Olhos para não ver

by M. C. Escher (1898-1972), artista holandês

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Certa vez tive um sonho muito estranho e simbólico, que minha terapeuta chegou a definir como “esquizofrênico”. Ele foi assunto de muitas sessões e passou por várias interpretações que nunca me satisfizeram. O desconforto que senti então me acompanha até os dias de hoje.

Eu estava diante de um muro muito alto, com um grande pórtico central, onde se podia ler a inscrição “Escola de Não Ver”. Curiosa, resolvi escalar o muro para tentar descobrir que tipo de aprendizagem se desenrolava lá dentro. Encarapitada no alto do pórtico, pude ver que se tratava de um enorme pátio de palácio chinês, parecido com o do filme O Último Imperador. Ocupando boa parte do espaço estavam perfilados vários batalhões animais, separados por espécie, em treinamento. Havia um batalhão de galinhas, outro de cavalos, e assim por diante.

Ao comando de início do treinamento, cada batalhão se envolvia na tarefa de destruir partes do corpo de seus colegas de espécie. Estranhamente, não havia fúria no ar, apenas o procedimento burocrático, metódico e persistente de garantir a destruição macabra dos restos de iguais. As galinhas bicavam as partes do corpo de outras galinhas. Os cavalos pisoteavam as de outros cavalos. Eu acompanhava estupefata os movimentos de cada batalhão sem conseguir atinar com o propósito daquilo tudo. Se já estavam mortos e esquartejados, para que se dar ao trabalho de estraçalhar o que restou deles? Não fazia sentido.

De repente, me dei conta de que não havia ali um batalhão humano. Por que eles estavam ausentes se a destruição insana de indivíduos da mesma espécie é característica dos animais ditos racionais? Nunca soube de instinto de aniquilação dos corpos de semelhantes entre os animais de espécies filogeneticamente inferiores, mas estava farta de testemunhar esses atos de barbárie entre seres humanos. A coisa fazia menos sentido ainda. Fosse como fosse, a proposta da Escola de Não Ver parecia estar sendo efetivamente cumprida.

Ao fundo do pátio, era possível ainda ver escadas que produziam a ilusão de ótica de movimento ao mesmo tempo ascendente e descendente, como as ilustradas pelo artista gráfico Escher. Ou seja, elas não davam em lugar nenhum, voltava-se sempre ao ponto de partida. Era impossível sair do pátio e escapar da sorte daqueles batalhões.

A coisa toda só começou a fazer sentido quando, muitos anos mais tarde, me deparei com uma frase do próprio Escher pouco antes de morrer: “Deus não pode existir sem o mal e, desde que se aceite a ideia da existência de Deus, tem-se de aceitar também a do mal. É uma questão de equilíbrio. Essa dualidade é minha vida”.

O tema da presença simultânea do bem e do mal na estrutura psíquica humana também sempre me instigou. Da psicanálise à antroposofia, uma constatação: não queremos ver nosso lado sombrio, nos recusamos a entrar em contato com nossas pulsões de morte, com o desejo de extermínio do outro. Achamos mais fácil dividir a humanidade entre pessoas de bem e do mal. E o que isso tem a ver com a visão? Vou tentar explicar.

Dos pelos menos 5 sentidos que herdamos ao nascer – digo ‘pelo menos’ porque já há várias teorias científicas propondo a existência de cerca de 9 sentidos na espécie humana – a visão desde logo adquire um caráter crucial, tão importante para nossa interação bem-sucedida com a sociedade como o faro para os animais. É através dela que nos conectamos com a realidade exterior desde os primeiros minutos de nossa existência. Por razões ainda não muito bem explicadas, ao longo da vida a visão vai ganhando um caráter autoritário, quase ditatorial, podendo minimizar ou até mesmo eliminar por completo as percepções oriundas de outros órgãos dos sentidos. Se uma visão lhe agrada, você pode deixar em segundo plano o cheiro, o gosto, o tato e o som que a acompanham e que podem eventualmente lhe desagradar.

Na faculdade, fazíamos uma experiência para demonstrar como isso funciona: apresentava-se a uma pessoa dois objetos de madeira, um cubo grande (mas oco) e uma bola muito pequena (mas sólida), e, depois de colocados um em cada uma de suas mãos, pedia-se que ela estimasse qual dos dois era o mais pesado. A resposta unânime era a de que o cubo era o mais pesado. Pedíamos então que a pessoa fechasse os olhos e repetíamos a avaliação sensorial. A resposta que se seguia era sempre a de que a bola era mais pesada. Ao abrir os olhos novamente, as pessoas costumavam se surpreender com a incompreensível disparidade de suas avaliações.

Outro dado que indica o absolutismo da visão é o de que ela desfruta de credibilidade instantânea, ao contrário do que tende a acontecer com outros sentidos. A linguagem cotidiana expressa isso de maneira exemplar: “Ninguém me contou, eu vi com meus próprios olhos”. Nessa equação, raras vezes entram em discussão os fenômenos de ilusão de ótica ou de distorções provocadas pelo ângulo de visão. Quando, no entanto, a informação vem pelo ouvido, pelo nariz, pelo paladar ou pelo tato, ainda há espaço para dúvida: posso não ter escutado direito, posso ter sido traída pelas circunstâncias ou por experiências anteriores.

Um enorme fator complicador dessa tendência no século 21 é que a tecnologia se concentrou quase exclusivamente no desenvolvimento de novas telas, reforçando dessa forma o caráter impositivo da visão. O aparecimento de aparelhos de realidade aumentada serviu para colocar ainda mais fogo num ambiente já inflamado. Técnicas avançadas de manipulação de imagens ampliaram absurdamente o poder da persuasão visual.

Com o advento da pandemia de covid, a imersão desenfreada no mundo virtual das imagens parece ter levado as pessoas a um estado paroxístico de insensibilidade – e de desumanização -, talvez em função do desuso de outras fontes sensoriais de experiência. Se você não pode sentir o calor do toque das mãos ou do corpo de outras pessoas num abraço, não consegue sentir o cheiro do sangue quando o outro é esfaqueado ou baleado, nem ouvir seus gritos de horror, tudo se transforma numa experiência inconsequente, característica dos jogos eletrônicos.

A coisa é tão grave que cheguei a formular para mim mesma o conceito de ‘nova forma de cisão esquizofrênica’ para explicar o fenômeno. Já não conseguimos distinguir a realidade ‘real’ da realidade virtual. Somos induzidos a experimentar novas situações pelo simples prazer da experiência, por mais extremas que elas sejam. O problema é que as imagens não têm substância nem ética incorporada. Cabe a cada um atrelar significados a elas e entender como as consequências se encaixam na sua escala pessoal de valores.

Piorando ainda mais esse estado de coisas, sempre foi muito difícil para a maioria apoiar-se naquilo que os espiritualistas chamam de “olhos da alma” para ampliar as oportunidades de autoconhecimento. A visão, assim como os demais órgãos dos sentidos humanos, é voltada para a exterocepção, isto é, para fora, mas é de pouca valia para visualizarmos o que temos por dentro. Olhar para dentro e encarar a frio quem somos de fato quando não há outros olhos por perto é algo que costuma causar pânico, dado o risco de destruição de nossas ilusões mais caras e de muitas de nossas crenças mais arraigadas.

Como diria Fernando Pessoa, “para que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?”

Avatares não olham para dentro, não é mesmo?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Sem chão embaixo dos pés

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Assistindo às cenas terríveis do resgate de pessoas mortas e de bebês e crianças ainda vivas soterradas no brutal terremoto que atingiu a Turquia e a Síria, fui forçada a reviver uma situação que só posso descrever como paranormal que aconteceu comigo há algumas décadas.

Eu era coordenadora do curso de inglês em uma grande empresa multinacional. Recentemente havia recebido várias reclamações a respeito de um dos professores, um australiano recém-contratado. Os comentários negativos sobre o desempenho dele em sala de aula eram vagos, genéricos. Ninguém o acusava de não ter habilidades linguísticas nem se queixava de sua capacidade didática. O problema aparentemente estava limitado a seu comportamento, descrito apenas como “estranho”, “esquisito”, que fazia lembrar o de um “louco” ou drogado. Fala e gestos lentos, súbitos e longos silêncios, olhar perdido na distância.

Preocupada em entender o que exatamente significava isso e qual impacto negativo teria sobre o aprendizado da turma, resolvi assistir a uma de suas aulas. Sem avisar ninguém e sem me justificar, bati na porta e pedi licença para acompanhar os ensinamentos do dia. A aula já havia começado e o clima entre os alunos e o tal professor parecia sereno. Ele estava de costas para a porta, escrevendo algo no quadro negro. Ao se virar e me ver, no entanto, ele teve uma reação inexplicável: sua fala travou totalmente e seu corpo congelou como o de uma estátua, ainda com o braço suspenso no ar e o giz na mão.

Foram minutos de constrangedor silêncio que me pareceram horas. A classe inteira paralisou à espera dos nossos próximos passos. Sem saber o que fazer, eu também limitei-me a ficar parada e em silêncio, de pé, segurando a maçaneta. Ele olhava para mim com um ligeiro sorriso nos lábios. Seus olhos tinham um estranho brilho, como se ele estivesse tentando contextualizar minha imagem ou se lembrar de alguma coisa. Embora não me conhecesse, parecia estranhamente contente em me ver – ou rever, como descobri mais tarde.

Sem pronunciar uma só palavra, ele lentamente foi descongelando, virou-se novamente para a lousa e escreveu algo nela… só que em indecifráveis (para mim) caracteres da língua hindi. Ao terminar, voltou-se para mim, abriu um largo sorriso e disse candidamente: ‘Este é seu nome”. Cada vez mais assustada e perturbada, perguntei o que aquele nome significava. Ele respondeu apenas: ‘Myrthes!’. Não me lembrava de ter dito meu nome e, mesmo que o tivesse feito, me surpreendia que ele o houvesse absorvido tão rapidamente, com tamanha familiaridade. Àquela altura, eu já estava começando a achar que o caso merecia uma intervenção de ordem psiquiátrica mesmo, mas não quis dar continuidade ao estranho diálogo para não atrapalhar a aula. Sentei-me numa cadeira no fundo da sala e permaneci calada.

Quando a aula terminou, sem outras intercorrências, ele veio conversar comigo. Depois de trocarmos amistosamente algumas informações sobre seu currículo e sobre suas relações com os alunos, novo susto, desta vez de muito maiores proporções. Sem perder sua espontaneidade, ele simplesmente deu início a um relato sobre uma pretensa vida passada minha, algo que me arrepia até hoje: “Você morreu em um terremoto, de fome e de sede, por não ter sido resgatada a tempo”. Absolutamente perplexa, não tive forças para perguntar mais nada, nem quando nem onde aquilo acontecera. Ainda que os temas esotéricos não me fossem desconhecidos e eu já tivesse vivido outras situações estranhas com desconhecidos, eu me recusava a acreditar naquele relato e continuava duvidando da sanidade mental do professor.

No dia seguinte, marquei um encontro com a diretora da escola de inglês. Contei a ela brevemente das reclamações sobre o comportamento do professor, omitindo o relato acima. Ela prontamente me tranquilizou: disse que ele era uma pessoa realmente estranha para os padrões corporativos ocidentais mas uma pessoa nobre, altamente espiritualizada, que havia vivido muitos anos na Índia e se tornado uma espécie de liderança iogue. Tinha vindo ao Brasil com a missão de aqui instalar um centro de ioga voltado à construção da paz universal vinculado à ONU, e que só estava dando aulas de inglês para sobreviver financeiramente enquanto isso não acontecia. Garantiu que conversaria com ele para que ele evitasse discussões não-técnicas com os alunos e adotasse um comportamento mais “dinâmico” (menos zen) em sala de aula, de modo a afastar a possibilidade de novas reclamações.

De fato, algumas semanas depois as queixas cessaram e ele continuou dando aulas normalmente. A partir dali, aproximei-me mais dele e, após ser convidada, fui fazer um curso de Raja Yoga (um tipo de ioga mais propriamente mental) no centro que ele estava construindo. Não posso dizer que nos tornamos amigos, mas os conceitos do hinduísmo que aprendi ali me ajudaram a interpretar com mais tolerância seus estranhos hábitos e relatos.

De alguma forma, a ideia de ter morrido num terremoto começava a fazer sentido para mim. Sempre tive pavor de voar e algumas vezes entrei em pânico até mesmo dentro de elevadores. A sensação apavorante de não ter chão embaixo dos meus pés me acompanha desde que me conheço por gente. Assunto de muitas sessões de terapia, aprendi aos poucos a lidar melhor com o descontrole emocional e esse medo acabou ficando literalmente soterrado em meio às minhas lembranças do passado.

Ontem, entretanto, ouvindo uma sobrevivente dizer que a sensação é a de que você está pisando em um colchão de água e seu corpo oscila violentamente acompanhando as ondas que vêm da terra, não tive como evitar reviver intensamente o terror do chão se abrindo, a sensação de sufocamento, abandono e desamparo. Sim, muito provavelmente eu já vivi essa situação, não importa se em uma vida passada ou dentro do útero de minha mãe na hora do parto.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Na antevéspera do gozo – 2

Brasília: Praça dos 3 Poderes em construção

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há mais de cinco anos detectei pela primeira vez uma sinistra coincidência entre momentos de pré-júbilo nacional e a ocorrência de alguma tragédia ou reviravolta frustrante na vida institucional brasileira. Dei a esse fenômeno inusitado o nome de “antevéspera do gozo” e desde então comecei a me perguntar das razões para seu surgimento.

Analisando alguns acontecimentos históricos ligados a momentos de grande mobilização cívica interrompidos abruptamente – como a rejeição da emenda das Diretas Já depois de 21 anos de ditadura e após expressivas manifestações de rua da sociedade civil, a morte de Tancredo Neves antes de assumir o cargo presidencial e consolidar a transição para a volta do regime democrático, o acidente aéreo fatal que atingiu Eduardo Campos, a principal novidade da campanha ao lado de Marina Silva, a poucos meses da eleição presidencial de 2014, e até a morte do ministro do STF Teori Zavascki, o único que poderia enquadrar os desvios éticos de Sérgio Moro e conduzir a Operação Lava Jato com segurança jurídica e imparcialidade até o final -, cheguei à conclusão que temos, como cultura, um caráter evidentemente histérico.

Com isso quero dizer que estamos perpetuamente surfando na crista de uma onda de excitação coletiva que jamais encontra descarga completa e impede que seja zerada a tensão política acumulada. Quando sentimos que se aproxima o momento do gozo final, algo em nós inexplicavelmente se assusta, se tranca e recua. E, quando se bloqueia a energia libidinal, ela por assim dizer “apodrece” qual água estagnada e contamina outras áreas do psiquismo. A incapacidade de entrega amorosa plena termina gerando desprazer e frustração, o que, por sua vez, deriva para a formação de irracionalidades, perversões, neuroses, fanatismo, misticismo, etc. A potência orgástica se perde e se divide em uma série de gratificações secundárias.

Se confirmado, esse traço cultural histérico explicaria ainda outras duas tendências com as quais venho trabalhando para entender a brasilidade: o baixíssimo comprometimento da população com processos (de qualquer tipo, mas especialmente os de construção democrática) e a ânsia de obter resultados praticamente imediatos, ou expectativa de mudança mágica da realidade. Em segundo lugar, a bipolaridade estrutural que nos faz oscilar entre momentos de eufórica autoestima {como acontece quase sempre no futebol e no carnaval) e outros de depressão (síndrome do vira-lata) e autocondenação (principalmente em períodos pós-eleitorais, com a sistemática repetição da crença de que brasileiro não sabe votar).

Ainda não sei quais e quantos outros fatores estão em jogo, mas posso apostar que a recusa em juntar forças para o atingimento de um orgasmo-cidadão está ligada ao eterno confronto entre nossas raízes africanas e indígenas de valorização da coletividade e a herança conservadora e individualista de nossos colonizadores portugueses. Aparentemente, isso se deve às pesadas noções de culpa e pecado da tradição judaico-cristã herdada deles que interferem em nosso caráter original de afetividade despudorada, espontaneidade e liberalidade sexual.

Pois bem, parece que está prestes a acontecer de novo. Desde 30 de outubro, nem um dia se passa sem que ouçamos a profecia: “O ladrão não vai subir a rampa”. Como, desta vez, Deus parece ter optado por não chamar para seu reino nenhum dos candidatos finalistas nem a figura mais odiada do bolsonarismo, Alexandre de Morais, as deserdadas viúvas do Mito resolveram tomar nas próprias mãos a tarefa de desconstrução final do estado democrático de direito. Depois dos emocionantes manifestos em favor da democracia que reuniram mais de um milhão de assinaturas, o que deveria ser uma festa popular de regozijo com a vitória da esperança de reconquistarmos credibilidade internacional e de recuperar nosso já devastado meio ambiente foi brutalmente interrompida com bloqueio de estradas federais, manifestações abertamente golpistas na frente de quartéis, ações de caráter explicitamente terrorista e nazifascista e até aberrações de cunho religioso messiânico, como a de clamar por intervenção extraterrestre através de celulares.

Embora nada de mais terrível tenha acontecido até este momento, seja por obra e graça da incompetência e planejamento amadorístico das ações dos golpistas ensandecidos ou por pura conivência mal dissimulada das autoridades de plantão, temos de convir: nada impede que acordemos horrorizados no dia 1º de janeiro de 2023 ao assistirmos ao vivo e em cores a um atentado contra o novo presidente em plena Praça dos Três Poderes. Garanto que muita gente já perdeu o sono revivendo mentalmente as cenas dantescas de partes do cérebro de John Kennedy voando longe ou, mais recentemente, da morte em público do primeiro-ministro japonês Shinzo Abe.

A parte moralista do nosso Eu coletivo, que chafurda cada dia mais no fundamentalismo religioso mais rastaquera, entra novamente em campo para alertar: esse parceiro que nos está sendo reapresentado como salvação de nossas fraquejadas libidinais não é confiável, já abusou de nossa confiança anteriormente, não dá para nos entregarmos de mão beijada a ele sem contarmos com alguma forma de salvaguarda contra seus ideais liberalizantes nos costumes. E se ele achar que não somos moças de família por cedermos ao desejo? E se gostarmos da experiência e quisermos repeti-la, como ficará nossa imagem pública? Emancipação para quê? Não, melhor nos mantermos dentro das 4 linhas do patriarcado cristão heteronormativo!

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

“Eu não aceito”

Myrthes Suplicy Vieira (*)


“EU NÃO ACEITO”
Alguém conhece fala mais prepotente que essa?


Pense um pouco: ela pressupõe que a pessoa – agrupamento social ou instituição – que a profere acredita ser a autoridade suprema, com poder de decidir monocraticamente o que os outros devem e não devem fazer, o que pode ou não acontecer.

“Eu não aceito o fim do nosso relacionamento”, alega o agressor e feminicida em potencial ao tentar justificar sua violência, ignorando o fato de que um relacionamento pressupõe a existência de duas consciências, duas vontades e duas autonomias para a tomada de decisão.

”Eu não aceito o resultado da eleição”, gritam em uníssono os golpistas bolsonaristas enlutados, revelando a mesma patologia mental que confunde amor com possessividade. Depois de 4 anos vivendo firmemente ancorados na crença de que “tudo posso naquele que me fortalece”, é normal que eles tenham caído na armadilha de tomar a parte pelo todo: sentem que o país lhes pertence, que os símbolos nacionais são exclusivamente seus para serem usados como e onde quiserem, que seu voto deveria valer mais do que o de qualquer outro cidadão, que são donos da consciência ética de seus adversários ideológicos, que sabem o que é melhor para o futuro da nação. Estão convictos de que patriotismo é demonstrar devoção incondicional e perpétua a um governante de ocasião, alçado por eles mesmos à condição de impoluto Homem-Deus.

Compreensível. O desempoderamento é, de fato, uma das dores psíquicas mais excruciantes e insuportáveis que um ser humano pode conhecer. Equivale ao que Freud chamou de ferida narcísica: apaixonado pela própria imagem refletida nas águas de um lago, Narciso acha necessário parar de respirar para que as águas não se turvem e deixem de funcionar como espelho. Sem a imprescindível troca gasosa com o ambiente e sem oxigenação do cérebro, ele perde os sentidos, cai no lago e acaba morrendo afogado.

Substitua “não aceito” por “não entendo” e se tornará evidente o que se esconde por trás de tanta fúria revanchista. Ao se darem conta da existência de outras aspirações de igual poder, tanto o misógino quanto os bolsonaristas narcisistas descobrem apalermados que, embevecidos com sua pretensa superioridade moral, se miravam apenas nas águas paradas de seu pântano particular de ódio ao diferente. Asfixiados pelos vapores tóxicos da decomposição ambiental, eles perdem o chão ao descobrir que nunca houve troca afetiva, diálogo ou negociação em seus relacionamentos, que jamais se deram ao trabalho de consultar a opinião do outro e, mais grave, que nunca avaliaram a pertinência de seu próprio modo arrogante e violento de tratá–lo.

Agora, confrontados com a perda concreta de seu poder desabrido, eles se imolam em praça pública, na esperança de reencontrar sua imagem fabulada de representantes do bem e da verdade no espelho imperturbável das forças armadas. Qualquer forma de apoio lhes serve, tudo menos deixar transparecer sua triste impotência humana. Não entender os motivos inconscientes de seu autocentrismo, limitação cognitiva e dependência emocional é o que os enfurece e afronta sua gigante autoestima, daí ser inaceitável.

Ser alijado inesperadamente do universo da onipotência infantil, ter de enfrentar pela primeira vez a colocação de limites claros para as próprias ações e intenções, não poder usufruir mais das benesses a que acreditava ter direito, ser desautorizado pela realidade, tudo isso se acumula na mente do desempoderado e conspira para a eclosão de reações de altíssima agressividade e perversidade. Mais ainda quando o desempoderamento acontece “against all odds”.

A psicologia ensina: ao longo do desenvolvimento psicomotor humano, a criança primeiro reage à frustração com um virulento acesso de raiva que envolve seu corpo como um todo. É a conhecida crise de birra, que implica jogar–se ao chão, retorcer–se, sapatear e espernear, agitar violentamente os braços, bater, morder, cuspir, berrar e chorar inconsolavelmente. Aos poucos, a criança vai aprendendo a limitar a extensão de sua resposta corporal. Ela pode dar um pontapé ou soco na cara do coleguinha que o desagradou ou agredir a tapas um adulto que tenta impedi–la de fazer alguma coisa, mas já é capaz de permanecer em pé e respirar fundo até que a raiva passe. Mais tarde, o revanche magoado costuma se restringir às ofensas verbais. Finalmente, o adulto já emocionalmente formado tende a deixar de lado voluntariamente as agressões físicas e verbais, passando a apenas pensar em formas mais socialmente aceitas de retrucar a ofensa.

A total inversão nesse roteiro de autodomínio psíquico a que temos assistido perplexos em anos recentes e em especial no pós–eleição parece estar vinculado ao abandono da noção de bem comum, que deve pairar acima e além dos interesses individuais. Sem dúvida, a globalização tem uma importante parcela de responsabilidade na eclosão desses fenômenos, dada a inevitável relativização dos códigos morais de cada sociedade que ela implica. O caráter nazifascista e supremacista dos protestos é explícito não só por estas bandas, mas também no mundo todo. No entanto, mesmo considerando que o ‘jus sperneandi” é um direito constitucional garantido quase universalmente, é difícil explicar a volta à barbárie em sua forma mais arrebatadora sem o apoio mais uma vez da teoria freudiana.

Ao abordar o mito da horda primitiva, Freud aponta que a cola que mantém os irmãos unidos e obedientes aos ditames da autoridade paterna é a crença de que o amor do pai é distribuído de forma equitativa entre os filhos. Se se suspeita que ele favorece este ou aquele rebento, será detonada uma sanguinolenta guerra fratricida. A ambivalência na submissão acrítica, somada à inveja do poder tirânico do pai, termina levando inexoravelmente a seu assassinato e seu corpo será devorado num macabro festim pelos irmãos. Somente então o luto poderá ser elaborado, a culpa redimida e erguido um totem com regras rígidas de proibição do incesto.

Nesse sentido, parece ser natural também que todos que se sentem direta ou indiretamente culpados pela morte simbólica do autoproclamado Mito imbrochável e imorrível clamem desesperadamente por tutela. Ainda que entendam que ninguém está à altura de substituir o pai morto, precisam saber que contam com o apoio de uma autoridade externa forte o bastante para reequilibrar e dar novo ânimo ao combate. Que fique claro: eles não estão buscando uma tutela iluminada que possa conter terapeuticamente o desvario de seus demônios internos, mas simples força bruta para desfazer de uma vez por todas a incompreensível e inaceitável decisão de terceiros.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Diz-me com quem andas

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Depois de ler algumas análises feitas por especialistas da área de Humanas a respeito da politização da religião, destrinchando as motivações ocultas por trás das falas sórdidas de Damares e de Bolsonaro, repercutindo os recentes conflitos entre religiosos católicos e fanáticos bolsonaristas, tive certeza: quanto mais se fala no assunto, quanto mais se ataca o comportamento do “gado”, quanto mais se tenta rebater os preconceitos e as perigosas ilações que os líderes da extrema-direita costumam fazer contra os adeptos das ideologias de esquerda, quanto mais nos embrenhamos nessa pseudoluta do Bem contra o Mal, mais se aprofundam os laços entre o público fundamentalista e seu “Mito”.

Fera acuada reage com muita maior agressividade. Pode parecer paradoxal que nosso esforço de aclarar os fatores-chave que estão em jogo obtenha o efeito exatamente contrário ao pretendido. Ainda assim, é algo bastante fácil de entender. É como acontece com as campanhas de prevenção contra as drogas, o álcool ou o fumo. Estabelece-se uma argumentação lógica, de ordem estritamente técnica, apontando os efeitos maléficos do vício e enquadrando o usuário como “vítima” inconsciente ou involuntária dessas armadilhas. O problema é que nenhum dos argumentos utilizados consegue se antepor de forma minimamente crível aos “benefícios” percebidos de prazer e escape temporário de uma realidade dolorosa causados por essas substâncias.

Adianta menos ainda apelar para os brios morais ou para a responsabilidade social – argumentos do tipo: comprando drogas você está abastecendo o crime organizado; bebendo, você perde tudo, emprego, apoio da família e respeito por si próprio; fumando, você causa prejuízo ao SUS que vai ter de tratar das comorbidades e deixar de atender quem mais precisa. Sem perceber, essa forma de mensagem aciona imediata e automaticamente um poderoso mecanismo de defesa, que se engalfinha na luta para racionalizar a necessidade de adesão ao vício.

Ou seja, toda forma de admoestação usada até aqui só comunica uma mensagem desagradável, de oposição aos seus bons propósitos: a de que os especialistas no combate a esses males são pessoas “quadradas”, alienadas, com a vida ganha, que “não entendem” as necessidades de segmentos sociais específicos – jovens desesperançados, desempregados, vítimas de violência doméstica e/ou policial, pessoas de periferia e de baixa renda que não veem futuro de ascensão social e os discriminados em função de sua origem racial, orientação sexual ou simples diferenças no jeito de se vestir, se comportar em público ou questionar o “sistema”.

Da mesma forma, no plano político, as críticas vindas das forças progressistas de esquerda às propostas e ao projeto de poder do bolsonarismo naufragam miseravelmente, antes mesmo de atingir seu alvo. Basta desqualificar de antemão essas vozes, associando-as a perigosas intenções dissimuladas: querem instaurar uma ditadura comunista (e para nós a liberdade é mais importante do que a vida, ainda que isso implique o fechamento do Congresso e do STF); defendem o aborto (e nós somos radicalmente a favor da vida, ainda que acreditemos que algumas vidas não merecem ser preservadas); são cristofóbicos (e nós odiamos quem não se pauta pelos mandamentos inscritos no Velho Testamento, ainda que sejamos obrigados a perseguir os que veneram o diabo); tentam impor a ideologia de gênero (o que representa para nós a destruição dos valores da família e a perversão de mentes infantis pela introdução precoce do tema da educação sexual nas escolas).

O irracionalismo definitivamente não pode ser combatido racionalmente. Isso porque ele está ancorado na própria identidade do convertido, nos conflitos inconscientes que permeiam sua estrutura psíquica. Está enraizado no imenso benefício emocional de se sentir parte indissolúvel de um grupo coeso e aguerrido, que conta com a proteção de uma figura poderosa e temida pelos adversários, que acolhe a todos sem julgamento e dá segurança para lidar com as incertezas da vida cotidiana.

Negar os desvios de caráter do líder passa, assim, a ser uma questão de sobrevivência psicológica. Aceitar que se abram brechas na estrutura monolítica do código pessoal de valores equivaleria a suicidar-se social e espiritualmente. Trata-se, no fundo, de uma cosmovisão dogmática. E dogma é, por princípio, uma verdade que não pode ser discutida nem contestada pela razão secular.

Mas não é só às hordas bolsonarista que isso se aplica. Infelizmente. Vale também, com força máxima, para o outro lado do espectro político-ideológico. Alegar que sua causa é nobre, que se está do lado certo da história, que somos seres iluminados a serviço da conscientização geral antes que seja tarde demais, também revela o quão pouco entendemos da natureza humana.

Se não concordássemos intimamente com a ideia de que o inferno são os outros, muito provavelmente já teríamos encontrado humildade de espírito suficiente para dialogar com o ressentimento histórico dessa gente, eternamente abandonada pelos governantes de plantão – e que, portanto, não vê diferença alguma entre ser governado pela esquerda, pelo centro, ou pela direita. Opor barbárie à civilização pode fazer sentido para uma elite intelectual, mas não agrega um só osso com restinho de carne à sopa a ser preparada para a família hoje à noite.

Um antigo chefe meu, sociólogo holandês, brincava que havia só duas teorias de aprendizagem: a que afirma que as pessoas aprendem pelo prazer e a que dita que a verdadeira aprendizagem só acontece pela dor. E, acrescentava ele, rindo: “Idealmente, todos deveriam aprender exclusivamente pelo prazer, mas não dá para esquecer que tem uns FDP por aí que merecem aprender pela dor”.

Qual seria, então, a saída? O que estou propondo de fato: censura, guerra civil, tratamento psicológico compulsório para quem adere a teses que considero absurdas? Nada disso. Como diria Stanislaw Ponte Preta, “ou nos locupletamos todos ou reinstaure-se a moralidade”. Que se reinstale o diálogo democrático sereno, que todos sejam chamados à mesa de negociação, que aceitemos abrir mão de alguns anéis para não perder os dedos, que se testem novas propostas de convivência democrática ainda não experimentadas entre nós.

Só não sei ainda como implementar essas mudanças na prática. Sei que não dá para negociar com terroristas armados até os dentes. Sei que não é possível eliminar a insanidade a golpes de realidade. Entendo que nenhum progresso humano é linear e incorpora avanços e recuos estratégicos permanentes. Mas será que não é suficiente perceber que se pode levar um cavalo até à água, mas é impossível fazê-lo dela beber?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Teoria conspiratória de ocasião

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não gosto nem estou habituada a embarcar em teorias conspiratórias, mas não teve jeito: ainda em estado de choque com o resultado do primeiro turno das eleições, especialmente as dos governos estaduais, deputados federais e senadores, vi-me forçada a criar eu mesma uma que lavasse de alguma forma minha honra de pesquisadora com mais de 20 anos de experiência. Ela pode parecer um tanto alucinada, como aliás são todas as outras, mas retrata uma possibilidade bastante factível e traz um fundinho de veracidade que precisa ser ainda mais bem explorado.

Refletindo sobre as causas dos erros monumentais cometidos por todos os institutos de pesquisa de renome nacional, me ocorreu que a inversão de última hora nas preferências pode não ter sido fruto de incompetência técnica ou metodológica, ingenuidade, parcialidade ou falta de integridade ética de tantos pesquisadores envolvidos. Algo me diz que o “erro” está na força do bolsonarismo de raiz nas redes sociais. Os institutos podem apenas não ter sido capazes de rastrear a tempo o tsunami de votos despejados no capitão provavelmente porque embalados pela confiança na altíssima estabilidade das previsões e convergência da intenção de voto apontada pelas diferentes instituições e confirmada por diversos agregadores de pesquisa.

Convenhamos: para que tivesse havido uma fraude dessa dimensão, seria preciso que todos os dirigentes desses institutos e pesquisadores subordinados, que elaboraram os questionários, determinaram a amostragem e treinaram o pessoal de campo, tivessem concordado em “suicidar” sua reputação e afundar voluntariamente a futura credibilidade comercial e política de suas empresas. Uma possibilidade que evidentemente está longe de ser lógica ou exequível.

Imagino, então, que o arrastão de votos a favor de Bolsonaro no dia do primeiro turno tenha acontecido da seguinte maneira: um comando do Gabinete do Ódio teria sido enviado desde as últimas semanas das sondagens eleitorais aos principais cabos eleitorais do presidente para que determinassem por sua vez que, caso fossem entrevistados por algum grande instituto associado a jornais, emissoras de tevê e portais de internet “de esquerda”, os eleitores intencionalmente mentissem, respondendo ou que ainda não sabiam em quem votar ou que estivessem pensando em votar nulo ou branco. Mas essa era só a primeira fase do complô que imagino e descrevo a seguir.

O primeiro sinal de que algo de grande porte e malcheiroso estava sendo tramado por baixo dos panos foi dado quando, a menos de 10 dias da eleição, o próprio presidente se encarregou de espalhar a notícia de que seria reeleito, com “ao menos 60% dos votos”. Além disso, na mesma época ele ensaiou pela primeira vez encarnar o personagem “JB paz e amor”, conclamando os eleitores a optarem pela “harmonia” social, pela segurança das armas e pela diminuição dos indicadores de fome e desemprego.

Na sequência, entre sexta-feira e domingo, o comitê central da ala mais radical do bolsonarismo deve ter ordenado aos principais cabeças regionais da campanha – isto é, gente com forte ascendência sobre uma massa de subordinados/dependentes e também capaz de garantir sigilo absoluto da operação – que “persuadissem” gentilmente o maior número possível de eleitores indecisos, além dos de Ciro Gomes e Simone Tebet, a despejar seus votos em massa no capitão. Dada a complexidade logística da operação, o comando pode ter sido distribuído através de sites da ‘dark web’ que não pudessem ser facilmente monitorados, e multiplicado aos milhares através de grupos fechados de whatsapp. O que foi prometido a cada um para que alterassem de última hora sua intenção de voto é difícil de saber. Além das habituais promessas de dentadura e alpercatas, emprego e comida, deve ter funcionado fundamentalmente a pressão dos grandes empresários do agronegócio e da indústria extrativista, dada a promessa explícita de muitos de demitir todos os funcionários que manifestassem direta ou indiretamente a intenção de votar em Lula. Não me parece improvável ainda que a operação tenha contado com o auxílio luxuoso de lojistas de grande porte do sudeste, como Luciano Hang, e até de milicianos para reforçar o exigido código de silêncio.

O que me leva a pensar que isso tenha acontecido de fato? Antes de mais nada, o silêncio e a compostura dos bolsonaristas fanáticos no dia das eleições. Aquilo que todo mundo temia – gigantescas manifestações e conflitos sangrentos de rua, boca de urna agressiva, intimidação aberta de eleitores nas ruas do entorno das seções eleitorais – simplesmente não aconteceu. Nem aqui nem no exterior. Tenho vários amigos que moram além-mar e todos registraram, sem exceção, sua surpresa (e até uma pontinha de orgulho) com a civilidade dos apoiadores de Bolsonaro na França, na Suíça, na Holanda e na Inglaterra.

Ninguém mais voltou aos temas-lemas de urnas auditáveis, sala secreta de totalização dos votos, fiscalização dos militares, etc. por pelo menos duas semanas antes da eleição. Ninguém protestou ou xingou Alexandre de Moraes em função das regras de proibição de celulares e do transporte de armas. Um estranhíssimo silêncio, compatível com a tradicional estratégia dos índios americanos antes de um ataque mortal contra as caravanas dos primeiros colonizadores.

Outra evidência para lá de suspeita: pouquíssimos votos em branco e nulos foram observados na contagem final. Mais uma vez, uma estranhíssima coincidência dado o grande contingente de eleitores declaradamente ‘nem-nem’. Raríssimos casos de crimes eleitorais – como postagem de imagens de celular de dentro das cabines de votação, denúncias fake de fraudes ou conflitos com mesários – surgiram nas redes sociais e compõem os derradeiros indicadores. Curiosamente, todas as peças publicitárias da campanha de segundo turno do capitão exibem eleitores entusiasmados declarando que “consegui mais dois”, “e eu consegui trinta”. Coincidência?

Finalmente, uma vez constatada a gritante incoerência entre as previsões e o resultado efetivo colhido nas urnas, o que foi que aconteceu? A generalizada gritaria e exigência de criminalização dos institutos de pesquisa por parte de figuras manjadas do Centrão, além da cara de paisagem do filho de Bolsonaro, Carlos, ao lado do pai, subitamente sereno e com ar de aliviado, na primeira aparição pública após a divulgação dos resultados.

Seja ou não confirmada minha teoria conspiratória por outras evidências, posso apostar que a mesma estratégia será usada no segundo turno e causará um clima de tensão inaudito entre os analistas e cientistas políticos. Não me espantarei se Bolsonaro colher mais votos ainda em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Já quanto à eleição do carioca Tarcísio de Freitas para o governo paulista, a meu são favas contadas, independentemente da participação dele ou não nesse grande imbróglio: paulista adora um canteiro de obras atrapalhando o trânsito.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Algumas vezes é preciso não entender

Luto

Myrthes Suplicy Vieira (*)


Algumas vezes é preciso não entender


A frase acima foi dita originalmente por Anna Verônica Mautner, psicóloga, psicanalista e escritora altamente provocativa, que foi também minha professora na USP. Na ocasião, ela havia sido chamada a explicar por que uma pessoa até então dita “normal” atingira um grau de crueldade tão inaudito. O caso era o de um homem que pensava em se suicidar e, de última hora, achou por bem jogar antes mulher e filho pela janela do 13º andar. Para piorar, no último instante, ele recuou de seu intuito e acabou preservando a própria vida.

O pasmo, a incompreensão, o estado de choque tem paradoxalmente um impacto esclarecedor e reumanizador poderoso sobre nosso psiquismo, mais forte talvez do que qualquer explicação científica ou policial. Servem de alerta que sempre estamos sujeitos a ultrapassar os limites civilizacionais e embarcar numa jornada inumana de destruição de tudo à nossa volta. Não há como explicar o inexplicável por mais que se tente: pulsão de morte, o mal-estar na cultura, a dimensão trágica da existência, o niilismo, a alienação, o predomínio da emoção sobre a razão, tudo isso pode servir de justificativa temporária apenas e tão somente para tentar exorcizar a possibilidade de que isso aconteça conosco. Mas não serve de consolo, nem de vacina. O inferno continuam sendo os outros, os tais psicopatas que continuam circulando livremente por aí.

Ficar com a dor, passar recibo do luto, contorcer-se dias sem fim diante da perda injustificável, praguejar contra os deuses e o destino, pode ser nossa única salvação. Reservar um tempo para lamber as próprias feridas é a única rota de escape admissível. Saber que o humano não abrange apenas um lado espiritualmente iluminado e gregário, mas chafurda também num poço sombrio e irracional, nos permite reavaliar nossos recursos internos e reequilibrar forças.

Essas considerações me ocorrem ao analisar os resultados das eleições 2022. Até dá para sacar timidamente uma explicação para o crescimento de última hora de Jair Bolsonaro e a acachapante vitória de seus aliados no pleito para governadores do sudeste – e mais grave ainda para a Câmara Federal e o Senado. Se há um fator racional para justificar a inversão das preferências, ele tem um nome: Ciro Gomes. Graças ao fato de ter elegido Lula – e não Bolsonaro, como seria de se esperar – como seu único adversário, de forma a se oferecer como contraponto palatável, ele conseguiu desestabilizar o emocional dos eleitores que já se dispunham a fechar o nariz, ignorar suas reservas intelectuais e votar no PT, na tentativa desesperada de salvar a democracia tupiniquim. Colheu o que plantou: até o final de sua vida vai ser forçado a ruminar em casa os motivos inconscientes de sua raivosa batalha egóica. Em volta de sua tumba política, vão se juntar as vivandeiras e carpideiras nem-nem que apostaram mais uma vez na própria incorruptibilidade e superioridade intelectual/moral.

Até aí, dá para tentar, não sem esforço, entender. No entanto, como explicar a eleição de Damares, de Pazuello, de Mário Frias, de Carla Zambelli e principalmente de Ricardo Salles? Que justificativa moral terão se concedido as pessoas que enfrentaram enormes perdas nos últimos três anos, desde mortes de familiares por covid, desemprego, fome, não-acesso à saúde e à educação, até as terríveis enchentes e as queimadas na Amazônia? Serão os eleitores das classes C, D e E os culpados mais uma vez por impedir o avanço civilizatório em nosso país? Ou será que os evangélicos se consolidarão como os novos bodes expiatórios da brasilidade?

Ontem fui dormir mais cedo, exausta de pensar na lógica estapafúrdia do quadro pós-eleitoral e arrasada emocionalmente com esse festival de mediocridade e agonia democrática. Embora minha intuição já me avisasse há algumas semanas que ainda não era hora de celebrar a volta da racionalidade ao jogo político-ideológico, eu ainda tinha esperança de ver esse pessoal jogado na lata de lixo da história. Não deu. Esqueci que também votam os farialimers, os empresários do agronegócio, os coronéis com expertise no voto de cabresto, os grileiros e os garimpeiros, os CACs, os milicianos, os moralistas de plantão e os ressentidos de classe média.

Fechei os olhos sem querer para a divisão bicentenária de nossa sociedade em dois Brasis irreconciliáveis: o Brasil das elites urbanas do Sul e do Sudeste e o Brasil dos desassistidos dos rincões miseráveis do país. Porém, acima e além da incompreensão com a aposta na perpetuação do fascismo à brasileira, meu maior desalento se deu com a escolha dos integrantes do Legislativo.

Lembrei que, há mais de duas décadas, o Senado solicitou uma pesquisa de imagem ao instituto para o qual eu trabalhava. Montamos uma gigantesca equipe de pesquisadores quantitativos e qualitativos, mantivemos reuniões exaustivas sobre a melhor forma de abordar o eleitorado sem permitir que simpatias e antipatias para com senadores isolados interferissem na análise do coletivo, gastamos horas e horas no treinamento do pessoal de campo. Já na primeira fase do projeto-piloto colhemos um resultado estarrecedor: pouquíssimos brasileiros sabiam dizer para que serve um senador da República e que importância ele tem como contrapeso ao Executivo. Simplesmente não dava para avançar no entendimento das características ideais para ocupar um cargo federal ou para a melhoria da imagem do Senado. Tiro n’água total, o restante do projeto acabou sendo abortado.

A pergunta, então, é como acontece a escolha dos representantes do Congresso. Intimidados com a profusão de nomes e números, desinformados sobre o histórico político dos candidatos e distraídos pela disputa mais tensa para o cargo presidencial, como apontar os que poderiam contribuir de forma mais efetiva para um futuro promissor, livre do toma lá, dá cá? Se não se sabe a quais tarefas eles vão se dedicar, só resta então aos eleitores mais apartados do jogo identificar os nomes já conhecidos – e mais polêmicos – do cenário político atual, que não por coincidência também se destacaram no apoio explícito às teses amalucadas do presidente de plantão. Antiabortistas, misóginos, portadores de virilidade tóxica, racistas, homotransfóbicos e companhia bela se unem então para exorcizar o “perigo comunista” e reafirmar os valores de defesa da família, da vida, da propriedade, da pátria e de Deus. Ganha uma passagem só de ida para a Ucrânia quem conseguir vislumbrar uma forma eficaz de reverter esse quadro dantesco e peitar os invasores russos.

Tristemente, cabe perguntar aos que, como eu, não conseguem atinar com uma explicação ou justificativa minimamente aceitável: ATÉ QUANDO?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Os mantras da política brasileira

Crédito: MoisesCartuns.com.br

Myrthes Suplicy Vieira (*)


De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Fernando Pessoa


Em psicologia clínica, é comum o alerta aos jovens terapeutas: é justamente nos momentos de maior vulnerabilidade e dor que o paciente menos tem condições emocionais de pedir e de aceitar ajuda. A pessoa está tão empenhada em provar que não há solução viável para o seu caso que rejeita sistematicamente toda forma de aconselhamento e descarta todas as medidas profiláticas sugeridas. Pior, entra numa desesperada batalha inconsciente para desqualificar a expertise, o profissionalismo, a sensibilidade ou a isenção de todos que lhe estendem as mãos.

“Você não entende… Se eu prestar queixa contra meu marido e ele for preso, vai querer se vingar nos meus filhos e na minha família. E eu não saberia viver carregando essa culpa. Além disso, eu não teria como sobreviver financeiramente sem a ajuda dele. Você não sabe como é duro ver seus filhos passarem fome… O que ninguém quer entender é que eu não posso viver o resto da vida em um abrigo, nem depender da decisão de um juiz para evitar que ele saia da cadeia e aí, sim, queira se vingar de todos. Preciso trabalhar e não tenho estudo suficiente, nem onde deixar as crianças… Melhor deixar pra lá, eu me viro sozinha, sei me defender quando é preciso. O problema é que ele está passando por um período difícil sem trabalho e acaba bebendo muito, mas tenho certeza que ele não teria coragem de me matar. Ele só faz essas ameaças porque tem medo de me perder…”

Tristemente, não é diferente na vida de uma nação. No Brasil, além do desastre humanitário causado pela pandemia e pela crise econômica que se sucedeu, estamos tendo de nos debater com uma aliança inédita entre o fundamentalismo pentecostal e o militarismo golpista. E, forçoso é admitir, nenhuma dessas duas forças conhece limites para a manipulação de mentes e de vontades. Seus códigos disciplinares não são somente vendidos a granel, mas agressivamente impostos em bloco a quem não partilha dos mesmos valores como uma questão de patriotismo. A luta deixa, então, de ser política e se configura como a batalha decisiva do bem contra o mal. Saem de cena os direitos e deveres consolidados na Constituição de 1988 e reassume triunfante seu lugar no palco o Código de Hamurabi, com sua Lei de Talião a tiracolo.

Assim, o eleitorado brasileiro já não tem a quem recorrer para pedir ajuda, e não quer – ou não pode – ser ajudado no esclarecimento dos fatores críticos que estão em jogo, seja porque desacredita da análise especializada dos cientistas políticos e juristas, da imparcialidade dos órgãos de imprensa e da credibilidade individual dos jornalistas ou da isenção dos ministros do Supremo. Acossados pela fome, pela total falta de perspectivas de um futuro melhor para todos, pela brutal insegurança pública e pelo ódio que contamina todos os setores da experiência cotidiana, vivem todos enclausurados em seus guetos ideológicos, acusando-se mutuamente de serem gado alienado e recusando-se a serem dissuadidos de suas respectivas intenções de voto.

Num estado de ânimo como esse, é fácil para o eleitor embarcar na ilusão de que “é tudo farinha do mesmo saco”. Depois de incontáveis tentativas frustradas de eleger um salvador da pátria, um pai amoroso que os resgate de seu desalento e impotência infantil, como acreditar que pode ser diferente agora? É quase inescapável a tendência de adotar uma postura cínica de equivalência moral entre os candidatos líderes nas pesquisas – principalmente quando se considera que o eleitor brasileiro vota em pessoas e não em ideias ou projetos de governo.

No que diz respeito à escolha dos melhores candidatos para o Legislativo, a situação é ainda mais aterradora. Sem se darem conta de que eles teriam um papel fundamental para reequilibrar e limitar os desmandos do futuro Executivo, desinformados pelo horário gratuito de propaganda eleitoral, herança trágica da ditadura militar, o que resta para a maioria é adotar como principal método de escolha aquele que se usava descuidadamente nas brincadeiras infantis: “Minha mãe mandou bater neste daqui, mas como sou teimoso bato neste daqui”.

Ainda não entendemos que a irracionalidade não tem como ser combatida com argumentos verbais lógicos. É o profundo investimento emocional do eleitor e sua identificação com figuras polêmicas de poder que precisariam ser confrontados. E quem ousaria se oferecer para essa tarefa? O analfabetismo político de boa parte da população, a abissal desigualdade que impede a visualização de uma solução única para todos os estratos sociais, a falta de uma identidade ideológica clara dos partidos, a crise da democracia representativa e o presidencialismo de coalizão reforçam-se mutuamente para afastar de vez a possibilidade de mudança dos ventos.

Há ainda outra tragédia à espreita. Hoje em dia ninguém mais se apresenta ao eleitorado como capaz de elaborar propostas criativas para a solução dos problemas sociais que nos afligem ou por ter maior capacidade de trânsito e negociação com forças políticas opostas. Agora tudo se resume a comprovar que você desfruta de fama e prestígio nas redes sociais – e que, portanto, suas chances de angariar o número de votos necessários para se eleger são maiores, quase certas. E dá-lhe influencer, tiktoker, subcelebridades, gente ligada ao entretenimento de massa. Não importa seu histórico educacional, profissional ou sua visão de mundo, nem que pesem sobre cada um acusações graves de descomprometimento com os valores iluministas e democráticos.

Dessa forma, a intenção de voto acaba ficando mesmo ao sabor do resultado das pesquisas eleitorais: com medo de “perder o voto” apostando num candidato lúcido mas sem reais chances de chegar lá, qualquer um que prometa pulso firme para enfrentar os poderosos de plantão, ser diferente de ‘tudo isso que aí está’ ou acabar com a corrupção e a impunidade pode atrair o interesse e a confiança maciça da população.

Ignorar que seu voto representa também a permissão para que seu país continue priorizando a economia em detrimento da qualidade de vida e bem-estar da população, que o meio ambiente sofra as consequências trágicas de uma visão deturpada de progresso, que o acesso a uma educação de qualidade continue apenas nas mãos de uma elite endinheirada, que falte capacidade ao sistema de saúde para dar atendimento digno aos mais carentes, que se normalize o infernal acréscimo no número de moradores de rua, de famintos, de desempregados e de violência contra as minorias. Em última instância, que sua indiferença significa autorizar que a democracia agonize nas mãos de déspotas nada esclarecidos. E que, ao fazê-lo, você consente em arrastar seus compatriotas para um abismo ético sem volta apenas para não entrar em contato com sua própria dor, impotência e desesperança.

O que fazer, então? Não tenho as respostas, mas pressinto que a única forma de colocarmos fim a estes tempos de barbárie é acolher terapeuticamente as frustrações e o ressentimento que ainda desorientam os dois lados do espectro ideológico. Aceitar que escolha moral é para quem não tem fome, ser capaz de ouvir os argumentos ainda não-explicitados que forem surgindo à medida que formos nos desapegando da sensação de desamparo como quem realmente quer compreender, e não como quem apenas se prepara para contra-argumentar.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Lei Maria da Penha ou pistola?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Depende, senhor presidente. Se o “problema” em questão que presumivelmente poderia ser causado por essa tal “gente” que caminha em sua direção numa estrada deserta for uma ameaça de estupro e a mulher em questão for feia, o risco será mínimo para ela, segundo o senhor mesmo fez questão de ressaltar em outra ocasião.

Se for uma mulher bonita e conseguir sair viva da situação ilustrada, as duas ferramentas sugeridas mais do que provavelmente serão de pouca ou nenhuma valia. Antes de mais nada, é preciso dizer que elas são tão comparáveis em termos de eficácia para combater a violência contra a mulher quanto um nécessaire e uma jaca. A arma pode falhar, como aconteceu recentemente no atentado contra Cristina Kirchner. O indivíduo (ou os indivíduos, não restou claro) pode tomar a arma da mão da mulher, imobilizá-la e deixa-la ainda mais vulnerável, como o senhor mesmo contou que lhe aconteceu durante um assalto no passado. O tiro pode não atingir o potencial agressor ou só atingi-lo de raspão e deixa-lo ainda mais furioso e violento.

Já para “sacar” a lei Maria da Penha, seria preciso que a mulher vítima de uma tentativa de estupro, assalto ou assassinato se dirigisse a uma delegacia de polícia (ou a uma delegacia da mulher, caso houvesse uma na região), esperar o horário de abertura na manhã do dia seguinte e contar com a boa vontade do policial de plantão para registrar um boletim de ocorrência. Antes, porém, ela certamente teria de passar por um detalhado interrogatório, no qual lhe seria perguntado, dentre outras coisas: O que você fazia àquela hora numa estrada deserta? Como estava vestida? Havia bebido ou consumido drogas? Deu causa de alguma forma para o ataque ou o facilitou, seja não resistindo à aproximação do agressor e abrindo a porta do carro, seja sorrindo para ele e pedindo ajuda para trocar o pneu?

Para piorar, poderia acontecer de o delegado de plantão se recusar a registrar a ocorrência, alegando não ter havido nenhuma lesão física digna de nota, como aconteceu recentemente com uma senhora negra, esquálida e frágil, de 51 anos de idade, que teve seu pescoço (ou parte de cima das costas, como pretende o advogado de defesa) pisado por um brutamontes policial de mais de 80 quilos. Depois de recorrer a um advogado para ter seus direitos respeitados, essa mulher, no máximo, voltaria para casa com um papel na mão e esperaria sentada por meses ou anos até que o agressor (de quem ela desconhece a identidade, diga-se de passagem) a atacasse novamente ou fosse preso pela prática do mesmo ou de outros delitos. Se e quando isso acontecesse, a vítima poderia então entrar com um pedido de medida protetiva na justiça. Mesmo assim, se o agressor desrespeitasse a exigência de afastamento, só restaria a ela registrar um segundo boletim de ocorrência – e assim sucessivamente até a data de seu velório.

Outro dado relevante que precisaria ser levado em consideração para fazer uma escolha sensata e bem-informada do melhor jeito de reagir numa situação como a aventada diz respeito à sua suposição de que a “gente” que vem em sua direção “pode lhe causar problema”. Não ficou claro em sua douta exposição, senhor presidente, a partir de quais evidências essa impressão se concretizou: tratava-se de uma pessoal mal-encarada, segundo os critérios policiais? Talvez tivesse um olhar frio, vidrado, desses de quem consome drogas? A forma como estava vestido? Estava em atitude suspeita, atrás de um poste ou escondido embaixo de um viaduto? Portava algum objeto ameaçador nas mãos? São muitas as hipóteses e poucas sustentáveis a priori. Poderia ser, convenhamos, um simples transeunte ocasional, um morador da área, alguém voltando do trabalho e, quem sabe, até mesmo uma pessoa de boa vontade, querendo ajudar.

Digo isto porque já me aconteceu de ter o pneu estourado num cruzamento da Avenida Santo Amaro numa noite chuvosa, ter sido abordada por um cidadão – negro, veja só – que, sorridente, se aproximou da minha janela e se prontificou a me tirar daquela aflição, empurrando o carro e trocando o pneu em poucos minutos, sem nem mesmo esperar por gratificação. Tsc, tsc, tsc. Está claro que o senhor precisa conhecer melhor o “seu povo”, presidente, não apoiar suas convicções somente em seus fanáticos apoiadores mas também na gente simples e solidária que habita invisivelmente esta terra.

Além disso, capitão, não é nem preciso dizer que o [mau] hábito de atirar antes de perguntar, que está implícito na sua sugestão, deveria ser combatido e não incentivado. Esse é o traço mais distintivo da polícia militar brasileira desde sempre, usado com especial ênfase no período pós-ditadura. As manchetes sanguinolentas relativas aos constantes entreveros nos morros do Rio de Janeiro e na periferia de todas as demais capitais, com um número espantoso de vítimas colaterais, crianças e adolescentes desarmados, estão aí para quem quiser confirmar.

A defesa do excludente de ilicitude que tanto o anima está assentada exatamente nessa pressuposição de que há cidadãos de primeira categoria, honrados e cônscios de seu papel social, os militares e os PMs, e outros cidadãos de quinta categoria, os civis não pertencentes à elite branca heterossexual, que devem obediência irrestrita ao arbítrio das “otoridades” de plantão. Será que essa mentalidade já foi absorvida também pelos atuais detentores de posse e porte de armas, contaminando até mesmo aqueles que se dizem cristãos? Falando nisso: curiosamente, não lhe ocorreu sugerir que o melhor seria “entregar nas mãos de Deus” a solução do problema. Já que o senhor estava num templo evangélico, circundado exclusivamente por mulheres, seria de bom alvitre reforçar a tese de que o Altíssimo o ajudará a cuidar da segurança pública em um eventual segundo mandato seu, já que teria sido Ele a indicá-lo para o cargo presidencial ‘against all odds’.

Pensando em tudo isso, sinto dizer, senhor presidente, que, como de costume, seu pretenso argumento de apreço pela defesa da mulher foi miseravelmente infeliz. Ou melhor, como tudo que sai de sua boca, não passou de mais um ato falho para sua coleção de disparates. No seu inconsciente, onde pululam os vermes comedores de cérebro da “ideologia de gênero”, não deve haver espaço mesmo para indicar outras medidas civilizatórias, como melhor iluminação pública, serviço de assistência 24 horas nas estradas acessível online, carros de polícia circulando à noite por locais afastados do centro, etc. Acima de tudo, não lhe ocorreu a única medida realmente eficaz, já testada em diversos outros países com sucesso: a educação sexual nas escolas para meninos e meninas desde a primeira infância. Complementada preferencialmente por acesso universal a serviços de saúde mental para os transgressores.

Saiba que a única mensagem transparente – e auditável – que o restante da população recebeu foi a de que as mulheres brasileiras – sejam elas ou não portadoras de vaginas, como diz elegantemente seu filho 03 –, não podem se sentir seguras em lugar nenhum deste país, nem dentro nem fora de casa.

Segure suas cabras que meu bode vai sair para pastar…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A reação das minhas cachorras ao debate

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Confesso que me surpreendi com a apatia com que minhas cachorras assistiram ao debate entre presidenciáveis do domingo passado. Eu estava uma pilha de nervos desde a hora em que acordei, aguardando ansiosamente o início do que prometia ser uma sanguinolenta troca de acusações entre os candidatos, ao invés de focarem em seus respectivos programas de governo.

Temia que, nos momentos mais tensos, dois ou mais competidores acabassem perdendo as estribeiras e se engalfinhassem fisicamente, ou ainda que o estúdio fosse invadido por uma horda de apoiadores armados até os dentes para exigir a cabeça dos adversários. Já me preparava psicologicamente para contabilizar um ou dois mortos e vários feridos graves, inclusive entre os âncoras e os jornalistas convidados. Só fiquei um pouco mais tranquila quando soube que não haveria a presença de plateia e que somente os assessores, marqueteiros e políticos aliados seriam autorizados a ocupar uma sala atrás do estúdio. Mesmo assim, eu vigiava com angústia e preocupação a cada segundo a escalada de ofensas, golpes abaixo da cintura e ameaças mal disfarçadas.

Minhas cachorras, por sua vez, pareciam bem relaxadas: se aboletaram gostosamente no sofá em frente à televisão e fingiram prestar atenção aos confrontos do primeiro bloco, permanecendo em absoluto silêncio. No entanto, tão logo terminaram de jantar, logo na entrada do segundo bloco, não conseguiram disfarçar que estavam entediadas com tanto palavrório, tanta conversa mole para boi (também cachorro?) dormir, desconcentraram-se e se deixaram embalar pela monotonia dos discursos, logo caindo em sono profundo.

Sacudi-as no começo do terceiro bloco para questioná-las a respeito das razões para tanto desinteresse. Ainda sonolenta, a mais velha me lançou um olhar enviesado e respondeu: “Tá brincando? Pra um domingo à noite, com chuva e frio, tinha que ter alguma coisa mais empolgante para assistir. Até agora, só teve mais do mesmo. Qual é a novidade que está sendo trazida a público? Nadica de nada! Parece que todos acabaram de reinventar a roda e descobriram a solução definitiva para exterminar todos os males que assolam a população desde o descobrimento, em 1500. Por que ninguém tinha pensado em tudo isso antes?”.

Já a mais nova e ainda inexperiente nos empolados confrontos pátrios agitou-se por alguns minutos para reclamar quando o candidato Felipe D’Ávila fez referência desdenhosa ao complexo de vira-lata que caracteriza os brasileiros. Rosnou, um tanto indignada: “Dobra a língua para falar de nós, seu verme! Somos SRD, com muito orgulho! Isso significa que, assim como vocês, somos fruto de miscigenação e exigimos respeito por nossa condição. Somos mais resistentes a doenças, mais resilientes e mais safos para lidar com situações de penúria, além de mais valentes para encarar as inevitáveis batalhas com tantos pitbulls nas ruas”.

Tive de concordar. Parecia mesmo que todos os debatedores diziam ao apresentar suas propostas pseudograndiosas: “Pra quem é [povo brasileiro alienado], tá de bom tamanho”. Antes que elas voltassem a dormir, ainda tentei entender como elas avaliavam a repercussão do comportamento dos candidatos-líderes nas pesquisas sobre eventual mudança de intenção de voto. Para afastar o tédio, propus a elas um joguinho, perguntando: se os candidatos fossem bichos, como vocês enquadrariam o perfil psicológico de cada um? Tudo o que consegui reunir, entre muxoxos, foi o seguinte:

Bolsonaro, o escorpião e seus instintos irrefreáveis
Deve perder um bocado de votos entre as eleitoras ainda indecisas, até entre as evangélicas. Mesmo tomando extremo cuidado para não parecer exageradamente agressivo em suas colocações, acabou deixando implícito que, tão logo ele chegue à outra margem do rio, não resistirá ao impulso de dar uma ferroada mortal no cangote daqueles que o tiverem auxiliado na travessia – com provável exceção dos fardados. Se e quando, ainda em estado de choque, um dia a população confrontá-lo com sua promessa de respeitar os demais poderes, o estado democrático de direito e o resultado das eleições, ele responderá candidamente: “É da minha natureza, e vocês sabiam disso, tá ok?”

Lula, o bom cabrito
Também deve perder um bom percentual de votos entre os antibolsonaristas e bolsonaristas arrependidos pela aparente falta do tão estimado pulso firme. Esforçou-se o tempo todo para não berrar, sabedor que era de suas vulnerabilidades, mas acabou passando uma imagem envelhecida, de pouca força e ânimo para mudar o destino do rebanho. Apegou-se à imagem de valentia do passado, mas a falta de sangue nos olhos entregou seu cansaço. Perdeu-se de vez quando hesitou em assumir o compromisso de montar um ministério paritário, de homens e mulheres, quando tudo o que o mulherio ensandecido pelo desrespeito de Bolsonaro a Vera Magalhães esperava era que ele enterrasse seus chifres bem fundo no intestino misógino de seu principal adversário.

Ciro, o rato que incorporou o flautista de Hamelin
Deve ganhar mais alguns pontinhos nas pesquisas, mas para encostar nos mais bem votados seria preciso encarnar a credulidade de um doutor Pangloss. Apesar de extraordinariamente articulado intelectualmente, não consegue desfazer a imagem de velho coronel nordestino autoritário que se vê como único portador de todas as virtudes e não se cansa de vomitar todos os defeitos de seus concorrentes. Ele parece acreditar piamente que seu projeto de pacto nacional + plebiscito após 6 meses de mandato será suficiente para que 27 ratazanas que engordam às custas do erário dos estados, 513 ratos pequenos e 81 grandes que estraçalham o restante do tesouro público se rendam ao seu carisma e o sigam acriticamente até a beira do precipício. Se vão se jogar ou não, essa é outra estória. Aposta ainda que a população já terá condição efetiva de estimar o acerto de suas medidas econômicas após 180 dias de governo e votará em peso pela manutenção de seu “revolucionário” esquema de governança.

Simone, a galinha-mãe e professora
Deve ser a que mais vai ganhar votos do público nem-nem e dos que avaliam que “é tudo farinha do mesmo saco”. Embora corajosa, auto afirmativa e doce ao mesmo tempo, desculpou-se o tempo todo por não ter conseguido apoio incondicional e universal dos galos do seu partido e assumiu seu desconforto com o passado corrupto da maioria de seus aliados, o que pode pesar muito contra seu estilo “lírio no pântano”. De boas intenções o inferno está cheio parece ser seu lema de campanha.

E isso é tudo. Minhas cachorras se recusaram a elaborar o perfil dos demais candidatos, seja por falta de informações confiáveis quanto aos seus reais interesses na candidatura e na política, seja por lembrarem do passado bolsonarista de uma e o perfil agressivamente desestatizador de outro.

Para encerrar logo a conversa e poderem voltar a dormir, elas avaliaram em uníssono que faltou abordar durante todo o debate um fato indesmentível e preocupante, ao qual a imensa maioria do eleitorado finge não prestar maior importância: qualquer que seja o resultado das eleições, estamos condenados a sermos governados por um tchutchuca do Centrão, velho ou novo, mais ou menos jeitosinho com seus pares homens e sempre tigrão com as mulheres, especialmente as mais pobres e as mais críticas/incisivas. Quem ousaria discordar?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Sexo por obrigação

 

Myrthes Suplicy Vieira (*)

De todos os pronunciamentos delirantes a respeito da condição feminina, sua estrutura psíquica e interpretações quanto à sua disponibilidade para o sexo feitos ultimamente por integrantes da ala masculina ultraconservadora brasileira, o mais surpreendente e intrigante foi sem dúvida o registrado pela pena do digníssimo procurador de São Paulo, Anderson Gois dos Santos.

Num e-mail enviado a seus colegas da Procuradoria, ele propõe textualmente que “é de fundamental importância recuperar a ideia do débito conjugal no casamento”. E acrescentou, para perplexidade geral: “A esposa que não cumpre o débito conjugal deve ter uma boa explicação, sob pena de dissolução da união e perda de todos os benefícios patrimoniais”.

Fiquei tão impactada com o caráter medieval da proposta que fui pesquisar na Internet o que significa aos olhos da lei o débito conjugal e como esse conceito se insere na jurisprudência brasileira. Descobri que ele teve origem no Direito Canônico e foi absorvido no Código Civil de 1916. Depois que a constituição de 1988 introduziu a necessidade de observância do direito à dignidade de toda pessoa humana e a igualdade de direitos entre homens e mulheres no casamento, a tese perdeu amparo legal, embora hoje em dia ainda existam casos de pedidos de divórcio aceitos em tribunal por ter a mulher se recusado a fazer sexo com o marido.

Dado o furor condenatório com que juristas e colegas procuradores receberam a proposta, acusando seu autor de estar disfarçadamente defendendo a legalidade do estupro marital, ele achou por bem se antecipar e esmiuçar as ‘terríveis’ consequências sociais da não-aprovação de sua proposta: a recusa feminina em cumprir suas obrigações sexuais teria o potencial de levar a “traições desnecessárias” [não deixou claro se, no seu entender, haveria alguma forma de traição necessária], consumo de pornografia e acúmulo de pedidos de divórcio.

Arrogou-se ainda o direito de pontificar sobre questões fora de sua área de especialização, fazendo uma incursão amadora, típica de almanaque de farmácia do início do século 20, ao território da psicologia e da psiquiatria. Associou o feminismo a um “transtorno mental” ainda a ser catalogado num futuro CID [Classificação Internacional de Doenças], apontou as causas do distúrbio como “problemas com os pais na criação” e “muita mágoa no coração”. E foi além, descrevendo no mais misógino dos estilos a luta pelo empoderamento feminino como uma “tentativa de suprir profundos recalques e dissabores com o sexo masculino, gerado por suas próprias escolhas de parceiros conjugais”. Culpa da vítima, é claro.

Confesso que fiquei na dúvida se o foco de sua intervenção era efetivamente o de discutir os aspectos psicossociais pertinentes às obrigações conjugais ou se, além e acima dessas preocupações, pairava na mente dele a urgência de encontrar formas jurídicas seguras de proteger o patrimônio financeiro do homem casado, livrando-o da necessidade de dividi-lo com uma esposa não merecedora de tal ‘privilégio’.

Não pretendo ir a fundo na exploração das impropriedades científicas nas quais ele incorreu ao se manifestar sobre traumas psicológicos, dificuldades de identificação com o papel sexual e motivações aberrantes que comporiam em tese o perfil das mulheres feministas. São tantos e tão complexos os fatores envolvidos nessa questão que prefiro me abster, por puro cansaço e tédio antecipado. Deixo a cargo dos especialistas em psiquiatria a revelação de quais e quantos transtornos mentais estão na base da virilidade tóxica, essa sim uma doença passível de enquadramento num próximo CID.

Entretanto, reservo-me o direito de apontar a sobreposição ilógica de conceitos díspares que permeiam o raciocínio do douto procurador. Lídimo representante do pensamento binário, ao misturar num mesmo balaio a recusa a fazer sexo com o parceiro oficial e o comportamento feminista, ele deixa entrever que aposta que feminista é toda mulher que não gosta de homem. O que, convenhamos, deve ser fonte de muita angústia e ansiedade para ele.

No entanto, o que mais chamou minha atenção na proposta de revitalização da norma de “débito conjugal” foi a desconsideração – intencional ou acidental – da existência também da obrigação do marido em manter relações sexuais regulares com sua esposa. Passei horas me divertindo com a possibilidade de inversão do raciocínio, isto é, a eventualidade de uma mulher ingressar na justiça com uma queixa contra o esposo por ele ter falhado em cumprir suas obrigações sexuais no casamento e consequentemente pleitear que ele fosse destituído dos direitos à divisão do patrimônio do casal.

Em meio a piruetas mentais, acabei concebendo a seguinte cláusula contratual pré-matrimonial que poderia ser exigida pela mulher: “A parte masculina do presente contrato compromete-se a realizar o ato sexual com a parte feminina no mínimo 3 (três) vezes por semana, por todo o tempo que durar a convivência do casal, independentemente da presença de fatores limitantes à atividade, como idade, doenças físicas e mentais, abatimento com a situação financeira, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas psicoativas e outros elementos intervenientes ocasionais, com penetração obrigatória em cada coito e número indeterminado de tentativas, até que a parte feminina atinja o orgasmo ou se declare plenamente satisfeita. Se, para tanto, a parte masculina não corresponder às expectativas de desempenho da parte feminina, assim descumprindo a presente cláusula, sob qualquer tipo de alegação, estará ele sujeito à pena de dissolução unilateral do contrato conjugal e perda do direito à divisão dos bens patrimoniais auferidos pelo casal”.

Cheguei até a fantasiar uma cena de novela rural ilustrativa desse novo enquadramento jurídico: uma “coronela”, empresária de sucesso no ramo agropecuário, entra no quarto do casal e dirige-se ao marido, que está deitado, de pijama e cueca furada, fingindo dormir, com as seguintes palavras: “Levanta já daí, seu imprestável! Vai se lavar porque hoje eu vou te usar”. Ou ainda, num contexto mais urbano, uma cena em que a mulher informasse ao parceiro intimidado por não conseguir uma ereção: “Vamos logo que hoje eu estou sem tempo e sem paciência. Se você não der no couro, vou dar para o primeiro que passar pela minha porta”.

Voltando a falar sério, qualquer que seja o ângulo pelo qual a proposta do procurador seja examinada, fica claro que não se trata apenas de anacronismo obscurantista: é um total desconhecimento da fisiologia humana e do funcionamento psíquico. Como associar sexo a obrigação se estamos falando de uma pulsão animal natural e instintiva que tem como principal propósito o prazer e o alívio das tensões? Como garantir a necessária lubrificação na mulher e a ereção masculina se na cabeça dos parceiros há um imperativo categórico de desempenho imediato? Até mesmo entre animais inferiores na escala filogenética, se a fêmea da espécie não consente com a cópula, mesmo estando no cio, ela simplesmente não acontece. Não há nada que o macho possa fazer para dissuadi-la da recusa, a não ser estupra-la, é claro – mas, se isso acontecer, quase certamente ocorrerá em meio a muita luta, sangue e provável despedaçamento de corpos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

“Escolha moral é para quem não tem fome”

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Você concorda com essa afirmação? Pense um pouco: se, por um lado, ela explica por que o furto famélico encontra muitas vezes uma jurisprudência de tolerância e até de não-punição, por outro, pode servir de argumento para, por exemplo, justificar a reeleição de Bolsonaro, diante do pacote de bondades que ele acaba de implementar com o auxílio luxuoso do Centrão. Mesmo que os beneficiados estejam profundamente insatisfeitos com os atos de seu governo e condenem vigorosamente a defesa que ele faz da compra de armas em vez do feijão.

Antes de esclarecer quem foi que disse essa frase, proponho que você reflita sobre qual seria sua escolha caso estivesse na mesma situação das pessoas que se viram forçadas a abandonar seus princípios e valores morais para não ver sua família morrer de fome. Se você acha que está imune por ser uma “pessoa de bem”, incorruptível, que está acima das paixões humanas mais comezinhas, detentora de uma postura ética inabalável quaisquer que sejam as circunstâncias externas, eu o convido a pensar duas vezes. Responder com orgulho, dizendo que preferiria morrer de fome a se dobrar à tentação de roubar um pedaço de carne, um pacote de arroz, pão ou leite, revirar latas de lixo ou correr atrás de um caminhão para pegar ossos descartados, é se atribuir uma natureza essencialmente angelical – ou, pior, divina – mas que, em nenhuma hipótese, guarda relação com a frágil e imperfeita condição humana.

Absolutamente tudo já foi dito a respeito dos problemas cognitivos, disciplinares, diplomáticos e administrativos do ex-capitão. É chegada a hora de analisarmos com coragem o perfil de seus eleitores em potencial. Tradicionalmente, os eleitores do Nordeste e de outras áreas carentes da periferia do país foram acusados de serem os responsáveis pela manutenção de oligarquias perversas no poder, por aceitarem cair na armadilha do voto de cabresto, em troca de uma dentadura nova ou um par de alpargatas. Agora, num cenário desolador de pandemia, desemprego, redução de poder aquisitivo e desesperança entre os mais jovens, são os eleitores ‘nem-nem’ [que não querem a volta de Lula nem a reeleição de Bolsonaro] os mais propensos a mudar sua intenção de voto e cristãmente oferecer a outra face e dar uma segunda chance ao Anticristo em pessoa, imaginando que ele saberá finalmente orientar sua reeleição para o atendimento das demandas mais primárias do povo sofrido e contemplá-lo com novas benesses. Ao menos é isso o que indicam as mais recentes pesquisas eleitorais.

É preciso admitir: somos todos tão reféns da violência política e ideológica obscurantista de Bolsonaro quanto as mulheres vítimas de violência doméstica que decidem voltar para os braços de seus agressores alegando que “ruim com ele, pior sem ele”. E, parafraseando meu colega de profissão, Gasparetto, só se desilude quem se ilude.

Será a fome uma força-motriz superior à comoção pela morte de mais de 670 mil brasileiros e à indignação com o brutal retrocesso da democracia brasileira, além do descarado desmonte dos projetos de proteção ao meio ambiente e da educação de qualidade que poderiam garantir nosso futuro? Se você pensa que sim, lembre-se que a fome já ameaça a vida de 33 milhões de conterrâneos e coloca contra a parede 61 milhões que vivem em insegurança alimentar. Se essa turma toda resolver, de fato, abrir mão de uma escolha moral nas próximas eleições, estaremos definitivamente fritos. Por isso, antes de começar a atacar nas redes sociais esse “povinho alienado”, o gado bolsonarista, os evangélicos fundamentalistas, e reclamar pela enésima vez que “brasileiro não sabe votar”, reflita sobre os fatores estruturais que deram origem à nossa tenebrosa desigualdade social e a mantêm incólume até hoje. E pare de poupar os farialimers, os empresários ligados ao agronegócio e os economistas que colocam o equilíbrio fiscal acima do bem-estar e da qualidade de vida da população.

Identificar seu ‘lugar de fala’ na análise do quadro eleitoral pode ser uma providência necessária mas não suficiente. Há uma série de tarefas mais sérias e mais urgentes a realizar antes de outubro próximo. A primeira delas, me parece, é que você se desvie das polêmicas externas de ocasião e encare a frio de que forma você historicamente contribuiu com seu voto para perpetuar a eleição de pretensos salvadores da pátria de todas as colorações ideológicas.

Aprender a distinguir as consequências de votar em um nome forte o bastante para se opor “a tudo o que está aí” e da escolha consciente de um projeto de país talvez seja a tarefa mais difícil que o aguarda. Se a terceira via não lhe apetece porque você não quer “perder o voto”, pense que mais uma vez você está impedindo a renovação dos quadros políticos nacionais e empurrando todo mundo a fazer mais uma impossível “escolha de Sofia”. Embora a jornada de mapeamento honesto de suas próprias motivações seja longa e dolorosa, é fundamental que você entenda que eleição presidencial não é o mesmo que votar em um ‘reality-show’ para decidir quem fica e quem sai. Achar que democracia é apenas depositar seu voto na urna, lavar as mãos e voltar para casa à espera do milagre da multiplicação dos pães é a forma mais segura de fomentar o desastre.

Portanto, se você não passa fome (ainda), a única escolha legitima que tem a fazer é se juntar às forças de oposição para promover a conscientização – de famintos e não-famintos – a respeito do que é cidadania responsável. Deixar-se levar por falácias do tipo “É tudo farinha do mesmo saco” não ajuda a fazer avançar nossa carcomida República.

Ah, já ia me esquecendo de contar que não foi nenhum economista, sociólogo, psicólogo ou filósofo que disse a frase acima. Ela apareceu de surpresa, no meio do capítulo final de uma novela, na boca do protagonista, um indivíduo que hesitava o tempo todo entre assumir de vez sua vilania ou fazer acreditar que era apenas vítima impotente de um destino cruel.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Do golpismo ao banditismo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Os mais jovens podem não saber, mas presidente golpista não é novidade por estas bandas. Basta folhear um livro de história para descobrir uma penca deles. Aliás, ao fazê-lo, a mais ingênua das criaturas vai entender que nossa república começou precisamente com um golpe.

O que há de novo no pedaço é um presidente que escala do golpismo de ocasião para o banditismo mais deslavado e explícito. Questão de caráter, não de contingências políticas ou ideológicas. Quem não o conhecia em 2018 e o comprou por medo de que o Brasil avançasse para um patamar um pouco menos desigual que o diga. Quem já o conhecia e, mesmo assim, apostou que ele se corrigiria e respeitaria ao menos as instituições republicanas e o decoro do cargo agora está de pires na mão, implorando pela clemência de seus pares para retomar algum grau mínimo de cidadania.

Em 5 de fevereiro de 2019, poucos dias após Bolsonaro completar um mês de governo, escrevi um texto alertando para os tempos sombrios que nos aguardavam sob sua batuta. Nele estavam registrados, além dos óbvios defeitos de caráter do recém-eleito, os projetos macabros que alimentaram a escolha de ministros, assessores, líderes do governo e presidentes de estatais. Prevendo que a explosiva mistura de religiosos fundamentalistas e militares subservientes ocupando cargos técnicos nunca poderia dar certo. Num dos trechos fiz questão de escrever que “por medo dos bandidos, a maioria concordou em pagar a milicianos para cuidar de sua proteção pessoal”. Vidência, visionarismo, mediunidade? Não, simples experiência de vida, atrelada a algum conhecimento de psicologia clínica – ainda que a psicologia, como ciência, não lide com questões de caráter.

Como dizia um espírita famoso e colega de profissão (Gasparetto), só se desilude quem se ilude. Quem passou a vida tentando mudar as crenças e comportamentos de seus pais, companheiros, filhos, amigos ou chefes – e se frustrou redondamente – sabe bem do que estou falando. As pessoas apaixonadas costumam acreditar que o outro possa mudar “por amor” a elas. Ledo engano. Se isso já não vale para as relações pessoais, imagine então o que pode ser esperado nesse ninho de serpentes peçonhentas que é a política brasileira.

O desrespeito às leis e às instituições é marco simbólico de toda a carreira pública de Jair Bolsonaro. Inútil elencar os escabrosos atos tresloucados do ex-capitão, cada um pode localizar algum malfeito mais a seu gosto. Mas ainda vale a pergunta: Como acreditar que um indivíduo incapaz de separar o que é público do que é privado poderia da noite para o dia se transformar em estadista respeitável internacionalmente? Ingenuidade tem limites, ora bolas.

Mais além da obsessão por transgredir, no entanto, está o cinismo covarde, a hipocrisia, a insensibilidade e a desfaçatez premeditada dessa criatura. Essa talvez seja a verdadeira e única novidade na presidência em todos os tempos. Antigamente, os políticos pegos com a boca na botija ainda se davam ao trabalho de fazer pronunciamentos indignados, repletos de linguagem empolada e termos incomuns da norma culta, destinados a convencer os mais crédulos de que eram seres impolutos, exemplos de probidade administrativa e simples vítimas de “perseguição política”. Hoje em dia, se já não bastasse a linguagem chula típica de botequim de beira de estrada e de prostíbulo com que o atual mandatário se dirige à nação, temos de lidar com o contínuo arremesso de responsabilidades à distância e de nos haver com bravatas inconsequentes, mentiras e desmentidos, seguidas por novas mentiras e novos desmentidos.

Não bastasse o golpismo explicitado nas manifestações do 7 de setembro passado e rapidamente minimizado como infeliz resultado do “calor do momento”, o Anticristo tupiniquim agora anuncia destemido a repetição da façanha para este ano. Quer mostrar de forma cabal “de que lado o povo está”. Fiquei pensativa: lembrei do apelo do “não me deixem sozinho” de Fernando Collor, que deu no que deu. Mas, ainda perplexa, me indago: e se as ruas e praças das capitais se encherem com multidões de devotos violentos repetindo a plenos pulmões “eu autorizo”, como reagirão as oposições e o Judiciário? Haverá guerra civil, cancelamento das eleições ou a pressão interna e internacional se encarregará de botar freio no ânimo demolidor do déspota?

Não fosse suficiente a sustentação indisfarçada de alguns militares de alto coturno para a aventura golpista, ele agora decide fechar com chave de ouro sua carreira de banditismo profissional com um inédito crime de lesa-pátria: ir buscar o apoio do presidente dos Estados Unidos para tentar impedir a ascensão de seu adversário. Aparentemente, continua apostando no cansaço e no esgarçamento das forças democráticas. Resta saber se vamos ser capazes de ressuscitar os caras-pintadas, pegar em armas mais uma vez para defender a pátria dos seus algozes ou se Deus, brasileiramente, vai dar um jeitinho de demonstrar que ele não é nem imorrível nem imbrochável.

É, pois, em nome de Marielle, de Bruno Silveira e Dom Phillips, de tantos jornalistas atacados grosseiramente, das crianças e jovens pretos da periferia mortos por violência policial, dos mortos pela pandemia e dos que estão perto de morrer pela fome que eu pergunto: como você vai justificar – não só para terceiros, mas principalmente, para sua própria consciência – sua intenção de votar nele outra vez? Ou vai continuar achando que o tal bicho-papão do “comunismo” é um mal maior a ser enfrentado?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

E eu com isso?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Quando a polícia carioca, mesmo contra a determinação do STF, intensificou as operações contra o tráfico de drogas nas favelas que resultaram em dezenas de mortes de moradores e pessoas que não tinham nada com isso, fiquei chocada com a violência desmedida mas não protestei porque não moro no Rio de Janeiro nem em comunidades de morro.

Quando a polícia paulista introduziu desafiadoramente blindados e atiradores de elite nas recentes incursões na Cracolândia, fiquei aterrorizada com a possibilidade concreta de reação armada dos traficantes e consequente morte indiscriminada de passantes e moradores, mas segui em frente cuidando dos meus afazeres porque não sou viciada, nem tenho parentes e amigos nessa condição, e também não moro nas adjacências.

Quando a polícia rodoviária federal de Sergipe jogou gás de pimenta e gás lacrimogêneo dentro de uma viatura matando um esquizofrênico negro cujo único deslize era estar pilotando uma moto sem capacete, fiquei indignada com a inadmissível barbárie, mas acabei me distraindo com a necessidade de cuidar da minha própria sobrevivência: afinal, os preços dos alimentos estão pela hora da morte, os planos de saúde já são impagáveis e ninguém consegue encontrar estabilidade financeira, nem empregos mais bem remunerados.

Quando chuvas torrenciais ocasionaram centenas de mortes em diversos estados brasileiros, fiquei, é claro, entristecida diante de tanta dor e sofrimento, mas lembrei que isso é consequência inevitável do aquecimento do planeta – e que, portanto, resta muito pouco para nossas autoridades fazerem para evitar a repetição dessas tragédias. Além disso, não moro em área de risco e respeito o meio ambiente, fazendo coleta seletiva.

Quando bandidos disfarçados de entregadores de moto passaram a assaltar e, por vezes, matar pedestres desavisados para roubar seus celulares, comecei a me sentir um tanto insegura, mas logo espantei as sombras porque não uso celular em público e nunca ando sozinha à noite. É bem verdade que tenho irmãos, sobrinhos e amigos que se expõem a esse risco, mas sei que eles estão um pouco mais protegidos por não circularem em bairros de periferia e morarem/trabalharem em áreas onde há maior presença de forças de segurança.

Quando o número de casos de violência doméstica, feminicídio e pedofilia começou a crescer em função do confinamento na pandemia, roguei a Deus que ela terminasse o mais rápido possível e que nossas autoridades encontrassem algum jeito de serem mais efetivas no combate a esses males; mas não me incomodei tanto, uma vez que moro sozinha e não tenho filhos.

Em suma, sei e sinto que involuímos como sociedade, que a realidade brasileira adquiriu tons surreais e macabros e que não há perspectivas concretas de construirmos um futuro promissor para nossa pátria. No entanto, mesmo perplexa com tantas catástrofes, permaneço fiel a meus princípios democráticos: sou uma cidadã de bem, cumpridora dos meus deveres sociais, pago meus impostos regularmente, sou instruída, bem-informada politicamente, temente a Deus e não me meto na vida das pessoas. Se ao menos meus compatriotas entendessem que a cada ação corresponde uma reação, as coisas seriam muito mais fáceis de administrar, tenho certeza.

Sou a favor das liberdades individuais: cada um que cuide do seu próprio nariz e evite como puder colocar-se em situações de perigo e confronto social, racial, religioso, político e de classe.

E você?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A régua

Myrthes Suplicy Vieira (*)

 


“O homem é a medida de todas as coisas”

Protágoras


 

Bolsonaro ouviu o canto do galo do poder absolutista mas até hoje não descobriu de onde ele vem, nem que tipo de vocalização lhe seria necessária para reproduzi-lo com sucesso por aqui. Escutou o canto da sereia mas, acreditando que não passava de singela homenagem de seus seguidores fardados, desatou-se do mastro e jogou-se atabalhoadamente na água.

 

Freud e Paulo Freire
Tivesse algum dia se dado ao trabalho de esmiuçar o pensamento desse e de outros filósofos da antiguidade, saberia que tudo é relativo, inclusive e principalmente sua autoridade. Imediatista, megalomaníaco, voluntarista e incapaz de pensamento crítico, ele confunde alhos com bugalhos e costuma tomar a parte pelo todo – provavelmente entenderia a palavra homem como simples indicador de gênero. Acreditando ser ele próprio medida de tudo à sua volta, julga que o Brasil e o mundo deveriam se curvar à sua paralela noção de realidade, aos seus princípios morais (ou falta deles), às suas vontades e ambições.

Tivesse lido Freud alguma vez, saberia que seu psiquismo está fixado na fase de onipotência típica de Sua Majestade, o Bebê. Entenderia que nessa etapa primitiva do desenvolvimento psíquico não existe mundo fora dele e a mãe (pátria) é apenas um seio que jorra leite sempre que requisitado. Tudo leva a crer que, por circunstâncias familiares adversas (mãe omissa e pai castrador), Bolsonaro jamais superou a fase do narcisismo infantil e regride continuamente à ilusão de poder inquestionável sempre que se sente ameaçado por alguma autoridade externa.

Tivesse ido além do título do livro de Paulo Freire, compreenderia que “se a educação não é libertária, o sonho do oprimido é se tornar opressor”. Se educar é frustrar, como postulam os especialistas, ele nunca se deixou educar para a cidadania. Sua formação militar o ajudou a radicalizar a noção de que toda obediência tem de ser necessariamente cega, acrítica: afinal, soldados não são feitos para pensar. No entanto, num arroubo juvenil e ainda apostando em sua superior autoridade moral, achou um dia que poderia subverter o dogma supremo da hierarquia militar. A humilhação máxima que sofreu ao ser expulso do exército por transgressão marcou sua personalidade para todo o sempre.

 

A ferida narcísica
A profunda ferida narcísica que se abriu em seu peito e o ressentimento acumulado desde então tornaram-se a marca registrada de sua atuação no mundo político e transformaram o caráter de virilidade tóxica – compensatória de sua impotência – em marco distintivo do bolsonarismo. Dando sequência ao seu complexo de Édipo embutido e jamais resolvido, Bolsonaro e bolsonaristas continuam tentando a todo custo matar o Pai Supremo, simbolicamente representado pelo Judiciário e encarnado na figura de Alexandre de Moraes, antes que sejam eles próprios castrados.

Desde que assumiu o poder em 2019, ele se comporta literalmente como se tivesse comprado a fazenda Brasil de porteira fechada. Dono de todas as consciências, ele não se cansa de instituir como regra que a ninguém é dado enxergar o mundo com outras cores ou rebelar-se contra seus éditos, uma vez que “autorizado” por seu povo e seu exército.

 

O STF e a Constituição
Professor de Deus, ele vem dando aulas diárias de constitucionalidade aos ministros do Supremo. Exibe em tom ameaçador seu douto saber jurídico, abordando temas de alta relevância para a democracia e o estado de direito, afetos principalmente ao conceito de liberdade de expressão, mas se aventurando também em questões secundárias, como a demarcação e exploração de terras indígenas, os limites de ação da Petrobrás na determinação de preços e as exigências legais imprescindíveis para a realização de eleições limpas e auditáveis.

Pontifica livremente sobre critérios de inocência e culpabilidade de parlamentares e membros do seu governo, sobre liberdade de imprensa, sobre equilíbrio e autonomia dos três Poderes da República, sobre o “interesse público” da não-adoção de medidas que beneficiariam minorias e sobre tudo o que causa “legítima comoção” na população brasileira, como se ela estivesse contida como um todo no seu grupinho de aliados e apoiadores.

 

Meu reino, meu gozo
Reinar sozinho, sem se sentir constrangido pelos tais pesos e contrapesos democráticos, seria sua única possibilidade de gozo orgástico – e ele sabe que nunca o poderá atingir graciosamente. Para chegar lá, seria preciso ter capacidade de entrega, abrir mão do desejo de ser o condutor e deixar-se ser conduzido no balé amoroso, o que lhe é impensável. Se não vai por bem, deve raciocinar, então é legítimo que se faça pelo estupro das instituições democráticas.

Mas não lhe basta o poder secular. Precisa também fazer seus apóstolos acreditarem que ele possui traços divinos de liderança carismática: a obsessão pela verdade que liberta, o pendor pastoral (“Eu sou, realmente, a Constituição”), acreditar-se ungido pelo próprio Deus para conduzir os destinos da nação.

 

Cloroquina e ivermectina
Como iluminado defensor das liberdades individuais, transgredir é com ele mesmo. Quanto mais normas legais forem quebradas em sua gestão, mais sente seu poder fortalecido e reforçada a crença de que ele é a única régua admissível para medir acertos e erros na condução dos negócios públicos – como transformar reserva natural em polo turístico, defender o trabalho infantil, defender a tortura, defender o excludente de ilicitude para policiais e militares, armar a população civil ou eliminar os radares de trânsito.

Na sua visão, é mera questão de tempo para que a OMS declare oficialmente que as vacinas são, de fato, experimentais e que foi um erro usá-las para substituir a cloroquina e a ivermectina, já que, além de custarem muito caro, podem ter efeitos colaterais inaceitáveis, como causar Aids em adolescentes ou miocardite em crianças, ou ainda conter chips para transformar pessoas em robôs. Ou para que o Supremo declare que, “dentro das quatro linhas da Constituição”, só ele teria o direito de decretar confinamento na pandemia, e interdite governadores e prefeitos que não seguissem a orientação federal. Sociólogos, filósofos e historiadores também se renderão um dia ao fato de que o nazismo foi um movimento de esquerda e que é possível perdoar o Holocausto mas não esquecê-lo, uma vez que “quem esquece seu passado não tem futuro”.

 

O psiquiatra aprendiz
Sua mais recente – e estupefaciente – incursão foi no universo da psiquiatria. Demonstrando sua expertise na área de psicopatologia aplicada à política, alertou para os eleitores ainda indecisos: só um “imbecil ou psicopata” defende a volta do AI-5.

Campeão mundial de atos falhos, resta saber se ele mais uma vez se autorrotulou sem querer (“O chefe do executivo mente”) ou se a crítica velada ao comportamento padrão de seus apoiadores mais exaltados foi só uma maneira de recriminá-los por vazarem antes da hora a intenção de golpe caso fracasse nas urnas. Ou talvez ainda ele tenha imaginado que, se vencedoras, as hostes de esquerda vão tentar instituir a ditadura do proletariado e, assim, roubar dele a bandeira do fechamento do Congresso e do STF.

Vale conferir com o psiquiatra-chefe de plantão após a abertura das urnas.

 

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Conservadorismo e defesa da família

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Eu estagiava num hospital psiquiátrico, como parte obrigatória da graduação em psicologia clínica. Uma de minhas pacientes era uma jovem franzina, tímida, na casa dos vinte e poucos anos, que pouquíssimo falava sobre sua vida pregressa. Dado seu mutismo quando questionada sobre as emoções que se agitavam em seu universo interior, era difícil para mim obter informações confiáveis sobre os motivos que a haviam levado a ser internada e que alimentavam delírios religiosos frequentes.

Decidi então submetê-la ao teste de Rorschach para colher subsídios que pudessem determinar a melhor forma de abordar o caso. Esse teste, também chamado de “teste dos borrões de tinta”, consiste na apresentação, em uma sequência padrão, de 10 pranchas com manchas aleatórias, em branco e preto ou coloridas, e a solicitação de interpretação simbólica das figuras formadas – mais ou menos como acontece na brincadeira de identificar formatos nas nuvens em movimento no céu que se pareçam com pessoas, animais ou objetos.

A cada prancha apresentada, ela respondia com uma evidente mistura de curiosidade e medo. Depois de se deter por alguns minutos escaneando visualmente mas em silêncio os detalhes com total interesse, ela se retraía súbita e inexplicavelmente, dizendo: “Não estou vendo nada… só meu pai consegue ver”. O comportamento e a frase esdrúxulos se repetiram ao longo de todo o teste. Cada vez mais intrigada com aquela clara proibição interna de revelar conteúdos profundos, resolvi então reapresentar as 10 pranchas, uma a uma, perguntando: “O que seu pai vê aqui?”

Naquele instante, o psiquiatra que supervisionava o estágio entrou na sala e me lançou um olhar furioso. Como eu ousava alterar as regras do jogo irresponsavelmente, confundindo ainda mais a cabeça da garota? Fiz um intervalo, saí da sala e contei a ele o que estava acontecendo. Expliquei que, como o teste é projetivo, isto é, depende da projeção de percepções, emoções e sentimentos pré-existentes no psiquismo do paciente e que só são liberados quando há autorização da censura interna, eu precisava apostar que ela estaria driblando a própria censura ao assumir as percepções do pai como suas e trazendo à tona os elementos necessários para compreender as razões de sua falta de autonomia. Ele consentiu.

Minha estratégia foi um sucesso. Ela produziu um farto material para investigação, na maior parte das vezes com conteúdo de violência sexual. Entrou num frenesi verborrágico ao entrar em contato com uma prancha em que há uma mancha vermelha, com respingos espalhados sobre um fundo preto, que interpretou em meio a muita angústia como vagina sangrando, penetração violenta, sensação de fragmentação do corpo.

Comecei a escarafunchar o histórico familiar da paciente, na tentativa de descobrir as raízes dessas percepções. Sabia que o pai da garota era pastor de uma igreja fundamentalista cristã e era tido na comunidade como modelo de moralidade exemplar. No entanto, ninguém sabia informar como eram as relações dele no interior da família, com a esposa e com a filha.

Contrastando o material colhido no teste com esses fatos, foi-se revelando aos poucos que a garota não só era vítima aterrorizada de um pai autoritário, que se pretendia também possuidor de moralidade religiosa inatacável, mas havia sido estuprada seguidas vezes por ele e dele havia engravidado aos 14 anos. Forçada a abortar para não manchar a reputação do pai na comunidade, com o silêncio cúmplice da mãe, ela colapsou sob o fardo da opressão sexual e enlouqueceu.

Diagnosticada como esquizofrênica, ela passou a ter delírios religiosos, durante os quais se via como a Virgem Maria, a única pessoa isenta de pecado que poderia aceitar a missão de conceber o filho de Deus, representado pelo pai pastor. A morte forçada do filho também se encaixava à perfeição nesse contexto de autoridade divina inquestionável. Só ele sabia o que era melhor para ela e ela não podia duvidar das intenções e desígnios “sagrados” dele.

Sem o saber, eu havia encostado num fio desencapado em que entravam em curto o horror sexual real e a fantasia da pureza espiritual. Ela se refugiava nas alucinações místicas para escapar da loucura de sua realidade familiar. A partir dali, percorremos juntas toda uma Via Crucis de reinterpretações, avanços, quedas e retrocessos, até que ela se abrisse para a possibilidade de ajuda terapêutica. Esse caso me ajudou a entender não só o papel da cisão esquizofrênica na tentativa de restaurar a coesão do Eu mas também a aprofundar minha compreensão da violência contida na estrutura patriarcal de nossa sociedade.

Agora, com a campanha eleitoral de 2022 já em andamento, constato estarrecida que um grande número de candidatos insiste em apresentar-se ao público como “conservador”, repisando orgulhosamente o tema da “defesa da família” como trunfo eleitoral. Inevitavelmente, o caso dessa jovem esquizofrênica volta à minha cabeça e me força a perguntar: A qual família eles se referem, afinal? À família patriarcal, branca, de classe média/alta, heteronormativa? Àquela mesma família em cujo seio se instala a imensa maioria dos casos de pedofilia, estupro, abuso sexual, perversões e violência doméstica? Àquele tipo de família em que deve haver um abafamento compulsório de casos de homossexualidade e transgeneridade, mesmo que isso termine em suicídio de crianças e jovens?

Se é a esse tipo de família que precisamos voltar para reestruturar nossa sociedade, estamos de fato perdidos. Se ele fosse realmente tão poderoso para gerar harmonia social, convivência democrática e progresso, por que vivemos tempos tão sombrios de ódio e intolerância radical? Quando a esse modelo patriarcal se junta a noção de um Deus Pai todo-poderoso, guardião dos costumes para o alcance de elevação espiritual, não há como vislumbrar um futuro de mínima sanidade psíquica, de respeito às diferenças e de reafirmação da cidadania para o avanço das pautas das minorias.

O foco central da família patriarcal cristã sempre esteve na exigência de pastoreio rigoroso da sexualidade… feminina apenas, é bom lembrar. Segure suas cabras que meu bode vai sair para pastar. O duplo padrão de moralidade sexual do patriarcado continua a se vender como salvação da lavoura nacional ‘against all odds’ e, no atual contexto de direito à “liberdade de expressão” sem limites, deriva muitas vezes para um padrão de masculinidade tóxica que ainda seduz politicamente muitas cabeças jovens.

Claro que há famílias saudáveis, bem-estruturadas e funcionais em todos os estratos sociais, raciais e religiosos, mas ninguém se atreve a questionar de que forma esse modelo fantasiado de família de comercial de margarina se encaixa com a realidade da imensa maioria das famílias brasileiras em que as mulheres são as chefes, as provedoras e os modelos inspiracionais, em meio a muita carência, fome, desemprego e violência sexual/social.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Minha Páscoa estragada

Myrthes Suplicy Vieira (*)

A bem da verdade, não foi apenas a atual que foi conspurcada. Foram 21 Páscoas minhas estragadas, justo no período que deveria ter sido o mais produtivo e de mais efervescente participação social da minha vida. Longuíssimos 21 anos em que eu e muitos de meus compatriotas fomos forçados a percorrer em silêncio e impotência todas as estações da Via Crucis da ditadura militar e a reviver em agonia todos os anos o martírio da carne de nossos companheiros seviciada impunemente. Para meu desconsolo, a elas juntam-se agora mais três Páscoas estragadas, contaminadas pelo veneno do descompromisso de nossas elites civis e militares para com a vida e a dignidade humana.

Não sei se o indigníssimo general se deu conta em algum momento de que seu pronunciamento foi feito exatamente em referência ao dia em que os cristãos celebram a vitória do espírito sobre a carne. Ao dia da Ressurreição do compromisso cidadão (mais do que cristão) com o combate à desigualdade, com o respeito às diferenças e com a justiça social. Não, é mais do que provável que ele não tenha percebido. A Páscoa, para ele, deve ser apenas mais um feriado de comilança com a família, depois do tempo do jejum forçado. Aquele dia tão aguardado em que o gosto amargo de sangue em suas bocas pode finalmente ser substituído pelo sabor doce da consagração do princípio do excludente de ilicitude.

Tivesse compreendido que ‘mesmo calada a boca, resta o peito’, não teria se dado ao luxo de debochar de maneira tão afrontosa de nossa dor, de nossas feridas mal cicatrizadas que voltam a sangrar sempre que somos atingidos por novos golpes de desfaçatez. Pensando bem, é até compreensível que ele se dirija à nação como se dono fosse do país e da razão: não está acostumado a perguntar a opinião de seus comandados. Foi treinado para mandar, não para o exercício da cidadania.

Para sustentar sua indiferença arrogante, o Pilatos de plantão deve ter partido da premissa de que foi uma escolha de nossa sociedade – representada por todas aquelas senhoras cristãs da Marcha da Família com Deus pela Liberdade – a implantação de um regime de horror e exceção. Afinal, tudo estava uma bagunça e havia o risco de uma ditadura comunista, não é mesmo? Estava claro o que os mais céticos nunca conseguiram compreender: a urgente necessidade de implantar um regime autoritário de direita para impedir a ascensão do autoritarismo de esquerda. Mas, por um descuido, por um desses raciocínios matemáticos incompreensíveis, ele pulou de uma equação a outra e acabou não conseguindo explicar a conexão lógica entre a necessidade da tortura e o pleno restabelecimento da democracia.

Desculpe minha ignorância, general. Não compreendo muito bem as razões estratégicas de Estado para conduzir a nação com mão de ferro a seu destino glorioso de paz e harmonia social. Deve ter sido um ‘mal necessário’ para alcançarmos o ‘bem’ de uma vida civilizada, disciplinada, em que os de farda se locupletam e os sem farda se contentam resignados com a evidente impossibilidade de restauração da moralidade. Pena que nem todos, como eu, compreendamos a nobreza patriótica dos atos das Forças Armadas nos porões do Doi-Codi.

Para ser sincera, seu pronunciamento fez-me lembrar a prepotência da patricinha alienada que reage às cobranças de maior sensibilidade social dizendo: “O que vem de baixo não me atinge”. Perdão mais uma vez, general. Nós, aqui de baixo, não conseguimos visualizar a estrada toda, só os descaminhos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A síndica

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Tem gente que se torna praticamente virtuose na arte de manipular emocionalmente outras pessoas. Sua expertise é provocar a fúria de qualquer um que atravesse seu caminho, fazendo comentários desrespeitosos sobre características que a pessoa não tem como controlar (como cor da pele, gênero, deficiências físicas ou mentais), desqualificando moralmente seus oponentes e abalando sua autoestima.

Um dos pontos-chave dessa estratégia é que a ofensa seja feita sempre de forma sorrateira, indireta: é preciso que o agressor pegue o outro desprevenido, seja através de uma postura inicialmente amistosa, seja através de um raciocínio ferino rápido durante a conversação que pareça ocasional, não-intencional. O emprego de um tom de voz contido ou jocoso colabora para que a intenção de causar descontrole emocional no noutro se concretize mais rapidamente. O lado triste é que, quando a vítima finalmente sai do sério, retrucando de forma intempestiva, ela não está dando uma resposta à altura, mas apenas reforçando a eficácia da estratégia e confirmando o poder demolidor do agressor.

As mulheres sabem bem como isso funciona. Acuadas por frequentes comentários discriminatórios a respeito de sua competência técnica ou autoridade para liderar grupos, ou ainda por observações de baixo nível (normalmente de cunho sexual), se reagem chorando ou estapeando o agressor, lá vem a velha cantilena: “Mulheres são instáveis emocionalmente, não têm sangue frio para lidar com situações de tensão, não têm senso de humor”. E o agressor, impune e com presumido ar de espanto, se rejubila com a comprovação na prática de suas teses.

Forçoso é admitir que, para que a estratégia funcione, o agressor precisa possuir algum resquício de inteligência. Precisa saber que não pode levantar acusações diretas aos berros, uma vez que isso demonstraria para os circunstantes que ele também não consegue controlar seus impulsos. Precisa saber identificar com antecedência qual é o posicionamento exato de seu oponente na escala reativa que vai de “sangue de barata” a “pavio curto”. Precisa impedir a qualquer custo que os circunstantes se alinhem com a vítima e saiam em defesa dela. Um caso emblemático desse tipo de expertise é o que eu relato abaixo.

Todo mundo sabe como os síndicos costumam ser malvistos pelos moradores de um condomínio. As razões para esse estereótipo são muitas: postura autoritária, moralismo, tentativas de interferência na vida particular dos moradores, formação de panelinhas no atendimento às demandas dos moradores, suspeitas de apropriação indébita ou de má gestão orçamentária, dentre muitas outras.

No condomínio onde moro não foi diferente. A síndica de ocasião era uma senhora de cerca de 80 anos, que se apresentava como especialista em administração de pessoal, contabilidade, legislação trabalhista e fiscal. O síndico anterior havia sido acusado de desviar dinheiro do condomínio. A eleição dela representava, portanto, a esperança de uma faxina completa nas contas do condomínio.

Era uma pessoa altiva e austera mesmo fora das funções de síndica. Ríspida no trato com moradores e funcionários, logo começou a causar um sem-número de conflitos. Sentia-se à vontade para legislar sobre novas regras de convivência caso a convenção do condomínio fosse omissa nesse sentido. Gritava com crianças e adolescentes que brincavam no jardim do térreo pisando na grama, ou ouviam música alto. Vira e mexe soltava uma circular recriminando hábitos dos moradores que, segundo ela, contrariavam a imagem de um condomínio “de classe”.

Uma das coisas que mais a irritavam era o contato afetivo próximo dos moradores com os porteiros. Alegando questões de segurança, ela passou a proibir que o contato fosse além do ‘bom-dia’. Mandou reformar a portaria, colocando-a num plano mais elevado e revestiu os vidros com filtro escuro. Proibiu os funcionários de se afastarem do posto mesmo que por alguns segundos para ajudar moradores com sacolas de compra ou problemas de locomoção.

Ao longo do tempo, sua especialidade mostrou ser mais especificamente a de tirar os moradores do sério, tratando-os como subordinados. Para isso, ela não economizava adjetivos pejorativos e humilhações em público. Chamou a mãe de uma moradora, de quase 90 anos, de esclerosada. Acusou, sem provas, um morador eletricista de ter feito uma gambiarra na antena de tevê para ter acesso indevido a canais pagos. Certa vez, depois de ter brigado com um morador gay por seu comportamento espalhafatoso, interfonou para meu apartamento, pedindo que eu alertasse a mãe dele de que ele “não valia a comida que a mãe preparava”.

Intimidados, os condôminos deixaram de recorrer a ela para resolver quaisquer pendengas. Temendo serem a próxima vítima de seus maus bofes, limitavam-se a comentar em voz baixa pelos corredores os absurdos mais recentes. A tensão escalou sem controle até o dia em que ela resolveu confrontar um morador que era um ex-militar aposentado por distúrbios psiquiátricos. Como o homem tinha surtos frequentes de agressividade e andava armado, representava um páreo duro para a intempestividade dela. Certo dia, ao passar em frente ao escritório da administração, ele foi questionado sem meias palavras se não se envergonhava de ser “encostado na mulher”, que trabalhava dia e noite para sustentar a casa, enquanto ele levava uma vida fútil, cuidando apenas de sua cachorra.

Foi o que bastou: furioso, o homem invadiu o escritório e estapeou a síndica sem dó nem piedade. Pega no contrapé pela primeira vez, ela registrou um boletim de ocorrência, mandou trancar a porta da administração e deslocou um vigia para fazer sua segurança 24 horas por dia. Contratou um advogado e exigiu que os moradores pagassem por seus serviços, alegando que estava no exercício de suas funções quando da agressão. O rebuliço foi total. Logo os moradores se dividiram, uns apoiando uma mulher idosa vítima de agressão e outros justificando a perda de controle de um homem aviltado em sua honra, já sem muitos freios racionais.

Por fim, um grupo de moradores decidiu organizar um abaixo-assinado para a realização de uma assembleia extraordinária, em que se discutiria o afastamento definitivo da síndica em função de tantas polêmicas. Para que ninguém fosse alvo isolado de fúria, ficou combinado que cada morador apresentaria de própria voz as circunstâncias de seu embate pessoal com ela. Informada dessa tática e vendo que não teria como contraditar cada caso, poucos minutos antes do início da assembleia, a síndica apresentou sua renúncia por escrito.

Aprendi com essa mulher que não há uma forma 100% eficaz de reagir a esse tipo de manipulação emocional, nem mesmo o silêncio despeitado. No limite, pode-se respirar fundo, perguntar-se se há um fundo de veracidade no comentário insultuoso e retrucar usando da mesma técnica: a ironia ou o sarcasmo.

Certa vez, quando nos encontramos no corredor e ela pretendeu me ensinar a melhor forma de embalar o lixo para que ele não provocasse mau cheiro, olhei para ela espantada e emendei com toda coragem: “Nossa, me desculpe, devo estar ficando com Alzheimer! Imagine a senhora que eu não me lembro de ter pedido sua opinião…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Das intenções

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Um fenômeno relativamente recente espalha-se pelo mundo como praga. Filho dileto do pensamento dicotômico, da polarização sem sentido, da mania de enxergar o mundo em preto e branco e de raciocinar sempre em espelho, ele ganhou em inglês o título de ‘whataboutism’.

O nome pode ser complicado de entender mas é uma das características mais marcantes da bipolaridade da cultura brasileira. ‘What about…?’ pode ser traduzido como ‘E quanto a…?’. Refere-se a uma tática comum de conversação em que, ao invés de responder diretamente a uma crítica, assumindo-a como pertinente e legitimando-a (ou não) na resposta, opta-se por desviar do assunto em pauta e focar na contracrítica à isenção (ou ao caráter) de quem levantou a discussão pela primeira vez. É um jeito matreiro de demonstrar que a crítica está por princípio invalidada pelo simples fato de que o outro lado também não pode ser considerado totalmente isento de miopia, viés ideológico, preconceito, parcialidade, culpa ou responsabilidade.

Se você ainda não ligou o nome à situação, é fácil lembrar como isso acontece entre nós. Alguém critica alguma medida controversa da administração Bolsonaro e lá vem a indefectível pergunta: “E o PT? E o Lula?”. E o debate se arrasta interminavelmente em torno de quem teria feito mais mal ao país, a corrupção das esquerdas ou a contínua destruição do patrimônio natural e das instituições democráticas brasileiras promovida pela extrema-direita. Embora fosse possível esperar que levar em consideração os argumentos dos dois lados da disputa implicasse maior transparência ou racionalidade na abordagem, não é isso o que acontece: ao contrário, o maniqueísmo só se aprofunda e interdita a manifestação de neutralidade, acusando-a de “ingenuidade”, analfabetismo político ou alienação. A ninguém ocorre perguntar: se os dois lados são perniciosos, como escapar da armadilha da polarização e promover a emergência de uma terceira via responsável, como deixar de votar em nomes e passar a pensar em termos de projetos de futuro para o país ou, no limite, como desapegar da ideia de que só um salvador da pátria pode nos tirar do atoleiro em que nos metemos.

Os exemplos abundam, cada um deve ter seu preferido no noticiário nacional ou internacional. Agora, diante da invasão da Ucrânia, o whataboutism ressurge poderoso, reeditando o patrulhamento ideológico dos tempos da ditadura militar, como numa espécie de indagação irritada sobre o ‘lugar de fala’ de cada parte envolvida nas críticas. Só que, desta vez, ele vem ineditamente mancomunado com outro mecanismo psicológico perverso que passei a chamar de ‘gaslighting’ geopolítico. Ou seja, toda vez que alguém posta um elogio à resiliência dos ucranianos e à coragem e espírito patriótico de Zelenski – e as mulheres são maioria, nesse sentido – muitos analistas deixam no ar a suspeita de que se está “romantizando” a guerra e vendo o líder ucraniano como uma espécie de Príncipe Valente que veio salvar a donzela fragilizada e acuada.

Verdadeiros batalhões – tanto de direita quanto de esquerda – se mobilizam para demonstrar que não há inocentes no conflito, que a Ucrânia está pagando o preço de cutucar irresponsavelmente onça com vara curta, que Zelenski teve várias oportunidades de negociação com a Rússia antes da guerra e as descartou, que é um ‘inocente útil’ manipulado pelo imperialismo dos EUA e pelo expansionismo da Otan – lembrando que ambos têm as mãos sujas de sangue inocente e, portanto, não têm moral para acusar Putin de terrorismo de Estado. Todos sempre se pretendendo especialistas em conflitos no leste europeu, agregando “informações privilegiadas” obtidas em jornais e revistas especializados ou alegando possuírem contato com fontes mais confiáveis entre os ‘insiders’.

No Brasil, ao whataboutism vieram ainda se juntar duas outras bestas apocalípticas: a defesa irracional da liberdade de expressão sem limites (mesmo que ela signifique o direito de injuriar terceiros e atacar a democracia) e da supremacia das liberdades individuais em desfavor dos interesses coletivos. Não é só na política que usamos e abusamos desse tipo de cacoete intelectual. Desde o direito ao aborto, passando pela inaudita violência contra mulheres, gays e trans, as cotas raciais nas universidades, o viés do judiciário que não enxerga o abismo de desigualdade social, até a substituição da adoção de bebês humanos abandonados por filhos de 4 patas, nos damos cotidianamente ao luxo de manifestar desapreço pela conciliação de diferentes princípios éticos e visões de mundo.

Diferentemente do que acontece com os animais, o discurso humano é sujeito a um sem-número de mal-entendidos. Como dizia muito apropriadamente o psicanalista Lacan, você pode saber o que disse mas nunca o que o outro escutou. A escolha das palavras, o tom de voz, a postura corporal e o gestual que empregamos ao defendermos uma ideia são todos dependentes da interpretação de seus significados. Isso nos remete inexoravelmente ao reino das intenções.

E o terreno das intenções é pantanoso e impenetrável por princípio, já que só se pode lidar com suposições. Questionar-se a respeito das reais intenções de quem justifica a guerra levantando bandeiras como ‘desnazificação’ da Ucrânia ou a nobreza de intenções de quem defende a paz, suspeitando do alastramento da ‘russofobia’, só eleva o conflito a um novo patamar de tensão. O subtexto da guerra psicológica ora em curso agrava sobremaneira nossa já combalida consciência cidadã e certamente terá reflexos importantes sobre a próxima campanha eleitoral.

É de se esperar que assistamos em breve a um forte recrudescimento das teorias conspiratórias, a novos delírios persecutórios decorrentes do inesperado reagrupamento das forças que se diziam anteriormente “anticomunistas” e “patrióticas” e da triste ideia que as minorias devem se curvar diante da vontade da maioria. Preferencialmente, sem nem tentar lutar pela abertura de novos espaços de conciliação.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Brasil: um país para não-amadores

Myrthes Suplicy Vieira (*)

A primeira vez que me dei conta da imensa importância da energia elétrica – e do gigantesco estrago que ela pode causar na vida das pessoas comuns caso falte por alguma razão – foi quando a luz acabou no prédio da empresa em que eu trabalhava.

Eu atuava no RH da companhia e minha sala ficava no primeiro andar. Naquele momento, eu estava finalizando a contratação de um funcionário e precisava esclarecer alguns pontos da remuneração a que ele teria direito com o departamento financeiro – que, para meu desgosto, ficava no quarto andar. Como a coisa era urgente, subi pelas escadas e me deparei com uma pá de funcionários inertes, recostados em suas cadeiras, braços cruzados e olhar perdido na distância. O silêncio era geral e todos pareciam resignados com a situação, esperando obedientemente que a energia fosse restabelecida para entrar novamente em ação, como cachorros adestrados para não se mover até que um apito ou tiro fosse disparado.

Surpresa e incomodada com a apatia geral, tentei fazer o supervisor resolver o problema fazendo contas à mão mesmo, já que o recém-contratado não podia esperar. Ele me olhou com ar de perplexidade, como se eu lhe estivesse pedindo para escalar o Everest sem cordas. Respondeu que seria impossível, uma vez que teria de fazer cálculos complexos para posicionar os benefícios previstos para o cargo proporcionalmente à remuneração dos demais funcionários do setor a que a pessoa iria pertencer.

Foi minha vez de ficar perplexa. Perguntei se não havia alguma calculadora manual que pudesse dar conta do recado. Ele balançou negativamente a cabeça, sem disfarçar uma careta de desdém. Era como se ele me dissesse: Como assim? Calculadoras manuais são objeto de interesse de museus, mas não de uma empresa multinacional como a nossa. Não pude deixar de pensar no meu velho pai, também contador, que varava madrugadas a fio fazendo e refazendo suas contas incansavelmente na ponta do lápis. Não gostava de calculadoras e nunca se permitiu aprender a lidar com computadores.

É curioso como a gente desaprende certas habilidades ao terceirizá-las para máquinas. Se você teve de redigir algum texto mais longo à mão nos últimos anos, sabe do que estou falando. Se precisou lembrar do número do telefone de algum conhecido sem dispor de uma agenda eletrônica, também. Até hoje me pergunto como os mais jovens fazem para reter os aprendizados escolares se sua memória foi integralmente delegada ao Google.

Voltou à minha cabeça um acidente aéreo acontecido na rota São Paulo – Belém do Pará. O piloto havia se distraído ao inserir o código da região de destino no computador de bordo e só percebeu o engano depois de horas sobrevoando a floresta amazônica sem enxergar o aeroporto em que deveria pousar. A bordo havia um mateiro, experimentado nas características geográficas da região. Acompanhando o trajeto dos rios, a posição do sol, da lua e das estrelas, o dito cujo logo se deu conta de que o piloto estava perdido. Levantou-se, foi até a cabine e alertou o piloto que estavam fora de rota. Preferindo confiar mais nos instrumentos de bordo do que na sabedoria ancestral de um homem do povo, o piloto continuou voando em círculos até que o combustível acabou e o avião acabou se chocando contra as árvores.

Sem um plano B efetivo, não há como lidar com imprevistos. Dizem que as maiores descobertas científicas acontecem quando a máquina quebra. Como apontou Darwin em sua obra, não é o mais forte nem o mais inteligente que sobrevive. É o mais adaptável, o mais flexível diante das situações extremas. Por estranho que pareça, meu cérebro sempre se sai melhor em situações de alta tensão. Aliás, um dos meus prazeres mais extravagantes é imaginar o que eu faria se vivesse no século 18 e precisasse obter ajuda rápida sem poder contar com os recursos tecnológicos contemporâneos.

Terça-feira, 15 de fevereiro de 2022, 6 horas da manhã. Ao acordar, percebi que estava sem acesso à Internet. O problema não era falta de energia, mas algo errado com a minha conexão. Já prevendo atraso com minhas traduções, peguei o telefone para reclamar com a operadora e, surpresa! Meu telefone fixo estava mudo também! Entrei em surto: pela primeira vez na vida a sensação de estar isolada do mundo civilizado representava uma dor insuportável.

Nunca fui exatamente fã dos computadores, mas sempre foi motivo de orgulho para mim manter-me atualizada, em sintonia com a realidade. De repente, me ocorreu que eu já dispunha de um celular. Como não o uso habitualmente, não havia me dado conta de que a salvação estava ao alcance da minha mão. Liguei para o serviço de atendimento da operadora só para ficar ainda mais transtornada. Uma voz eletrônica descontraída me informou, assim como se nada de anormal estivesse acontecendo: a previsão é a de que o serviço seja restabelecido na quinta-feira, 17 de fevereiro, após as 18 horas!

Meu cérebro travou de tanta indignação. Vivendo na principal cidade da América Latina, em pleno século 21, num mundo em que a informação circula em velocidade ultrassônica, ele não conseguia entender como uma empresa que vende justamente acesso rápido ao mundo se permitia oferecer resposta em passo de tartaruga – e ainda encarar o fato como mero acidente de percurso totalmente desculpável.

Instantaneamente, comecei a fabular formas de vingança contra tanto descaso. Acessei o site do Procon, na vã expectativa de que pudessem forçar a empresa a resolver o problema mais rápido. Qual o quê! Para pasmo ainda maior, pediram um prazo de 20 dias para investigar junto à equipe técnica do provedor qual teria sido o real motivo da interrupção do serviço: incompetência, descaso ou simples obstáculo tecnológico incontornável.

Eu acabava de perceber que a indisponibilidade da tecnologia era ainda mais poderosa do que a falta de energia elétrica. Eu havia sido devolvida, de fato, ao século 18. Impotência, humilhação, descrença. Agora era eu de mãos vazias contra o Golias da comunicação, uma cidadã sem poder de influência contra os verdadeiros donos da nação.

Fernando Sabino, em seu livro Encontro Marcado, imaginou um divertido ataque terrorista contra a típica indiferença das autoridades brasileiras: certa manhã, os habitantes de uma cidade descobrem que não podem sair de casa porque há um gigantesco pão interditando a entrada. Mais tarde, surgem outros pães em pontos aleatórios da cidade, interrompendo o tráfego nas ruas, avenidas e pontes. Perplexidade geral. Peritos são chamados às pressas para examinar tão exótico artefato: nada com que se preocupar, trata-se apenas de farinha, água e fermento. Logo outras cidades começam a relatar o mesmo fenômeno e, em poucas horas, o país inteiro é paralisado.

Pondero que tipo de pão terrorista eu poderia utilizar em substituição. De repente, faz-se luz: vou infiltrar-me nas hostes inimigas e destruir o sistema por dentro, usando as redes sociais para aliar-me a outros usuários insatisfeitos e aumentar a pressão. Dito e feito, experimento uma sensação tola de justiça. Relaxo, me deito indolente, à espera do retorno ao paraíso.

Sexta-feira, 18 de fevereiro, uma e meia da tarde, a conexão é finalmente restabelecida…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.