Musk, o TOD poderoso


Myrthes Suplicy Vieira (*)

Sabe aquela criança que passa o dia inteiro jogando videogame e, quando a mãe o chama para comer, ele responde “Agora não, mãe. Não estou com fome”? E, quando a mãe insiste, ela responde com agressividade: “Não enche, mãe, deixa de ser chata, estou quase passando de fase”. E, pela terceira vez, quando a mãe ameaça recorrer ao pai para ser obedecida, ela replica: “Tudo bem, não tô nem aí, pode chamar”. E, se finalmente ela perde a cabeça e bate no filho, ele reage com deboche: “Pode bater, não tá nem doendo!”.

Não conheço o histórico de vida de Elon Musk, mas por tudo que já li a respeito de suas ações no comando do X, da Tesla e da Space X, além de suas relações com Trump e outras figuras de extrema-direita no mundo e dos incontáveis conflitos que tem provocado com o sistema judiciário de diversos países, posso afirmar, sem sombra de dúvida, que ele se enquadra no diagnóstico de personalidade TOD, o transtorno opositor desafiador.

O TOD é comumente originado na infância e, embora não tenha uma causa específica, o risco de seu desenvolvimento costuma ser maior se os pais também têm a disfunção ou se a criança é abusada por eles e exposta a um ambiente hostil. Li recentemente que Musk teve um pai extremamente abusivo, que lhe infligia severos castigos corporais e desdenhava de suas emoções e comportamentos. Além disso, foi vítima de muito bullying na escola, tendo sido hospitalizado certa vez em decorrência de um espancamento de colegas. Em recente declaração, ele próprio admitiu “não dominar os códigos sociais”, isto é, ter dificuldade de reconhecer e entender as emoções de outras pessoas. E, por ser também portador da síndrome de Asperger (uma forma leve de autismo), como ele próprio alega, só é capaz de apreender o significado literal das palavras.

Ele diz lutar, por exemplo, pela liberdade de expressão – e, para ele, o conceito de liberdade é sem limites, não estar sujeito a nenhum tipo de amarra ou impedimento externo. Daí o corolário de que quem se opõe a esse “direito” é um “ditador brutal”.

É fácil para qualquer um perceber que ele gabarita nos sintomas do TOD, dentre os quais estão: desobedecer a regras, importunar intencionalmente outras pessoas, mentir e/ou agir por vingança ou com crueldade. O ponto fulcral do transtorno é, portanto, opor-se e desafiar toda e qualquer figura de autoridade, reafirmar que não há nenhuma superior à própria.

É como se ele tivesse de repetir todos os dias para seus desafetos: “Eu posso mais do que você”. O fato de ser um bilionário agrega ainda mais arrogância ao seu perfil: não importa quantos clientes ele perca por dia, quantos funcionários o processem, o quanto a lucratividade de suas empresas esteja em declínio, a espiral de negação da importância dos outros em sua vida não para de se alargar. Nem é preciso dizer que, a despeito da minha necessária solidariedade ao sofrimento emocional que certamente aflige o ego de Musk, fica evidente que ele jamais conhecerá limites para se impor. E a melhor – quiçá a única – maneira de lidar com ele é deixá-lo falando sozinho, simplesmente forçando-o a arcar com as consequências legais de suas falas e feitos.

No caso do recente embate com o ministro do Supremo Alexandre de Moraes, Musk parece ter encontrado sem querer um competidor à altura. Radicalmente inflexível no julgamento de qualquer um que questione seu poder e sua autoridade, Moraes parece ter caído na armadilha preparada por Musk e seus aliados bolsonaristas. O que o clã Bolsonaro não conseguiu fazer em 4 anos no poder, Musk se divertiu fazendo em 2 ou 3 madrugadas insones. A promessa de reabilitar os perfis bloqueados por Moraes, “mesmo que o X tenha de sair do Brasil’, equivale a repetir, como a criança rebelde sem causa, “Você não manda em mim”.

E, como diz um velho provérbio, quando dois elefantes brigam quem paga é a floresta. É difícil avaliar quem mais sai perdendo com essa insana troca de chumbo. Embora à primeira vista o conflito tenda a favorecer as hostes bolsonaristas, em especial nas próximas eleições municipais, uma consequência imprevista das bravatas de Musk ainda pode mudar a direção dos ventos: desenvolveu-se no Facebook uma campanha para estimular o abandono imediato do X como uma espécie de questão de honra da brasilidade, à qual já aderiram inúmeros jornalistas, artistas, intelectuais e subcelebridades, além de boa parte do eleitorado não-bolsonarista. Muitos políticos, mesmo constrangidos, querendo evitar a contaminação de sua imagem para os próximos pleitos, uniram-se em torno de Moraes e passaram a defender a regulamentação urgente das redes sociais.

Além disso, a retomada da polarização ideológica acabou sendo aproveitada por muitos para desqualificar mais uma vez o senso de “patriotismo” das hostes bolsonaristas. Esse é um fenômeno que já vi acontecer em outras circunstâncias: quando nordestinos discutem entre si, as diferenças de costumes e de linguajar tendem a ser apontadas acidamente, mas quando um sulino ou sudestino se junta à discussão, os nordestinos imediatamente se unem em bloco para refutar a superioridade dos brasileiros de outras regiões.

E, para os autoproclamados defensores da democracia e do estado de direito, mesmo os irritados com o protagonismo e a politização do STF, Moraes passou a simbolizar uma espécie de salvador da pátria, um pai de punho firme capaz de peitar e aniquilar quem ameaça o bem-estar de seus filhos – um papel pra lá de paradigmático para os brasileiros, convenhamos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Se bandido bom é bandido morto…

Myrthes Suplicy Vieira (*)

….um corolário necessário é o de que policial bom é policial matador, pois não? Simples questão de lógica. E também, indiretamente, um convite mal disfarçado para que a população faça justiça com as próprias mãos, sempre que possível.

É inescapável para quem lê jornais regularmente a conclusão de que nossa sociedade não só tolera a eliminação física dos acusados de violar as leis, desde que, obviamente, os abatidos se enquadrem na categoria PPP (pretos, pobres e periféricos), mas também aplaude a truculência policial ocasional contra outros alvos civis, como mulheres, idosos, crianças e moradores de rua, mesmo que não envolvidos diretamente com atos criminosos.

Uma das vantagens de ser velha é ter sido testemunha ocular da história, poder contar às gerações seguintes como os fatos realmente se deram. Pode-se argumentar que será sempre uma interpretação pessoal dos eventos passados, mas os detalhes relatados poderão ser confrontados com as versões de outras testemunhas, investigados em jornais e documentos oficiais da época e comprovados, ou não, por quem se interessa em desvendar a verdade.

Que ninguém se engane: as forças policiais brasileiras são legitimas herdeiras dos capitães do mato, sempre à caça de ‘negros fujões’ e absolutamente alienados do fato de que são eles mesmos oriundos dos mesmos estratos sociais, a soldo da perpetuação da desigualdade social e do racismo estrutural. Truculência policial não é, portanto, nenhuma novidade entre nós, sempre foi assim e provavelmente continuará sendo. No entanto, a brutalidade policial desmedida escalonou bem mais durante a ditadura militar. Naquela época, é bom lembrar, militares eram oficialmente liberados para atirar contra supostos “subversivos” antes de perguntar qualquer coisa. O uso de força letal, agindo de surpresa e impedindo a reação da vítima, era desculpada como inquestionável “segurança nacional”.

Mas à medida que a repressão urbana passou a ser mais capilarizada, tornou-se necessário contar com o reforço das forças policiais locais. Para isso, oficiais do exército foram designados para treinar policiais militares, especialmente os integrantes dos batalhões da Rota. E, claro, foram transferidas a ela as mesmas prerrogativas de “excludente de ilicitude”. Tortura para obter confissões e delações e execuções sumárias acabaram se tornando práticas corriqueiras.

Mais ou menos na mesma época, por volta do final dos anos 70, um fato de grande repercussão nacional aconteceu em São Paulo: um garoto de 12 anos, em situação de rua, que havia roubado uma corrente de ouro de um comerciante da Praça da Sé foi perseguido e morto por um bando de lojistas. Na sequência, o corpo do garoto foi abandonado sobre um banco da praça. O então arcebispo metropolitano, Dom Paulo Evaristo Arns, inconformado com a desproporcionalidade da reação, resolveu organizar uma procissão, clamando por uma atitude mais cristã de respeito à dignidade de toda pessoa humana. A iniciativa acabou dando início ao que se convencionou chamar de Movimento dos Direitos Humanos.

Imediatamente, capitaneadas por apresentadores de bizarros programas policiais televisivos, milhares de vozes se fizeram ouvir no Brasil todo, associando maldosamente o movimento de Direitos Humanos à “defesa de bandidos”. Ficou famoso desde então o refrão de que a sociedade e a segurança pública deveriam se concentrar apenas na defesa dos “humanos direitos”.

Nunca ocorreu aos detratores de Dom Paulo que, por mais bárbaro que seja o criminoso, ele continua sendo um ser humano. Está aí uma verdade difícil de ser digerida até hoje. Se compreensível por um lado (psicologicamente é mesmo difícil admitir que sejamos capazes de atos irracionais de extrema perversidade), não há como esconder o lado execrável da ideia de que bandido bom é bandido morto: desqualificar a condição humana de adversários é pré-requisito para nos tornarmos tão ou mais insensíveis quanto o mais insensível dos criminosos.

Pouquíssimos brasileiros entendem que não é função das polícias julgar da culpa ou inocência de ninguém e, menos ainda, a de matar. Mesmo quando recebidos a tiros, ainda resta aos agentes policiais a opção de atirar na mão que segura o revólver ou nos pés do agressor para evitar uma fuga. Mas atirar preferencialmente em áreas vitais infelizmente continua sendo uma prática explicitamente valorizada por muitos comandantes militares, governadores e políticos em geral.

Um pouco de conhecimento de psicologia humana não faz mal a ninguém: quais sentimentos você acha que brotam no peito de parentes e amigos dos que foram mortos em operações no interior de comunidades pobres de periferia, sejam eles inocentes ou não: respeito, medo ou ódio da PM? A despeito dos inúmeros relatos de tiros pelas costas, inocentes desarmados atingidos, invasão de residências sem mandado judicial e descaracterização da cena de crimes, o ativista dos direitos dos humanos direitos e governador de SP não vê razão para se indignar com as macabras estatísticas das Operações Escudo e Verão. Afirmar que “não tem bandido na polícia” é muito mais do que simples profissão de fé, é projeto de poder.

Que ninguém se engane: Guilherme Derrite, seu atual secretário de segurança pública, foi alfabetizado na mesma cartilha de Netanyahu: para cada um dos nossos abatidos, ao menos dez dos deles deverão pagar com a própria vida. E eis-nos de volta aos tempos de Átila, o Huno e do primeiro código civil da história da humanidade: olho por olho, dente por dente.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O avesso do avesso

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Na medicina antroposófica há algumas práticas curiosas que muitas vezes beiram o nonsense, mas que, em última instância, se revelam bastante eficazes para promover transformações importantes no bem-estar físico, psíquico e anímico dos que se atrevem a segui-las. Uma delas, que sempre me encantou, é a proposição de um “Dia do Contrário”, que deve acontecer ao menos uma vez por mês – ainda que não haja uma frequência imposta nem datas específicas a serem observadas. É muito mais a autoavaliação de necessidade que dita como e quando ele vai acontecer.

Ao longo desse dia, a pessoa é instada a fazer absolutamente tudo de uma forma diferente da habitual. Cada um decide quais novas medidas serão testadas e eventualmente incorporadas. Ao tomar banho, por exemplo, pode-se ensaboar o corpo com a mão “errada” e/ou inverter a ordem da higienização: ao invés de começar pela lavagem do rosto, por exemplo, começa-se pela lavagem dos pés. Abrir portas com a mão trocada; alterar toda a rotina de horários (de acordar, tomar banho, arrumar a casa, comer e dormir); alterar o cardápio (com carne/sem carne) e/ou inverter a ordem dos pratos nas refeições; trocar o papel tradicional atribuído a cada membro da família, permitindo, por exemplo, que as crianças determinem quem vai fazer o quê, quem manda e quem obedece, etc. são outras formas comuns de autoexperimentação.

Não só isso, porém. Nos dias de hoje esse período de desconstrução de manias poderia abranger coisas como abolição do uso de telas de qualquer espécie por 24 horas e substituí-lo por rituais de meditação e introspecção; envolver-se com experiências táteis, auditivas e gustativas, de olhos fechados; abandonar uma reunião de trabalho para levar o filho para um passeio no parque; envolver-se num debate respeitoso com familiares, vizinhos ou desafetos ideológicos sobre os principais lances da política nacional e internacional – e tantos outros desafios que só a imaginação de cada um pode indicar.

O propósito? Simplesmente conscientizar-se a respeito da tirania dos hábitos do cotidiano, quebrar estruturas de autoridade encarquilhadas, ressignificar visões de mundo e crenças pessoais, abrir mão da zona de conforto de forma a destravar o potencial criativo e promover mudanças que nunca se ousou fazer antes por medo de perder a própria identidade. Os mesmos objetivos são perseguidos pela arquitetura antroposófica: na construção de residências e prédios comerciais busca-se eliminar ao máximo paredes com ângulo de 90 graus, de modo a evitar que as pessoas se tornem “quadradas” ao interagirem no ambiente.

Tive a oportunidade de colocar em prática várias vezes essa proposição e me impressionei com os resultados. A sensação de leveza e de liberdade, o alívio das tensões normais do dia a dia, a oportunidade de assumir-se imperfeito/desajeitado e principalmente a injeção de coragem para experimentar novas formas de estar no mundo são resultados inegáveis.

Semana passada, assistindo a flashes dos desfiles das escolas de samba, me dei conta de que o dia do contrário e o carnaval têm algo em comum. Percebi com mais nitidez o que esteve por trás da necessidade de instituição de um modelo de ‘carnaval à brasileira’. Inventado com base nas mesmas premissas do dia do contrário, a proposta original da nossa folia era a de inverter totalmente a hierarquia social – incluindo os papéis tradicionais de gênero.

Mistura sincrética de diferentes manifestações culturais, como as danças de salão europeias, bailes de máscara, ritmos indígenas e danças africanas, nossa forma única de conceber os festejos carnavalescos permitia que trabalhadores domésticos, garis, manicures, babás, cozinheiras e outros membros das camadas populares assumissem o centro do palco, transmutados em reis e rainhas. Era a consagração da insubmissão às normas hipócritas de compostura de uma sociedade escravagista, da autodeterminação, da alegria despudorada e da resistência pacífica.

Infelizmente, boa parte da espontaneidade da festa foi se perdendo ao longo das décadas. Da “bagunça organizada” dos pequenos blocos carnavalescos comunitários, o carnaval brasileiro passou a obedecer aos interesses comerciais de radiodifusão, com regras rígidas de coreografia, divisão em blocos temáticos com fantasias específicas, tempo de evolução na passarela e inclusão de figuras de destaque não-pertencentes às comunidades de origem.

Seja como for, a alegria transgressora e o caráter catártico da nossa festa maior continuam encontrando abrigo nas frestas e franjas dos festejos oficiais através da multiplicação de blocos amadores e nas diferentes versões regionais da folia. A brasilidade continua se reconhecendo como negra e indígena, nortista e nordestina, feminina e periférica, inventiva e improvisadora, inclusiva e avessa ao moralismo de ocasião. Em resumo, o inverso do perfil que a extrema direita tentou nos impingir nos últimos quatro anos (uma brasilidade branca, masculina, sulista e sudestina, heteronormativa, segregadora, conservadora, militarizada e teocrática).

Sendo uma das raríssimas manifestações culturais brasileiras que empresta igual importância ao processo e ao resultado e tem um caráter cooperativo, sem direção central, nosso carnaval tem tudo para continuar simbolizando a alma dionisíaca do povo brasileiro. Embora ainda rechaçado por muitos como sinal de alienação, devassidão moral e preguiça/aversão ao trabalho, ele se coloca em agudo contraste com as manifestações raivosas do bolsonarismo e do neopentecostalismo. Para quem aprecia o valor da igualdade democrática, pode ser mil vezes mais fácil tolerar o barulho ensurdecedor, o lixo nas ruas e os transtornos no tráfego dos eventos carnavalescos do que as intimidadoras motociatas, os desfiles fumacentos de tanques e muito provavelmente as manifestações de rua previstas para o dia 25 de fevereiro próximo.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Pra quem é, tá de bom tamanho

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Quando eu era criança e havia alguma festinha de aniversário em casa, minha mãe se encarregava de preparar todos os salgadinhos e doces – isso para uma concentração de, pelo menos, 50 convivas. Para agilizar a execução de uma tarefa tão gigantesca quanto essa, ela colocava todas as filhas a postos para ajudar na preparação e fritura/assamento das massas, elaboração dos enfeites, arrumação da mesa e decoração da casa.

A mim era destinada quase sempre a enfadonha e repetitiva tarefa de esticar a massa das empadinhas dentro das fôrmas, talvez por não envolver o uso do fogo ou por permitir supervisão constante. Canhota e desajeitada por natureza, eu tentava de todas as maneiras corresponder às expectativas de confecção de uma camada fina de massa tanto na base quanto nas paredes laterais de modo a não comprometer a degustação do recheio.

A atenção aos detalhes sempre teve importância muito maior para mim do que a rapidez na execução de qualquer tarefa. Minha mãe dizia que eu “bordava” qualquer trabalho que me fosse solicitado. Para garantir um resultado satisfatório com a mão “errada”, eu, de fato, demorava uma eternidade: ia e voltava infinitas vezes pressionando a massa contra o fundo das forminhas até que ela se tornasse transparente, só para constatar mais tarde que ela havia rasgado na base ou que as paredes haviam ficado grossas demais. Daí era engolir em seco e recomeçar do zero. Ansiosa para se dedicar ao preparo dos demais quitutes, minha mãe tentava me apressar, relevando algumas pequenas imperfeições. Quando eu choramingava, exausta por não estar conseguindo alcançar o padrão desejado, ela piscava para mim e acrescentava com uma risada: “Não se preocupe, pra quem é, tá de bom tamanho”.

Essa frase me aturdiu desde a primeira vez que a escutei e a incompreensão pelo tom zombeteiro me assombra até os dias de hoje. Não entendia como minha mãe podia me aconselhar a usar de dois pesos e duas medidas na entrega de um trabalho, conforme o perfil de seu destinatário final. Quer dizer, então, que havia pessoas com paladar requintado o suficiente para perceber que o produto tinha um acabamento gourmet e outras que engoliam despreocupadamente qualquer coisa que lhes fosse oferecida desde que satisfizesse seu apetite? Para mim, essa categorização era inaceitável: significava (e ainda significa) que o capricho na execução da tarefa não é um valor intrínseco ao caráter do executor, mas simples conveniência social.

Cresci tentando exorcizar o caráter antiético dessa ideia, mas não teve jeito: ela nunca me abandonou e acabou sendo incorporada ao meu código pessoal de princípios morais reversos – isto é, das coisas que eu nunca deveria conscientemente tentar fazer. A opinião do usuário final sobre a excelência ou insuficiência técnica do meu trabalho também jamais foi capaz de superar minha ácida crítica interna. Se não estou satisfeita com a qualidade do que me propus a fazer, nenhum elogio tem o poder de compensar a frustração e a sensação de impotência, enquanto as críticas negativas são catalogadas apenas como mais/menos cruéis do que a minha própria.

Graças ao período recente em que fui forçada a ficar de molho por causa de uma queda, pude compreender, como nunca antes, as consequências desastrosas que a adoção de um padrão imaginário de perfeição, inatingível para o comum dos mortais, havia provocado em mim. Entendi que jamais ousei me profissionalizar de fato. Preferi sempre me apresentar como uma amadora de boa vontade, curiosa e disposta a aprender com seus erros. Todos os trabalhos que apresentei eram entregues já com as devidas ressalvas: ‘Olha, esse foi o melhor que pude fazer, mas não creio que tenha encontrado todas as respostas que você buscava’; ‘Como foi a primeira vez que lidei com isso, devo ter deixado escapar algum fator relevante’; ‘Se você me der mais tempo, posso revisar toda a análise, sem custo, e corrigir eventuais distorções’.

Claro que essa pretensa “humildade” estava a serviço de minimizar minha sensação de culpa, desviar a atenção da minha real incompetência e compensar a dor da minha ferida narcísica. Obviamente, a síndrome da impostora que me afligia acabou tendo também um enorme impacto financeiro negativo sobre meus proventos profissionais. Hoje, revendo os acordos orçamentários que me dispus a fazer ao longo da vida, penso nas infinitas oportunidades que perdi de bancar cursos de pós-graduação ou extensão universitária, viagens, ou me dedicar a outras áreas de interesse, especialmente as que não envolvessem apenas o uso do cérebro.

Por outro lado, a disponibilidade para me envolver com tarefas que eu desconhecia ou pouco exploradas no mercado acabou agregando um inesperado traço experimentalista à minha imagem profissional. Vários clientes desejosos de conhecer melhor os limites de divulgação de seu produto/marca me abriram as portas para a introdução de novas técnicas projetivas de pesquisa e novos arranjos para o público-alvo. Hoje, olhando para trás, até eu me surpreendo com tantas e tão diversificadas experiências que acumulei – desde atuar como consultora de um centro espírita para descobrir as causas das brigas entre seus médiuns até trabalhar ao lado de redatores publicitários e criativos na identificação de novos apelos mercadológicos.

Nascida e criada em solo brasileiro, no entanto, me é inescapável admitir que acreditar que “pra quem é, tá de bom tamanho” sempre foi um lema consagrado pelos integrantes dos três poderes de nossa combalida República ao elaborar projetos de combate às nossas maiores mazelas. Valores pífios para o aumento do salário mínimo, não-correção da tabela do imposto de renda, fila quilométrica para acesso aos parcos benefícios da Previdência, limitação de recursos para o SUS e para pesquisas nas áreas de educação e saúde, justiça viesada a favor dos poderosos de plantão e empedernida para lidar com as transgressões de ‘pés de chinelo’ convivem placidamente com um fundo eleitoral de 5 bilhões, fundo partidário igualmente bilionário, desrespeito às cotas para mulheres e negros na composição das chapas… a lista é interminável.

Assim, me ocorre deixar um lembrete final para quem pretende votar nas próximas eleições (municipais, estaduais e, principalmente, na presidencial):


“Nada é suficiente para quem considera pouco o suficiente.”
Epicuro


(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O desejo da dependência

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há mais de cinco anos venho estudando e pensando em escrever sobre o tema da dependência, um tópico complexo por si só, já que se manifesta através de múltiplas formas: dependência química (drogas, álcool, comida, medicamentos), financeira, afetiva/emocional, de jogos de azar e de videogames e, mais recentemente, de gadgets eletrônicos, dentre outras.

Mesmo antes de começar, sabia da existência de centenas de estudos, que foram capazes de trazer à luz os mecanismos neuropsicológicos dessas compulsões. O princípio da dependência parece simples de entender: nosso cérebro está condicionado a repetir situações que causam prazer. Cada sensação prazerosa aciona um circuito cerebral de recompensa e libera uma carga de dopamina, o hormônio do prazer, que nos leva a querer experimentar de novo a sensação. A cada nova tentativa, todavia, o indivíduo vai se frustrando por não ser capaz de atingir a mesma intensidade de prazer da primeira experiência, não só porque os contextos são diferentes, mas também porque o organismo vai se adaptando à quantidade e à qualidade dos estímulos. Mesmo assim, ele se força a insistir na repetição, na esperança de que da próxima vez o resultado seja mais satisfatório.

Embora a explicação das neurociências me pareça necessária para produzir tratamentos mais eficazes, o que eu deduzia desse roteiro prazer-recompensa-repetição era que a dependência acaba se instalando na maior parte das vezes “por acidente”, sem que o indivíduo se dê conta desde o início de que está entrando numa cruzada cada vez mais asfixiante. E o que me motivava a persistir no estudo dos mecanismos psicológicos que levam à dependência era outra coisa: descobrir por quais motivos uma pessoa deseja conscientemente se tornar dependente de algo ou alguém.

Não sei se é porque, ao contrário de outros mamíferos, passamos por um longuíssimo período de maturação ou se a sensação de incompletude é característica inexoravelmente atrelada à condição humana. O fato é que muita gente sente a necessidade de ser tutelada por um guia, mestre ou provedor. Falo, por exemplo, de adultos que se recusam a abandonar a casa dos pais e também de cidadãos que buscam incansavelmente eleger líderes populistas autoritários que prometam abrir-lhes as portas da prosperidade e da felicidade eterna. Seja por medo de se expor a situações desconhecidas que possam causar descontrole ou pela comodidade que representa a terceirização de responsabilidades, a pessoa permanece presa a uma situação nem sempre agradável. Por quê? Baixa autoestima? Falta de autoconfiança? Limitação intelectual? Preguiça? Carência emocional? Distúrbios psiquiátricos?

Zygmunt Bauman tinha razão: se você deseja mais liberdade, tem de renunciar a um pouco de sua segurança e, se anseia por mais segurança, precisa ceder uma fatia de sua liberdade.

A autonomia sempre foi um valor sagrado para mim. Sou filha de uma mulher profundamente desapontada por não ter podido seguir uma carreira profissional fora do casamento e que resolveu jogar todas as suas fichas na criação de filhas autônomas, insubmissas às regras do patriarcado e da misoginia. Tomei como regras de ouro para minha vida a independência financeira, a busca de autoconhecimento para administrar melhor a solidão e a vontade de me autoafirmar no plano social apenas por meus méritos pessoais.

Apesar de tudo isso, recentemente enfrentei um surto inexplicável do desejo de dependência. Comecei a me ressentir da falta de interlocução com outras pessoas que me ajudassem a relativizar crenças e visões de mundo. Depois da aposentadoria e do trabalho em home office que passei a fazer, fui me isolando cada vez mais e abrindo mão de antigos prazeres, em função dos baixos rendimentos recebidos. Minhas únicas fontes de prazer diário passaram a ser minhas duas cachorras. Ultimamente, entretanto, eu já vinha notando um certo desgaste na relação com elas. Percebia que passava mais tempo recriminando suas peraltices do que interagindo com elas em brincadeiras e que os passeios diários estavam se tornando uma obrigação, mais do que um prazer. Secretamente desejava contar com a ajuda de um adestrador e de um passeador para não ter que lidar com esses sentimentos negativos.

Outra coisa de que me ressentia era da falta de variedade, sabor e valor nutricional das minhas refeições. Como nunca me interessei em desenvolver talento culinário e enfrentava restrições alimentares por ser diabética e vegetariana, via-me forçada a engolir sem nenhum prazer a gororoba básica de sempre. Sonhava em me sentar à mesa e ter à disposição, já prontos, pratos mais elaborados e “pecaminosos”, sem ter de sofrer para compor o cardápio do dia.

O surto se agravava mais ainda com questões relacionadas à vontade de mudança de profissão e à necessidade de encontrar um trabalho que me rendesse mais dinheiro para fazer frente a todas essas demandas. Em resumo, eu estava cansada de cuidar de mim mesma. Mesmo que não o admitisse racionalmente, sentia que precisava de colo e tempo livre para recuperar velhos prazeres abandonados. Foi quando uma desastrada queda me propiciou as condições necessárias para questionar o estranho desejo de renunciar a uma parte da minha autonomia.

Fui derrubada e arrastada por minhas cachorras, que se assustaram durante um passeio. Fraturei o úmero e tive uma fissura no quadril. Resultado: um mês inteiro sem poder andar e dois meses com o braço esquerdo na tipoia (sou canhota), o que significava não poder voltar a morar sozinha nem dar andamento a meu trabalho de tradutora. Ainda pior, tinha de aceitar me desfazer da tutela das cachorras por um longo período ou talvez para sempre. Fui acolhida na casa de uma irmã, que é ótima cozinheira e me mimava todos os dias com pratos especiais; ao mesmo tempo, as cachorras foram abrigadas na casa de um sobrinho, onde parecem estar mais felizes por poderem brincar com outros cachorros e circular sem guia ao ar livre na hora que quiserem.

Passei dois meses totalmente alienada dos eventos do mundo exterior, sem sair à rua, ler jornais, assistir televisão e sem redes sociais. O ensimesmamento não me trouxe nenhum benefício. Ao contrário, vi desfilarem diante dos olhos da minha mente todos os meus defeitos de caráter, minhas hipocrisias, culpas e conflitos interiores. Tive de encarar uma mudança radical de hábitos, como horário de acordar, dormir e comer, e acima de tudo passei a precisar de autorização para fumar. Enfrentei crises infantis de birra do tipo ‘você não manda em mim’ e ataques de rebeldia juvenil do tipo ‘se eu não posso ter o que quero, então não quero mais nada’. Fosse como fosse, eu tinha de admitir: meus desejos secretos estavam milagrosamente se realizando.

Hoje, já de volta à minha casa, mas ainda lambendo as feridas de corpo e alma, sinto ter me transformado numa mistura perfeita de ceticismo e cinismo. Já não acredito na possibilidade de recomeço nem na identificação de outros propósitos de vida. Sei que perdi um dos pilares fundamentais da minha identidade – que era a curiosidade de comparar instintos animais com comportamentos estereotipados humanos.

As únicas lições que tirei desse período de trevas foram:

• que a necessidade é mãe da invenção,

• que não há escolhas sem consequências,

• que é preciso equilibrar o olhar para fora e o olhar para dentro.

E, finalmente, que a resposta para um psiquismo saudável está, como sempre, em seguir o caminho do meio: nem se pretender independente de tudo e de todos, nem se resignar a engolir em seco as regras ditadas por terceiros.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Olhos para não ver

by M. C. Escher (1898-1972), artista holandês

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Certa vez tive um sonho muito estranho e simbólico, que minha terapeuta chegou a definir como “esquizofrênico”. Ele foi assunto de muitas sessões e passou por várias interpretações que nunca me satisfizeram. O desconforto que senti então me acompanha até os dias de hoje.

Eu estava diante de um muro muito alto, com um grande pórtico central, onde se podia ler a inscrição “Escola de Não Ver”. Curiosa, resolvi escalar o muro para tentar descobrir que tipo de aprendizagem se desenrolava lá dentro. Encarapitada no alto do pórtico, pude ver que se tratava de um enorme pátio de palácio chinês, parecido com o do filme O Último Imperador. Ocupando boa parte do espaço estavam perfilados vários batalhões animais, separados por espécie, em treinamento. Havia um batalhão de galinhas, outro de cavalos, e assim por diante.

Ao comando de início do treinamento, cada batalhão se envolvia na tarefa de destruir partes do corpo de seus colegas de espécie. Estranhamente, não havia fúria no ar, apenas o procedimento burocrático, metódico e persistente de garantir a destruição macabra dos restos de iguais. As galinhas bicavam as partes do corpo de outras galinhas. Os cavalos pisoteavam as de outros cavalos. Eu acompanhava estupefata os movimentos de cada batalhão sem conseguir atinar com o propósito daquilo tudo. Se já estavam mortos e esquartejados, para que se dar ao trabalho de estraçalhar o que restou deles? Não fazia sentido.

De repente, me dei conta de que não havia ali um batalhão humano. Por que eles estavam ausentes se a destruição insana de indivíduos da mesma espécie é característica dos animais ditos racionais? Nunca soube de instinto de aniquilação dos corpos de semelhantes entre os animais de espécies filogeneticamente inferiores, mas estava farta de testemunhar esses atos de barbárie entre seres humanos. A coisa fazia menos sentido ainda. Fosse como fosse, a proposta da Escola de Não Ver parecia estar sendo efetivamente cumprida.

Ao fundo do pátio, era possível ainda ver escadas que produziam a ilusão de ótica de movimento ao mesmo tempo ascendente e descendente, como as ilustradas pelo artista gráfico Escher. Ou seja, elas não davam em lugar nenhum, voltava-se sempre ao ponto de partida. Era impossível sair do pátio e escapar da sorte daqueles batalhões.

A coisa toda só começou a fazer sentido quando, muitos anos mais tarde, me deparei com uma frase do próprio Escher pouco antes de morrer: “Deus não pode existir sem o mal e, desde que se aceite a ideia da existência de Deus, tem-se de aceitar também a do mal. É uma questão de equilíbrio. Essa dualidade é minha vida”.

O tema da presença simultânea do bem e do mal na estrutura psíquica humana também sempre me instigou. Da psicanálise à antroposofia, uma constatação: não queremos ver nosso lado sombrio, nos recusamos a entrar em contato com nossas pulsões de morte, com o desejo de extermínio do outro. Achamos mais fácil dividir a humanidade entre pessoas de bem e do mal. E o que isso tem a ver com a visão? Vou tentar explicar.

Dos pelos menos 5 sentidos que herdamos ao nascer – digo ‘pelo menos’ porque já há várias teorias científicas propondo a existência de cerca de 9 sentidos na espécie humana – a visão desde logo adquire um caráter crucial, tão importante para nossa interação bem-sucedida com a sociedade como o faro para os animais. É através dela que nos conectamos com a realidade exterior desde os primeiros minutos de nossa existência. Por razões ainda não muito bem explicadas, ao longo da vida a visão vai ganhando um caráter autoritário, quase ditatorial, podendo minimizar ou até mesmo eliminar por completo as percepções oriundas de outros órgãos dos sentidos. Se uma visão lhe agrada, você pode deixar em segundo plano o cheiro, o gosto, o tato e o som que a acompanham e que podem eventualmente lhe desagradar.

Na faculdade, fazíamos uma experiência para demonstrar como isso funciona: apresentava-se a uma pessoa dois objetos de madeira, um cubo grande (mas oco) e uma bola muito pequena (mas sólida), e, depois de colocados um em cada uma de suas mãos, pedia-se que ela estimasse qual dos dois era o mais pesado. A resposta unânime era a de que o cubo era o mais pesado. Pedíamos então que a pessoa fechasse os olhos e repetíamos a avaliação sensorial. A resposta que se seguia era sempre a de que a bola era mais pesada. Ao abrir os olhos novamente, as pessoas costumavam se surpreender com a incompreensível disparidade de suas avaliações.

Outro dado que indica o absolutismo da visão é o de que ela desfruta de credibilidade instantânea, ao contrário do que tende a acontecer com outros sentidos. A linguagem cotidiana expressa isso de maneira exemplar: “Ninguém me contou, eu vi com meus próprios olhos”. Nessa equação, raras vezes entram em discussão os fenômenos de ilusão de ótica ou de distorções provocadas pelo ângulo de visão. Quando, no entanto, a informação vem pelo ouvido, pelo nariz, pelo paladar ou pelo tato, ainda há espaço para dúvida: posso não ter escutado direito, posso ter sido traída pelas circunstâncias ou por experiências anteriores.

Um enorme fator complicador dessa tendência no século 21 é que a tecnologia se concentrou quase exclusivamente no desenvolvimento de novas telas, reforçando dessa forma o caráter impositivo da visão. O aparecimento de aparelhos de realidade aumentada serviu para colocar ainda mais fogo num ambiente já inflamado. Técnicas avançadas de manipulação de imagens ampliaram absurdamente o poder da persuasão visual.

Com o advento da pandemia de covid, a imersão desenfreada no mundo virtual das imagens parece ter levado as pessoas a um estado paroxístico de insensibilidade – e de desumanização -, talvez em função do desuso de outras fontes sensoriais de experiência. Se você não pode sentir o calor do toque das mãos ou do corpo de outras pessoas num abraço, não consegue sentir o cheiro do sangue quando o outro é esfaqueado ou baleado, nem ouvir seus gritos de horror, tudo se transforma numa experiência inconsequente, característica dos jogos eletrônicos.

A coisa é tão grave que cheguei a formular para mim mesma o conceito de ‘nova forma de cisão esquizofrênica’ para explicar o fenômeno. Já não conseguimos distinguir a realidade ‘real’ da realidade virtual. Somos induzidos a experimentar novas situações pelo simples prazer da experiência, por mais extremas que elas sejam. O problema é que as imagens não têm substância nem ética incorporada. Cabe a cada um atrelar significados a elas e entender como as consequências se encaixam na sua escala pessoal de valores.

Piorando ainda mais esse estado de coisas, sempre foi muito difícil para a maioria apoiar-se naquilo que os espiritualistas chamam de “olhos da alma” para ampliar as oportunidades de autoconhecimento. A visão, assim como os demais órgãos dos sentidos humanos, é voltada para a exterocepção, isto é, para fora, mas é de pouca valia para visualizarmos o que temos por dentro. Olhar para dentro e encarar a frio quem somos de fato quando não há outros olhos por perto é algo que costuma causar pânico, dado o risco de destruição de nossas ilusões mais caras e de muitas de nossas crenças mais arraigadas.

Como diria Fernando Pessoa, “para que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?”

Avatares não olham para dentro, não é mesmo?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Sem chão embaixo dos pés

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Assistindo às cenas terríveis do resgate de pessoas mortas e de bebês e crianças ainda vivas soterradas no brutal terremoto que atingiu a Turquia e a Síria, fui forçada a reviver uma situação que só posso descrever como paranormal que aconteceu comigo há algumas décadas.

Eu era coordenadora do curso de inglês em uma grande empresa multinacional. Recentemente havia recebido várias reclamações a respeito de um dos professores, um australiano recém-contratado. Os comentários negativos sobre o desempenho dele em sala de aula eram vagos, genéricos. Ninguém o acusava de não ter habilidades linguísticas nem se queixava de sua capacidade didática. O problema aparentemente estava limitado a seu comportamento, descrito apenas como “estranho”, “esquisito”, que fazia lembrar o de um “louco” ou drogado. Fala e gestos lentos, súbitos e longos silêncios, olhar perdido na distância.

Preocupada em entender o que exatamente significava isso e qual impacto negativo teria sobre o aprendizado da turma, resolvi assistir a uma de suas aulas. Sem avisar ninguém e sem me justificar, bati na porta e pedi licença para acompanhar os ensinamentos do dia. A aula já havia começado e o clima entre os alunos e o tal professor parecia sereno. Ele estava de costas para a porta, escrevendo algo no quadro negro. Ao se virar e me ver, no entanto, ele teve uma reação inexplicável: sua fala travou totalmente e seu corpo congelou como o de uma estátua, ainda com o braço suspenso no ar e o giz na mão.

Foram minutos de constrangedor silêncio que me pareceram horas. A classe inteira paralisou à espera dos nossos próximos passos. Sem saber o que fazer, eu também limitei-me a ficar parada e em silêncio, de pé, segurando a maçaneta. Ele olhava para mim com um ligeiro sorriso nos lábios. Seus olhos tinham um estranho brilho, como se ele estivesse tentando contextualizar minha imagem ou se lembrar de alguma coisa. Embora não me conhecesse, parecia estranhamente contente em me ver – ou rever, como descobri mais tarde.

Sem pronunciar uma só palavra, ele lentamente foi descongelando, virou-se novamente para a lousa e escreveu algo nela… só que em indecifráveis (para mim) caracteres da língua hindi. Ao terminar, voltou-se para mim, abriu um largo sorriso e disse candidamente: ‘Este é seu nome”. Cada vez mais assustada e perturbada, perguntei o que aquele nome significava. Ele respondeu apenas: ‘Myrthes!’. Não me lembrava de ter dito meu nome e, mesmo que o tivesse feito, me surpreendia que ele o houvesse absorvido tão rapidamente, com tamanha familiaridade. Àquela altura, eu já estava começando a achar que o caso merecia uma intervenção de ordem psiquiátrica mesmo, mas não quis dar continuidade ao estranho diálogo para não atrapalhar a aula. Sentei-me numa cadeira no fundo da sala e permaneci calada.

Quando a aula terminou, sem outras intercorrências, ele veio conversar comigo. Depois de trocarmos amistosamente algumas informações sobre seu currículo e sobre suas relações com os alunos, novo susto, desta vez de muito maiores proporções. Sem perder sua espontaneidade, ele simplesmente deu início a um relato sobre uma pretensa vida passada minha, algo que me arrepia até hoje: “Você morreu em um terremoto, de fome e de sede, por não ter sido resgatada a tempo”. Absolutamente perplexa, não tive forças para perguntar mais nada, nem quando nem onde aquilo acontecera. Ainda que os temas esotéricos não me fossem desconhecidos e eu já tivesse vivido outras situações estranhas com desconhecidos, eu me recusava a acreditar naquele relato e continuava duvidando da sanidade mental do professor.

No dia seguinte, marquei um encontro com a diretora da escola de inglês. Contei a ela brevemente das reclamações sobre o comportamento do professor, omitindo o relato acima. Ela prontamente me tranquilizou: disse que ele era uma pessoa realmente estranha para os padrões corporativos ocidentais mas uma pessoa nobre, altamente espiritualizada, que havia vivido muitos anos na Índia e se tornado uma espécie de liderança iogue. Tinha vindo ao Brasil com a missão de aqui instalar um centro de ioga voltado à construção da paz universal vinculado à ONU, e que só estava dando aulas de inglês para sobreviver financeiramente enquanto isso não acontecia. Garantiu que conversaria com ele para que ele evitasse discussões não-técnicas com os alunos e adotasse um comportamento mais “dinâmico” (menos zen) em sala de aula, de modo a afastar a possibilidade de novas reclamações.

De fato, algumas semanas depois as queixas cessaram e ele continuou dando aulas normalmente. A partir dali, aproximei-me mais dele e, após ser convidada, fui fazer um curso de Raja Yoga (um tipo de ioga mais propriamente mental) no centro que ele estava construindo. Não posso dizer que nos tornamos amigos, mas os conceitos do hinduísmo que aprendi ali me ajudaram a interpretar com mais tolerância seus estranhos hábitos e relatos.

De alguma forma, a ideia de ter morrido num terremoto começava a fazer sentido para mim. Sempre tive pavor de voar e algumas vezes entrei em pânico até mesmo dentro de elevadores. A sensação apavorante de não ter chão embaixo dos meus pés me acompanha desde que me conheço por gente. Assunto de muitas sessões de terapia, aprendi aos poucos a lidar melhor com o descontrole emocional e esse medo acabou ficando literalmente soterrado em meio às minhas lembranças do passado.

Ontem, entretanto, ouvindo uma sobrevivente dizer que a sensação é a de que você está pisando em um colchão de água e seu corpo oscila violentamente acompanhando as ondas que vêm da terra, não tive como evitar reviver intensamente o terror do chão se abrindo, a sensação de sufocamento, abandono e desamparo. Sim, muito provavelmente eu já vivi essa situação, não importa se em uma vida passada ou dentro do útero de minha mãe na hora do parto.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Na antevéspera do gozo – 2

Brasília: Praça dos 3 Poderes em construção

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há mais de cinco anos detectei pela primeira vez uma sinistra coincidência entre momentos de pré-júbilo nacional e a ocorrência de alguma tragédia ou reviravolta frustrante na vida institucional brasileira. Dei a esse fenômeno inusitado o nome de “antevéspera do gozo” e desde então comecei a me perguntar das razões para seu surgimento.

Analisando alguns acontecimentos históricos ligados a momentos de grande mobilização cívica interrompidos abruptamente – como a rejeição da emenda das Diretas Já depois de 21 anos de ditadura e após expressivas manifestações de rua da sociedade civil, a morte de Tancredo Neves antes de assumir o cargo presidencial e consolidar a transição para a volta do regime democrático, o acidente aéreo fatal que atingiu Eduardo Campos, a principal novidade da campanha ao lado de Marina Silva, a poucos meses da eleição presidencial de 2014, e até a morte do ministro do STF Teori Zavascki, o único que poderia enquadrar os desvios éticos de Sérgio Moro e conduzir a Operação Lava Jato com segurança jurídica e imparcialidade até o final -, cheguei à conclusão que temos, como cultura, um caráter evidentemente histérico.

Com isso quero dizer que estamos perpetuamente surfando na crista de uma onda de excitação coletiva que jamais encontra descarga completa e impede que seja zerada a tensão política acumulada. Quando sentimos que se aproxima o momento do gozo final, algo em nós inexplicavelmente se assusta, se tranca e recua. E, quando se bloqueia a energia libidinal, ela por assim dizer “apodrece” qual água estagnada e contamina outras áreas do psiquismo. A incapacidade de entrega amorosa plena termina gerando desprazer e frustração, o que, por sua vez, deriva para a formação de irracionalidades, perversões, neuroses, fanatismo, misticismo, etc. A potência orgástica se perde e se divide em uma série de gratificações secundárias.

Se confirmado, esse traço cultural histérico explicaria ainda outras duas tendências com as quais venho trabalhando para entender a brasilidade: o baixíssimo comprometimento da população com processos (de qualquer tipo, mas especialmente os de construção democrática) e a ânsia de obter resultados praticamente imediatos, ou expectativa de mudança mágica da realidade. Em segundo lugar, a bipolaridade estrutural que nos faz oscilar entre momentos de eufórica autoestima {como acontece quase sempre no futebol e no carnaval) e outros de depressão (síndrome do vira-lata) e autocondenação (principalmente em períodos pós-eleitorais, com a sistemática repetição da crença de que brasileiro não sabe votar).

Ainda não sei quais e quantos outros fatores estão em jogo, mas posso apostar que a recusa em juntar forças para o atingimento de um orgasmo-cidadão está ligada ao eterno confronto entre nossas raízes africanas e indígenas de valorização da coletividade e a herança conservadora e individualista de nossos colonizadores portugueses. Aparentemente, isso se deve às pesadas noções de culpa e pecado da tradição judaico-cristã herdada deles que interferem em nosso caráter original de afetividade despudorada, espontaneidade e liberalidade sexual.

Pois bem, parece que está prestes a acontecer de novo. Desde 30 de outubro, nem um dia se passa sem que ouçamos a profecia: “O ladrão não vai subir a rampa”. Como, desta vez, Deus parece ter optado por não chamar para seu reino nenhum dos candidatos finalistas nem a figura mais odiada do bolsonarismo, Alexandre de Morais, as deserdadas viúvas do Mito resolveram tomar nas próprias mãos a tarefa de desconstrução final do estado democrático de direito. Depois dos emocionantes manifestos em favor da democracia que reuniram mais de um milhão de assinaturas, o que deveria ser uma festa popular de regozijo com a vitória da esperança de reconquistarmos credibilidade internacional e de recuperar nosso já devastado meio ambiente foi brutalmente interrompida com bloqueio de estradas federais, manifestações abertamente golpistas na frente de quartéis, ações de caráter explicitamente terrorista e nazifascista e até aberrações de cunho religioso messiânico, como a de clamar por intervenção extraterrestre através de celulares.

Embora nada de mais terrível tenha acontecido até este momento, seja por obra e graça da incompetência e planejamento amadorístico das ações dos golpistas ensandecidos ou por pura conivência mal dissimulada das autoridades de plantão, temos de convir: nada impede que acordemos horrorizados no dia 1º de janeiro de 2023 ao assistirmos ao vivo e em cores a um atentado contra o novo presidente em plena Praça dos Três Poderes. Garanto que muita gente já perdeu o sono revivendo mentalmente as cenas dantescas de partes do cérebro de John Kennedy voando longe ou, mais recentemente, da morte em público do primeiro-ministro japonês Shinzo Abe.

A parte moralista do nosso Eu coletivo, que chafurda cada dia mais no fundamentalismo religioso mais rastaquera, entra novamente em campo para alertar: esse parceiro que nos está sendo reapresentado como salvação de nossas fraquejadas libidinais não é confiável, já abusou de nossa confiança anteriormente, não dá para nos entregarmos de mão beijada a ele sem contarmos com alguma forma de salvaguarda contra seus ideais liberalizantes nos costumes. E se ele achar que não somos moças de família por cedermos ao desejo? E se gostarmos da experiência e quisermos repeti-la, como ficará nossa imagem pública? Emancipação para quê? Não, melhor nos mantermos dentro das 4 linhas do patriarcado cristão heteronormativo!

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

“Eu não aceito”

Myrthes Suplicy Vieira (*)


“EU NÃO ACEITO”
Alguém conhece fala mais prepotente que essa?


Pense um pouco: ela pressupõe que a pessoa – agrupamento social ou instituição – que a profere acredita ser a autoridade suprema, com poder de decidir monocraticamente o que os outros devem e não devem fazer, o que pode ou não acontecer.

“Eu não aceito o fim do nosso relacionamento”, alega o agressor e feminicida em potencial ao tentar justificar sua violência, ignorando o fato de que um relacionamento pressupõe a existência de duas consciências, duas vontades e duas autonomias para a tomada de decisão.

”Eu não aceito o resultado da eleição”, gritam em uníssono os golpistas bolsonaristas enlutados, revelando a mesma patologia mental que confunde amor com possessividade. Depois de 4 anos vivendo firmemente ancorados na crença de que “tudo posso naquele que me fortalece”, é normal que eles tenham caído na armadilha de tomar a parte pelo todo: sentem que o país lhes pertence, que os símbolos nacionais são exclusivamente seus para serem usados como e onde quiserem, que seu voto deveria valer mais do que o de qualquer outro cidadão, que são donos da consciência ética de seus adversários ideológicos, que sabem o que é melhor para o futuro da nação. Estão convictos de que patriotismo é demonstrar devoção incondicional e perpétua a um governante de ocasião, alçado por eles mesmos à condição de impoluto Homem-Deus.

Compreensível. O desempoderamento é, de fato, uma das dores psíquicas mais excruciantes e insuportáveis que um ser humano pode conhecer. Equivale ao que Freud chamou de ferida narcísica: apaixonado pela própria imagem refletida nas águas de um lago, Narciso acha necessário parar de respirar para que as águas não se turvem e deixem de funcionar como espelho. Sem a imprescindível troca gasosa com o ambiente e sem oxigenação do cérebro, ele perde os sentidos, cai no lago e acaba morrendo afogado.

Substitua “não aceito” por “não entendo” e se tornará evidente o que se esconde por trás de tanta fúria revanchista. Ao se darem conta da existência de outras aspirações de igual poder, tanto o misógino quanto os bolsonaristas narcisistas descobrem apalermados que, embevecidos com sua pretensa superioridade moral, se miravam apenas nas águas paradas de seu pântano particular de ódio ao diferente. Asfixiados pelos vapores tóxicos da decomposição ambiental, eles perdem o chão ao descobrir que nunca houve troca afetiva, diálogo ou negociação em seus relacionamentos, que jamais se deram ao trabalho de consultar a opinião do outro e, mais grave, que nunca avaliaram a pertinência de seu próprio modo arrogante e violento de tratá–lo.

Agora, confrontados com a perda concreta de seu poder desabrido, eles se imolam em praça pública, na esperança de reencontrar sua imagem fabulada de representantes do bem e da verdade no espelho imperturbável das forças armadas. Qualquer forma de apoio lhes serve, tudo menos deixar transparecer sua triste impotência humana. Não entender os motivos inconscientes de seu autocentrismo, limitação cognitiva e dependência emocional é o que os enfurece e afronta sua gigante autoestima, daí ser inaceitável.

Ser alijado inesperadamente do universo da onipotência infantil, ter de enfrentar pela primeira vez a colocação de limites claros para as próprias ações e intenções, não poder usufruir mais das benesses a que acreditava ter direito, ser desautorizado pela realidade, tudo isso se acumula na mente do desempoderado e conspira para a eclosão de reações de altíssima agressividade e perversidade. Mais ainda quando o desempoderamento acontece “against all odds”.

A psicologia ensina: ao longo do desenvolvimento psicomotor humano, a criança primeiro reage à frustração com um virulento acesso de raiva que envolve seu corpo como um todo. É a conhecida crise de birra, que implica jogar–se ao chão, retorcer–se, sapatear e espernear, agitar violentamente os braços, bater, morder, cuspir, berrar e chorar inconsolavelmente. Aos poucos, a criança vai aprendendo a limitar a extensão de sua resposta corporal. Ela pode dar um pontapé ou soco na cara do coleguinha que o desagradou ou agredir a tapas um adulto que tenta impedi–la de fazer alguma coisa, mas já é capaz de permanecer em pé e respirar fundo até que a raiva passe. Mais tarde, o revanche magoado costuma se restringir às ofensas verbais. Finalmente, o adulto já emocionalmente formado tende a deixar de lado voluntariamente as agressões físicas e verbais, passando a apenas pensar em formas mais socialmente aceitas de retrucar a ofensa.

A total inversão nesse roteiro de autodomínio psíquico a que temos assistido perplexos em anos recentes e em especial no pós–eleição parece estar vinculado ao abandono da noção de bem comum, que deve pairar acima e além dos interesses individuais. Sem dúvida, a globalização tem uma importante parcela de responsabilidade na eclosão desses fenômenos, dada a inevitável relativização dos códigos morais de cada sociedade que ela implica. O caráter nazifascista e supremacista dos protestos é explícito não só por estas bandas, mas também no mundo todo. No entanto, mesmo considerando que o ‘jus sperneandi” é um direito constitucional garantido quase universalmente, é difícil explicar a volta à barbárie em sua forma mais arrebatadora sem o apoio mais uma vez da teoria freudiana.

Ao abordar o mito da horda primitiva, Freud aponta que a cola que mantém os irmãos unidos e obedientes aos ditames da autoridade paterna é a crença de que o amor do pai é distribuído de forma equitativa entre os filhos. Se se suspeita que ele favorece este ou aquele rebento, será detonada uma sanguinolenta guerra fratricida. A ambivalência na submissão acrítica, somada à inveja do poder tirânico do pai, termina levando inexoravelmente a seu assassinato e seu corpo será devorado num macabro festim pelos irmãos. Somente então o luto poderá ser elaborado, a culpa redimida e erguido um totem com regras rígidas de proibição do incesto.

Nesse sentido, parece ser natural também que todos que se sentem direta ou indiretamente culpados pela morte simbólica do autoproclamado Mito imbrochável e imorrível clamem desesperadamente por tutela. Ainda que entendam que ninguém está à altura de substituir o pai morto, precisam saber que contam com o apoio de uma autoridade externa forte o bastante para reequilibrar e dar novo ânimo ao combate. Que fique claro: eles não estão buscando uma tutela iluminada que possa conter terapeuticamente o desvario de seus demônios internos, mas simples força bruta para desfazer de uma vez por todas a incompreensível e inaceitável decisão de terceiros.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Diz-me com quem andas

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Depois de ler algumas análises feitas por especialistas da área de Humanas a respeito da politização da religião, destrinchando as motivações ocultas por trás das falas sórdidas de Damares e de Bolsonaro, repercutindo os recentes conflitos entre religiosos católicos e fanáticos bolsonaristas, tive certeza: quanto mais se fala no assunto, quanto mais se ataca o comportamento do “gado”, quanto mais se tenta rebater os preconceitos e as perigosas ilações que os líderes da extrema-direita costumam fazer contra os adeptos das ideologias de esquerda, quanto mais nos embrenhamos nessa pseudoluta do Bem contra o Mal, mais se aprofundam os laços entre o público fundamentalista e seu “Mito”.

Fera acuada reage com muita maior agressividade. Pode parecer paradoxal que nosso esforço de aclarar os fatores-chave que estão em jogo obtenha o efeito exatamente contrário ao pretendido. Ainda assim, é algo bastante fácil de entender. É como acontece com as campanhas de prevenção contra as drogas, o álcool ou o fumo. Estabelece-se uma argumentação lógica, de ordem estritamente técnica, apontando os efeitos maléficos do vício e enquadrando o usuário como “vítima” inconsciente ou involuntária dessas armadilhas. O problema é que nenhum dos argumentos utilizados consegue se antepor de forma minimamente crível aos “benefícios” percebidos de prazer e escape temporário de uma realidade dolorosa causados por essas substâncias.

Adianta menos ainda apelar para os brios morais ou para a responsabilidade social – argumentos do tipo: comprando drogas você está abastecendo o crime organizado; bebendo, você perde tudo, emprego, apoio da família e respeito por si próprio; fumando, você causa prejuízo ao SUS que vai ter de tratar das comorbidades e deixar de atender quem mais precisa. Sem perceber, essa forma de mensagem aciona imediata e automaticamente um poderoso mecanismo de defesa, que se engalfinha na luta para racionalizar a necessidade de adesão ao vício.

Ou seja, toda forma de admoestação usada até aqui só comunica uma mensagem desagradável, de oposição aos seus bons propósitos: a de que os especialistas no combate a esses males são pessoas “quadradas”, alienadas, com a vida ganha, que “não entendem” as necessidades de segmentos sociais específicos – jovens desesperançados, desempregados, vítimas de violência doméstica e/ou policial, pessoas de periferia e de baixa renda que não veem futuro de ascensão social e os discriminados em função de sua origem racial, orientação sexual ou simples diferenças no jeito de se vestir, se comportar em público ou questionar o “sistema”.

Da mesma forma, no plano político, as críticas vindas das forças progressistas de esquerda às propostas e ao projeto de poder do bolsonarismo naufragam miseravelmente, antes mesmo de atingir seu alvo. Basta desqualificar de antemão essas vozes, associando-as a perigosas intenções dissimuladas: querem instaurar uma ditadura comunista (e para nós a liberdade é mais importante do que a vida, ainda que isso implique o fechamento do Congresso e do STF); defendem o aborto (e nós somos radicalmente a favor da vida, ainda que acreditemos que algumas vidas não merecem ser preservadas); são cristofóbicos (e nós odiamos quem não se pauta pelos mandamentos inscritos no Velho Testamento, ainda que sejamos obrigados a perseguir os que veneram o diabo); tentam impor a ideologia de gênero (o que representa para nós a destruição dos valores da família e a perversão de mentes infantis pela introdução precoce do tema da educação sexual nas escolas).

O irracionalismo definitivamente não pode ser combatido racionalmente. Isso porque ele está ancorado na própria identidade do convertido, nos conflitos inconscientes que permeiam sua estrutura psíquica. Está enraizado no imenso benefício emocional de se sentir parte indissolúvel de um grupo coeso e aguerrido, que conta com a proteção de uma figura poderosa e temida pelos adversários, que acolhe a todos sem julgamento e dá segurança para lidar com as incertezas da vida cotidiana.

Negar os desvios de caráter do líder passa, assim, a ser uma questão de sobrevivência psicológica. Aceitar que se abram brechas na estrutura monolítica do código pessoal de valores equivaleria a suicidar-se social e espiritualmente. Trata-se, no fundo, de uma cosmovisão dogmática. E dogma é, por princípio, uma verdade que não pode ser discutida nem contestada pela razão secular.

Mas não é só às hordas bolsonarista que isso se aplica. Infelizmente. Vale também, com força máxima, para o outro lado do espectro político-ideológico. Alegar que sua causa é nobre, que se está do lado certo da história, que somos seres iluminados a serviço da conscientização geral antes que seja tarde demais, também revela o quão pouco entendemos da natureza humana.

Se não concordássemos intimamente com a ideia de que o inferno são os outros, muito provavelmente já teríamos encontrado humildade de espírito suficiente para dialogar com o ressentimento histórico dessa gente, eternamente abandonada pelos governantes de plantão – e que, portanto, não vê diferença alguma entre ser governado pela esquerda, pelo centro, ou pela direita. Opor barbárie à civilização pode fazer sentido para uma elite intelectual, mas não agrega um só osso com restinho de carne à sopa a ser preparada para a família hoje à noite.

Um antigo chefe meu, sociólogo holandês, brincava que havia só duas teorias de aprendizagem: a que afirma que as pessoas aprendem pelo prazer e a que dita que a verdadeira aprendizagem só acontece pela dor. E, acrescentava ele, rindo: “Idealmente, todos deveriam aprender exclusivamente pelo prazer, mas não dá para esquecer que tem uns FDP por aí que merecem aprender pela dor”.

Qual seria, então, a saída? O que estou propondo de fato: censura, guerra civil, tratamento psicológico compulsório para quem adere a teses que considero absurdas? Nada disso. Como diria Stanislaw Ponte Preta, “ou nos locupletamos todos ou reinstaure-se a moralidade”. Que se reinstale o diálogo democrático sereno, que todos sejam chamados à mesa de negociação, que aceitemos abrir mão de alguns anéis para não perder os dedos, que se testem novas propostas de convivência democrática ainda não experimentadas entre nós.

Só não sei ainda como implementar essas mudanças na prática. Sei que não dá para negociar com terroristas armados até os dentes. Sei que não é possível eliminar a insanidade a golpes de realidade. Entendo que nenhum progresso humano é linear e incorpora avanços e recuos estratégicos permanentes. Mas será que não é suficiente perceber que se pode levar um cavalo até à água, mas é impossível fazê-lo dela beber?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Teoria conspiratória de ocasião

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não gosto nem estou habituada a embarcar em teorias conspiratórias, mas não teve jeito: ainda em estado de choque com o resultado do primeiro turno das eleições, especialmente as dos governos estaduais, deputados federais e senadores, vi-me forçada a criar eu mesma uma que lavasse de alguma forma minha honra de pesquisadora com mais de 20 anos de experiência. Ela pode parecer um tanto alucinada, como aliás são todas as outras, mas retrata uma possibilidade bastante factível e traz um fundinho de veracidade que precisa ser ainda mais bem explorado.

Refletindo sobre as causas dos erros monumentais cometidos por todos os institutos de pesquisa de renome nacional, me ocorreu que a inversão de última hora nas preferências pode não ter sido fruto de incompetência técnica ou metodológica, ingenuidade, parcialidade ou falta de integridade ética de tantos pesquisadores envolvidos. Algo me diz que o “erro” está na força do bolsonarismo de raiz nas redes sociais. Os institutos podem apenas não ter sido capazes de rastrear a tempo o tsunami de votos despejados no capitão provavelmente porque embalados pela confiança na altíssima estabilidade das previsões e convergência da intenção de voto apontada pelas diferentes instituições e confirmada por diversos agregadores de pesquisa.

Convenhamos: para que tivesse havido uma fraude dessa dimensão, seria preciso que todos os dirigentes desses institutos e pesquisadores subordinados, que elaboraram os questionários, determinaram a amostragem e treinaram o pessoal de campo, tivessem concordado em “suicidar” sua reputação e afundar voluntariamente a futura credibilidade comercial e política de suas empresas. Uma possibilidade que evidentemente está longe de ser lógica ou exequível.

Imagino, então, que o arrastão de votos a favor de Bolsonaro no dia do primeiro turno tenha acontecido da seguinte maneira: um comando do Gabinete do Ódio teria sido enviado desde as últimas semanas das sondagens eleitorais aos principais cabos eleitorais do presidente para que determinassem por sua vez que, caso fossem entrevistados por algum grande instituto associado a jornais, emissoras de tevê e portais de internet “de esquerda”, os eleitores intencionalmente mentissem, respondendo ou que ainda não sabiam em quem votar ou que estivessem pensando em votar nulo ou branco. Mas essa era só a primeira fase do complô que imagino e descrevo a seguir.

O primeiro sinal de que algo de grande porte e malcheiroso estava sendo tramado por baixo dos panos foi dado quando, a menos de 10 dias da eleição, o próprio presidente se encarregou de espalhar a notícia de que seria reeleito, com “ao menos 60% dos votos”. Além disso, na mesma época ele ensaiou pela primeira vez encarnar o personagem “JB paz e amor”, conclamando os eleitores a optarem pela “harmonia” social, pela segurança das armas e pela diminuição dos indicadores de fome e desemprego.

Na sequência, entre sexta-feira e domingo, o comitê central da ala mais radical do bolsonarismo deve ter ordenado aos principais cabeças regionais da campanha – isto é, gente com forte ascendência sobre uma massa de subordinados/dependentes e também capaz de garantir sigilo absoluto da operação – que “persuadissem” gentilmente o maior número possível de eleitores indecisos, além dos de Ciro Gomes e Simone Tebet, a despejar seus votos em massa no capitão. Dada a complexidade logística da operação, o comando pode ter sido distribuído através de sites da ‘dark web’ que não pudessem ser facilmente monitorados, e multiplicado aos milhares através de grupos fechados de whatsapp. O que foi prometido a cada um para que alterassem de última hora sua intenção de voto é difícil de saber. Além das habituais promessas de dentadura e alpercatas, emprego e comida, deve ter funcionado fundamentalmente a pressão dos grandes empresários do agronegócio e da indústria extrativista, dada a promessa explícita de muitos de demitir todos os funcionários que manifestassem direta ou indiretamente a intenção de votar em Lula. Não me parece improvável ainda que a operação tenha contado com o auxílio luxuoso de lojistas de grande porte do sudeste, como Luciano Hang, e até de milicianos para reforçar o exigido código de silêncio.

O que me leva a pensar que isso tenha acontecido de fato? Antes de mais nada, o silêncio e a compostura dos bolsonaristas fanáticos no dia das eleições. Aquilo que todo mundo temia – gigantescas manifestações e conflitos sangrentos de rua, boca de urna agressiva, intimidação aberta de eleitores nas ruas do entorno das seções eleitorais – simplesmente não aconteceu. Nem aqui nem no exterior. Tenho vários amigos que moram além-mar e todos registraram, sem exceção, sua surpresa (e até uma pontinha de orgulho) com a civilidade dos apoiadores de Bolsonaro na França, na Suíça, na Holanda e na Inglaterra.

Ninguém mais voltou aos temas-lemas de urnas auditáveis, sala secreta de totalização dos votos, fiscalização dos militares, etc. por pelo menos duas semanas antes da eleição. Ninguém protestou ou xingou Alexandre de Moraes em função das regras de proibição de celulares e do transporte de armas. Um estranhíssimo silêncio, compatível com a tradicional estratégia dos índios americanos antes de um ataque mortal contra as caravanas dos primeiros colonizadores.

Outra evidência para lá de suspeita: pouquíssimos votos em branco e nulos foram observados na contagem final. Mais uma vez, uma estranhíssima coincidência dado o grande contingente de eleitores declaradamente ‘nem-nem’. Raríssimos casos de crimes eleitorais – como postagem de imagens de celular de dentro das cabines de votação, denúncias fake de fraudes ou conflitos com mesários – surgiram nas redes sociais e compõem os derradeiros indicadores. Curiosamente, todas as peças publicitárias da campanha de segundo turno do capitão exibem eleitores entusiasmados declarando que “consegui mais dois”, “e eu consegui trinta”. Coincidência?

Finalmente, uma vez constatada a gritante incoerência entre as previsões e o resultado efetivo colhido nas urnas, o que foi que aconteceu? A generalizada gritaria e exigência de criminalização dos institutos de pesquisa por parte de figuras manjadas do Centrão, além da cara de paisagem do filho de Bolsonaro, Carlos, ao lado do pai, subitamente sereno e com ar de aliviado, na primeira aparição pública após a divulgação dos resultados.

Seja ou não confirmada minha teoria conspiratória por outras evidências, posso apostar que a mesma estratégia será usada no segundo turno e causará um clima de tensão inaudito entre os analistas e cientistas políticos. Não me espantarei se Bolsonaro colher mais votos ainda em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Já quanto à eleição do carioca Tarcísio de Freitas para o governo paulista, a meu são favas contadas, independentemente da participação dele ou não nesse grande imbróglio: paulista adora um canteiro de obras atrapalhando o trânsito.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Algumas vezes é preciso não entender

Luto

Myrthes Suplicy Vieira (*)


Algumas vezes é preciso não entender


A frase acima foi dita originalmente por Anna Verônica Mautner, psicóloga, psicanalista e escritora altamente provocativa, que foi também minha professora na USP. Na ocasião, ela havia sido chamada a explicar por que uma pessoa até então dita “normal” atingira um grau de crueldade tão inaudito. O caso era o de um homem que pensava em se suicidar e, de última hora, achou por bem jogar antes mulher e filho pela janela do 13º andar. Para piorar, no último instante, ele recuou de seu intuito e acabou preservando a própria vida.

O pasmo, a incompreensão, o estado de choque tem paradoxalmente um impacto esclarecedor e reumanizador poderoso sobre nosso psiquismo, mais forte talvez do que qualquer explicação científica ou policial. Servem de alerta que sempre estamos sujeitos a ultrapassar os limites civilizacionais e embarcar numa jornada inumana de destruição de tudo à nossa volta. Não há como explicar o inexplicável por mais que se tente: pulsão de morte, o mal-estar na cultura, a dimensão trágica da existência, o niilismo, a alienação, o predomínio da emoção sobre a razão, tudo isso pode servir de justificativa temporária apenas e tão somente para tentar exorcizar a possibilidade de que isso aconteça conosco. Mas não serve de consolo, nem de vacina. O inferno continuam sendo os outros, os tais psicopatas que continuam circulando livremente por aí.

Ficar com a dor, passar recibo do luto, contorcer-se dias sem fim diante da perda injustificável, praguejar contra os deuses e o destino, pode ser nossa única salvação. Reservar um tempo para lamber as próprias feridas é a única rota de escape admissível. Saber que o humano não abrange apenas um lado espiritualmente iluminado e gregário, mas chafurda também num poço sombrio e irracional, nos permite reavaliar nossos recursos internos e reequilibrar forças.

Essas considerações me ocorrem ao analisar os resultados das eleições 2022. Até dá para sacar timidamente uma explicação para o crescimento de última hora de Jair Bolsonaro e a acachapante vitória de seus aliados no pleito para governadores do sudeste – e mais grave ainda para a Câmara Federal e o Senado. Se há um fator racional para justificar a inversão das preferências, ele tem um nome: Ciro Gomes. Graças ao fato de ter elegido Lula – e não Bolsonaro, como seria de se esperar – como seu único adversário, de forma a se oferecer como contraponto palatável, ele conseguiu desestabilizar o emocional dos eleitores que já se dispunham a fechar o nariz, ignorar suas reservas intelectuais e votar no PT, na tentativa desesperada de salvar a democracia tupiniquim. Colheu o que plantou: até o final de sua vida vai ser forçado a ruminar em casa os motivos inconscientes de sua raivosa batalha egóica. Em volta de sua tumba política, vão se juntar as vivandeiras e carpideiras nem-nem que apostaram mais uma vez na própria incorruptibilidade e superioridade intelectual/moral.

Até aí, dá para tentar, não sem esforço, entender. No entanto, como explicar a eleição de Damares, de Pazuello, de Mário Frias, de Carla Zambelli e principalmente de Ricardo Salles? Que justificativa moral terão se concedido as pessoas que enfrentaram enormes perdas nos últimos três anos, desde mortes de familiares por covid, desemprego, fome, não-acesso à saúde e à educação, até as terríveis enchentes e as queimadas na Amazônia? Serão os eleitores das classes C, D e E os culpados mais uma vez por impedir o avanço civilizatório em nosso país? Ou será que os evangélicos se consolidarão como os novos bodes expiatórios da brasilidade?

Ontem fui dormir mais cedo, exausta de pensar na lógica estapafúrdia do quadro pós-eleitoral e arrasada emocionalmente com esse festival de mediocridade e agonia democrática. Embora minha intuição já me avisasse há algumas semanas que ainda não era hora de celebrar a volta da racionalidade ao jogo político-ideológico, eu ainda tinha esperança de ver esse pessoal jogado na lata de lixo da história. Não deu. Esqueci que também votam os farialimers, os empresários do agronegócio, os coronéis com expertise no voto de cabresto, os grileiros e os garimpeiros, os CACs, os milicianos, os moralistas de plantão e os ressentidos de classe média.

Fechei os olhos sem querer para a divisão bicentenária de nossa sociedade em dois Brasis irreconciliáveis: o Brasil das elites urbanas do Sul e do Sudeste e o Brasil dos desassistidos dos rincões miseráveis do país. Porém, acima e além da incompreensão com a aposta na perpetuação do fascismo à brasileira, meu maior desalento se deu com a escolha dos integrantes do Legislativo.

Lembrei que, há mais de duas décadas, o Senado solicitou uma pesquisa de imagem ao instituto para o qual eu trabalhava. Montamos uma gigantesca equipe de pesquisadores quantitativos e qualitativos, mantivemos reuniões exaustivas sobre a melhor forma de abordar o eleitorado sem permitir que simpatias e antipatias para com senadores isolados interferissem na análise do coletivo, gastamos horas e horas no treinamento do pessoal de campo. Já na primeira fase do projeto-piloto colhemos um resultado estarrecedor: pouquíssimos brasileiros sabiam dizer para que serve um senador da República e que importância ele tem como contrapeso ao Executivo. Simplesmente não dava para avançar no entendimento das características ideais para ocupar um cargo federal ou para a melhoria da imagem do Senado. Tiro n’água total, o restante do projeto acabou sendo abortado.

A pergunta, então, é como acontece a escolha dos representantes do Congresso. Intimidados com a profusão de nomes e números, desinformados sobre o histórico político dos candidatos e distraídos pela disputa mais tensa para o cargo presidencial, como apontar os que poderiam contribuir de forma mais efetiva para um futuro promissor, livre do toma lá, dá cá? Se não se sabe a quais tarefas eles vão se dedicar, só resta então aos eleitores mais apartados do jogo identificar os nomes já conhecidos – e mais polêmicos – do cenário político atual, que não por coincidência também se destacaram no apoio explícito às teses amalucadas do presidente de plantão. Antiabortistas, misóginos, portadores de virilidade tóxica, racistas, homotransfóbicos e companhia bela se unem então para exorcizar o “perigo comunista” e reafirmar os valores de defesa da família, da vida, da propriedade, da pátria e de Deus. Ganha uma passagem só de ida para a Ucrânia quem conseguir vislumbrar uma forma eficaz de reverter esse quadro dantesco e peitar os invasores russos.

Tristemente, cabe perguntar aos que, como eu, não conseguem atinar com uma explicação ou justificativa minimamente aceitável: ATÉ QUANDO?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Os mantras da política brasileira

Crédito: MoisesCartuns.com.br

Myrthes Suplicy Vieira (*)


De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Fernando Pessoa


Em psicologia clínica, é comum o alerta aos jovens terapeutas: é justamente nos momentos de maior vulnerabilidade e dor que o paciente menos tem condições emocionais de pedir e de aceitar ajuda. A pessoa está tão empenhada em provar que não há solução viável para o seu caso que rejeita sistematicamente toda forma de aconselhamento e descarta todas as medidas profiláticas sugeridas. Pior, entra numa desesperada batalha inconsciente para desqualificar a expertise, o profissionalismo, a sensibilidade ou a isenção de todos que lhe estendem as mãos.

“Você não entende… Se eu prestar queixa contra meu marido e ele for preso, vai querer se vingar nos meus filhos e na minha família. E eu não saberia viver carregando essa culpa. Além disso, eu não teria como sobreviver financeiramente sem a ajuda dele. Você não sabe como é duro ver seus filhos passarem fome… O que ninguém quer entender é que eu não posso viver o resto da vida em um abrigo, nem depender da decisão de um juiz para evitar que ele saia da cadeia e aí, sim, queira se vingar de todos. Preciso trabalhar e não tenho estudo suficiente, nem onde deixar as crianças… Melhor deixar pra lá, eu me viro sozinha, sei me defender quando é preciso. O problema é que ele está passando por um período difícil sem trabalho e acaba bebendo muito, mas tenho certeza que ele não teria coragem de me matar. Ele só faz essas ameaças porque tem medo de me perder…”

Tristemente, não é diferente na vida de uma nação. No Brasil, além do desastre humanitário causado pela pandemia e pela crise econômica que se sucedeu, estamos tendo de nos debater com uma aliança inédita entre o fundamentalismo pentecostal e o militarismo golpista. E, forçoso é admitir, nenhuma dessas duas forças conhece limites para a manipulação de mentes e de vontades. Seus códigos disciplinares não são somente vendidos a granel, mas agressivamente impostos em bloco a quem não partilha dos mesmos valores como uma questão de patriotismo. A luta deixa, então, de ser política e se configura como a batalha decisiva do bem contra o mal. Saem de cena os direitos e deveres consolidados na Constituição de 1988 e reassume triunfante seu lugar no palco o Código de Hamurabi, com sua Lei de Talião a tiracolo.

Assim, o eleitorado brasileiro já não tem a quem recorrer para pedir ajuda, e não quer – ou não pode – ser ajudado no esclarecimento dos fatores críticos que estão em jogo, seja porque desacredita da análise especializada dos cientistas políticos e juristas, da imparcialidade dos órgãos de imprensa e da credibilidade individual dos jornalistas ou da isenção dos ministros do Supremo. Acossados pela fome, pela total falta de perspectivas de um futuro melhor para todos, pela brutal insegurança pública e pelo ódio que contamina todos os setores da experiência cotidiana, vivem todos enclausurados em seus guetos ideológicos, acusando-se mutuamente de serem gado alienado e recusando-se a serem dissuadidos de suas respectivas intenções de voto.

Num estado de ânimo como esse, é fácil para o eleitor embarcar na ilusão de que “é tudo farinha do mesmo saco”. Depois de incontáveis tentativas frustradas de eleger um salvador da pátria, um pai amoroso que os resgate de seu desalento e impotência infantil, como acreditar que pode ser diferente agora? É quase inescapável a tendência de adotar uma postura cínica de equivalência moral entre os candidatos líderes nas pesquisas – principalmente quando se considera que o eleitor brasileiro vota em pessoas e não em ideias ou projetos de governo.

No que diz respeito à escolha dos melhores candidatos para o Legislativo, a situação é ainda mais aterradora. Sem se darem conta de que eles teriam um papel fundamental para reequilibrar e limitar os desmandos do futuro Executivo, desinformados pelo horário gratuito de propaganda eleitoral, herança trágica da ditadura militar, o que resta para a maioria é adotar como principal método de escolha aquele que se usava descuidadamente nas brincadeiras infantis: “Minha mãe mandou bater neste daqui, mas como sou teimoso bato neste daqui”.

Ainda não entendemos que a irracionalidade não tem como ser combatida com argumentos verbais lógicos. É o profundo investimento emocional do eleitor e sua identificação com figuras polêmicas de poder que precisariam ser confrontados. E quem ousaria se oferecer para essa tarefa? O analfabetismo político de boa parte da população, a abissal desigualdade que impede a visualização de uma solução única para todos os estratos sociais, a falta de uma identidade ideológica clara dos partidos, a crise da democracia representativa e o presidencialismo de coalizão reforçam-se mutuamente para afastar de vez a possibilidade de mudança dos ventos.

Há ainda outra tragédia à espreita. Hoje em dia ninguém mais se apresenta ao eleitorado como capaz de elaborar propostas criativas para a solução dos problemas sociais que nos afligem ou por ter maior capacidade de trânsito e negociação com forças políticas opostas. Agora tudo se resume a comprovar que você desfruta de fama e prestígio nas redes sociais – e que, portanto, suas chances de angariar o número de votos necessários para se eleger são maiores, quase certas. E dá-lhe influencer, tiktoker, subcelebridades, gente ligada ao entretenimento de massa. Não importa seu histórico educacional, profissional ou sua visão de mundo, nem que pesem sobre cada um acusações graves de descomprometimento com os valores iluministas e democráticos.

Dessa forma, a intenção de voto acaba ficando mesmo ao sabor do resultado das pesquisas eleitorais: com medo de “perder o voto” apostando num candidato lúcido mas sem reais chances de chegar lá, qualquer um que prometa pulso firme para enfrentar os poderosos de plantão, ser diferente de ‘tudo isso que aí está’ ou acabar com a corrupção e a impunidade pode atrair o interesse e a confiança maciça da população.

Ignorar que seu voto representa também a permissão para que seu país continue priorizando a economia em detrimento da qualidade de vida e bem-estar da população, que o meio ambiente sofra as consequências trágicas de uma visão deturpada de progresso, que o acesso a uma educação de qualidade continue apenas nas mãos de uma elite endinheirada, que falte capacidade ao sistema de saúde para dar atendimento digno aos mais carentes, que se normalize o infernal acréscimo no número de moradores de rua, de famintos, de desempregados e de violência contra as minorias. Em última instância, que sua indiferença significa autorizar que a democracia agonize nas mãos de déspotas nada esclarecidos. E que, ao fazê-lo, você consente em arrastar seus compatriotas para um abismo ético sem volta apenas para não entrar em contato com sua própria dor, impotência e desesperança.

O que fazer, então? Não tenho as respostas, mas pressinto que a única forma de colocarmos fim a estes tempos de barbárie é acolher terapeuticamente as frustrações e o ressentimento que ainda desorientam os dois lados do espectro ideológico. Aceitar que escolha moral é para quem não tem fome, ser capaz de ouvir os argumentos ainda não-explicitados que forem surgindo à medida que formos nos desapegando da sensação de desamparo como quem realmente quer compreender, e não como quem apenas se prepara para contra-argumentar.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Lei Maria da Penha ou pistola?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Depende, senhor presidente. Se o “problema” em questão que presumivelmente poderia ser causado por essa tal “gente” que caminha em sua direção numa estrada deserta for uma ameaça de estupro e a mulher em questão for feia, o risco será mínimo para ela, segundo o senhor mesmo fez questão de ressaltar em outra ocasião.

Se for uma mulher bonita e conseguir sair viva da situação ilustrada, as duas ferramentas sugeridas mais do que provavelmente serão de pouca ou nenhuma valia. Antes de mais nada, é preciso dizer que elas são tão comparáveis em termos de eficácia para combater a violência contra a mulher quanto um nécessaire e uma jaca. A arma pode falhar, como aconteceu recentemente no atentado contra Cristina Kirchner. O indivíduo (ou os indivíduos, não restou claro) pode tomar a arma da mão da mulher, imobilizá-la e deixa-la ainda mais vulnerável, como o senhor mesmo contou que lhe aconteceu durante um assalto no passado. O tiro pode não atingir o potencial agressor ou só atingi-lo de raspão e deixa-lo ainda mais furioso e violento.

Já para “sacar” a lei Maria da Penha, seria preciso que a mulher vítima de uma tentativa de estupro, assalto ou assassinato se dirigisse a uma delegacia de polícia (ou a uma delegacia da mulher, caso houvesse uma na região), esperar o horário de abertura na manhã do dia seguinte e contar com a boa vontade do policial de plantão para registrar um boletim de ocorrência. Antes, porém, ela certamente teria de passar por um detalhado interrogatório, no qual lhe seria perguntado, dentre outras coisas: O que você fazia àquela hora numa estrada deserta? Como estava vestida? Havia bebido ou consumido drogas? Deu causa de alguma forma para o ataque ou o facilitou, seja não resistindo à aproximação do agressor e abrindo a porta do carro, seja sorrindo para ele e pedindo ajuda para trocar o pneu?

Para piorar, poderia acontecer de o delegado de plantão se recusar a registrar a ocorrência, alegando não ter havido nenhuma lesão física digna de nota, como aconteceu recentemente com uma senhora negra, esquálida e frágil, de 51 anos de idade, que teve seu pescoço (ou parte de cima das costas, como pretende o advogado de defesa) pisado por um brutamontes policial de mais de 80 quilos. Depois de recorrer a um advogado para ter seus direitos respeitados, essa mulher, no máximo, voltaria para casa com um papel na mão e esperaria sentada por meses ou anos até que o agressor (de quem ela desconhece a identidade, diga-se de passagem) a atacasse novamente ou fosse preso pela prática do mesmo ou de outros delitos. Se e quando isso acontecesse, a vítima poderia então entrar com um pedido de medida protetiva na justiça. Mesmo assim, se o agressor desrespeitasse a exigência de afastamento, só restaria a ela registrar um segundo boletim de ocorrência – e assim sucessivamente até a data de seu velório.

Outro dado relevante que precisaria ser levado em consideração para fazer uma escolha sensata e bem-informada do melhor jeito de reagir numa situação como a aventada diz respeito à sua suposição de que a “gente” que vem em sua direção “pode lhe causar problema”. Não ficou claro em sua douta exposição, senhor presidente, a partir de quais evidências essa impressão se concretizou: tratava-se de uma pessoal mal-encarada, segundo os critérios policiais? Talvez tivesse um olhar frio, vidrado, desses de quem consome drogas? A forma como estava vestido? Estava em atitude suspeita, atrás de um poste ou escondido embaixo de um viaduto? Portava algum objeto ameaçador nas mãos? São muitas as hipóteses e poucas sustentáveis a priori. Poderia ser, convenhamos, um simples transeunte ocasional, um morador da área, alguém voltando do trabalho e, quem sabe, até mesmo uma pessoa de boa vontade, querendo ajudar.

Digo isto porque já me aconteceu de ter o pneu estourado num cruzamento da Avenida Santo Amaro numa noite chuvosa, ter sido abordada por um cidadão – negro, veja só – que, sorridente, se aproximou da minha janela e se prontificou a me tirar daquela aflição, empurrando o carro e trocando o pneu em poucos minutos, sem nem mesmo esperar por gratificação. Tsc, tsc, tsc. Está claro que o senhor precisa conhecer melhor o “seu povo”, presidente, não apoiar suas convicções somente em seus fanáticos apoiadores mas também na gente simples e solidária que habita invisivelmente esta terra.

Além disso, capitão, não é nem preciso dizer que o [mau] hábito de atirar antes de perguntar, que está implícito na sua sugestão, deveria ser combatido e não incentivado. Esse é o traço mais distintivo da polícia militar brasileira desde sempre, usado com especial ênfase no período pós-ditadura. As manchetes sanguinolentas relativas aos constantes entreveros nos morros do Rio de Janeiro e na periferia de todas as demais capitais, com um número espantoso de vítimas colaterais, crianças e adolescentes desarmados, estão aí para quem quiser confirmar.

A defesa do excludente de ilicitude que tanto o anima está assentada exatamente nessa pressuposição de que há cidadãos de primeira categoria, honrados e cônscios de seu papel social, os militares e os PMs, e outros cidadãos de quinta categoria, os civis não pertencentes à elite branca heterossexual, que devem obediência irrestrita ao arbítrio das “otoridades” de plantão. Será que essa mentalidade já foi absorvida também pelos atuais detentores de posse e porte de armas, contaminando até mesmo aqueles que se dizem cristãos? Falando nisso: curiosamente, não lhe ocorreu sugerir que o melhor seria “entregar nas mãos de Deus” a solução do problema. Já que o senhor estava num templo evangélico, circundado exclusivamente por mulheres, seria de bom alvitre reforçar a tese de que o Altíssimo o ajudará a cuidar da segurança pública em um eventual segundo mandato seu, já que teria sido Ele a indicá-lo para o cargo presidencial ‘against all odds’.

Pensando em tudo isso, sinto dizer, senhor presidente, que, como de costume, seu pretenso argumento de apreço pela defesa da mulher foi miseravelmente infeliz. Ou melhor, como tudo que sai de sua boca, não passou de mais um ato falho para sua coleção de disparates. No seu inconsciente, onde pululam os vermes comedores de cérebro da “ideologia de gênero”, não deve haver espaço mesmo para indicar outras medidas civilizatórias, como melhor iluminação pública, serviço de assistência 24 horas nas estradas acessível online, carros de polícia circulando à noite por locais afastados do centro, etc. Acima de tudo, não lhe ocorreu a única medida realmente eficaz, já testada em diversos outros países com sucesso: a educação sexual nas escolas para meninos e meninas desde a primeira infância. Complementada preferencialmente por acesso universal a serviços de saúde mental para os transgressores.

Saiba que a única mensagem transparente – e auditável – que o restante da população recebeu foi a de que as mulheres brasileiras – sejam elas ou não portadoras de vaginas, como diz elegantemente seu filho 03 –, não podem se sentir seguras em lugar nenhum deste país, nem dentro nem fora de casa.

Segure suas cabras que meu bode vai sair para pastar…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A reação das minhas cachorras ao debate

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Confesso que me surpreendi com a apatia com que minhas cachorras assistiram ao debate entre presidenciáveis do domingo passado. Eu estava uma pilha de nervos desde a hora em que acordei, aguardando ansiosamente o início do que prometia ser uma sanguinolenta troca de acusações entre os candidatos, ao invés de focarem em seus respectivos programas de governo.

Temia que, nos momentos mais tensos, dois ou mais competidores acabassem perdendo as estribeiras e se engalfinhassem fisicamente, ou ainda que o estúdio fosse invadido por uma horda de apoiadores armados até os dentes para exigir a cabeça dos adversários. Já me preparava psicologicamente para contabilizar um ou dois mortos e vários feridos graves, inclusive entre os âncoras e os jornalistas convidados. Só fiquei um pouco mais tranquila quando soube que não haveria a presença de plateia e que somente os assessores, marqueteiros e políticos aliados seriam autorizados a ocupar uma sala atrás do estúdio. Mesmo assim, eu vigiava com angústia e preocupação a cada segundo a escalada de ofensas, golpes abaixo da cintura e ameaças mal disfarçadas.

Minhas cachorras, por sua vez, pareciam bem relaxadas: se aboletaram gostosamente no sofá em frente à televisão e fingiram prestar atenção aos confrontos do primeiro bloco, permanecendo em absoluto silêncio. No entanto, tão logo terminaram de jantar, logo na entrada do segundo bloco, não conseguiram disfarçar que estavam entediadas com tanto palavrório, tanta conversa mole para boi (também cachorro?) dormir, desconcentraram-se e se deixaram embalar pela monotonia dos discursos, logo caindo em sono profundo.

Sacudi-as no começo do terceiro bloco para questioná-las a respeito das razões para tanto desinteresse. Ainda sonolenta, a mais velha me lançou um olhar enviesado e respondeu: “Tá brincando? Pra um domingo à noite, com chuva e frio, tinha que ter alguma coisa mais empolgante para assistir. Até agora, só teve mais do mesmo. Qual é a novidade que está sendo trazida a público? Nadica de nada! Parece que todos acabaram de reinventar a roda e descobriram a solução definitiva para exterminar todos os males que assolam a população desde o descobrimento, em 1500. Por que ninguém tinha pensado em tudo isso antes?”.

Já a mais nova e ainda inexperiente nos empolados confrontos pátrios agitou-se por alguns minutos para reclamar quando o candidato Felipe D’Ávila fez referência desdenhosa ao complexo de vira-lata que caracteriza os brasileiros. Rosnou, um tanto indignada: “Dobra a língua para falar de nós, seu verme! Somos SRD, com muito orgulho! Isso significa que, assim como vocês, somos fruto de miscigenação e exigimos respeito por nossa condição. Somos mais resistentes a doenças, mais resilientes e mais safos para lidar com situações de penúria, além de mais valentes para encarar as inevitáveis batalhas com tantos pitbulls nas ruas”.

Tive de concordar. Parecia mesmo que todos os debatedores diziam ao apresentar suas propostas pseudograndiosas: “Pra quem é [povo brasileiro alienado], tá de bom tamanho”. Antes que elas voltassem a dormir, ainda tentei entender como elas avaliavam a repercussão do comportamento dos candidatos-líderes nas pesquisas sobre eventual mudança de intenção de voto. Para afastar o tédio, propus a elas um joguinho, perguntando: se os candidatos fossem bichos, como vocês enquadrariam o perfil psicológico de cada um? Tudo o que consegui reunir, entre muxoxos, foi o seguinte:

Bolsonaro, o escorpião e seus instintos irrefreáveis
Deve perder um bocado de votos entre as eleitoras ainda indecisas, até entre as evangélicas. Mesmo tomando extremo cuidado para não parecer exageradamente agressivo em suas colocações, acabou deixando implícito que, tão logo ele chegue à outra margem do rio, não resistirá ao impulso de dar uma ferroada mortal no cangote daqueles que o tiverem auxiliado na travessia – com provável exceção dos fardados. Se e quando, ainda em estado de choque, um dia a população confrontá-lo com sua promessa de respeitar os demais poderes, o estado democrático de direito e o resultado das eleições, ele responderá candidamente: “É da minha natureza, e vocês sabiam disso, tá ok?”

Lula, o bom cabrito
Também deve perder um bom percentual de votos entre os antibolsonaristas e bolsonaristas arrependidos pela aparente falta do tão estimado pulso firme. Esforçou-se o tempo todo para não berrar, sabedor que era de suas vulnerabilidades, mas acabou passando uma imagem envelhecida, de pouca força e ânimo para mudar o destino do rebanho. Apegou-se à imagem de valentia do passado, mas a falta de sangue nos olhos entregou seu cansaço. Perdeu-se de vez quando hesitou em assumir o compromisso de montar um ministério paritário, de homens e mulheres, quando tudo o que o mulherio ensandecido pelo desrespeito de Bolsonaro a Vera Magalhães esperava era que ele enterrasse seus chifres bem fundo no intestino misógino de seu principal adversário.

Ciro, o rato que incorporou o flautista de Hamelin
Deve ganhar mais alguns pontinhos nas pesquisas, mas para encostar nos mais bem votados seria preciso encarnar a credulidade de um doutor Pangloss. Apesar de extraordinariamente articulado intelectualmente, não consegue desfazer a imagem de velho coronel nordestino autoritário que se vê como único portador de todas as virtudes e não se cansa de vomitar todos os defeitos de seus concorrentes. Ele parece acreditar piamente que seu projeto de pacto nacional + plebiscito após 6 meses de mandato será suficiente para que 27 ratazanas que engordam às custas do erário dos estados, 513 ratos pequenos e 81 grandes que estraçalham o restante do tesouro público se rendam ao seu carisma e o sigam acriticamente até a beira do precipício. Se vão se jogar ou não, essa é outra estória. Aposta ainda que a população já terá condição efetiva de estimar o acerto de suas medidas econômicas após 180 dias de governo e votará em peso pela manutenção de seu “revolucionário” esquema de governança.

Simone, a galinha-mãe e professora
Deve ser a que mais vai ganhar votos do público nem-nem e dos que avaliam que “é tudo farinha do mesmo saco”. Embora corajosa, auto afirmativa e doce ao mesmo tempo, desculpou-se o tempo todo por não ter conseguido apoio incondicional e universal dos galos do seu partido e assumiu seu desconforto com o passado corrupto da maioria de seus aliados, o que pode pesar muito contra seu estilo “lírio no pântano”. De boas intenções o inferno está cheio parece ser seu lema de campanha.

E isso é tudo. Minhas cachorras se recusaram a elaborar o perfil dos demais candidatos, seja por falta de informações confiáveis quanto aos seus reais interesses na candidatura e na política, seja por lembrarem do passado bolsonarista de uma e o perfil agressivamente desestatizador de outro.

Para encerrar logo a conversa e poderem voltar a dormir, elas avaliaram em uníssono que faltou abordar durante todo o debate um fato indesmentível e preocupante, ao qual a imensa maioria do eleitorado finge não prestar maior importância: qualquer que seja o resultado das eleições, estamos condenados a sermos governados por um tchutchuca do Centrão, velho ou novo, mais ou menos jeitosinho com seus pares homens e sempre tigrão com as mulheres, especialmente as mais pobres e as mais críticas/incisivas. Quem ousaria discordar?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Sexo por obrigação

 

Myrthes Suplicy Vieira (*)

De todos os pronunciamentos delirantes a respeito da condição feminina, sua estrutura psíquica e interpretações quanto à sua disponibilidade para o sexo feitos ultimamente por integrantes da ala masculina ultraconservadora brasileira, o mais surpreendente e intrigante foi sem dúvida o registrado pela pena do digníssimo procurador de São Paulo, Anderson Gois dos Santos.

Num e-mail enviado a seus colegas da Procuradoria, ele propõe textualmente que “é de fundamental importância recuperar a ideia do débito conjugal no casamento”. E acrescentou, para perplexidade geral: “A esposa que não cumpre o débito conjugal deve ter uma boa explicação, sob pena de dissolução da união e perda de todos os benefícios patrimoniais”.

Fiquei tão impactada com o caráter medieval da proposta que fui pesquisar na Internet o que significa aos olhos da lei o débito conjugal e como esse conceito se insere na jurisprudência brasileira. Descobri que ele teve origem no Direito Canônico e foi absorvido no Código Civil de 1916. Depois que a constituição de 1988 introduziu a necessidade de observância do direito à dignidade de toda pessoa humana e a igualdade de direitos entre homens e mulheres no casamento, a tese perdeu amparo legal, embora hoje em dia ainda existam casos de pedidos de divórcio aceitos em tribunal por ter a mulher se recusado a fazer sexo com o marido.

Dado o furor condenatório com que juristas e colegas procuradores receberam a proposta, acusando seu autor de estar disfarçadamente defendendo a legalidade do estupro marital, ele achou por bem se antecipar e esmiuçar as ‘terríveis’ consequências sociais da não-aprovação de sua proposta: a recusa feminina em cumprir suas obrigações sexuais teria o potencial de levar a “traições desnecessárias” [não deixou claro se, no seu entender, haveria alguma forma de traição necessária], consumo de pornografia e acúmulo de pedidos de divórcio.

Arrogou-se ainda o direito de pontificar sobre questões fora de sua área de especialização, fazendo uma incursão amadora, típica de almanaque de farmácia do início do século 20, ao território da psicologia e da psiquiatria. Associou o feminismo a um “transtorno mental” ainda a ser catalogado num futuro CID [Classificação Internacional de Doenças], apontou as causas do distúrbio como “problemas com os pais na criação” e “muita mágoa no coração”. E foi além, descrevendo no mais misógino dos estilos a luta pelo empoderamento feminino como uma “tentativa de suprir profundos recalques e dissabores com o sexo masculino, gerado por suas próprias escolhas de parceiros conjugais”. Culpa da vítima, é claro.

Confesso que fiquei na dúvida se o foco de sua intervenção era efetivamente o de discutir os aspectos psicossociais pertinentes às obrigações conjugais ou se, além e acima dessas preocupações, pairava na mente dele a urgência de encontrar formas jurídicas seguras de proteger o patrimônio financeiro do homem casado, livrando-o da necessidade de dividi-lo com uma esposa não merecedora de tal ‘privilégio’.

Não pretendo ir a fundo na exploração das impropriedades científicas nas quais ele incorreu ao se manifestar sobre traumas psicológicos, dificuldades de identificação com o papel sexual e motivações aberrantes que comporiam em tese o perfil das mulheres feministas. São tantos e tão complexos os fatores envolvidos nessa questão que prefiro me abster, por puro cansaço e tédio antecipado. Deixo a cargo dos especialistas em psiquiatria a revelação de quais e quantos transtornos mentais estão na base da virilidade tóxica, essa sim uma doença passível de enquadramento num próximo CID.

Entretanto, reservo-me o direito de apontar a sobreposição ilógica de conceitos díspares que permeiam o raciocínio do douto procurador. Lídimo representante do pensamento binário, ao misturar num mesmo balaio a recusa a fazer sexo com o parceiro oficial e o comportamento feminista, ele deixa entrever que aposta que feminista é toda mulher que não gosta de homem. O que, convenhamos, deve ser fonte de muita angústia e ansiedade para ele.

No entanto, o que mais chamou minha atenção na proposta de revitalização da norma de “débito conjugal” foi a desconsideração – intencional ou acidental – da existência também da obrigação do marido em manter relações sexuais regulares com sua esposa. Passei horas me divertindo com a possibilidade de inversão do raciocínio, isto é, a eventualidade de uma mulher ingressar na justiça com uma queixa contra o esposo por ele ter falhado em cumprir suas obrigações sexuais no casamento e consequentemente pleitear que ele fosse destituído dos direitos à divisão do patrimônio do casal.

Em meio a piruetas mentais, acabei concebendo a seguinte cláusula contratual pré-matrimonial que poderia ser exigida pela mulher: “A parte masculina do presente contrato compromete-se a realizar o ato sexual com a parte feminina no mínimo 3 (três) vezes por semana, por todo o tempo que durar a convivência do casal, independentemente da presença de fatores limitantes à atividade, como idade, doenças físicas e mentais, abatimento com a situação financeira, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas psicoativas e outros elementos intervenientes ocasionais, com penetração obrigatória em cada coito e número indeterminado de tentativas, até que a parte feminina atinja o orgasmo ou se declare plenamente satisfeita. Se, para tanto, a parte masculina não corresponder às expectativas de desempenho da parte feminina, assim descumprindo a presente cláusula, sob qualquer tipo de alegação, estará ele sujeito à pena de dissolução unilateral do contrato conjugal e perda do direito à divisão dos bens patrimoniais auferidos pelo casal”.

Cheguei até a fantasiar uma cena de novela rural ilustrativa desse novo enquadramento jurídico: uma “coronela”, empresária de sucesso no ramo agropecuário, entra no quarto do casal e dirige-se ao marido, que está deitado, de pijama e cueca furada, fingindo dormir, com as seguintes palavras: “Levanta já daí, seu imprestável! Vai se lavar porque hoje eu vou te usar”. Ou ainda, num contexto mais urbano, uma cena em que a mulher informasse ao parceiro intimidado por não conseguir uma ereção: “Vamos logo que hoje eu estou sem tempo e sem paciência. Se você não der no couro, vou dar para o primeiro que passar pela minha porta”.

Voltando a falar sério, qualquer que seja o ângulo pelo qual a proposta do procurador seja examinada, fica claro que não se trata apenas de anacronismo obscurantista: é um total desconhecimento da fisiologia humana e do funcionamento psíquico. Como associar sexo a obrigação se estamos falando de uma pulsão animal natural e instintiva que tem como principal propósito o prazer e o alívio das tensões? Como garantir a necessária lubrificação na mulher e a ereção masculina se na cabeça dos parceiros há um imperativo categórico de desempenho imediato? Até mesmo entre animais inferiores na escala filogenética, se a fêmea da espécie não consente com a cópula, mesmo estando no cio, ela simplesmente não acontece. Não há nada que o macho possa fazer para dissuadi-la da recusa, a não ser estupra-la, é claro – mas, se isso acontecer, quase certamente ocorrerá em meio a muita luta, sangue e provável despedaçamento de corpos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

“Escolha moral é para quem não tem fome”

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Você concorda com essa afirmação? Pense um pouco: se, por um lado, ela explica por que o furto famélico encontra muitas vezes uma jurisprudência de tolerância e até de não-punição, por outro, pode servir de argumento para, por exemplo, justificar a reeleição de Bolsonaro, diante do pacote de bondades que ele acaba de implementar com o auxílio luxuoso do Centrão. Mesmo que os beneficiados estejam profundamente insatisfeitos com os atos de seu governo e condenem vigorosamente a defesa que ele faz da compra de armas em vez do feijão.

Antes de esclarecer quem foi que disse essa frase, proponho que você reflita sobre qual seria sua escolha caso estivesse na mesma situação das pessoas que se viram forçadas a abandonar seus princípios e valores morais para não ver sua família morrer de fome. Se você acha que está imune por ser uma “pessoa de bem”, incorruptível, que está acima das paixões humanas mais comezinhas, detentora de uma postura ética inabalável quaisquer que sejam as circunstâncias externas, eu o convido a pensar duas vezes. Responder com orgulho, dizendo que preferiria morrer de fome a se dobrar à tentação de roubar um pedaço de carne, um pacote de arroz, pão ou leite, revirar latas de lixo ou correr atrás de um caminhão para pegar ossos descartados, é se atribuir uma natureza essencialmente angelical – ou, pior, divina – mas que, em nenhuma hipótese, guarda relação com a frágil e imperfeita condição humana.

Absolutamente tudo já foi dito a respeito dos problemas cognitivos, disciplinares, diplomáticos e administrativos do ex-capitão. É chegada a hora de analisarmos com coragem o perfil de seus eleitores em potencial. Tradicionalmente, os eleitores do Nordeste e de outras áreas carentes da periferia do país foram acusados de serem os responsáveis pela manutenção de oligarquias perversas no poder, por aceitarem cair na armadilha do voto de cabresto, em troca de uma dentadura nova ou um par de alpargatas. Agora, num cenário desolador de pandemia, desemprego, redução de poder aquisitivo e desesperança entre os mais jovens, são os eleitores ‘nem-nem’ [que não querem a volta de Lula nem a reeleição de Bolsonaro] os mais propensos a mudar sua intenção de voto e cristãmente oferecer a outra face e dar uma segunda chance ao Anticristo em pessoa, imaginando que ele saberá finalmente orientar sua reeleição para o atendimento das demandas mais primárias do povo sofrido e contemplá-lo com novas benesses. Ao menos é isso o que indicam as mais recentes pesquisas eleitorais.

É preciso admitir: somos todos tão reféns da violência política e ideológica obscurantista de Bolsonaro quanto as mulheres vítimas de violência doméstica que decidem voltar para os braços de seus agressores alegando que “ruim com ele, pior sem ele”. E, parafraseando meu colega de profissão, Gasparetto, só se desilude quem se ilude.

Será a fome uma força-motriz superior à comoção pela morte de mais de 670 mil brasileiros e à indignação com o brutal retrocesso da democracia brasileira, além do descarado desmonte dos projetos de proteção ao meio ambiente e da educação de qualidade que poderiam garantir nosso futuro? Se você pensa que sim, lembre-se que a fome já ameaça a vida de 33 milhões de conterrâneos e coloca contra a parede 61 milhões que vivem em insegurança alimentar. Se essa turma toda resolver, de fato, abrir mão de uma escolha moral nas próximas eleições, estaremos definitivamente fritos. Por isso, antes de começar a atacar nas redes sociais esse “povinho alienado”, o gado bolsonarista, os evangélicos fundamentalistas, e reclamar pela enésima vez que “brasileiro não sabe votar”, reflita sobre os fatores estruturais que deram origem à nossa tenebrosa desigualdade social e a mantêm incólume até hoje. E pare de poupar os farialimers, os empresários ligados ao agronegócio e os economistas que colocam o equilíbrio fiscal acima do bem-estar e da qualidade de vida da população.

Identificar seu ‘lugar de fala’ na análise do quadro eleitoral pode ser uma providência necessária mas não suficiente. Há uma série de tarefas mais sérias e mais urgentes a realizar antes de outubro próximo. A primeira delas, me parece, é que você se desvie das polêmicas externas de ocasião e encare a frio de que forma você historicamente contribuiu com seu voto para perpetuar a eleição de pretensos salvadores da pátria de todas as colorações ideológicas.

Aprender a distinguir as consequências de votar em um nome forte o bastante para se opor “a tudo o que está aí” e da escolha consciente de um projeto de país talvez seja a tarefa mais difícil que o aguarda. Se a terceira via não lhe apetece porque você não quer “perder o voto”, pense que mais uma vez você está impedindo a renovação dos quadros políticos nacionais e empurrando todo mundo a fazer mais uma impossível “escolha de Sofia”. Embora a jornada de mapeamento honesto de suas próprias motivações seja longa e dolorosa, é fundamental que você entenda que eleição presidencial não é o mesmo que votar em um ‘reality-show’ para decidir quem fica e quem sai. Achar que democracia é apenas depositar seu voto na urna, lavar as mãos e voltar para casa à espera do milagre da multiplicação dos pães é a forma mais segura de fomentar o desastre.

Portanto, se você não passa fome (ainda), a única escolha legitima que tem a fazer é se juntar às forças de oposição para promover a conscientização – de famintos e não-famintos – a respeito do que é cidadania responsável. Deixar-se levar por falácias do tipo “É tudo farinha do mesmo saco” não ajuda a fazer avançar nossa carcomida República.

Ah, já ia me esquecendo de contar que não foi nenhum economista, sociólogo, psicólogo ou filósofo que disse a frase acima. Ela apareceu de surpresa, no meio do capítulo final de uma novela, na boca do protagonista, um indivíduo que hesitava o tempo todo entre assumir de vez sua vilania ou fazer acreditar que era apenas vítima impotente de um destino cruel.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Do golpismo ao banditismo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Os mais jovens podem não saber, mas presidente golpista não é novidade por estas bandas. Basta folhear um livro de história para descobrir uma penca deles. Aliás, ao fazê-lo, a mais ingênua das criaturas vai entender que nossa república começou precisamente com um golpe.

O que há de novo no pedaço é um presidente que escala do golpismo de ocasião para o banditismo mais deslavado e explícito. Questão de caráter, não de contingências políticas ou ideológicas. Quem não o conhecia em 2018 e o comprou por medo de que o Brasil avançasse para um patamar um pouco menos desigual que o diga. Quem já o conhecia e, mesmo assim, apostou que ele se corrigiria e respeitaria ao menos as instituições republicanas e o decoro do cargo agora está de pires na mão, implorando pela clemência de seus pares para retomar algum grau mínimo de cidadania.

Em 5 de fevereiro de 2019, poucos dias após Bolsonaro completar um mês de governo, escrevi um texto alertando para os tempos sombrios que nos aguardavam sob sua batuta. Nele estavam registrados, além dos óbvios defeitos de caráter do recém-eleito, os projetos macabros que alimentaram a escolha de ministros, assessores, líderes do governo e presidentes de estatais. Prevendo que a explosiva mistura de religiosos fundamentalistas e militares subservientes ocupando cargos técnicos nunca poderia dar certo. Num dos trechos fiz questão de escrever que “por medo dos bandidos, a maioria concordou em pagar a milicianos para cuidar de sua proteção pessoal”. Vidência, visionarismo, mediunidade? Não, simples experiência de vida, atrelada a algum conhecimento de psicologia clínica – ainda que a psicologia, como ciência, não lide com questões de caráter.

Como dizia um espírita famoso e colega de profissão (Gasparetto), só se desilude quem se ilude. Quem passou a vida tentando mudar as crenças e comportamentos de seus pais, companheiros, filhos, amigos ou chefes – e se frustrou redondamente – sabe bem do que estou falando. As pessoas apaixonadas costumam acreditar que o outro possa mudar “por amor” a elas. Ledo engano. Se isso já não vale para as relações pessoais, imagine então o que pode ser esperado nesse ninho de serpentes peçonhentas que é a política brasileira.

O desrespeito às leis e às instituições é marco simbólico de toda a carreira pública de Jair Bolsonaro. Inútil elencar os escabrosos atos tresloucados do ex-capitão, cada um pode localizar algum malfeito mais a seu gosto. Mas ainda vale a pergunta: Como acreditar que um indivíduo incapaz de separar o que é público do que é privado poderia da noite para o dia se transformar em estadista respeitável internacionalmente? Ingenuidade tem limites, ora bolas.

Mais além da obsessão por transgredir, no entanto, está o cinismo covarde, a hipocrisia, a insensibilidade e a desfaçatez premeditada dessa criatura. Essa talvez seja a verdadeira e única novidade na presidência em todos os tempos. Antigamente, os políticos pegos com a boca na botija ainda se davam ao trabalho de fazer pronunciamentos indignados, repletos de linguagem empolada e termos incomuns da norma culta, destinados a convencer os mais crédulos de que eram seres impolutos, exemplos de probidade administrativa e simples vítimas de “perseguição política”. Hoje em dia, se já não bastasse a linguagem chula típica de botequim de beira de estrada e de prostíbulo com que o atual mandatário se dirige à nação, temos de lidar com o contínuo arremesso de responsabilidades à distância e de nos haver com bravatas inconsequentes, mentiras e desmentidos, seguidas por novas mentiras e novos desmentidos.

Não bastasse o golpismo explicitado nas manifestações do 7 de setembro passado e rapidamente minimizado como infeliz resultado do “calor do momento”, o Anticristo tupiniquim agora anuncia destemido a repetição da façanha para este ano. Quer mostrar de forma cabal “de que lado o povo está”. Fiquei pensativa: lembrei do apelo do “não me deixem sozinho” de Fernando Collor, que deu no que deu. Mas, ainda perplexa, me indago: e se as ruas e praças das capitais se encherem com multidões de devotos violentos repetindo a plenos pulmões “eu autorizo”, como reagirão as oposições e o Judiciário? Haverá guerra civil, cancelamento das eleições ou a pressão interna e internacional se encarregará de botar freio no ânimo demolidor do déspota?

Não fosse suficiente a sustentação indisfarçada de alguns militares de alto coturno para a aventura golpista, ele agora decide fechar com chave de ouro sua carreira de banditismo profissional com um inédito crime de lesa-pátria: ir buscar o apoio do presidente dos Estados Unidos para tentar impedir a ascensão de seu adversário. Aparentemente, continua apostando no cansaço e no esgarçamento das forças democráticas. Resta saber se vamos ser capazes de ressuscitar os caras-pintadas, pegar em armas mais uma vez para defender a pátria dos seus algozes ou se Deus, brasileiramente, vai dar um jeitinho de demonstrar que ele não é nem imorrível nem imbrochável.

É, pois, em nome de Marielle, de Bruno Silveira e Dom Phillips, de tantos jornalistas atacados grosseiramente, das crianças e jovens pretos da periferia mortos por violência policial, dos mortos pela pandemia e dos que estão perto de morrer pela fome que eu pergunto: como você vai justificar – não só para terceiros, mas principalmente, para sua própria consciência – sua intenção de votar nele outra vez? Ou vai continuar achando que o tal bicho-papão do “comunismo” é um mal maior a ser enfrentado?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

E eu com isso?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Quando a polícia carioca, mesmo contra a determinação do STF, intensificou as operações contra o tráfico de drogas nas favelas que resultaram em dezenas de mortes de moradores e pessoas que não tinham nada com isso, fiquei chocada com a violência desmedida mas não protestei porque não moro no Rio de Janeiro nem em comunidades de morro.

Quando a polícia paulista introduziu desafiadoramente blindados e atiradores de elite nas recentes incursões na Cracolândia, fiquei aterrorizada com a possibilidade concreta de reação armada dos traficantes e consequente morte indiscriminada de passantes e moradores, mas segui em frente cuidando dos meus afazeres porque não sou viciada, nem tenho parentes e amigos nessa condição, e também não moro nas adjacências.

Quando a polícia rodoviária federal de Sergipe jogou gás de pimenta e gás lacrimogêneo dentro de uma viatura matando um esquizofrênico negro cujo único deslize era estar pilotando uma moto sem capacete, fiquei indignada com a inadmissível barbárie, mas acabei me distraindo com a necessidade de cuidar da minha própria sobrevivência: afinal, os preços dos alimentos estão pela hora da morte, os planos de saúde já são impagáveis e ninguém consegue encontrar estabilidade financeira, nem empregos mais bem remunerados.

Quando chuvas torrenciais ocasionaram centenas de mortes em diversos estados brasileiros, fiquei, é claro, entristecida diante de tanta dor e sofrimento, mas lembrei que isso é consequência inevitável do aquecimento do planeta – e que, portanto, resta muito pouco para nossas autoridades fazerem para evitar a repetição dessas tragédias. Além disso, não moro em área de risco e respeito o meio ambiente, fazendo coleta seletiva.

Quando bandidos disfarçados de entregadores de moto passaram a assaltar e, por vezes, matar pedestres desavisados para roubar seus celulares, comecei a me sentir um tanto insegura, mas logo espantei as sombras porque não uso celular em público e nunca ando sozinha à noite. É bem verdade que tenho irmãos, sobrinhos e amigos que se expõem a esse risco, mas sei que eles estão um pouco mais protegidos por não circularem em bairros de periferia e morarem/trabalharem em áreas onde há maior presença de forças de segurança.

Quando o número de casos de violência doméstica, feminicídio e pedofilia começou a crescer em função do confinamento na pandemia, roguei a Deus que ela terminasse o mais rápido possível e que nossas autoridades encontrassem algum jeito de serem mais efetivas no combate a esses males; mas não me incomodei tanto, uma vez que moro sozinha e não tenho filhos.

Em suma, sei e sinto que involuímos como sociedade, que a realidade brasileira adquiriu tons surreais e macabros e que não há perspectivas concretas de construirmos um futuro promissor para nossa pátria. No entanto, mesmo perplexa com tantas catástrofes, permaneço fiel a meus princípios democráticos: sou uma cidadã de bem, cumpridora dos meus deveres sociais, pago meus impostos regularmente, sou instruída, bem-informada politicamente, temente a Deus e não me meto na vida das pessoas. Se ao menos meus compatriotas entendessem que a cada ação corresponde uma reação, as coisas seriam muito mais fáceis de administrar, tenho certeza.

Sou a favor das liberdades individuais: cada um que cuide do seu próprio nariz e evite como puder colocar-se em situações de perigo e confronto social, racial, religioso, político e de classe.

E você?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A régua

Myrthes Suplicy Vieira (*)

 


“O homem é a medida de todas as coisas”

Protágoras


 

Bolsonaro ouviu o canto do galo do poder absolutista mas até hoje não descobriu de onde ele vem, nem que tipo de vocalização lhe seria necessária para reproduzi-lo com sucesso por aqui. Escutou o canto da sereia mas, acreditando que não passava de singela homenagem de seus seguidores fardados, desatou-se do mastro e jogou-se atabalhoadamente na água.

 

Freud e Paulo Freire
Tivesse algum dia se dado ao trabalho de esmiuçar o pensamento desse e de outros filósofos da antiguidade, saberia que tudo é relativo, inclusive e principalmente sua autoridade. Imediatista, megalomaníaco, voluntarista e incapaz de pensamento crítico, ele confunde alhos com bugalhos e costuma tomar a parte pelo todo – provavelmente entenderia a palavra homem como simples indicador de gênero. Acreditando ser ele próprio medida de tudo à sua volta, julga que o Brasil e o mundo deveriam se curvar à sua paralela noção de realidade, aos seus princípios morais (ou falta deles), às suas vontades e ambições.

Tivesse lido Freud alguma vez, saberia que seu psiquismo está fixado na fase de onipotência típica de Sua Majestade, o Bebê. Entenderia que nessa etapa primitiva do desenvolvimento psíquico não existe mundo fora dele e a mãe (pátria) é apenas um seio que jorra leite sempre que requisitado. Tudo leva a crer que, por circunstâncias familiares adversas (mãe omissa e pai castrador), Bolsonaro jamais superou a fase do narcisismo infantil e regride continuamente à ilusão de poder inquestionável sempre que se sente ameaçado por alguma autoridade externa.

Tivesse ido além do título do livro de Paulo Freire, compreenderia que “se a educação não é libertária, o sonho do oprimido é se tornar opressor”. Se educar é frustrar, como postulam os especialistas, ele nunca se deixou educar para a cidadania. Sua formação militar o ajudou a radicalizar a noção de que toda obediência tem de ser necessariamente cega, acrítica: afinal, soldados não são feitos para pensar. No entanto, num arroubo juvenil e ainda apostando em sua superior autoridade moral, achou um dia que poderia subverter o dogma supremo da hierarquia militar. A humilhação máxima que sofreu ao ser expulso do exército por transgressão marcou sua personalidade para todo o sempre.

 

A ferida narcísica
A profunda ferida narcísica que se abriu em seu peito e o ressentimento acumulado desde então tornaram-se a marca registrada de sua atuação no mundo político e transformaram o caráter de virilidade tóxica – compensatória de sua impotência – em marco distintivo do bolsonarismo. Dando sequência ao seu complexo de Édipo embutido e jamais resolvido, Bolsonaro e bolsonaristas continuam tentando a todo custo matar o Pai Supremo, simbolicamente representado pelo Judiciário e encarnado na figura de Alexandre de Moraes, antes que sejam eles próprios castrados.

Desde que assumiu o poder em 2019, ele se comporta literalmente como se tivesse comprado a fazenda Brasil de porteira fechada. Dono de todas as consciências, ele não se cansa de instituir como regra que a ninguém é dado enxergar o mundo com outras cores ou rebelar-se contra seus éditos, uma vez que “autorizado” por seu povo e seu exército.

 

O STF e a Constituição
Professor de Deus, ele vem dando aulas diárias de constitucionalidade aos ministros do Supremo. Exibe em tom ameaçador seu douto saber jurídico, abordando temas de alta relevância para a democracia e o estado de direito, afetos principalmente ao conceito de liberdade de expressão, mas se aventurando também em questões secundárias, como a demarcação e exploração de terras indígenas, os limites de ação da Petrobrás na determinação de preços e as exigências legais imprescindíveis para a realização de eleições limpas e auditáveis.

Pontifica livremente sobre critérios de inocência e culpabilidade de parlamentares e membros do seu governo, sobre liberdade de imprensa, sobre equilíbrio e autonomia dos três Poderes da República, sobre o “interesse público” da não-adoção de medidas que beneficiariam minorias e sobre tudo o que causa “legítima comoção” na população brasileira, como se ela estivesse contida como um todo no seu grupinho de aliados e apoiadores.

 

Meu reino, meu gozo
Reinar sozinho, sem se sentir constrangido pelos tais pesos e contrapesos democráticos, seria sua única possibilidade de gozo orgástico – e ele sabe que nunca o poderá atingir graciosamente. Para chegar lá, seria preciso ter capacidade de entrega, abrir mão do desejo de ser o condutor e deixar-se ser conduzido no balé amoroso, o que lhe é impensável. Se não vai por bem, deve raciocinar, então é legítimo que se faça pelo estupro das instituições democráticas.

Mas não lhe basta o poder secular. Precisa também fazer seus apóstolos acreditarem que ele possui traços divinos de liderança carismática: a obsessão pela verdade que liberta, o pendor pastoral (“Eu sou, realmente, a Constituição”), acreditar-se ungido pelo próprio Deus para conduzir os destinos da nação.

 

Cloroquina e ivermectina
Como iluminado defensor das liberdades individuais, transgredir é com ele mesmo. Quanto mais normas legais forem quebradas em sua gestão, mais sente seu poder fortalecido e reforçada a crença de que ele é a única régua admissível para medir acertos e erros na condução dos negócios públicos – como transformar reserva natural em polo turístico, defender o trabalho infantil, defender a tortura, defender o excludente de ilicitude para policiais e militares, armar a população civil ou eliminar os radares de trânsito.

Na sua visão, é mera questão de tempo para que a OMS declare oficialmente que as vacinas são, de fato, experimentais e que foi um erro usá-las para substituir a cloroquina e a ivermectina, já que, além de custarem muito caro, podem ter efeitos colaterais inaceitáveis, como causar Aids em adolescentes ou miocardite em crianças, ou ainda conter chips para transformar pessoas em robôs. Ou para que o Supremo declare que, “dentro das quatro linhas da Constituição”, só ele teria o direito de decretar confinamento na pandemia, e interdite governadores e prefeitos que não seguissem a orientação federal. Sociólogos, filósofos e historiadores também se renderão um dia ao fato de que o nazismo foi um movimento de esquerda e que é possível perdoar o Holocausto mas não esquecê-lo, uma vez que “quem esquece seu passado não tem futuro”.

 

O psiquiatra aprendiz
Sua mais recente – e estupefaciente – incursão foi no universo da psiquiatria. Demonstrando sua expertise na área de psicopatologia aplicada à política, alertou para os eleitores ainda indecisos: só um “imbecil ou psicopata” defende a volta do AI-5.

Campeão mundial de atos falhos, resta saber se ele mais uma vez se autorrotulou sem querer (“O chefe do executivo mente”) ou se a crítica velada ao comportamento padrão de seus apoiadores mais exaltados foi só uma maneira de recriminá-los por vazarem antes da hora a intenção de golpe caso fracasse nas urnas. Ou talvez ainda ele tenha imaginado que, se vencedoras, as hostes de esquerda vão tentar instituir a ditadura do proletariado e, assim, roubar dele a bandeira do fechamento do Congresso e do STF.

Vale conferir com o psiquiatra-chefe de plantão após a abertura das urnas.

 

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.