Brazil: too big to fail

Brazil: too big to fail

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 25 março 2023

Nos anos 1980, firmou-se a expressão “too big to fail” – grande demais para falir. A frase lembra que certas empresas, em razão de seu porte, não devem ser abandonadas quando enfrentam tempos difíceis. Grandes bancos são expostos a esse risco. Quando a situação de um deles periclita, o governo costuma socorrer rápido, para acalmar o mercado e evitar contaminação sistêmica.

A débâcle do Crédit Suisse, semana passada, é exemplo de um banco “too big to fail”. Fosse abandonado na tempestade, o segundo estabelecimento bancário suíço teria falido em poucos dias por não ser capaz de estancar a sangria de depósitos que se avolumava desde a semana anterior. O governo suíço pressionou o maior banco do país a encampar o concorrente em apuros. Sem isso, estaria armado o cenário de uma crise planetária como a de 2008.

Países não são empresas. Um país que deixa de pagar suas dívidas torna-se inadimplente mas não irá à falência. Por mais que ele esteja no vermelho, sua infraestrutura, suas riquezas naturais e seu povo não vão desaparecer. Portanto, seu ativo excederá sempre seu passivo.

Curiosamente, o verbo inglês “to fail” tanto significa “falir” como “falhar”. É aí que ouso um jogo de palavras complicado em inglês mas cristalino em nossa língua: Um país nunca será grande demais para “falir”, mas pode ser grande demais para “falhar” (‘too big to fail’ em ambos os casos). O Brasil se enquadra nessa afirmação, por ser grande e importante demais para se permitir falhar em suas obrigações perante o conjunto das nações. Sob pena de perder importância, o Brasil tem de garantir seu lugar no tabuleiro mundial.

Nestes últimos 20 anos, entra governo, sai governo, nossa diplomacia não parece entusiasmada para ver o Brasil assumir o lugar que lhe cabe no seio das nações. O antigo presidente Bolsonaro ousou elevar ao posto de ministro de Relações Exteriores um personagem isolacionista, que se alegrou em relegar nosso país ao papel de pária. Nos governos petistas, política externa se resumia a bravatas e a calotes a organismos internacionais, justamente àqueles em que almejamos assumir cadeira permanente. Ignoraram o velho adágio: “Não há bônus sem ônus”.

Não se refaz a História, mas nunca é tarde pra corrigir a rota. O mundo que se desenhou com o desmoronamento da União Soviética pareceu, num primeiro momento, apontar para um universo unipolar, com uma única superpotência. A fulgurante ascensão da China e a invasão da Ucrânia, entre outros fatores, deram o sinal do fim do recreio. Nosso país, que não é uma república de bananas, tem de entender que a brincadeira acabou. Foi-se o tempo em que se podia propor resolver conflitos internacionais com um simples jogo de futebol. A orquestra agora toca pra valer, e é bom não perder o compasso.

Faz um ano que a Rússia invadiu a Ucrânia, impondo uma guerra de conquista territorial a uma Europa que pensava haver esconjurado a guerra. A União Europeia, que é uma das três maiores potências comerciais do mundo, foi profundamente transformada por essa guerra. A aparição de um inimigo comum despertou a solidariedade e empurrou países neutros para a Otan, uma aliança militar. Gastos militares explodiram, até em países antes pacifistas. Fluxos do comércio internacional estão dramaticamente modificados pelas sanções.

Essa realidade não pode ser minimizada por nosso governo. Nossa “doutrina de não intervenção” tem de ser mais que política de fachada. Se nos abstemos de intervir em assuntos internos de outro país, a coerência nos obriga a condenar toda intervenção de um país em outro – mormente quando for invasão militar. Toda barbaridade tem de ser repelida com veemência.

Nosso governo tem feito movimentos erráticos e contraditórios. Mas nosso país conta. Não podemos fazer como se não tivéssemos nada a ver com o peixe. Que Putin não vale um saco de fertilizante, é ponto pacífico. O que o mundo espera de nós é uma posição civilizada de clara rejeição à agressão russa, que já matou centenas de milhares de inocentes, mandou 8 milhões para o exílio e continua destruindo o país. A retirada das tropas russas é pré-requisito para qualquer início de diálogo.

Nosso país não é um grotão. Nossa força econômica, nossa massa populacional e nossa tradição humanista nos autorizam a soltar a voz para condenar todo crime contra a Humanidade. É o que o mundo espera de nós, e não podemos falhar: “Brasil is too big to fail”.

O público e o privado

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 26 novembro 2022

Monsieur Pierre Maudet é um político suíço. Talentoso, aos 33 anos já era prefeito de Genebra. Poucos anos depois, chegou ao posto máximo de seu cantão, o de presidente do Executivo colegiado. Muitos já vislumbravam para o jovem prodígio um posto de primeira gandeza no plano federal.

Em 2015, ele aceitou convite do príncipe herdeiro de Abu Dabi para passar três dias no emirado. Durante a visita, Maudet encontrou-se com dirigentes do país, inclusive com o emir. O episódio passou despercebido até que, três anos depois, o MP de Genebra abriu inquérito sobre o passeio. Queria saber se a viagem era privada ou de cunho político.

Monsieur Maudet jurou que tinha sido viagem de lazer com despesas pagas de seu próprio bolso. Mas nosso mundo digital não perdoa: tudo fica gravado e a verdade acaba vindo à tona. O inquérito prosseguiu e acabou descobrindo que o político estava mentindo: ele tinha viajado a convite do emir – e com todas as despesas pagas, inclusive o voo em primeira classe.

A carreira do promissor político estancou. Foi expulso do partido. O Tribunal Federal, última instância judiciária do país, acaba de confirmar sua condenação definitiva. Ele é culpado de ter aceitado favores indevidos, pouco importando a existência ou não de contrapartida aos mimos recebidos.

Outro dia, Lula da Silva, nosso presidente eleito, tomou a iniciativa de ir ao Egito para a Cúpula do Clima. Embarcou no jato particular de um empresário. O detalhe incômodo é que este último, enroscado na Lava a Jato, fez acordo de delação e devolveu 200 milhões ao erário.

A imprensa sentiu o cheiro de queimado. Indagado, o presidente eleito não se mostrou constrangido e informou com candura: “Não pedi o avião, foi ele quem me ofereceu. Não foi empréstimo, foi carona.”. Em outros tempos ou em outras terras, esse passo em falso teria potencial de ofuscar a totalidade do mandato, podendo até justificar o impedimento do recém-eleito.

Mas não estamos em outros tempos nem em outras terras. Em nosso leniente Brasil, em geral dá-se um jeito. Assim mesmo, há momentos em que fica difícil dar jeitinho. Os destituídos Collor e Dilma estão aí para provar. Assim como os condenados na Lava a Jato. E também os bolsonaristas enredados na justiça. Lula que tome cuidado.

O novo presidente vai governar num cenário diferente do de mandatos anteriores. Em vez de parlamentares bonachões, terá diante de si uma oposição do tipo “quatro pedras no bolso e faca entre os dentes” – uma espécie de PT ao quadrado, feroz, pronto a agarrar qualquer pretexto para tocar trombone e bater panela. Não terá a vida fácil.

Com razão ou não, a imagem de Lula no papel de chefe de quadrilha está cristalizada na mente de muitos eleitores. A justiça julgou, penas foram purgadas, mas o estigma ficou. Se todo homem público tem de escolher com atenção as pedras em que pisa, Lula tem de tomar cuidado redobrado, que há muita gente de olho em seu primeiro escorregão.

Na equipe de transição, já há um grupo de trabalho para o combate à corrupção. A preocupação com o tema é louvável. A ideia deveria ser levada adiante, quiçá com a criação de uma secretaria permanente. No entanto, por mais que uma secretaria cuide de apontar e coibir casos de corrupção, ela será sempre consituída de funcionários subordinados ao governo. No frigir dos ovos, temos funcionários do governo que tentam controlar o próprio governo. Como se sabe, certas verdades costumam ser edulcoradas para agradar ao chefe.

O ideal será que essa secretaria seja complementada por um Observatório da Corrupção, organismo independente, composto de conselheiros maduros e de ilibada reputação. Podem ser juristas, ex-juízes, ex-parlamentares, professores, cientistas, empresários, gente de bom senso. É vital que não sejam remunerados. Farão trabalho voluntário e serão apenas ressarcidos de despesas. Só um controle externo como esse tem o poder de chegar direto à Presidência, sem preocupação de agradar ou desagradar ao chefe.

O Observatório da Corrupção seria o órgão adequado para convencer o presidente a não mais mesclar o público com o privado, como na viagem ao Egito. Contra uma oposição feroz, todo cuidado é pouco.

Tout ça pour ça?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 24 setembro 2022

“Tout ça pour ça” é expressão que os franceses utilizam para indicar que um grande esforço deu resultado pífio. Tudo isso pra isso?

Bolsonaro botava fé na ida à Inglaterra para o funeral de Elizabeth II. Assim que a nota de falecimento chegou, postou na rede um texto enigmático em que elogiava a falecida e explicava: “porque não foi apenas a rainha dos britânicos, mas uma rainha para todos nós”. O sentido da frase não ficou claro. De que maneira teria ela sido uma rainha para todos nós? Talvez fosse apenas uma tentativa canhestra de saudar uma personalidade importante. Quase todo o mundo tinha simpatia pela rainha da Inglaterra; de lá a considerá-la “nossa rainha”, há uma boa distância. Ficou esquisito.

Seu comitê de campanha julgou que estar presente na cerimônia fúnebre seria ótima oportunidade para dar ao bom povo a ilusão de ter um presidente influente, aceito nos altos círculos da governança planetária, enfronhado com os grandes deste mundo. O decreto de luto nacional de três dias saiu rápido, em edição extra do Diário Oficial. Note-se que o Brasil não é integrante do Commonwealth e que Bolsonaro, diferentemente de Lula, FHC e Dilma, nunca se encontrou com a rainha.

Ficou a incômoda impressão de que o luto decretado tinha um fundo interesseiro. O presidente pareceu estar pedindo para ser convidado para o funeral. Até os ladrilhos da Abadia de Westminster sabiam que nem todos os dirigentes do planeta seriam convidados. Sabia-se que ninguém que pudesse criar constrangimento receberia convite. Mas… e Bolsonaro? Ele já criou caso com tanta gente! Charles III é fervoroso militante da causa climática, enquanto nosso presidente milita pelo fim da floresta amazônica. É lícito crer que foi o receio de não ser convidado que impeliu o capitão a ser tão obsequioso.

Deu certo. O convite veio, com direito a cumprimentar o rei. O soberano não concedeu mais que um minutinho a cada dirigente estrangeiro, mas o importante é que Bolsonaro conseguiu ser retratado ao lado dele. Na foto, o capitão parece sorridente demais para um encontro com quem acabava de perder a mãe. Deu tapinha no ombro do rei, numa intimidade inusitada, gesto lesa-majestade. Mas a foto saiu. Vai ajudar na eleição da semana que vem? Que acredite quem quiser.

Bolsonaro pernoitou na residência de nosso embaixador. Ruidosa recepção matinal defronte à sacada o esperava, preparada por apoiadores paramentados como manda o figurino: todos de amarelo, alguns enrolados no lindo pendão da esperança. Na hora, levei um susto ao imaginar que nossos compatriotas que moram no Reino Unido fossem todos bolsonaristas. Por ingenuidade ou malícia, o capitão pareceu achar a mesma coisa. Tanto é que, sentindo-se elevado às nuvens, fez discurso de improviso. Inflamado, acusou antecipadamente o TSE de fraude caso ele não vença no primeiro turno.

Após reflexão, percebi que minha primeira impressão estava errada. Nós, brasileiros do exterior, não lemos todos pela mesma cartilha. Aqueles que vociferaram na tranquila manhã londrina, em pleno período de luto e recolhimento nacional, não eram representativos da colônia brasileira. É que os não bolsonaristas – lulistas, ciristas, tebetistas, abstencionistas – aproveitaram o feriado para dormir até mais tarde. Iam lá se expor à violência gratuita de devotos ensandecidos? Ainda não enlouqueceram.

Dois dias depois, no discurso de abertura dos trabalhos na ONU, o capitão teve grande oportunidade de redimir-se. Mas subiu ao púlpito e não decepcionou: leu um texto com algumas platitudes e muitas inverdades. Descreveu um Brasil de folheto turístico, de deixar o País das Maravilhas com inveja. Achei até que, ao final da fala, a plateia se fosse levantar em peso para precipitar-se ao consulado do Brasil para solicitar um visto de permanência. Conhecendo o capitão, ninguém se levantou.

Ao fim e ao cabo, Bolsonaro perdeu excelente oportunidade de dar uma trégua aos eleitores que pretende conquistar. Desaparecer do cenário por alguns dias teria sido bom para sua campanha, visto que não proferiria as habituais ofensas que freiam sua subida nas pesquisas. Só que, mesmo no exterior, ele persistiu em deteriorar a própria imagem. Foi jogo de resultado zero.

Tout ça pour ça? Manda outra, capitão! Com essa, vosmicê deu com os burros n’água.

Nem tudo está perdido

“Quem é que quer saber do passado, agora que o Brasil está voltado para o futuro?”
by Patrick Chappatte (1966), desenhista suíço

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 27 agosto 2022

Afeganistão
Em 2001, na precipitação que resultou dos atentados perpetrados pelos terroristas da Al-Qaeda, o governo dos EUA tomou a decisão de cortar o mal pela raiz. Mandou tropas à região onde se presumia estivesse localizado o esconderijo dos cabeças da organização e deu início à Guerra do Afeganistão.

Relativamente modesta no começo, a força militar engrossou com o passar dos anos. No auge da intervenção, a coalizão encabeçada pelos EUA chegou a contar com um efetivo de 150 mil militares, oriundos de 48 países diferentes.

O objetivo perseguido era, na expressão do presidente Bush Jr., promover uma “guerra ao terrorismo”. Analistas militares botaram olho crítico na expressão e fizeram observar que, numa guerra, há que escolher o inimigo. Terrorismo não é o inimigo, mas apenas o método utilizado por ele. Ninguém faz guerra contra o esquema de combate do adversário. Assim mesmo, a descrição oficial permaneceu bastante vaga na hora de apontar o verdadeiro inimigo.

Em 2021, após duas décadas de ocupação e combates, as forças deixaram o território afegão. Apesar da permanência de vinte anos, foram incapazes de organizar a sucessão e de prever o que ocorreria. Aconteceu um desastre. No dia seguinte ao da partida do último soldado, os Talibãs voltaram, e o país deu um tremendo passo atrás. Foram tempos de morte, sofrimento, medo e privações que não serviram para nada. Em 20 anos ocupando o país, os invasores não aprenderam.

Ucrânia
Em fevereiro deste ano, um ultraconfiante Putin lançou sua versão 2.0 do Exército Vermelho contra a vizinha Ucrânia – país de superfície 28 vezes menor que a da Rússia. Ressalte-se que, desde os tempos da extinta União Soviética, os serviços de espionagem russos estão no topo da excelência. Na Ucrânia, para preparar a invasão, hão de ter tido grande liberdade de ação. Religião, costumes, clima, alfabeto, línguas são comparáveis, quando não idênticos. Um agente russo pode se perder em meio à massa humana de Kiev, por exemplo, sem que ninguém note a presença de um estrangeiro, visto que parte da população ucraniana tem o russo como língua materna.

Apesar dessa evidente vantagem, as boas informações não chegaram ao ditador em Moscou. Não está claro se por ineficiência dos agentes, traição, sabotagem ou algum outro motivo. É até possível que os russos, imaginando que seriam recebidos de braços abertos, tenham contratado espiões ucranianos, que se revelaram ser agentes duplos. A Rússia não levou em conta o patriotismo dos ucranianos.

Nessa guerra, que já dura seis meses, a Rússia vem sofrendo imensos reveses. Seu exército registra extensas perdas humanas e materiais; sua economia levou um baque que a fará recuar vários degraus; a fuga de cérebros jovens e promissores vai fazer falta no futuro; com a adesão da Finlândia e da Suécia, a Otan se aproximou mais ainda de suas fronteiras. Ao final, vê-se que os vinte anos de permanência de Putin no topo do poder não lhe ensinaram grande coisa. Apostou mal, arriscou demais e perdeu tudo.

Brasil
Quem assiste à constante multiplicação de desvios de conduta do presidente da República e a sua bizarra preferência por caminhos desviantes tem o direito de ficar intrigado. E assustado. São quase quatro anos sem um dia de trégua. Insultou dirigentes estrangeiros, ofendeu mulheres e negros, descambou para a homofobia, liberou armamento para todos, respaldou garimpo e desmate ilegais, exerceu o charlatanismo, louvou a cloroquina, vingou-se de servidores probos, menosprezou índios, desprezou a ciência, vilipendiou a cultura, fechou os olhos às milícias, minou a confiança de meio Brasil no sistema eleitoral.

Ao ver um currículo – que digo! – ao ver um prontuário dessa magnitude, a população brasileira tem razão em viver na angústia de um golpe de Estado ao aproximar das eleições. No entanto, recentes declarações do capitão de que aceitará o resultado do voto seja ele qual for tranquilizam. Vão no bom sentido. É um bálsamo saber que, diferentemente de estrategistas americanos e russos, ele parece estar se dando conta a tempo de que sua aventura não teria final feliz. Speremus, fratres!

Ação e reação

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 30 julho 2022

Vladímir Putin é homem esperto. Até antes do tremendo erro tático que cometeu ao invadir a Ucrânia numa guerra de conquista, sua ascensão tinha sido fulgurante. Obscuro funcionário burocrático dos serviços de espionagem até o fim dos anos 1980, perdeu o emprego assim que o império soviético se desintegrou. De volta à pátria, pôs um pé na política ao se aproximar do então prefeito de São Petersburgo, segunda metrópole do país.

O prefeito era sabidamente “capo” de uma rede mafiosa. O fato não saía nos jornais, mas, à boca pequena, todos sabiam. O jovem Vladímir há de ter se entendido bem com o chefe, visto que este lhe abriu as portas de uma carreira política à moda russa: sinuosa, mas certeira. Poucos anos depois, Putin já se encontrava em Moscou, agora sob as asas de outro figurão: Borís Eltsin, presidente do país.

Eltsin simpatizou com aquele funcionário taciturno que estava comandando os serviços de segurança interna. Imaginou que ele pudesse ser-lhe útil. Bonachão mas desregrado, Eltsin não vinha governando bem. O país, após oito anos vividos sob sua presidência, encontrava-se em má situação. Uma nova classe de ávidos oligarcas tinha se apoderado do espólio da antiga União Soviética. A população estava desassossegada. No final de 1999, acossado por escândalos de corrupção, Eltsin renunciou à Presidência e deixou Putin em seu lugar como substituto temporário. Nas eleições seguintes, Putin foi confirmado no cargo. Desde então, não deixou o topo do poder.

Nos primeiros anos, foi visto pelo mundo como dirigente respeitável. Foi até convidado a integrar o grupo das nações mais ricas, que então se chamava G8. Em 2014, porém, a Rússia invadiu e anexou a Crimeia, território ucraniano. A partir desse momento, Putin foi desconvidado pelo G8 e a Rússia foi posta de molho. Alguma sanção econômica foi infligida, mas nada que bloqueasse o país.

Se a anexação da Crimeia pareceu ter sido digerida, a invasão da Ucrânia, em 2022, passou dos limites. Ressuscitou dolorosas lembranças de guerras passadas. Era intolerável ver uma nação europeia invadindo outra nação europeia. A reação do mundo civilizado foi imediata, unânime e radical. Sanções duríssimas foram aplicadas ao país.

Mas o pior, a marca que permanecerá por décadas e décadas, é a degradação da imagem da Rússia e de seu povo. A Europa e o mundo voltaram a temer o urso soviético – e quem teme, repele. Em poucas semanas, Putin destruiu a normalidade que tinha sido construída desde a queda do Muro de Berlim. Gerações de russos, embora não sejam culpados dos delírios de Putin, sofrem hoje e vão continuar amargando a desconfiança e a repulsa dos povos civilizados.

Diferentemente de Putin, Bolsonaro não é esperto. Desde o início de seu mandato, parece não conhecer outro modo de operar se não o da marretada. Se a porta não abre, prefere demoli-la, sem que lhe ocorra entrar pela janela. Se encasqueta que tem de armar a população, pouco se lhe dá que pesquisas informem que a maioria abomina essa ideia: armará seus sequazes. Falta-lhe o senso da nuance. Sua personalidade é feita de arestas aceradas. Em seu lugar, um indivíduo de mente arejada já teria se dado conta de que ventos contrários ameaçam sua almejada reeleição. Ele não parece perceber que é hora de dar o pulo do gato, ainda que fosse preciso guardar na geladeira algumas convicções. Não – continua na marretada.

O mundo civilizado não é anestesiado como Bolsonaro parece imaginar. Se não foi vaiado ao fim do “brienfing” a que convocou os embaixadores, é porque diplomata é discreto por dever de ofício. Mas paciência tem limites e ninguém atura ser feito de bobo. Se o mundo continua calado, é por estarem todos no aguardo das eleições de outubro. Caso o capitão seja reeleito, a passividade terminará em janeiro. Caso dê autogolpe, a reação será imediata. Os EUA já deram o tom ao redigir a nota de repúdio à fala presidencial.

Se as forças vivas da nação não reagirem com vigor, os países civilizados o farão. O mundo precisa menos do Brasil do que o Brasil precisa do mundo. Segurem-se, que a reação vai ser forte! Ricos e pobres, todos vão sentir.

Genocida, não!

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 janeiro 2022

A validade de um estudo científico só é autenticada depois de ele ter sido avaliado e abonado por um conjunto de reconhecidos cientistas da mesma área. É o que os ingleses chamam ‘peer review’.

Costuma-se traduzir essa expressão como ‘revisão por pares’, ‘revisão paritária’ ou até, um tanto desajeitadamente, ‘arbitragem’. A tradução flutuante vem do fato de não ser comum, entre nós, designar de “pares” os que exercem a mesma função ou os que pertencem à mesma categoria. Assim, qualquer tradução literal periga sair meio manca. Mas, pela atual tendência de integração de conceitos estrangeiros a nossa língua, a solução já foi encontrada: mantém-se a expressão inglesa, com casca e tudo.

A organização MedRxiv, cujo estranho nome se deve pronunciar “med-archive” (‘arquivo médico’) é um repositório online de preprints da área médica, clínica e de saúde. Preprint, como o nome sugere, é a publicação prévia de artigo científico ainda não validado pelos pares.

Agora vamos aos fatos. Alguns dias antes do fim de dezembro 2021, uma dezena de cientistas brasileiros assinaram, sob forma de preprint, um alentado estudo sobre a correlação entre vacinação, hospitalização e morte de maiores de 60 anos. A primeira constatação, como se imaginava, é de que a taxa de óbitos decresce à medida que a vacinação se generaliza.

Em seguida, os signatários do estudo valeram-se de fórmulas complicadas demais para serem descritas por não-iniciados como este escriba. O que interessa são as conclusões. E elas são comprometedoras para o governo brasileiro. O incrustado negacionismo gerado pela ignorância presidencial custou caro ao país. Em vidas humanas.

O estudo estima que milhares de idosos brasileiros foram salvos pela vacinação: um total de 75 mil, só no ano de 2021. Não fosse a vacina, esse contingente já não estaria mais entre nós. Essa é a parte decente da história. Em paralelo, há um lado bem mais sombrio.

Todos se lembram dos esforços envidados pelo capitão para frustrar – ou, pelo menos, retardar – a compra de vacinas anticovid. Baseados em análise dos dados e em cálculos atuariais, os cientistas chegam à conclusão de que, se a vacinação tivesse começado 8 semanas antes, 48 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Quarenta e oito mil mortes! Para efeito de comparação, essa hecatombe equivale à queda de 185 Boeings modelo 767 lotados, com 260 passageiros cada um, sem nenhum sobrevivente pra contar a história. Ou 4.800 desastres como o de Capitólio (MG), que ocupou as manchetes com suas 10 vítimas – um Capitólio por dia, durante 40 meses sem parar. Estamos falando apenas das mortes evitadas.

Muitos chamam Bolsonaro de genocida. Estão errados. Genocídio é palavra relativamente recente, criada nos anos 40 e oficializada por convenção da ONU de 1948. A definição é rigorosa: exterminação sistemática de um grupo humano por motivos de raça, língua, nacionalidade ou religião. É, portanto, limpeza étnica – um ato extremado levado a cabo por motivos religiosos ou por loucura.

Os atos de Bolsonaro não correspondem à definição. Sabe-se que ele não gosta de pobre, mas a negação da pandemia não causou morte só de pobres. Sabe-se que ele tem medo de “comunista”, mas o atraso na compra das vacinas não mandou só “comunistas” pro cemitério. Sabe-se que ele é misógino, mas a louvação da cloroquina não matou só mulheres.

Bolsonaro tem alguns parafusos soltos. Sua loucura é apimentada por ignorância, poltronice e preguiça – condimentos explosivos, mas que não chegam a configurar um genocida que se preze. Genocidas verdadeiros, não houve tantos assim. O século XX conheceu alguns dos grandes, tais como Hitler (Alemanha), Pol Pot (Cambodja) e Stalin (URSS). Há outros menos conhecidos. Por mais que tenha feito, nosso capitão não entra nessa categoria.

Genocídio requer método e planejamento, conceitos que não frequentam o universo mental de Bolsonaro. Ele não passa de um ser perturbado, atrasado, sem instrução, paranoico, que chegou à Presidência numa esquina da história que não se repetirá. Está mais pra patacão que pra genocida.

O destino de Bolsonaro

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 agosto 2021

“Repórter Esso, testemunha ocular da história!” – era o mote do mais importante jornal televisivo de meio século atrás. A frase impressionava, ainda que, no fundo, não quisesse dizer grande coisa. Testemunhas da história somos todos nós, todo o tempo, por toda parte. Mesmo sem dispor, individualmente, do mesmo volume de informação daquele que “testemunhava a história”, cada um de nós também é testemunha dos fatos. Ao fim e ao cabo, nada mudou: ontem como hoje, continuamos assistindo ao desenrolar dos acontecimentos. De corpo presente.

Mas, não há que se diga, há momentos em que a gente tem impressão de que a história se acelera. Estamos justamente atravessando um deles. Momento é maneira de dizer – começou em 2018, com a subida ao trono do capitão, e continua. O brasileiro, com seu espírito criativo que já deu nome ao mensalão, ao petrolão e ao rachadão, há de estar achando que este é um ‘momentão’. Interminável. A aceleração da história virou um torvelinho, uma espiral sem fim, que rodopia cada vez mais rápido e mais fundo. Às vezes chega a parecer que o fundo do poço se aproxima mas, ai de nós!, tem sempre mais poço.

Muita gente anda desesperançada, quase conformada, disposta a baixar os braços e entregar os pontos. Não é o caso deste escriba. O distinto leitor há de se lembrar que, faz algumas semanas, o presidente da CPI da Covid conjecturou: “Membros do lado podre das Forças Armadas estão envolvidos com falcatrua”. Melindrados, o ministro da Defesa e os comandantes das três Forças vestiram a carapuça e ameaçaram em uníssono: “Não aceitaremos nenhum ataque leviano às instituições”. Logo a seguir, em entrevista, um calejado tenente-brigadeiro da Aeronáutica liquidou a questão com poucas palavras: “Homem armado não ameaça”.

De lá pra cá, muita água passou pelos rios do Brasil, mas a aula do tenente-brigadeiro foi daquelas que não se esquecem. Só não entendeu quem não quis. A lição é simples: golpe não se anuncia, se dá. Quem saca e não atira perde o crédito. O caminho está traçado: golpe não haverá. Se houver, não dará certo. Se, assim mesmo, desse certo, não receberia a adesão daqueles que detêm a força – os que realmente contam. E tudo iria por água abaixo.

Francamente, golpe de Estado pode combinar com republiqueta de bananas – no Brasil do século 21, fica fora de esquadro. Ser pária internacional no delírio de um chanceler doido é uma coisa; ser apartado do convívio das nações civilizadas e sofrer as sanções reservadas para os países excêntricos é outra, bem diferente. Alguém disposto a pagar pra ver?

Vai ficando mais e mais claro que a sede que o capitão tem de aferrar-se à Presidência não deriva tanto de querer manter o poder pelo poder, mas da paúra de ser obrigado a passar pela casa prisão. Para escapar dessa terrível etapa, só resta uma opção – e Bolsonaro sabe disso. Já veremos qual é.

As pesquisas de opinião convergem para um ponto: a rejeição a seu nome cresce. A desaprovação já batendo em 2/3 do eleitorado e as Forças Armadas firmes no respeito aos preceitos constitucionais bloqueiam toda veleidade de golpe. Arruaça, pode até ser – golpe, que é bom, sem chance. Não se dá golpe no grito. Pra botar as instituições entre parênteses, é preciso ter tanto o apoio popular quanto o dos que detêm a força. O capitão não tem nem um nem outro. Portanto, se cometesse a loucura de dar passo decisivo nessa direção, estaria encomendando o camburão com destino à carceragem.

Para azar dele, ainda que desista de dar essa cabeçada, só manterá o camburão afastado até o fim do mandato, quando despirá a faixa e ficará nu, com choro e sem foro. Em decorrência da torrente de insultos que proferiu e do sem-número de inimizades que cultivou, não terá vida fácil. Indispôs-se com gente que lhe poderia ser útil. Ele só tem um caminho para evitar ser tragado por esse campo de ruínas: é compenetrar-se de que perdeu a partida. Sufocar todo delírio de golpe e começar a se reconciliar com todos aqueles a quem ofendeu. Um por um. Recolar os cacos que não estiverem esmigalhados. Vai ser duro, mas é bom começar já porque é muito conserto pra menos de ano e meio de mandato.

Se assim proceder, o capitão terá chances de escapar à cadeia. E ainda pode se candidatar a uma aposentadoria tranquila em Mar-a-Lago, ao lado do amigão Trump. Nunca se sabe.

E 2021, como é que fica?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 dezembro 2020.

Cinco anos atrás, quando 2015 estava para terminar, escrevi um artigo aqui neste espaço. Falava das dificuldades que nos atormentavam. Eram tempos complicados. O Brasil atravessava período de turbulência braba, daqueles que, fosse avião, as asas estariam ondeando. Na economia, o ano tinha sido catastrófico, com inflação à solta e fuga de capitais. No Planalto, as coisas iam de mal a pior, com a doutora enfrentando processo de impeachment por gestão fraudulenta das finanças, subterfúgio contábil que ficaria conhecido como o das ‘pedaladas fiscais’ – uma quase ofensa aos amantes do ciclismo. Por seu lado, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, respondia por corrupção e lavagem de capitais. Para coroar o trágico buquê, a taxa de desemprego corria em direção aos 10%.

Colei no ano de 2015 o rótulo de annus horribilis – por sinal, o título do artigo. Lembrei que a expressão, com seus ares latinos, tinha sido repaginada pela rainha Elisabeth II, quando do Discurso do Trono de 1992. Com sua série de querelas e escândalos, aquele ano tinha marcado o reino e atormentado a real família. Até incêndio num dos castelos da rainha houve. A expressão, fisgada no latim, arremedava annus mirabilis – ano maravilhoso, título de conhecido poema escrito 300 anos antes por autor inglês. A rainha (ou o cavalheiro encarregado de redigir seus discursos) foi feliz na referência. Certos anos, mais que outros, marcam uma nação.

Para nós, o ano que se acaba foi um sufoco. Milhões de brasileiros estão se arrastando, língua de fora, pra ver se alcançam, vivos e ilesos, a soleira da porta de 2021. O Brasil que chega ao novo ano é um país sofrido, abalado pela perda de 200 mil cidadãos, atazanado pelas privações, martirizado pelo malquerer que o presidente da República dedica às mazelas da população. E, como se fosse pouco, o brasileiro está angustiado diante das perspectivas sombrias. O descaso cruel e repetido com que o Planalto nos hostiliza só faz aumentar nossa sensação de desamparo. Com quem contar? De quem esperar bom senso?

(Kleber Sales/CB/D.A Press)

Como 2015 parece longínquo! O desvario em que se atolam nossos dirigentes nos traz saudades daquele tempo. Desde que a pandemia se instalou entre nós, pulamos de incerteza em incerteza. A informação que valia ontem periga já ter perdido validade. Fronteiras, escolas, lojas são fechadas e reabertas. Ponha a máscara, tire a máscara, saia de casa, fique em casa, vacina vem, vacina vem não – o cidadão comum está dilacerado entre ordens e contraordens que se desdizem sem parar.

No meio desse pandemônio, uma voz clara e forte continua a nos dar o norte: é a voz presidencial, saída da garganta de um homem com histórico de atleta, segundo avaliação dele mesmo. Graças a essa voz, que nunca vacila nem retrocede, sabemos que a covid não passa de uma gripezinha. Temos a confirmação de que vamos todos morrer um dia. Fomos informados, já no longínquo 10 de abril, que o vírus estava indo embora – informe confirmado 8 meses depois, em dezembro, quando de novo o presidente preveniu estarmos no finalzinho da pandemia. Também por seu intermédio, estamos inteirados de que a Europa será bem mais atingida que nós. Fomos ainda avisados de que a hidroxicloroquina é remédio supimpa. E recebemos a informação suprema, o esclarecimento maior: de fonte oficial, sabemos que Sua Excelência não é coveiro.

Para infelicidade de todos os brasileiros, temos, na Presidência, um buraco negro que, além de não emitir luz, ainda engole o brilho e as luzes dos que se aproximam. Mas deixemos metáforas astronômicas e voltemos ao plano terrestre. O presidente é caso de escola sobre egoísmo exacerbado que, reforçado pela ignorância, resultou num indivíduo paralisado, que não faz nem deixa fazer.

Como será, para os brasileiros, o ano de 2021? Annus nefastus, annus mutandis, nefasto, cambiante? Não é fácil encontrar boa definição. Se bem que – vejam só – a resposta está às vezes bem à nossa frente, e basta abrir os olhos para enxergar. A realizar-se a escura profecia lançada por um presidente que tratou o próprio povo de maricas, 2021 será o annus crocodili, o ano em que todos nos transformaremos em jacaré. E daí?

A sutileza do general

A arrogância do líder

Otávio Santana do Rêgo Barros (*)

Os filmes de faroeste produzidos nos estúdios de Hollywood nos faziam torcer por muitos mocinhos e abominar alguns vilões. Na maioria das vezes retratavam a saga da colonização e a expansão americana rumo ao Oeste.

O “General” George Armstrong Custer foi um desses personagens, e desde já o escalo no time dos vilões, cuja ambição o tocava até no desejo de ser presidente americano, embora de sua história o que mais despertou meu interesse tenha sido seu perfil de liderança.

Custer (1839-1876) estudou na Academia Militar de West Point (equivalente aqui à Academia Militar das Agulhas Negras), formando-se em último lugar de sua classe. Não era nem aplicado nos estudos (limitado intelectualmente), nem muito rígido na observância das regras (indisciplinado).

Muito jovem, ainda como tenente, combateu na Guerra de Secessão, comissionado temporariamente no posto de general de brigada. Ao término do conflito, foi promovido a capitão e depois a tenente-coronel, assumindo o comando do lendário 7º Regimento de Cavalaria.

General Rego Barros

Antes da batalha do rio Little Bighorn, efeméride das Guerras Indígenas, batedores índios informaram ao “general cabelo comprido”, no comando de 647 homens, que estavam diante de um enorme acampamento indígena. Custer duvidou dos batedores. Como gente de uma sub-raça podia deduzir efetivos, baseando-se na profundidade das pegadas de cavalos? Ordenou o ataque. O vaidoso líder era obcecado, quase louco, por glória.

O 7º Regimento de Cavalaria atacou em várias direções, esperando provocar a dispersão dos inimigos, levando-os a uma fuga precipitada. Nesse dia, o General Custer incorreu em diversos erros. Acostumara-se a ver os índios entrarem em pânico diante de sua cavalaria. Imprudente, não valorizou as informações de seus batedores. Deparou-se com cerca de 15.000 índios de diversas tribos, liderados por Touro Sentado e Cavalo Louco. Usavam armas tradicionais e até modernos rifles de repetição.

Se fosse previdente, Custer teria estudado melhor o terreno e aguardado reforços. Ao sofrerem um contra-ataque, duas de suas colunas debandaram. Cercado numa pequena colina, pediu reforço a um subordinado, comandante de outro contingente, que recebeu a mensagem e a ignorou.

A batalha – uma carnificina – durou cerca de 20 minutos. Custer e seus comandados, incluindo seus dois irmãos, foram chacinados. Apenas um cavalo sobreviveu. Muitos estudiosos na arte da guerra o culparam pelo massacre, afirmando que ele cobiçava receber todo o prestígio pela vitória que lhe parecia destino.

A história de sua morte é plena de ensinamentos e deve ser considerada por aqueles que se encontram em posições de mando. Dela depreende-se que:

  • É impositivo planejar com segurança a hora do ataque;
  • é preciso ouvir assessores experientes;
  • não se divide forças contra inimigos poderosos;
  • é preciso cautela, mesmo que a ansiedade por fama fale mais alto;
  • há infiltrados que são mercenários e se vendem pelo melhor preço;
  • os inimigos não ficam inertes, fazem alianças e estudam os adversários e
  • os verdadeiros guias de uma nação chegam ao poder e passam à história por terem conduzido e superado com serenidade e determinação as crises e as catástrofes.

Arrematando, líderes que decidem de forma figadal podem fenecer, levando consigo seus subordinados e deixando apenas um trôpego cavalo para contar a história.

Oxalá esses ensinamentos ajudem nossos Custers contemporâneos a reverem seus conceitos de liderança, incorporando no seu alforje de atributos a humildade, a serenidade, a temperança, a maturidade, a empatia e, acima de tudo, a verdade.

Estamos ficando angustiados. Estamos chorando. Não queremos mais perdas. Nossa batalha de Little Bighorn é a da covid-19. É preciso mais ponderação e menos arrogância para enfrentá-la.

Índios ensandecidos, da temida e poderosa tribo coronavírus, desejam arrancar o nosso escalpo e demonstrar que erramos, mais uma vez, ao escolhermos esses atuais líderes.

Senhores políticos, provem que eles estão errados! É o presente de Natal que desejamos. Somos reféns de suas idiossincrasias.

Feliz Natal! E um ano novo com mais esperanças! Paz e bem!

(*) Otávio Santana do Rêgo Barros é general. Foi porta-voz da Presidência da República até 7 out° 2020.

Os símbolos de lá e os de cá

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 novembro 2020.

Berlim, 29 de agosto de 2020
Era uma passeata autorizada. Milhares de manifestantes desfilaram pela cidade para exigir a suspensão da obrigação de usar máscara de proteção contra a covid-19. A manifestação decorreu pacífica, mesmo porque, fora a reivindicação dos participantes, não havia choque de ideias. Não se tratava de embate entre facções; os que se dispunham a acatar a ordem de usar máscara ficaram em casa.

Lá pelas tantas, um grupo de 200 a 300 simpatizantes de extrema-direita, mais exaltados que os demais, conseguiu saltar as grades de proteção que rodeiam o Reichstag, a sede do Parlamento Nacional. Alguns chegaram até a subir os degraus da escadaria antes de serem dispersados por policiais munidos de bombas de gás lacrimogêneo.

Numerosos invasores, saudosistas, agitavam a bandeira do Império Alemão (1871 a 1918) assim como a do início do III° Reich (1933 a 1935). É atitude temerária num país em que cicatrizes de um passado trágico ainda não se fecharam de todo. Ninguém ousou erguer a bandeira nazista, aquela com a suástica, que isso é pecado mortal na Alemanha, passível de encrenca pesada com a Justiça. Após o malogro, os invasores revelaram ter tido intenção de ‘ocupar’ o Parlamento.

Brasília, 13 de junho de 2020
Fazia tempo que apoiadores de Jair Bolsonaro tinham montado acampamento na Esplanada dos Ministérios. Era uma forma peculiar de protestar contra determinadas instituições da República cujo funcionamento não era do gosto deles. O assentamento era selvagem. A lógica elementar ensina que é vedado a um particular assenhorear-se do espaço público, mormente instalando lá sua residência, ainda que temporária. O governo do Distrito Federal ordenou a remoção das tendas. Naquele dia, a ordem foi cumprida. Os apoiadores do presidente, simpatizantes de extrema-direita como os berlinenses, não apreciaram o despejo.

Lá pelas tantas, um grupo mais exaltado de recém-expulsos teve a bizarra ideia de munir-se de fogos de artifício e utilizá-los como mísseis terra-terra. Atiraram os artefatos em direção à sede do STF, como se de bombardeio se tratasse. Jornalistas presentes à ocorrência gravaram ameaças acompanhadas de um caudal de impropérios, todos endereçados a ministros do Supremo.

Conclusão
Ambos os episódios têm pontos em comum. Por exemplo, as duas manifestações começaram dentro de relativa calma para, no final, desandarem por obra e graça de grupos radicais. Por seu lado, seguindo um figurino de romantismo adolescente, alemães e brasileiros se rebelavam contra a ordem estabelecida, fosse ela encarnada por insituições do Estado, fosse pela obrigatoriedade de portar a detestada máscara anticovid. Mais um ponto comum: os manifestantes, tanto os de lá quanto os de cá, estavam cientes de não ter a menor chance de atingir o objetivo esboçado. Nem o Reichstag seria tomado, nem o STF, incendiado. Os atos eram claramente simbólicos.

Ao observador atento, porém, não há de escapar a discrepância maior entre os manifestantes de Berlim e os de Brasília: a simbologia contida na violência de cada episódio. Os exaltados de Berlim mimaram uma tomada de assalto do Parlamento alemão. Por trás de toda purpurina, estava o desejo de tomar a si as rédeas de uma instituição do Estado. Foi como se dissessem: «Arredem daí! Nós, o povo, vamos cuidar do Parlamento melhor do que vocês. Fora!». Nada, na movimentação dos manifestantes alemães, deixou transparecer desejo de eliminar o Parlamento; só de corrigi-lo e de pô-lo no ‘bom caminho’.

Já em Brasília, foi diferente. Nossos exaltados não mostraram intenção de ‘corrigir’ nem de redirecionar a atuação do STF para o ‘bom caminho’. A simbologia contida na simulação de ataque balístico era de destruição pura, de eliminação da Justiça republicana, como quem dissesse: «Não queremos uma Justiça independente. Essa instituição podre tem de ser eliminada. Exigimos que esse Poder seja entregue a nosso líder».

A conclusão que se pode tirar é tenebrosa: nossos exaltados tupiniquins são mais perigosos do que os herdeiros do III° Reich.

Memento mori

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que se aprendia latim na escola. Apesar de a língua dos romanos ter me provocado muita dor de cabeça e trazido muita nota baixa, guardei certa simpatia por ela. Volta e meia, quando dá, enxerto alguma citação, alguma máxima latina. Os romanos podiam ter seus defeitos, mas tinham notável bom senso.

Memento mori – é o título de um artigo que o Correio Braziliense publicou no caderno Opinião faz dois dias. O autor é Otávio do Rêgo Barros, general de divisão e doutor em ciências militares, aquele senhor sério e comedido que foi porta-voz de Bolsonaro do primeiro dia de governo até um mês atrás. Dizem as más línguas que ele foi expelido do cargo por ter caído em desgraça junto a um dos bolsonarinhos, aquele mais desequilibrado e intriguento.

O artigo do general já começa com citação latina, coisa fina. O texto é o reflexo do jeitão do autor: claro, pausado, bem explicado, ponderado, sóbrio. E erudito. Ele cita batalhas da segunda Guerra Púnica, travadas entre tropas romanas e cartaginesas 22 séculos atrás, embates em que entra em cena Aníbal Barca, aquele que atravessou os Alpes montado em elefantes. Me lembrou as aulas de dona Leocádia – quanto tempo!

Mas vamos deixar os elefantes e voltar ao general. Seu artigo, elegante, não cita nomes. Mas descreve claramente o comportamento do antigo chefe, Bolsonaro. O título, Memento mori (=Lembra-te que és mortal), refere-se a um costume romano. Quando voltavam de uma batalha, cobertos de glória, os generais faziam-se cercar de escravos que lhes sussurravam ao pé do ouvido essa frase o tempo todo. Era para não caírem na tentação de se deixarem embevecer por aplausos e adulações, que a glória é passageira.

Batalha de Zama
Segunda Guerra Púnica, 202 a.C.

No memorável artigo, o general Rêgo Barros faz um convite à reflexão. Depois de incentivar os outros Poderes da República e a imprensa a manterem firmeza e não recuarem diante de pressões, conclama a população a exercer seu papel de «árbitro supremo da atividade política».

O general não diz isto, mas, num país em que parlamentares são corruptos e organizações de classe – se é que existem – estão anestesiadas há duas décadas, o único canal aberto para o povo mostrar descontentamento é a rua. Manifestações como as de 2013, que acabaram por derrubar Dilma e o PT, são a única porta de saída deste pesadelo. Como conclamar o povo? Não sei. Vocês, que vivem no Brasil e são peritos em feicibúquis, tuítch e zap-zap, sabem melhor que eu. Minha parte, estou fazendo aqui.

Não sei como é que Bolsonaro foi escolher Rêgo Barros para o cargo de porta-voz. O general não combinava com a súcia que gravita em torno do Planalto. Sem condições: não podia dar certo.

Se o distinto leitor tiver 5 minutos, vale a pena ler o artigo do ex-porta-voz. Não é longo. Está disponível no site do Correio Braziliense. Aqui.

Lula, Battisti e as desculpas

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 agosto 2020.

Como se verá a seguir, certas atitudes expõem a incompetência e a falta de visão de governantes. O caso Battisti é emblemático. Terrorista condenado por atos cometidos nos anos 70 – dois homicídios e participação em outros dois –, o italiano Cesare Battisti fugiu da prisão, passou anos homiziado por França e México, para finalmente pousar em Copacabana, onde se escondeu por 3 anos.

Descoberto em 2007, passou a navegar pelos meandros da exótica prática judiciária do Brasil. Foi preso, foi solto, recebeu o estatuto de refugiado político, perdeu essa condição. As chicanas de nossa peculiar justiça – com sua dificuldade de dar decisão definitiva, como a deixar sempre brecha para uso futuro – conduziram o caso até a escrivaninha do presidente da República, então um certo Lula da Silva.

A ele coube dar o veredicto. Numa decisão estranha, Lula humilhou a justiça italiana e, passando por cima da decisão dos tribunais da Península, concedeu asilo político ao condenado por homicídio. Pegou muito mal, tanto aqui quanto na Itália.

O asilado passou a transcorrer dias despreocupados numa cidade de praia do estado de São Paulo. Distraído, não se deu conta de que o Brasil ainda guarda relentos absolutistas do “Ancien Régime”, sistema em que a lei se amolda à vontade pessoal do rei. Pois foi o que aconteceu. Recém-eleito, doutor Bolsonaro prometeu revogar, uma vez empossado, o asilo dado a Cesare Battisti. O asilado não esperou para ver – escapou à sorrelfa e tomou o rumo da Bolívia.

Ao passar a fronteira, deve ter acreditado que estava a salvo. Engano bobo. Agentes do serviço secreto italiano não tardaram a encontrar seu paradeiro. A partir daí, é permitido especular que tenha havido um acerto entre Roma e La Paz. (Esta parte não é oficial, mas é plausível.) O fato é que, apenas chegado a Santa Cruz de la Sierra, Cesare Battisti foi preso pela polícia boliviana e, em 24 horas, deportado em rito sumário. Nem processo de extradição houve.

Levado à Itália, foi trancado numa prisão de segurança máxima. Meses depois de ter voltado ao país natal, talvez para aliviar a consciência, confessou ser realmente autor dos crimes pelos quais tinha sido condenado. Consternada, a família lulopetista emparedou-se num silêncio obsequioso.

by Gilmar Fraga (1968-), desenhista gaúcho

Agora, ano e meio depois da confissão de Battisti, entra em cena nosso conhecido Lula da Silva. Numa entrevista concedida há 10 dias a um canal amigo, apareceu contrito e arrependido de ter concedido asilo ao italiano. No entanto, a fim de manter intacta a imagem do guia infalível, procurou um culpado para a enormidade cometida. Declarou ter sido “enganado” pelo homicida – o que traz à mente o estouro do mensalão, quando ele também se queixara de ter sido “traído”. Declarou ainda que não teria problema em pedir desculpa à família das vítimas. Usou o condicional: “não teria problema”. Como ninguém cobrou as desculpas, não as pediu. E o assunto morreu ali.

Com a velocidade do raio, a notícia chegou à Itália. Das vítimas de Battisti, Alberto Torreggiani é aquele que sofreu os “efeitos colaterais” mais severos. Tinha 15 anos de idade quando o pai, um joalheiro milanês foi assassinado a sangue-frio. Baleado na coluna vertebral, o jovem não morreu, mas ficou paraplégico. Está hoje com 56 anos, 41 dos quais passou aprisionado a uma cadeira de rodas.

Ao tomar conhecimento das “desculpas” do Lula, Torreggiani mostrou desânimo. Declarou-se indignado e perplexo. Intuiu que as lágrimas do ex-presidente são para uso eleitoreiro. Amargo e irônico, indagou se seria o caso de agradecer ao Lula. Depois de tantos anos de sofrimento e atribulações, não vê sentido em ouvir, de pessoa tão importante, a confirmação do que sempre foi evidente: que ele, a vítima, estava com a razão.

Battisti, decerto habituado às chicanas da justiça do Brasil, solicitou em maio prisão domiciliar em razão dos riscos de apanhar a covid-19. O Ministério da Justiça italiano negou provimento argumentando que todos corriam o mesmo risco e que ele não era melhor que ninguém.

Quanto às desculpas fora de hora do Lula, comenta-se na Itália que essa covid parece estar causando efeitos estranhos na cabeça de certas pessoas.

Ignorância de raiz

José Horta Manzano

Você sabia?

A impressora de tipos móveis, desenvolvida na Europa por Johannes Gutenberg, apareceu por volta de 1450. Na década de 1530, a imprensa chegou à América Espanhola – ao México, mais precisamente. Antes de 1540 já circulavam panfletos e outros avisos impressos.

Quanto à colônias portuguesas da América, as ordens de Lisboa eram claras: proibição absoluta de imprimir fosse o que fosse. Portanto, no Brasil não havia impressoras. Livros, os poucos que havia eram trazidos da metrópole. A informação e a cultura não circulavam.

Foi preciso que Napoleão desse uma ajudazinha. Quando suas tropas apontavam na esquina e se preparavam para ocupar Lisboa, a família real pôs o rabo no meio das pernas e escapou rapidinho. Partiram para o Brasil levando armas, bagagens e tudo o que de precioso possuíam.

Ao aportar no Rio de Janeiro, o rei João VI se deu conta do atraso em que vivia a colônia. Achou que fazia falta pelo menos um jornal. Mandou vir uma impressora de Portugal, o que permitiu o aparecimento do Correio Braziliense, o primeiro jornal brasileiro. Haviam-se passado 300 anos da chegada de Cabral.

Esse descaso, sozinho, não é a causa da pouca familiaridade do brasileiro com as letras; mas certamente não ajudou a assentar a cultura nacional em bases sólidas.

Bolsonaro, um novo guia?

Na era atual, a nudez intelectual do presidente não é atenuada, mas reforçada pelos rebentos, sancionada pelos principais conselheiros e ratificada por um guru boca-suja. Um drama sem aplausos.

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 janeiro 2019.

Ah, a falta que um lustro de cultura faz! Não precisa ter lido Virgilio no original latino, nem declamar o libreto de Tannhäuser, tampouco ser íntimo de Shakespeare, Voltaire ou Machado de Assis. Não precisa carregar uma calota de saber – uma camada fininha já está de bom tamanho. Ponderação e bom senso já seriam bom começo. E que ninguém se engane: o próprio eleitor, mesmo o mais simples, sabe que não se deve entregar chave de palácio a gente ignorante. Ele não quer que os dirigentes lhe sejam semelhantes; perspicaz, exige que sejam eficientes.

Já vai pra 20 anos que os que nos dirigem – aqueles que, do andar de cima, manejam o leme e dão a direção à nave pátria – carecem desse lustrozinho de cultura. E parece que, conforme passa o tempo, o quadro piora. Na era lulopetista, as carências da alta cúpula eram, até certo ponto, compensadas pelas luzes de um punhadinho de assessores. Na era atual, a nudez intelectual do presidente não é atenuada, mas reforçada pelos rebentos, sancionada pelos principais conselheiros e ratificada por um guru boca-suja. Um drama sem aplausos.

Fica a desagradável impressão de que reina desconexão nos altos círculos. Os personagens tentam perseguir um objetivo comum, sem ter combinado o caminho. A ausência desse denominador comum abre a porta para fantasias individuais. Há quem aplique esforços a despejar tuítes venenosos sobre inimigos imaginários; há quem se faça entrevistar a fim de demolir adversários; há até quem se permita o soberano luxo de fabricar e difundir vídeo com pregação pseudonazista. Um despautério. É como se cada integrante do grupo que nos governa tivesse recebido as peças de imenso quebra-cabeça, sem receber o desenho da montagem. Juntam peças a esmo, sem saber direito o que vai dar. Uma aflição.

Faz uma semana, um cidadão de pomposo título – Secretário Especial da Cultura – deu clara mostra da desarticulação que confunde nossos poderosos. Encomendou e difundiu vídeo para dar ao povão um vislumbre de qual seja, no seu entender, o objetivo perseguido pelo atual governo. Explicou que, no campo da cultura a partir de agora, só serão admitidas obras que se coadunem com o pensamento do chefe. Um espanto.

A mise-en-scène foi bem cuidada. Bandeira nacional e retrato do presidente ao fundo atestam que o discursante é de alta patente e que suas palavras são a voz oficial do Planalto. (Só deixaram de sê-la quando uma grita planetária forçou o presidente a desautorizar o discurso.) O secretário da Cultura pirateou uma fala de 1933 de Joseph Goebbels e a amoldou para combinar com as palavras que desejava pronunciar. Um escândalo.

Além da bandeira e do retrato, uma Cruz de Lorena, bem visível, adornava a escrivaninha. Todos viram nela um símbolo cristão, mas poucos atinaram com o fato de a extrema-direita francesa ter-se apropriado desse emblema há décadas. Na França, nos dias atuais, a cruz com barra dupla é símbolo da direita extrema, e está presente em todas as manifestações de rua dos fanáticos. Há de ser nessa fonte que se inspirou o secretário caído.

As ideias andam descosturadas pelas bandas de um Planalto hoje cheio de gente de pouca visão. Nenhum deles – nem chefe, nem assessores – se dá conta de que a doutrina nazista e o Brasil não combinam. O pensamento nazista elegeu, como preceito maior e incontornável, a pureza racial. Num país como o nosso, em que a maioria tem sangue mestiço, a doutrina pode ser boa pra marchinha de Carnaval. Na vida real, não serve. Outro postulado do nazismo é a unção de um chefe supremo, semideus venerado por todos, ao qual se deve respeito e obediência cega. Esse rigor e essa disciplina de aço não combinam com o gênio nacional, folgazão e jovial.

Faz quase um século, Getúlio Vargas conseguiu amarrar o país à sua estaca. Mas o Brasil era outro, nação agrícola e atrasada com esparsas bolhas de desenvolvimento extraviadas num mar de ignorância. Hoje mudou. Internet, zapzap & congêneres sepultaram definitivamente a era dos caudilhos. Entramos na modernidade. Não é um Bolsonaro qualquer que vai conseguir virar a mesa.

Direita e esquerda – uma salada?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 30 novembro 2019.

Na política brasileira tradicional, direita e esquerda têm sido noções difíceis de captar. A questão é simples: nunca foi habitual prestar atenção ao quadrante ocupado por políticos. Ser do norte ou do sul, mineiro ou baiano, rico ou remediado sempre contou mais do que ser de esquerda, de centro ou de direita. Basta voltar algumas décadas na história do país pra se dar conta da pouca importância dada ao bordo de cada figurão. Teria Juscelino Kubitschek sido de esquerda? De centro? De direita? E Jânio Quadros? E Getúlio Vargas, então, teria capitaneado uma ditadura esquerdista ou direitista? Tudo o que se puder dizer será baseado na visão que temos hoje. O recuo permite visão panorâmica. No calor das eleições de então, ninguém parou pra analisar esse aspecto.

Nos anos 1960 e 1970, num Brasil militar e rigoroso, o lugar ocupado pelo regime (esquerda ou direita) não era a preocupação maior. Importante mesmo (e todos sabiam disso) era não cutucar a onça com vara curta. Por certo levados pelo entusiasmo e pela incúria da juventude, alguns ousaram. Pela audácia, pagaram preço elevado; às vezes irreparável.

Nascida despretensiosa, a polaridade direita x esquerda descrevia a disposição dos membros da Assembleia da França revolucionária. À direita, sentavam-se os monarquistas, saudosos dos privilégios do ‘Ancien Régime’. À esquerda, ficavam os revolucionários, vidrados no guinchar da guilhotina e ansiosos por revolução radical. Dois séculos mais tarde, o quadro evoluiu. Direitistas já não lutam pelo rei nem temem a guilhotina. Esquerdistas já não anseiam por mudança radical da sociedade; ardem por ardis como espetáculos de pirotecnia, em que se começa por clímax tonitruante para, logo que se dissipam os brilhos, voltar tudo ao que era antes.

Nosso tabuleiro político sempre foi personalista, não partidarista. Houve carlistas, brizolistas, adhemaristas, mas nada de esquerda ou direita na visão popular. É difícil situar o momento que essa distinção entrou para a língua do povo. Em grandes linhas, coincide com a chegada do novo milênio. Dez anos antes, Collor de Mello inda prometia «caçar marajás» de todos os matizes, enquanto Lula se via um Robin Hood redivivo.

Faz uns quinze anos, com a subida do PT, ‘direita’ virou palavrão. Não se encontrou mais nenhum político brasileiro disposto a declarar-se ‘de direita’, peito aberto e olhar destemido. A meteórica subida de doutor Bolsonaro pôs à mesa uma versão tupiniquim do problema. A disposição gradual do arco político entre direita e esquerda se distorceu. Na nomenclatura oficial, a mesa virou. São hoje ‘esquerdistas’ todos os que ousarem discordar de algum ditame presidencial. No entanto, muito parlamentar não identificado com pensamento socialista ou de esquerda até que daria respaldo ao presidente, não fosse ele tão tosco e imprevisível. Para esse tipo de parlamentar, sobrou o ‘Centrão’, um caldeirão onde fumega uma sopa heterogênea de camarão e cabeça de bagre.

Grupos e associações que, não fosse a atual política tão distorcida, se declarariam direitistas, sem complexo, completando nosso arco multipartidarista, começam a renunciar à denominação tornada ofensiva por obra de nosso bizarro presidente. Não ousando o termo tradicional, declaram-se ‘liberais’.Traduza-se por direitistas não bolsonaristas.

Enquanto, lá no andar de cima, mentes sem luz se dilaceram em brigas familiares e intrigas palacianas, aqui no térreo, a coisa continua cada dia mais feia. Jornalistas econômicos preveem iminente apagão de mão de obra especializada no país. Apesar de sermos mais de 200 milhões, faltam jovens formados nas áreas estratégicas, as que deveriam estar delineando os contornos do Brasil futuro. Estudos indicam que, nos próximos dez anos, milhões de vagas deixarão de ser criadas devido à falta crônica de gente capacitada. Como consequência, haverá número exorbitante de gente sem especialização – e sem emprego –, perda de bilhões de dólares no faturamento de empresas de tecnologia e, o pior, a exclusão do Brasil do clube dos países que contam.

É problema real, cruel, evidente e premente que o país terá de enfrentar. Cuidar disso agora é bem mais importante do que fabricar réguas tortas pra medir a esquerdice ou a direitice de cada um. De toda maneira, a distorção está instalada de modo duradouro na mente do brasileiro: esquerda rima com corrupção; direita, com ignorância.

Pra estrangeiro ver

José Horta Manzano

Quem está no estrangeiro sabe a importância que o passaporte tem. Com maior razão, aqueles que vivem fora do país, como este blogueiro, conhecem o valor dessa cadernetinha agora azul (era verde). É o único documento brasileiro reconhecido em qualquer parte do planeta.

Para o expatriado, pouco interessa se a validade da carteira de motorista será prolongada. Ou se o número do documento de identidade ganhou um dígito no final. O que interessa, de verdade, é estar com o passaporte em dia. Esse é que conta.

Modelo antigo

Em artigo que escrevi sete anos atrás para o Correio Braziliense, registrei minha reclamação contra o layout da capa do novo documento. Acabava de renovar meu passaporte. Contei o susto que tinha levado ao descobrir que a palavra Mercosul aparecia na capa, antes do nome do país e em letras maiores. Reclamei do fato de me sentir brasileiro, não mercossulino. E pedi meu país de volta. Argumentei que o acordo entre vizinhos do Cone Sul era meramente alfandegário, não político.

Portanto, não fazia sentido estender a validade do bloco ao campo político. Não sei se, pelos lados do Itamaraty, alguém de bom senso escutou meu lamento. Fato é que, algum tempo depois, o layout mudou. As letras do nome ‘BRASIL’ cresceram. Apareceram até algumas estrelinhas. Mas… a menção ao bendito bloco econômico continua lá.

Modelo novo

Nos tempos do lulopetismo, com a ilusão de integração do Brasil com a vizinhança bolivariana, não valia a pena pedir que mudassem. A chance de ser atendido era nula. Agora, porém, que doutora Dilma se foi, que a Venezuela derreteu e que uma Argentina de chapéu na mão se prepara a atirar-se em braços kirchnerianos, talvez seja chegada a hora.

Repito, então, aos doutores que têm a caneta na mão. Mercosul (que, para se conformar com nossa ortografia, deveria estar escrito Mersossul, com dois esses) é agrupamento com fins comerciais. Em outra praia está a União Europeia que, como verdadeira união política, é mencionada no passaporte de todos os Estados-membros.

Não é nosso caso. Portanto, está passando da hora de modificar a capa de nosso passaporte. Que se elimine Mercosul. Não reclamarei se aproveitarem a ocasião pra tirar também ‘república’ e ‘federativa’. O nome do país é Brasil, como é conhecido no mundo todo. Passaporte é pra ser visto no estrangeiro, detalhe que, curiosamente, parece não vir à mente dos que concebem a capa do documento brasileiro.

O chão da casa de chá

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° abril 2019.

Um dos primeiros-filhos, aquele que é deputado, disse que sente vergonha dos brasileiros que vivem clandestinamente nos Estados Unidos. Melhor seria se tivesse sentido vergonha de dizer isso. A declaração deixa entrever o lado obscuro desse bolsonarinho. O moço não se restringiu a confessar que ruboriza ao topar com conterrâneo enfiado na pele de trabalhador ilegal. Foi mais longe. Postou-se contra a isenção de visto de entrada para brasileiro nos EUA. Na sua análise, o vácuo criado por essa liberalidade aspiraria hordas de compatriotas em direção à clandestinidade, agravando seu sentimento de vergonha.

Percebe-se que o primeiro-filho, que teve a sorte de crescer em família abastada, vive prisioneiro da própria realidade, alienado do que ocorre em bolsões menos favorecidos. Incapaz de se desvencilhar do mundinho em que navega, não atina as razões que impelem concidadãos a mergulhar em clandestinidade incômoda. Não parece entender que ninguém se embrenha na ilegalidade por prazer. Em vez de louvar, sente vergonha de quem enfrenta raio e corisco na busca de um subemprego que lhe garanta a subsistência.

A fala do deputado é estéril. Apenas lamentar, sem tomar atitude proativa, não leva a lugar nenhum. Pra lançar ao ar palavras improdutivas, mais vale ficar calado. Doutor Bolsonarinho tem dois fabulosos trunfos de que nós, mortais ordinários, não dispomos. Por um lado, foi eleito deputado federal com perto de 2 milhões de votos, suntuosa votação que o deixa em posição privilegiada pra abraçar bandeiras no Congresso. Além disso, é, juntamente com os irmãos, chegadíssimo ao presidente da República. Essas duas prerrogativas lhe permitem fazer muita coisa a fim de não mais sentir vergonha quando topar com algum conterrâneo lavando chão numa casa de chá no estrangeiro.

Em lugar de se constranger, o primeiro-filho deve parar pra refletir. Por que é que um indivíduo trocaria estas terras tropicais ‒ em que risonhos lindos campos são mais garridos e dão mais flores ‒ por uma existência precária e de insegurança, fugindo da polícia e amargando um frio do cão? Não será pelo prazer de ouvir uma língua que não entende. Não será pelo encanto de estar perto da Disneylândia. Não será pra admirar os arranha-céus de Manhattan, nem as folhas douradas do outono da Nova Inglaterra. Se o infeliz se expatria e corre os riscos inerentes à ilegalidade é porque a pátria amada não cuidou de lhe dar formação adequada nem de o preparar para a vida. Com instrução precária, sem profissão e sem diploma, o sujeito se vê desarmado. Para escapar do horizonte entupido que lhe está reservado, emigra. Lavar chão, naquela lonjura, sempre dá mais do que viver de bolsa família ou de esmola.

O brasileiro comum, que não frequenta os corredores do Congresso nem goza de intimidade com o presidente da República, está de mãos atadas pra resolver os grandes problemas nacionais. A única arma de que dispõe é a cédula eleitoral. Beneficiário de gorda fatia do voto paulista, doutor Bolsonarinho está em posição ímpar pra fazer avançar as coisas. O país está coalhado de mazelas. Não será justo esperar que o primeiro-filho dê cabo delas todas. Por mais que seja chegado ao pai e que tenha recebido um caminhão de votos, não terá condições de pôr fim a todos os problemas nacionais. Se a realidade da imigração clandestina de brasileiros, no entanto, o contraria a ponto de fazê-lo vir a público, em terra estrangeira, exprimir aflição, o deputado Bolsonaro tem a faca e o queijo na mão: melhor do que qualquer um de nós, está em condições de agir.

A luta será longa e os resultados talvez não cheguem a tempo de lhe garantir baciada suplementar de votos para a próxima eleição. Assim mesmo, vale a pena deixar boa lembrança da passagem pelo andar de cima. Que encoraje a criação de uma comissão para refletir sobre o meio mais rápido e eficaz de garantir formação profissional a todos os brasileiros. Sem profissão, não há salvação. Com sólida instrução profissional no bolso, nossos jovens compatriotas desejosos de viver perto da Disneylândia entrarão nos EUA pela porta da imigração legal. O primeiro-filho nunca mais sentirá vergonha de seus compatriotas menos favorecidos. Quando esse dia chegar, teremos de importar estrangeiros para lavar o chão de nossas casas de chá.

A hora da verdade

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 setembro 2018.

Pomposo, o título alude ao voto da semana que vem. Podia ser ainda mais empolado, algo do tipo momento supremo, encruzilhada de caminhos ou até nunca antes neste país. Bobagem. A hora da verdade é toda hora, é agora e sempre, é um contínuo. O hoje é produto do ontem e será semente do amanhã.

É verdade que as escolhas que os brasileiros farão nestas eleições vão determinar, em grande parte, o futuro de todos nós. Mas o leque de candidatos que nos lançam santinhos e nos assassinam com boutades toscas não surgiu do nada nem brotou de geração espontânea. Se estão lá é porque cada um deles representa uma parcela, maior ou menor, do gênio nacional. Nenhum dos postulantes entrou de penetra. A nenhum se lhe pespegará a etiqueta de usurpador.

Um cidadão que se apresenta como Só Na Bença disputa uma poltrona na Assembleia de Rondônia. Um outro, registrado como Alceu Dispor 24hs (sic), pretende ser eleito em Goiás. Uma senhora, dona Olga Um Beijo E Um Queijo, pede votos em São Paulo. Estivéssemos na Alemanha, país em que candidatos costumam usar nome próprio e deixar alcunha pra outros ambientes, esse quadro seria inconcebível. Nossa cultura, contudo, vê com naturalidade candidatos embrulhados pra presente com papel furta-cor a mascarar-lhes a identidade. Eles são produto de nossa verdade quotidiana. Farão sucesso e terão votos.

Faz poucos dias, conceituada revista britânica estampou, logo na capa, foto de um dos candidatos à presidência de nossa República. Assustadora, a legenda apresentava o homem como a “ameaça da hora”. Não só para o Brasil, como para toda a vizinhança. A meu ver, estão carregando nas tintas ao atribuir ao personagem poderes que ele não tem. A candidatura de doutor Bolsonaro planta raiz nos treze anos de lulopetismo, período desastroso que deixou marcas profundas. A toda ação corresponde uma reação oposta e de igual intensidade, reza o axioma newtoniano. Não tivéssemos sido castigados com os descalabros do andar de cima durante década e meia, a candidatura Bolsonaro não prosperaria. Aos olhos de grande parte do eleitorado, esse candidato parece encarnar o mais perfeito antídoto contra a volta do PT ‒ daí sua ascensão irrefreável.

Sir Isaac Newton

A clivagem engendrada pelo discurso excludente do lulopetismo foi tão profunda que o resultado não podia ter sido outro. Não se sabe se a predicação que separava a população entre nós e eles era mero instrumento retórico ou se mirava a abrir brechas. Fato é que acabou se materializando. O país está hoje dividido entre os que, por motivos que lhes são próprios, gostariam de ver o lulopetismo de volta, e os demais, que sentem arrepio à simples evocação dessa ideia.

A eleição terá ares de plebiscito. Seu vencedor representará, goste-se ou não, o desejo da maioria do eleitorado. Muitos temem seja eleito um político com tendências radicais. A crer nas pesquisas, que já delineiam os dois favoritos, esse temor se realizará. Que fazer? Será chegada a hora de fazer novena pra Santo Expedito na esperança de evitar desastre?

Que ninguém se amofine. Nenhum candidato, ainda que mostre perfil agressivo, resiste à unção presidencial. Uma vez eleito e devidamente empossado, seu comportamento muda. O chefe do Executivo pode muito mas não pode tudo. O Estado dispõe de travas e ferrolhos a cercear dirigentes impetuosos. O Congresso é contrapeso ao poder presidencial. Apesar de duramente criticado ultimamente, o Judiciário marca presença como terceira força, a equilibrar os outros Poderes. Dirigentes arrebatados e voluntariosos, já tivemos. Não esquentaram cadeira por muito tempo. Doutor Jânio Quadros foi um deles. Num dia de piripaque, o homem escreveu um bilhete de adeus e, antes que o despejassem, abandonou o trono. Doutor Collor e doutora Dilma, por sua vez, tentaram resistir, mas acabaram destituídos.

Seja qual for o eleito, não há o que temer, gente fina! Golpe é coisa do passado. Revolução só fazem os que estão na miséria. Num Brasil escaldado pelos recentes escândalos, se os eleitos para o próximo quadriênio roubarem menos, já estará de bom tamanho. Que se assosseguem todos os súditos! O tsunami não passará de marolinha.

Mal-informados

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 26 maio 2018.

A percepção que se tem de um personagem pode variar dependendo do ponto a partir do qual se observa. O fenômeno é especialmente sensível na área política. Um figurão adorado e incensado no próprio país pode ser visto com muita reserva e até com prevenção por quem está fora. Inversamente, o medalhão mal-amado na própria pátria é às vezes festejado no estrangeiro.

Um bom exemplo é Mikhail Gorbatchov, o último czar soviético. As efusivas manifestações de que foi alvo, na virada da década de 80 para a de 90, de tão intensas, receberam até nome próprio: gorbymania. Visto como artífice da paz mundial, o homem era aclamado, por onde passasse, por multidões entusiasmadas. Enquanto isso, os cidadãos soviéticos lançavam ao personagem um olhar pra lá de crítico. Sua popularidade no exterior não se repetia no interior das fronteiras. Até hoje, passados trinta anos, enquanto o Ocidente guarda inabalável ternura por Gorbatchov, muito russo ainda pragueja contra aquele que pôs abaixo o “Ancien Régime”.

Mikhail Gorbatchov

Na polaridade inversa, bom exemplo é Donald Trump, o polêmico presidente dos EUA. No exterior, é perscrutado com desconfiança unânime. Nunca se sabe qual será a bravata seguinte. Ao redor do planeta, todos temem ser incomodados pela próxima tempestade provocada pela Casa Branca. Já para os que vivem dentro das fronteiras americanas, o diabo não é tão feio assim. Boa parte do eleitorado abomina, sem dúvida, o figurão. Mas seus fiéis, os que lhe garantiram a vitória, não se decepcionaram. Na hora agá, o homem se revela excelente tenista: rebate, um a um, os escândalos de que é acusado. Todas as denúncias resvalam e nenhuma consegue derrubá-lo. O homem tem ainda três anos de mandato pela frente, mas é de crer que, no final, se reeleja. E com folga.

Essa dualidade de apreciações está se manifestando em nossas plagas. Lula da Silva, como sabemos, já foi dono de popularidade imperial. A crer nas sondagens, ao deixar a presidência recebia aprovação de oito em dez brasileiros. Por infelicidade, de lá pra cá o Brasil virou país do assombro. Nos anos recentes, não tem passado uma semana sem revelação de novos escândalos de corrupção. O partido que Lula da Silva ajudou a fundar trinta anos atrás ‒ e que prometia purificar o cenário político ‒ foi decapitado. Sua cúpula está atrás das grades, condenada por fatos de corrupção.

Donald Trump

Os brasileiros acompanharam a derrocada, em colheradas diárias servidas ao molho do desgosto. Atônitos, nos demos conta de ter sido vítimas de assalto monstruoso, covarde e prolongado. O pão dos pobres ficou mais duro e o leite das criancinhas, mais ralo. Manifestamos nossa indignação, defenestramos uma presidente problemática e conseguimos que, ao fim de muito vaivém, o rigor da lei despencasse sobre o ex-presidente. Já vão longe os tempos em que ele surfava sobre oitenta por cento de admiradores. Pelo menos cinquenta já debandaram, deixando ao figurão magros trinta porcento de irredutíveis. O antigo líder é hoje rejeitado por dois em três brasileiros.

No entanto, no exterior ‒ com ênfase na Europa ‒ a percepção de Lula da Silva não parece ter-se deteriorado. Volta e meia, um reclamo se alevanta contra sua prisão. Vozes ousadas desacatam o Estado brasileiro e desdenham nosso ordenamento jurídico. Homens políticos simpáticos ao ex-presidente exigem que justiça seja desfeita, que Lula seja absolvido e que lhe seja permitido concorrer à presidência. Como explicar tamanha discrepância entre o juízo interno e o externo?

Lula da Silva

Via de regra, os protestos são exprimidos por líderes socialistas. Acossado pelo populismo, o movimento socialista europeu luta para não se extinguir. Lula da Silva, aquele que um dia foi chamado «o cara», evoca, na memória coletiva do Velho Mundo, um modo socialista de governar. A conclusão é fácil: ele serve de tábua de salvação para políticos que perderam a aura.

Um dos mais incisivos é señor Zapatero, aquele que foi um dia primeiro-ministro da Espanha. Intercede com ímpeto pela libertação de Lula da Silva. Pois é esse mesmo senhor que, atuando como observador das recentes eleições venezuelanas, afiançou a lisura do processo. Precisa dizer mais?