas europeias. Traduz qualidade violenta, súbita ou negativa, como romper, despedaçar, irromper, roubar.

Publicado originalmente em 23 jun° 2016.

Rivais

Chamada do Estadão

José Horta Manzano

Desde que se sedentarizaram e se tornaram cultivadores, os humanos passaram a depender da água de maneira crucial. Sem água, como é sabido, planta não cresce.

Cinco mil anos atrás, nas civilizações da Mesopotâmia, já surgiu a questão da divisão das águas para irrigar as terras de cada um. Cada povo encontrou solução adequada à abundância (ou à raridade) do precioso líquido.

Aliás, a palavra rival é da mesma família que rio, ambos derivados do latim rivus. A parentela se espalha por diversas línguas europeias: o italiano rivo, o francês rivière, o inglês river, o espanhol río. No português arcaico, dois agricultores que compartilhavam as águas de um mesmo rio eram ditos rivais. Nessa acepção, o termo desertou a linguagem comum e só sobrevive em juridiquês.

Portanto, a ideia contida no termo rival é a de dois (ou mais) dividindo a posse de algo ou de alguém. Transposta para o plano humano, temos, por exemplo, a imagem de dois homens que condividem (ou disputam) a posse da mesma mulher. São rivais. Sucumbindo às exigências da linguagem politicamente correta, que se mencione também o caso de duas mulheres que condividem (ou disputam) o mesmo homem. Também são rivais, ora pois.

Na linguagem atual, são rivais duas pessoas que brigam para chegar ao mesmo objetivo. Dois alunos empenhados na conquista do título de melhor da classe são rivais. Dois esportistas que disputam o Balão de Ouro são rivais. E assim por diante.

Terras pertencentes a rivais

O presidente Bolsonaro lançou ao ar a insinuação de que o empenho do contra-almirante Barra Torres (presidente da Anvisa) em iniciar rapidamente a vacinação das crianças só podia ser resultado de “interesses”. Todo o mundo entendeu que os tais interesses da Anvisa só podiam ser escusos, venais, inconfessáveis.

Insinuação por insinuação, digo eu que cada um costuma julgar os outros por si. Mas não sei se aqui seria o caso.

Sentindo-se publicamente injuriado, o militar escreveu belíssima e emocionante carta aberta ao presidente, na qual defendeu a própria honradez e desafiou Bolsonaro a apontar algum indício de irregularidade na gestão da Anvisa. E mandou a injunção: “Se não encontrar nada, que se retrate!”. O texto integral se encontra fácil na rede.

Até o momento em que escrevo, três dias depois da carta, Bolsonaro não se retratou. Nem apontou nenhuma irregularidade na gestão da Anvisa. Está de bico calado e com o rabo enfiado no meio das pernas feito cachorro assustado. Tudo indica que o contra-almirante ganhou a parada: o capitão, maldoso mas leviano, se estrepou. Deu com a cara no chão, como se dizia.

A chamada do jornal diz que Barra Torres passou de aliado a rival do presidente. É tolice. Rivais seriam, em sentido metafórico, se estivessem, cada um por seu lado, disputando um mesmo objetivo – a saúde da população, por exemplo.

Não é nada disso. Quando se diz que duas pessoas são rivais, está sempre subjacente a ideia de compartilhamento. No caso que envolve Bolsonaro e o contra-almirante, não é bem assim. Os dois estão em polos opostos, um de costas para o outro, sem a menor disposição para compartilhar seja o que for.

Melhor será dizer que são oponentes, opositores, adversários, contraditores. Rivais, não são.

Pandeiro e bandolim

José Horta Manzano

Você sabia?

O que é que pandeiro e bandolim têm em comum? São instrumentos que tocam juntos em certos conjuntos regionais. É verdade, mas não é só. A intimidade entre os dois é mais antiga e mais profunda. Vamos ver.

Você já ouviu falar em Assurbanípal ou em Semíramis? Se não ouviu, não tem a menor importância. O nome deles só aparece aqui pra impressionar. São personagens históricos que viveram no Império Assírio, civilização que começou a se desenvolver 5 mil anos atrás, no tempo em que os bichos falavam. No auge de sua expansão, a nação assíria cobria partes do território do Iraque, da Turquia, da Síria e do Irã atuais. O povo falava uma língua do grupo semítico, família representada hoje pelo hebreu e pelo árabe.

Num trabalho de paciência, os linguistas conseguem identificar aqui e ali, nas línguas que falamos atualmente, palavras de origem assíria. Dado que não subsistiram documentos escritos, nem sempre é possível afirmar com certeza.

Estudiosos acreditam que a palavra latina pandura, tomada emprestada do grego, vem da língua assíria. Na antiguidade, designava um instrumento de corda, espécie de alaúde, antepassado do violino e do violão atuais. Tanto o instrumento como a palavra evoluíram.

De pandura, o nome passou por pandore e mandore pra desembocar em mandola (ó). Na Itália, uma mandola de pequenas dimensões chamava-se mandolino. A mandola, instrumento pouco sonoro, desapareceu faz tempo. Mas o mandolino ficou e seu nome deu origem – vocês já adivinharam – ao nosso bandolim.

Como curiosidade, note-se que nossos dicionários ainda hoje trazem a palavra bandurra, a significar antigo instrumento de cordas espanhol. Na origem desse nome, não é difícil identificar a pandura grega.

E o que tem o pandeiro a ver com isso? Joan Corominas, o mais conceituado etimologista das línguas ibéricas (castelhano, português e catalão), dá nosso pandeiro como descendente do pandero castelhano, que, por sua vez, vem do latim pandura. E o círculo se fecha.

O distinto leitor há de se perguntar como é possível que a mesma palavra (pandura) tenha se bifurcado para designar ao mesmo tempo dois instrumentos tão diferentes como o pandeiro e o bandolim. Eu também fico surpreso, mas assim é.

Como confirmação dessas voltas que a língua dá, o Houaiss ensina que a origem de nosso tambor é o étimo árabe at-tanbúr. Acontece que, no original, a expressão at-tanbúr significa guitarra.

Para nós, do século 21, é impossível confundir tambor com guitarra ou pandeiro com bandolim. Para os antigos, parece que a individualidade dos instrumentos não era assim tão importante. Todos eram válidos desde que tocassem.

Açougueiro da Bósnia

Folha

Estadão

O Tempo

José Horta Manzano

Séculos atrás, açougue era o nome do estabelecimento onde reses eram abatidas e desmembradas para posterior consumo. A prática continua, mas o nome do estabelecimento mudou: hoje se diz matadouro. Em nossos dias, açougue designa apenas a loja que vende carne. Açougueiro, por consequência, é o indivíduo que lá prepara a mercadoria e atende aos clientes.

Em inglês é diferente. O termo butcher serve para designar tanto o funcionário do açougue quanto o do matadouro. Ao dar a Ratko Mladić a alcunha de “Butcher of Bosnia”, não o estão comparando ao açougueiro da esquina, mas a um funcionário do abatedouro, um matador, aquele cuja função é abater animais. A imagem é contundente, especialmente porque o referido senhor não era propriamente funcionário de um matadouro. Fazia por gosto. E com gente. Dá até arrepio.

Ao traduzir “Butcher of Bosnia” por “Açougueiro da Bósnia”, toda a dramaticidade da expressão inglesa se perde. Mais adequada será dar-lhe a alcunha de “Carniceiro da Bósnia”.

Butcher
A palavra inglesa é a adaptação fonética do francês boucher. Na Idade Média, quando foi importado, o termo designava o homem que abatia reses para, em seguida, vender a carne no varejo. Um serviço completo, do pasto ao prato.

No francês atual, a palavra corresponde a nosso açougueiro. Em inglês, todavia, butcher mantém os dois sentidos – o homem que abate e o que vende são designados pelo mesmo termo.

Eis por que, em inglês, faz sentido dizer que nosso gentil personagem é um “butcher”. No Brasil, para guardar o mesmo impacto, temos de dizer “carniceiro”.

Nota final
Um genocidário não perde por esperar. A justiça acaba por alcançá-lo, nem que seja um quarto de século depois.

Imunidade de rebanho

Imunidade coletiva

José Horta Manzano

Depois que os integrantes de hordas não-bolsonaristas resolveram chamar os integrantes de hordas bolsonaristas de gado, os termos que se referem à pecuária devem ser utilizados com muito cuidado, especialmente quando aplicados a humanos.

Dizer que, com a aceleração da vacinação, a imunidade de rebanho será logo alcançada, pode melindrar espíritos mais sensíveis. Talvez os integrantes das hordas bolsonaristas apreciem o elogio, talvez reclamem da implicância. Quanto aos integrantes das hordas não-bolsonaristas, certamente detestarão a expressão, justamente por não admitirem ser confundidos com gado. Gado, como sabemos, são sempre os outros.

Para não ofender nem uns nem outros, a língua – generosa – oferece diversas opções. Eis algumas:

    • Imunidade de grupo
    • Imunidade gregária
    • Imunidade de comunidade
    • Imunidade coletiva
    • Imunidade de população
    • Imunidade de massa

Está vendo? Pra evitar mal-entendidos, fuja da duvidosa imunidade de rebanho. Quando se fala em eliminar febre aftosa, a expressão que convém é exatamente imunidade de rebanho. Para gente, mais vale evitar polêmica.

Imunidade
A palavra deriva do adjetivo latino immunis (=imune), formado pela partícula in (negação) + munem (de munus = obrigação, dever). Na origem, tinha o sentido que hoje damos a isento. Quando determinados cidadãos estavam desobrigados de pagar uma taxa, por exemplo, dizia-se que estavam imunes.

Até hoje, as bagagens do diplomata passam a alfândega sem inspeção, em virtude da imunidade diplomática. Por seu lado, eleitos do povo são protegidos pela imunidade parlamentar.

O sentido que a palavra imunidade adquiriu em medicina é bem mais recente. Só apareceu no século 19, com a popularização da vacina antivariólica. O primeiro registro é da edição de 1865 do Dicionário Médico Littré-Robin (=immunité). De lá, passou às demais línguas.

Inocular

José Horta Manzano

Assisti com estes olhos que a terra há de comer. Sou testemunha ocular da história!

Todo o mundo sabe que ocular tem a ver com olho. Pra confirmar, estão aí o oculista, o binóculo e os óculos. Ah! Já que falamos de óculos, atenção, juventude! É bom lembrar que óculos é substantivo plural. Assim, o artigo vai sempre para o plural: os óculos. O óculo (no singular) existe, mas é outra coisa: uma luneta de alcance, que serve para observar com um olho só. Mas vamos voltar ao assunto do dia.

Nesta hora em que todos procuram se vacinar, circula também outro termo aparentado: inocular. Que se saiba, ninguém jamais tomou vacina no olho. Qual é, então, a relação entre a inoculação e os olhos?

De origem antiga, a palavra descende de um latim tardio inoculare. Descreve uma técnica de enxerto de roseira, em que um broto é seccionado da planta-mãe e atado ao caule que vai receber o transplante. A operação serve para desenvolver novas variedades de rosas. O broto, que tem forma arredondada, lembra um olho, daí o nome da técnica.

No início dos anos 1800, começou a popularizar-se o princípio da vacina, novidade para a época. Consistia em injetar pequena quantidade do vírus da varíola para imunizar as pessoas. Para dar nome à nova técnica, a medicina tomou emprestado o verbo latino. Os ingleses, pioneiros nesse campo, passaram a utilizar o verbo to inoculate (= inocular), seguindo a imagem de introduzir um corpo estranho, exatamente como os jardineiros fazem com as roseiras. As outras línguas acompanharam o raciocício.

Fui inoculado? Não! O que é inoculado é a vacina, não a pessoa.

Fica assim:
O enfermeiro inocula a vacina e imuniza o paciente.
A vacina foi inoculada e o paciente ficou imunizado.

Vagabundo

El vagabundo
by Mónica Caruncho Fontela, artista espanhola

José Horta Manzano

No andar de cima, os convivas – todos copiosamente sustentados com nosso dinheiro – continuam a encenação. A incessante troca de casais é de rigor. Inimigos de anteontem, que tinham justamente feito as pazes ontem, tornam a apontar-se mutuamente os estilingues. Amigos desde a infância, duas excelências hoje se viram a cara. Outras duas, que não se falavam havia anos, hoje surgem de braço dado. E o povão vibra sem se dar conta de que a intenção era justamente esta: divertir a galeria, nada mais.

Tem a CPI da Covid (ou “da Cloroquina”, como receiam os devotos do capitão). Lá também, o alvoroço segue firme. Talvez eu não devesse dizer “lá também”, mas “lá principalmente”. Ora, é a vitrine maior, o horário nobre daquele palco de hipocrisia! Excelência que se preze tem o dever de se agitar na hora e no lugar certo.

Entre as encenações da semana, um distinto parlamentar botou pedra um pouco maior no estilingue, apontou para um colega e mandou: “Vagabundo!”. Ao que o atingido, com impressionante presença de espírito, respondeu de pronto: “Vagabundo é você!”. Diálogo edificante, foi uma finura que só.

É inadequado duas excelências usarem pedras tão grandes para lapidar-se mutuamente. Acho até que o calibre das pedrinhas devia ser fixado por lei. A partir de tal e tal diâmetro, não pode, porque fica feio e baixa o nível.

Vagus e bundus
Deixando de lado as ironias, vamos aos fatos. Vagabundo – de onde vem esse bicho? Pois a palavra já existia em latim (vagabundus). É composta de vagus (errante, sem destino) e de bundus (que tem propensão a).

A raiz do primeiro elemento aparece em numerosas palavras nossas: vagar e vaguear (ir sem destino), divagar (soltar o pensamento), vagante, extravagante, vago (impreciso), noctívago (que passeia à noite sem destino preciso).

O segundo elemento (bundo) também reaparece em palavras como nauseabundo, meditabundo, moribundo. Há muitas outras, mas, no Brasil, tendemos a evitar essa terminação por sua semelhança com bunda, palavra que, no meu tempo, convinha evitar quando havia senhoras na sala.

Por último, é interessante notar que o termo vagabundo, se está presente nas demais línguas latinas, não tem o mesmo peso em cada uma delas. Em português, chamar alguém de vagabundo é ofensa na certa. Significa que esse alguém é desocupado, gandaieiro, preguiçoso, vadio. A palavra tem sentido fortemente pejorativo.

Em italiano, embora não seja propriamente um elogio, vagabondo também não é ofensa pesada. Para ofender mesmo, precisaria dizer: “vagabondaccio”. Tirando essa variante pejorativa, a palavra é muito usada no sentido figurado: “pensieri vagabondi” = pensamentos vagabundos (ou seja, que vagueiam).

Em francês, a palavra vagabond não faz parte das pedradas que se possam dar em alguém. O verbo vagabonder (=vagabundear) é até simpático; pode servir para descrever, por exemplo, um fim de semana que alguém passou sem fazer nada, só passeando.

Até alguns anos atrás, a rádio suíça tinha um programa chamado “L’humeur vagabonde” = O humor vagabundo. Era um programa interessante, de uma hora de duração. Como o título indica, não havia um tema fixo. A cada semana, falava-se de um assunto diferente, a biografia de alguém, uma viagem a um lugar interessante, um acontecimento histórico.

Se fossem passar essa emissão no Brasil, teriam de modificar o título. Vagabundo, francamente, não dá. É expressão privativa de certas excelências.

Chanceler

Itamaraty, Brasília

José Horta Manzano

Cancela é palavra de uso corrente nos campos, fora das cidades. Nos centros urbanos, é menos utilizada. É o nome que se dá ao portão baixo, geralmente feito de pranchas de madeira cruzadas, que barra a entrada de chácaras, sítios e fazendas. A palavra carrega a ideia de barrar, riscar. O verbo cancelar faz parte da família. O sentido básico é justamente de barrar o que foi escrito, fazendo riscos por cima.

Nos últimos tempos do Império Romano, o cancellarius era uma figura importante. O título designava o oficial encarregado de montar guarda em frente aos aposentos do imperador, que eram barrados com uma grade (cancellus).

O imperador foi-se, mas o nome da função exercida pelo guardião ficou. Cancellarius e seus descendentes diretos constituem caso pouco comum de nome de função cujo significado exato varia conforme o país ou a língua.

Chancelor
O chancelor inglês é palavra multiúso. Determinados funcionários de alto escalão levam esse título. O secretário-geral de uma embaixada também. Até o reitor de certas universidades americanas são chamados chancelor.

Cancelliere
O cancelliere italiano também tem numerosas funções. Tanto pode receber esse título um bancário quanto um alto funcionário da administração pública do país. A Cúria Romana chegou a atribuir esse título a um cardeal que executava certas funções. Academias (de letras ou de ciências) e embaixadas também têm encarregados aos quais se dá o nome de cancelliere.

Canciller
O canciller espanhol é o secretário de uma diocese católica. O termo também é usado para designer o chefe de expediente de uma representação diplomática, assim como um alto funcionário da administração.

Chancelier
O chancelier francês é título histórico. No Ancien Régime (antes da Revolução Francesa), era já atribuído a um altíssimo funcionário encarregado da custódia sigilo real (=sinete de selar, a marca que autenticava a assinatura do rei). Nos dias atuais, chancelier é o encarregado da administração de uma ordem militar. O termo serve também para designar um funcionário graduado lotado numa representação diplomática.

Kanzler
Na Alemanha e na Áustria, o Kanzler (pr: kántsler) tem função específica: designa o primeiro-ministro da República. Na Áustria, o Kanzler atual é Sebastian Kurz, um jovem de 34 anos. Na Alemanha, faz dez anos que o cargo é ocupado por uma mulher, Frau Angela Merkel. Neste caso, a palavra assume a forma feminina: Kanzlerin (pr: kántslerin).

Bundeskanzler
O chancelier fédéral suíço (Bundeskanzler em alemão) é o chefe do departamento que assegura o bom funcionamento do expediente do Poder Executivo colegiado do país – uma espécie de chefe de Estado-Maior do Executivo.

Chanceler
E chegamos a nosso chanceler. Embora de origem latina (cancellarius), a palavra nos veio através do francês (chancelier). Na Igreja Católica, é o encarregado da chancelaria de uma arquidiocese. Mas o termo é mesmo conhecido por designar o ministro das Relações Exteriores.

O trágico personagem que passou os últimos dois anos fantasiado de chanceler acaba de ser despachado de volta ao anonimato de onde nunca devia ter saído. Meio de pé atrás, o Brasil espera que o sucessor vá além da fantasia e funcione como chanceler de verdade. Visto o histórico de um governo que, entre acertar e errar, sempre escolhe a segunda opção, ninguém deve nutrir muita esperança.

Butantan

José Horta Manzano

Fundado no fim do século 19, o Instituto Butantan trabalhou em silêncio por mais de um século. Produtor de vacinas há 120 anos, já prestou valiosos serviços. Embora reconhecido por cientistas do mundo todo, nunca chegou a ter uma projeção comparável à do Instituto Pasteur (Paris) ou do Instituto Max Planck (Munique). A seu favor, diga-se que o orçamento que lhe tem sido dedicado é incomparavelmente mais modesto que o de seus congêneres europeus ou norte-americanos.

A pandemia de covid-19 e a desesperada busca por vacina subitamente giraram os holofotes para o Butantan. Nosso sabido presidente tentou menosprezá-lo, mas o tiro saiu pela culatra: apesar dos muxoxos do capitão, o instituto passou a ser nacionalmente conhecido e olhado com respeito.

Duas curiosidades linguísticas cercam o nome do instituto. A primeira é de ordem etimológica. De onde vem essa palavra? Pela sonoridade, dá pra adivinhar que vem da língua tupi, como grande parte de nossos topônimos – rios, morros, vilarejos, cidades e até alguns estados.

A versão mais difundida ensina que Butantan é composto por bu (=terra) + tata (muito dura). Há variantes para o adjetivo: tata, tatã, tãta, tãtã.

Outra versão pretende que seja corruptela de m’boy (=cobra) + tata (=fogo), ou seja, boitatá = cobra de fogo, personagem de antiga lenda indígena. Se assim for, compartilha o étimo com a cidade paulista de Batatais, cujo nome também poderia ser uma variante de boitatá.

Desde que, lá pelo fim dos anos 1700, o último bandeirante aprendeu o português e esqueceu o tupi, a antiga lingua franca definhou até praticamente desaparecer. Assim, será difícil estabelecer com segurança a origem do nome do local onde foi instalado o instituto.

A segunda curiosidade tem a ver com a grafia Butantan. A norma de 1943 diz que os topônimos conservarão a forma que lhes atribuiu a «tradição  histórica secular». E cita um único exemplo – Bahia –, deixando a questão em aberto. Tirando a região da cidade de São Paulo, em que excursões escolares costumam levar os pequerruchos a conhecer o serpentário do Butantan, é difícil encaixar o nome do instituto no conceito de «tradição histórica secular».

Assim sendo, a grafia da palavra deveria seguir a regra comum das palavras de origem tupi, ou seja, Butantã, com ã no final. No entanto, o que se lê por toda parte é Butantan, com um improvável an no final. Tenho minha ideia quanto à origem dessa anomalia.

Acredito que a palavra vem sendo escrita tal como foi entalhada, 100 anos atrás, no frontispício do instituto. A reforçar essa grafia, está o site oficial do instituto, que adota Butantan em detrimento de Butantã.

Sabem de uma coisa? Desde que o sedento mercado brasileiro seja logo inundado com as esperadas vacinas, que cada um use a grafia que lhe apetecer. Pra acompanhar a corrente, vamos de Butantan mesmo!

Extorquir

José Horta Manzano

O verbo latino torquere deixou descendência abundante. Está na raiz de torcer, distorcer, contorcer, retorquir, torto, torso, entortar, tocha. Aparece também em derivados como torção, distorção, tortuoso, retorção (retorsão), tortilha, contorção, torta. Há outros parentes: torcedor, tortura, tortellini e até torcicolo são membros da mesma árvore genealógica.

Deixei fora da lista um filhote importante: extorquir. Nestes tempos violentos em que bandidos fazem a lei, o verbo anda muito na moda. O assaltante que, num sequestro relâmpago, obriga o infeliz cidadão a retirar dinheiro do caixa eletrônico está cometendo extorsão. O criminoso que chantageia alguém está tentando extorquir algo da vítima, geralmente dinheiro.

Manchete do jornal O Globo

A notícia diz que o chefe do tráfico da Vila Aliança foi extorquido. Nada feito. Não se extorque alguém; extorque-se algo de alguém. Para não errar, é só lembrar que extorquir é sinônimo de arrancar (por ardil ou com violência). Não se arranca uma pessoa; arrancam-se objetos dela.

A notícia informa ainda que os policiais teriam tentado extorquir dinheiro do tornozeleirado, se é que posso me exprimir assim. Se conseguiram, não sei. Se a história for verdadeira, a gente fica sem saber que é mais bandido nesse episódio. Parece que, em nossa terra, só não delinque quem não tem oportunidade.

O conceito de extorquir envolve sempre a violência, explícita ou velada. Num procedimento reprovável mas bastante comum no mundo todo, policiais costumam extorquir a confissão de um indivíduo detido. Reparem bem: extorque-se a confissão, não o indivíduo.

Embora seja corriqueiro dizer que «fulano foi extorquido», a boa língua recusa essa construção. Correto será dizer que dinheiro foi extorquido do indivíduo assaltado ou que a confissão foi extorquida por meio de pressão psicológica.

Extorquir equivale sempre a obter alguma coisa de alguém por ardil (na conversa) ou por meio violento ou ameaçador.

Mesquinho

José Horta Manzano

«Cancelei, desde o ano passado, todas as assinaturas de jornais e revistas. Ministro que quiser ler jornal e revista vai ter que comprar.»

Essa frase, pronunciada esta semana por doutor Bolsonaro, evidencia mais um aspecto maligno do caráter dele: a mesquinharia. Em repetidas ocasiões, nosso mito tem reafirmado seu agarramento a picuinhas, a revides, a pequenas vinganças.

Se essas birras obstinadas são atributos comuns na adolescência, sua persistência num adulto denota um distúrbio de personalidade. É de crer que nosso presidente teve infância infeliz.

Sabe-se que o presidente tem medo da imprensa, razão pela qual foge de jornais e revistas.

A pequena vingança simbolizada pela suspensão de jornais e revistas no Planalto faz lembrar a história do Joãozinho. Era aquele garoto que ia à rua com a bola (no tempo em que se podia jogar bola na rua) para uma pelada com a garotada. Tudo ia bem até o momento em que Joãozinho, por uma razão qualquer, embirrava. Nessa hora, ele não perguntava se os amiguinhos queriam continuar a jogar ou não: confiscava a bola e ia embora. Para os mesquinhos, vale a norma: os outros que se lixem.

Jairzinho, nosso presidente, é como o Joãozinho da história. Visto que não gosta de ler, confisca jornais e revistas sem se preocupar se os demais gostariam de ler.

Nem o Lula, apesar de confessar seu horror à leitura, ousou confiscar jornais e revistas de seus assessores e privá-los de informação confiável. Nesse ponto, Jairzinho não é igual ao Lula; é pior.

Mesquinho
A palavra mesquinho vem do árabe miskin ou meskin. Nessa língua, significa pobre, desprovido de tudo. A raiz, presente também em hebreu, é atestada já na língua acádia, falada na Mesopotâmia 3.000 anos antes de Cristo. Ao passar para as línguas europeias, o termo sofreu alteração de sentido. Nas línguas latinas, designa aquele que se agarra a coisas pequenas, que não tem grandeza nem generosidade.

Orquídea

José Horta Manzano

Certas palavras têm origem surpreendente. Entre elas, está orquídea, nome da simpática flor cujas múltiplas variedades estão presentes em vastas regiões do globo, da zona tropical à temperada.

O nome vem do grego. Atribui-se o batismo da orquídea a Teofrasto, filósofo grego que viveu 300 anos antes de Cristo. Na língua dele, uma das acepções do termo órkhis designa uma variedade de azeitona. Mas não foi essa acepção que deu nome à flor.

É que órkhis também significa testículo. É daí que vem o nome da orquídea. A associação de ideias tem a ver com a forma da raiz da planta, uma espécie de bulbo que lembra o atributo da genitália masculina. O D que apareceu no meio da palavra – orquíDea – é tentativa tardia de latinização. Não consta no original grego.

Como prova da relação entre a flor e a anatomia, note-se que, em linguagem médica, o elemento de formação orqui- (orquid-) é utilizado para designar os testículos. Orquialgia é dor testicular, orquidectomia – ablação de um/dos testículo(s). E assim por diante.

Parece que, depois disso, o encanto da flor diminui, não? Mas o imenso charme das orquídeas logo faz esquecer a pouca poesia das origens.

Réveillon de Natal

José Horta Manzano

Chegou o Natal de um ano pra lá de especial. Natal, temos todos os anos; mas o deste ano parece mais um filme de Fellini, com festa de mascarados e um balé de convidados racionados dançando ao passo da distanciação social. Não é muito alegre, mas é o que temos.

No fundo, até que temos sorte de ainda estar aqui – milhares ficaram pelo caminho. Não deve haver nenhum brasileiro que não conheça alguém que morreu de covid, um parente, um amigo, um vizinho, um colega, um conhecido.

O Natal é a festa maior da cristandade, tanto na Europa ocidental quanto nas antigas colônias, Brasil incluído. Mas este ano, além do significado religioso, o que estamos festejando mesmo são duas coisas: nossa sobrevivência à pandemia e a chegada da tão esperada vacina.

E vamos em frente, de bacalhau com batatas, ou o que lhe apetecer. Com rabanada pra arrematar.

Uma curiosidade vale ser mencionada. Franceses, belgas, suíços e canadenses se preparam hoje para o réveillon de Natal. Para nós, parece esquisito misturar Natal com réveillon, que nos parecem coisas distintas.

Em francês, até o século 19, se usava a palavra réveillon para designar uma refeição tomada tarde da noite, fosse em que dia fosse. Hoje essa acepção saiu de moda. Réveillon se especializou em dar nome aos festejos da véspera de Natal e também da passagem de ano. Pra distinguir, basta especificar: réveillon de Noël (de Natal) ou réveillon de la Saint-Sylvestre (de fim de ano).

Réveillon descende do verbo latino vigilo, que significa estar desperto. Em nossa língua, a parentela é extensa: vigia, vigiar, vigilante, velar, vigília (véspera de certas festas religiosas). Vela e velório fazem parte do clã. Todas essas palavras carregam o sentido de estar desperto para cuidar.

Feliz Natal a todos!

Imbecil

José Horta Manzano

O adjetivo imbecil existia em latim sob a forma imbecillus. Na língua dos romanos, seu significado era diferente do que lhe atribuímos hoje. Era usado para indicar fraqueza de corpo. Em vários textos de Cícero, o adjetivo aparece como qualificativo de homem: homo imbecillus = indivíduo fisicamente diminuído.

É daquelas palavras órfãs que não parecem pertencer a nenhuma família. Sua origem é controversa. Alguns cogitam que talvez pudesse ser formada pela partícula in + becillum, uma forma alterada de bacillum, diminutivo de baculum (bastão). Se assim fosse, a palavra imbecil evocaria a imagem do indivíduo que se move apoiado num bastão. Apesar de simpática, a explicação não é geralmente aceita.

As principais línguas latinas utilizam o adjetivo. Até por volta de 250 anos atrás, ele conservava o valor de fraco de corpo. Aos poucos, foi adquirindo o sentido de fraco de inteligência.

Dado que o burro é um animal simpático (e não mais burro que uma galinha, um sapo ou uma girafa), me dói chamar de burro um indivíduo pouco inteligente. Prefiro imbecil, termo que evoluiu até tornar-se hoje perfeito para designar pessoa com forte déficit de inteligência.

Dois dias atrás, pela enésima vez, doutor Bolsonaro avisou que não tomará a vacina contra a covid, seja ela qual for. Logo ele, que tem a pretensão de tornar-se nosso guia!

Seu universo mental é limitado e não lhe permite enxergar a realidade como ela é. Não se dá conta de que sua ostensiva resistência à vacinação vai influenciar boa parte dos cidadãos, que acabarão fugindo da imunização. E os não-vacinados continuarão a infectar-se entre si, prolongando a duração da pandemia. E a economia continuará sem fôlego. Ora, prosperidade econômica é a chave da reeleição! Mas ele não consegue enxergar isso.

O homem está preso a meia dúzia de ideias que vem ruminando há 30 ou 40 anos. São essas e mais nenhuma.

Acredita ter vocação para ditador e acalenta a tola esperança de que o povo se levante numa guerra civil e o consagre como defensor perpétuo da nação. Isso explica sua fixação em distribuir armas à população.

Homem de poucas letras e de cultura geral indigente, tem visão fragmentária do mundo exterior.

De alguma viagem que possa ter feito no passado, reteve algumas imagens que gostaria de aplicar ao Brasil. Isso explica:

  • 1) sua insistência em tranformar santuários marinhos em resorts tipo Cancún;
  • 2) sua vontade de fazer ancorar na minúscula ilha de Fernando de Noronha naves de cruzeiro que lá despejarão 6000 passageiros de uma vez;
  •  3) sua afirmação de que ‘na Europa, não há mais florestas’, quando se sabe que a cobertura vegetal do território europeu é bem superior à do Brasil – excluída a selva amazônica.

Para falta de cultura, existe remédio. Se se esforçar, o indivíduo pode até cultivar o espírito através do estudo. Lula da Silva, um dos predecessores de Bolsonaro, é, de certa forma, um exemplo. Mesmo tendo chegado à Presidência ignorantão e não tendo estudado nada durante o mandato, manteve o espírito aberto e conseguiu absorver algum conhecimento. Deixou a Presidência, digamos, menos chucro.

Já o déficit de inteligência é mais cruel. É o caso de nosso doutor. Chegou à Presidência ignorantão e de lá há de sair ignorantão. É a sina dos imbecis.

Ardido

José Horta Manzano

Em setembro de 2018, o mais significativo repositório da memória nacional virou tragédia e deixou de existir. Quando queimou o Paço de São Cristóvão, que abrigava o Museu Nacional, uma onda de comoção bateu nos costados do mundo civilizado. Uma catástrofe.

Na ocasião, escrevi um artigo contando curiosidades do passado de um edifício que foi residência de quatro gerações de monarcas. As eleições presidenciais estavam próximas e, naturalmente, não se sabia ainda quem havia de vencer. Eram tempos de suave esperança para os que não suportavam mais o descalabro dos governos lulopetistas.

Formulei então votos de que o próximo presidente, fosse ele quem fosse, fizesse uma visita à Biblioteca Nacional logo no início do mandato. Em matéria de memória nacional, é certamente a joia que nos restou depois da perda do museu arso(*).

Ai de nós, quem é que podia imaginar! Acho que ninguém se tinha dado conta de que estava subindo ao trono o indivíduo mais ignorante jamais eleito no Brasil. Pra piorar, apesar de não ter aprendido nem o básico, doutor Bolsonaro despreza a Educação, pisoteia as Relações Exteriores e tem feito o que está em seu poder para a destruição de nossa cobertura vegetal e para a desertificação do país.

É muita desgraça junta. Acho que o presidente aplaudiria se a Biblioteca Nacional ardesse e se, no terreno, fosse instalada uma filial da Disneylândia. É lastimável que, desde que virou o século, o Brasil tenha sido presidido por ignorantes. Para a cultura nacional, o golpe tem sido duro.

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

Com o Lula, a intenção era boa, mas o resultado foi pífio. Numa projeção que a psicologia talvez explique, pensou em dar ao país a possibilidade de fazer os estudos que ele não tinha feito. No entanto, passando por cima da instrução elementar, fomentou a abertura de dúzias de faculdades de beira de estrada. (É fato que uma faculdade é mais visível que um grupo escolar, mas ninguém chega lá sem ter passado por aqui.) Botou Gilberto Gil no Ministério da Cultura; o moço é excelente músico, mas… ministro da Cultura? No espremer dos limões, o Lula relegou a formação elementar à ventura.

Da Dilma, esperava-se uma ‘gerentona’ firme e forte. Ao fim e ao cabo, tivemos uma ‘presidenta’ autoritária, falsificadora do próprio currículo, de mente confusa, que não deu a mínima atenção à formação dos brasileirinhos. Sua ‘Pátria educadora’ não passou de slogan.

Do presidente atual, dá tristeza falar. É esse estropício tosco que está aí. Deu vexame na escolha de titulares para a Educação e para a Cultura. Não visitou (nem visitará) a Biblioteca Nacional. Talvez nem saiba que ela existe. Livro não é seu terreno de predileção. Só nos resta torcer pra que ele vá se embora logo. E que o próximo seja um bocadinho melhor. Será difícil ser pior, mas, no Brasil, nada é impossível – principalmente a piora.

(*)Nota etimológica
Arder corresponde diretamente ao verbo latino ardeo/ardere, que significa estar em chamas, queimar. O particípio perfeito latino é arso, palavra que, segundo o Volp, existe em português. Tanto pode ser adjetivo como substantivo.

É curioso que nenhum dicionário online traga esse verbete. Consultei Houaiss, Priberam, Aulete, Michaelis, Porto Editora, Cândido de Figueiredo e 7 Graus – sem sucesso. O Volp é um vocabulário que se limita a atestar a existência da palavra, dar a grafia e o gênero gramatical; porém, não dá o significado. Assim, resta supor que arso tenha o sentido que tinha na língua latina.

Em português, os descendentes de arder não são multidão: ardido, ardor, ardência, ardente, aguardente. E, naturalmente, arso(=queimado, que ardeu, ardido).

Miosótis

José Horta Manzano

Você sabia?

Embora a flor não seja comum no Brasil, o nome miosótis é conhecido. A planta é pra lá de comum em regiões de clima temperado. Flores azuis desabrocham a cada primavera. Mais raramente, a cor pode ser rosa ou branca.

O miosótis (ou a miosótis, vai do gosto do freguês) é florzinha pequenina, delicada, perfeita pra entrar num buquezinho simples para a namorada.

Sabe-se lá por que razão, grande parte das línguas europeias, a começar pelo português, dão ao miosótis o sugestivo nome de não-te-esqueças-de-mim (ou não-te-esqueças).

Origem do nome
Velha lenda germânica relata que um dia, enquanto criava o mundo, Deus estava dando nome às flores: «Você será rosa! Você, gerânio! E você se chamará dália!»

E assim foi, uma por uma. Quando já estava quase terminando, uma flor pequenina e escondida num canto sentiu medo de ficar sem nome. Ousou dirigir-se ao Senhor:

«Não te esqueças de mim!».

E Deus, na lata:

«Pois esse será teu nome!».

Por excesso de fé ou por falta de criatividade, o português, o espanhol, o italiano, as línguas germânicas e até o russo seguiram a determinação divina:

Português: não-te-esqueças-de-mim
Inglês:    forget-me-not
Alemão:    Vergissmeinnicht
Espanhol:  nomeolvides
Russo:     незабудка
Sueco:     förgätmigei
Italiano:  nontiscordardimè
Holandês:  vergeet-mij-niet(1)

Por que será que todos procuram escapar do nome original? Talvez seja pela etimologia pouco poética. Miosótis vem do grego através do latim.

É composto de myós (rato) + otós (orelha). É isso mesmo: orelha de rato(2). Vai-se todo o romantismo, não?

(1) É interessante notar como algumas línguas preferem separar os termos com hífen, o que me parece complicação inútil. Outras escrevem tudo colado.

(2) Myós (rato) deu Maus em alemão e mouse em inglês, termo corriqueiro, devidamente fisgado por nossa novilíngua para uso em computador. Podiam, ao menos, ter aportuguesado (maus). Em vez disso, o termo foi adotado e engolido cru. Como resultado, uma sílaba foi acrescentada à pronúncia original. No Brasil, em vez de maus, ouve-se máuzi.

Otós (orelha). Em nossa língua, a raiz reaparece em termos ligados à saúde: otite, otalgia, otologia, otorrino.

Publicado originalmente em 12 ago 2015.

Tweet censurado

José Horta Manzano

Assim que foi anunciada a doença de Donald Trump, a empresa Twitter previu que alguns aproveitariam a ocasião para exprimir desejo de ver o presidente num caixão. Antes que acontecesse, foram logo avisando que bloqueariam a conta de quem tuitasse sua esperança de ver Trump morto pela covid.

Poucas horas mais tarde, ao se darem conta de que teriam de bloquear a conta de pelo menos metade dos usuários, explicaram que não era bem assim. Os tuítes macabros seriam apagados, mas a suspensão da conta só se faria “em alguns casos”.

Nos tempos de antigamente, isso não acontecia. Quando a comunicação ia por carta, telex ou fax, a gente escrevia o que bem entendia. Tirando algum caso (raro) de criminosa invasão de privacidade, ninguém lia as mensagens. A gente podia dizer o que quisesse sem receio de censura.

Ah, esse progresso! Como se vê, progredir é irmão gêmeo de regredir. Quando um aparece, o outro nunca está muito longe.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Etimologia
Em latim, o verbo gradi significa andar, caminhar. Em português, temos alguns descendentes em linha direta: grau, degrau, graduar, gradual. Com adição de prefixos, formaram-se numerosos filhotes:

Progredir
Andar para a frente

Regredir
Andar para trás

Transgredir
Caminhar para além de um determinado ponto. Transpor determinada meta.

Agredir
Na origem, tinha o inocente significado de andar em direção a um ponto ou a alguém. Com o tempo, passou a significar atacar, investir.

Há outros cognatos: degradar, retrogradar, egresso, progresso, regresso, ingresso.

Interessante será notar que o Congresso, sempre pronto a dar um passinho à frente e outro pra trás, é membro legítimo da família.

O general ministro

José Horta Manzano

Posse?
Toda a mídia deu notícia de que o general Eduardo Pazuello é o novo ministro da Saúde. Todos, sem exceção, falaram da posse do novo ministro. Quando se olha de perto, falar em tomada de posse não é a melhor maneira de descrever o que ocorreu.

Embora o general carregasse o incômodo adjetivo ‘interino’ diante do título, já fazia quatro meses que era o ministro da Saúde de facto. A não ser que tenha passado quatro meses como figurante inativo – o que não seria surpreendente num governo em que nada mais espanta –, Pazuello já havia tomado posse do cargo há quatro meses, ainda que interinamente.

Portanto, não lhe foi dada a posse do cargo, que essa ele já tinha. A cerimônia solene marcou sua efetivação no cargo. Agora, efetivo, livrou-se do epíteto e mandou o ‘interino’ para a lata do lixo.

De toda maneira, tomar posse é força de expressão. Pode-se tomar posse de um livro, de uma casa, de um objeto, mas não de um cargo público. Cargos públicos são, por natureza, passageiros. É verdade que certos figurões se agarram ao cargo como se dele se tivessem apossado. Há deputados que chegaram a ficar três décadas no cargo. Mas essa é outra história.

Onomástico
Pazuello é um sobrenome de evidente origem ibérica. Na língua galega, falada nas províncias do noroeste da Espanha, a raiz latina Palatium evoluiu para pazo, que equivale a nosso paço. Designa um solar, uma casa suntuosa.

Pazuello seria, pois, o diminutivo de pazo = um pequeno solar, um palacete. O nome é curiosamente de formação híbrida. Embora o núcleo seja galego, o sufixo uello é castelhano legítimo. Em galego, faz-se o diminutivo com o sufixo iño, que corresponde a nosso inho. Portanto, seria de esperar um Paziño (Pazo + iño).

Entre a cruz e a espada

Híbrido ou não, neste ponto, surge um problema. O sobrenome é raríssimo. Tão raro que, vasculhando a lista telefônica da Espanha inteira, não se encontra ninguém que o ostente.

Por seu lado, ele aparece no Dicionário Sefaradi de Sobrenomes, obra compilada por Paulo V. Faiguenboim & alia, ao lado de variantes tais como Pazuelo (com um L só) e Pazuelos (com S no final).

Sefaradis são os judeus espanhóis. Eles foram expulsos do país em 1492 pelos reis católicos, o que explica o desaparecimento do nome na Espanha. É concebível que o general seja descendente de uma dessas famílias forçadas ao exílio.

Expressão
É interessante como um assunto puxa outro. Falando em expulsão dos judeus ibéricos, me veio à mente a expressão «Entre a cruz e a caldeirinha». Refere-se justamente àqueles infelizes expulsos de repente da terra que lhes dava abrigo havia séculos e na qual se sentiam integrados.

Quando foi decidido o desterro da comunidade judaica, foi dada a seus membros uma única opção: se quisessem ficar, teriam de se converter ao cristianismo. Era condição obrigatória para a permanência. Quem se recusasse a se converter e teimasse em ficar seria entregue aos cuidados da terrível Inquisição, cujos métodos não eram lá de grande delicadeza.

Eis por que se diz que os judeus foram postos «Entre a cruz e a caldeirinha» ou também «Entre a cruz e a espada», expressões que hoje continuam significando estar diante de duas opções ruins.

É permitido crer que, naquela ocasião, os antepassados de nosso ministro (agora efetivo) tenham optado por deixar o país para sempre.

Presidente excepcional

José Horta Manzano

Temos, realmente, um presidente excepcional(*). Calma. Quando digo excepcional, não entendo necessariamente que o homem seja excelente, longe disso! Estou utilizando a palavra na sua acepção primeira: o que é fora dos padrões. De memória de gente, nunca um presidente do Brasil mandou tanta bola fora. Muitos dizem que ele é imprevisível. Não acho. Pelo contrário, o gajo é totalmente previsível.

Quando um repórter lhe faz uma pergunta sobre assunto que não lhe agrada, já se sabe: o repórter será insultado. Quando dirigentes mundiais estão trabalhando para proteger o povo contra uma epidemia, doutor Bolsonaro prefere se sair com um «Muito do que falam (sic) é fantasia, isso não é crise». Foi assim que ele deu as boas-vindas ao covid, cujo estrago em nossa terra já roça os 150 mil mortos.

Todos se lembram ainda de quando, em viagem aos EUA, ele soltou uma abobrinha retumbante. Afirmou ter provas de que as eleições que ele venceu foram fraudadas. Não é comum um candidato, após vencer por ampla margem, acusar o sistema de falcatrua. Trambique em favor de quem, capitão? Em matéria de paranoia, doutor Bolsonaro dá mostras de que seu caso não tem cura. Vê inimigo por toda parte, até no sistema que lhe deu a vitória. Vá entender!

Na Argélia, não faz muito tempo, um presidente senil, paralítico e visivelmente decrépito foi considerado inapto para o exercício do poder e, em seguida, afastado definitivamente. Não sou especialista em afastamento de presidentes; vai daí, não sei dizer se o presidente poderia ser declarado impedido, nem a quem caberia tomar essa decisão. Se for possível, está na hora de seguir esse caminho.

Nosso atual presidente é um engodo. Se fraude houve na última eleição, foi em favor dele… e em desfavor do povo brasileiro. Boa parte dos que o sufragaram, votaram enganados. Não sabiam de que estofo era feito o homem. Agora, todo o mundo sabe.

Bos sibi ipsi pulverem movet
O boi levanta poeira contra si mesmo

(*) Excepcional vem direto do latim. Só aparece na língua no século 16, chegado por via erudita. O verbo originário é excipere, onde cipere significa tomar/tirar e a partícula ex- tem o sentido de fora de. Portanto, o significado final é tirar para fora. Exceptus é o particípio passado. Em nossa língua, a família deu ainda exceto, exceção, excetuar.

Excepcional é o que foi tirado fora do conjunto, ou seja, o que está fora da norma fixada e geralmente aceita, acepção que cai como luva para doutor Bolsonaro.

Outra maneira de exprimir a ideia de fora da norma é anormal. Se preferir, pode aplicar esse termo quando se referir ao doutor. É forma ideológica e gramaticalmente correta.