Curtidas e likes

O Globo, 3 fev° 2024

José Horta Manzano

Leitores poderão até reclamar que estou me preocupando com coisa de pouco interesse para cidadãos equilibrados. Respondo que não se trata realmente de preocupação, estou é curioso com os comos e os porquês. Mas vamos aos fatos.

Dona Marta Suplicy, que no mês que vem completa 79 aninhos (nem parece!), mudou de partido e voltou ao PT que havia abandonado 9 anos atrás. Por que voltou? Terá mudado o PT ou terá mudado ela? Ninguém sabe. Voltou explicando: “Sou petista raiz”. (Se for verdade, por que, diabos, abandonou seu partido de coração?)

A razão oficial da volta é conhecida: Madame vai se candidatar a vice-prefeita da capital paulista na chapa do sulfuroso Guilherme Boulos. O motivo verdadeiro do passo ousado é menos comentado. Por que razão uma senhora com currículo exuberante – já foi deputada federal, ministra do Turismo, ministra da Cultura, senadora, vice-presidente do Senado e prefeita de São Paulo – se rebaixa, em fim de carreira, a candidatar-se a substituta do prefeito, cargo de importância secundária?

Que o Lula, aos 77 anos, tenha se arriscado a tentar reconquistar o cargo de presidente, dá pra entender. Afinal, ele queria provar a si mesmo (e ao mundo) que a prisão não tinha acabado com ele. Era pra ser a grande revanche do tipo: “Quiseram me enterrar? Não conseguiram!”. Na verdade, acredito que Luiz Inácio teria se contentado com os louros da vitória, sem o ônus de ter de batalhar quatro anos no cargo de presidente. Depois de subir a rampa, foi-se o sossego e o Lula se tornou prancha de tiro ao alvo – recebe zilhões de críticas e reclamações todos os dias.

Tornar-se famoso e conhecido por amplo público é sonho de muita gente. A vida moderna oferece numerosas possibilidades de chegar lá. Redes sociais, BBBs, canais de influenciador(a) estão aí pra gerar ‘likes’ pra quem quiser. Hoje em dia, cidadão que não consegue um punhado de curtidas por dia sente-se como o infeliz que “passou pela vida, não viveu”.

Na minha humilde opinião, dona Marta (do PT, como dizia Maluf) já é dona de uma robusta coleção de ‘likes’, granjeados durante as décadas que passou na política. Acredito que candidatar-se, a esta altura dos acontecimentos, ao posto mais insignificante de sua vida política não vai glorificar seu currículo.

Se perder a eleição, pior ainda.

Simpatia

José Horta Manzano

Este blogueiro cresceu num tempo em que quase não havia vacinas. Doenças infantis infecciosas, toda criança acabava pegando. Tive as quatro mais corriqueiras: catapora, coqueluche, caxumba e sarampo. Quando uma das crianças caía doente com sarampo e ficava de molho na cama, minha mãe pendurava no quarto uma cortina vermelha. Dizia que era simpatia, que ajudava a resolver o problema e ficar bom logo.

Outro dia, no supermercado, vi uma banca de cuecas em oferta, daquelas promoções em que o freguês tem de levar um pacotinho de meia dúzia. No pacote, as cores já vêm misturadas e não há meio de escolher: ou leva tudo ou desiste da compra.

Levei um pacote. No meio das cuecas, havia uma vermelha, de um vermelhão Chapeuzinho Vermelho. Mesmo sendo peça que se usa debaixo da roupa e que ninguém vê, deixei no fundo da gaveta. A cor me pareceu espantada demais.

Anteontem, domingo de eleição, foi dia importante. Era a derradeira oportunidade de se livrar do capitão, desalojá-lo do palácio e devolvê-lo ao submundo de onde veio. As pesquisas anunciavam um escrutínio apertadíssimo.

Para varrer Bolsonaro, só havia um meio: votar no Lula. Não era uma perspectiva empolgante. Mas raciocinei como muita gente. Pensei: “Coragem! Dos males, o menor. É só apertar um trezezinho aí, que o dedinho não vai cair”.

Antes de pegar a estrada para Genebra, na hora de me vestir, lembrei da cueca vermelha. Lembrei também da simpatia da minha mãe. Pensei: “Por que não tentar repetir a simpatia? Se funciona pra curar doença, quem sabe não funciona também pra curar um país doente?”. Vesti a peça vermelha.

No local de votação, vi grupos espalhafatosos com gente de amarelo e alguns até enrolados em bandeira. Vi também grupos mais discretos, em que todos (ou quase) tinham pelo menos um detalhe vermelho na indumentária. Não sei se ostentavam o detalhe por paixão lulista; no meu caso, não havia nem um grãozinho de paixão. Era por “simpatia” – pode também chamar de magia branca.

Pelo fuso horário daqui, já era comecinho da madrugada quando saiu a notícia oficial: o capitão estava derrotado. Na hora de estourar o champanhe(*), lembrei da cueca e me dei conta de que a simpatia tinha funcionado.

Tive então a certeza de que, não fosse ela, ainda teríamos de aguentar palavrões e ameaças por quatro anos. Talvez, num futuro próximo, o capitão ainda tivesse a macabra ideia de proibir as vacinas infantis, condenando os pequerruchos ao sarampo e à catapora.

Se foi mal com ele, melhor será sem ele.

(*) É força de expressão.

O crime do Paraná

José Horta Manzano

Este blogueiro é cidadão brasileiro de nascença e de sangue. Houve tempos em que me orgulhei muito disso. Hoje, menos.

Me lembro do dia em que o teatral (então) deputado Roberto Jefferson se virou para o (então) ministro José Dirceu e declamou: “Vossa Excelência desperta em mim os instintos mais primitivos”. Ninguém entendeu perfeitamente o sentido da frase. Não sei como terminou o affaire entre os dois figurões, se os instintos primitivos lograram satisfação. Pouco importa.

Em matéria de baixos instintos despertados em terceiros, Jair Bolsonaro ganha de lavada de qualquer figurão aparecido antes dele. Do futuro, ninguém sabe, mas até aqui, ele é campeão.

O assassinato perpetrado no Paraná por um de seus devotos é prova flagrante.

O assassino foi baleado de volta, mas, pelas últimas notícias, não morreu (ou não “veio a óbito”, pela linguagem policial). Ninguém esclarece de boa vontade, mas parece que foi ferido apenas levemente. A delegada que está conduzindo o inquérito é bolsonarista roxa, o que explica a ocultação de detalhes constrangedores.

Que país mais triste, minha gente. Com tanto para ser construído, dói ver que os baixos instintos levam gente a demolir, destruir, aniquilar.

O crime do Paraná tem dois autores. O primeiro é o que apertou o gatilho e que deveria ser enquadrado em uma série de crimes: intolerância, ódio, crime eleitoral, invasão de domicílio, uso desproporcionado de arma letal, perturbação da ordem pública e assassinato qualificado. O segundo autor não apertou o gatilho, mas deveria ser autuado como mandante. Vive num palácio em Brasília. Seu nome é fácil de encontrar no Google.

A notícia já deu a volta ao mundo. Em viagem, na fila dos passaportes, a gente procura esconder o nosso. Dá vergonha ser cidadão de um país violento e primitivo, onde querelas se resolvem à bala.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Seis por meia dúzia

José Horta Manzano

Nossa memória coletiva é curta. Fatos que enchiam a atualidade 5 ou 6 anos atrás sumiram, saíram de cartaz e ninguém fala mais deles.

Lula da Silva assumiu a Presidência em 2003. Com o passar dos anos, o lulopetismo foi se entranhando na cena política nacional. Com linguajar soviético-policial, dizia-se que o PT tinha “aparelhado” as instituições da República; que seus braços tinham “infiltrado” estatais, autarquias, semiautarquias, agências, departamentos e repartições; que estava tudo “dominado”.

A infiltração parecia estar instalada para todo o sempre. A menos que se faça uma despetização, “o Brasil está perdido”, temia-se. Nesse espírito, Bolsonaro foi eleito.

Não foi preciso esperar os 13 anos da era anterior. Hoje, passados apenas 4 aninhos, eis que de novo a sensação geral é de que a República está infiltrada. A diferença é que, desta vez, não são mais elementos lulopetistas, mas bolsonáricos.

Contas feitas, jornalistas informam que, nos altos escalões, seis mil militares estão refestelados. Sem contar montanhas de apadrinhados em estatais, autarquias, semiautarquias, agências, departamentos e repartições.

Igualzinho ao que era antes. Trocamos seis por meia dúzia.

Isso deixa uma notícia ruim: esteja quem estiver instalado no trono, sinecuras serão tomadas de assalto por uma horda de companheiros e apaniguados sem qualificação para o posto nem disposição para o batente.

Tem-se a impressão de viver num rodopio, num moto perpétuo, num movimento pendular supernocivo para a sociedade, mas no qual nós, os membros da sociedade, não podemos participar.

Por seu lado, a prisão de doutor Ribeiro, ex-ministro da Educação – pessoa notoriamente não qualificada para o cargo que exerceu – é boa notícia. Não digo a prisão em si, dado que, dependendo do juiz, um habeas corpus a qualquer hora vai tirar o doutor do cárcere. A boa notícia é que, diferentemente do que às vezes se imagina, não está tudo dominado.

A Polícia Federal continua cumprindo sua missão e mostrando que não é órgão do governo, mas do Estado brasileiro. É um alívio, uma constatação importante nestes tempos de desvirtuamento das instituições. Não é a salvação da lavoura, mas não deixa de ser um bálsamo.

O Lula e a Nicarágua

Lula e Daniel Ortega, o tiranete nicaraguense

José Horta Manzano

A Nicarágua é um pequeno país da América Central, um pouco maior que Portugal e um pouco menor que o Amapá. Abriga cerca de 6 milhões de habitantes.

Pobre e vampirizado por uma classe dominante acostumada a revezar-se no poder há séculos, o país não consegue deslanchar. Vive da extração de algum minério e da agricultura. Está entre os quinze maiores produtores de café.

A família Somoza mandou e desmandou no país durante meio século, a começar dos anos 1930, instalando um desavergonhado regime dinástico, com um ditador sucedendo ao outro.

No limiar dos anos 1980, levantou-se uma revolução nacional “para acabar com tudo isso que está aí”. É estado de espírito tristemente conhecido entre nós. Quando surge um líder com esse tipo de conversa, pode apostar: vai haver muita movimentação, mas, no final, nada vai mudar. Já vimos esse filme com o Collor, com o Lula, com o Bolsonaro. Deu no que deu.

De fato, foi o que aconteceu. Um jovem Daniel Ortega era o líder daquela que ficou conhecida como Revolução Sandinista, uma guerra de guerrilha. Muita gente morreu, os EUA se meteram na confusão, mas, no final, a dinastia dos Somoza foi interrompida. O quadro guarda semelhanças com a “revolución” dos bondosos irmãos Castro, na ilha de Cuba.

Os sandinistas nicaraguenses não conseguiram tomar o poder imediatamente. Instalou-se um governo civil, não revolucionário. Mas Daniel Ortega manteve-se nas cercanias do poder, esperando sua hora. Já não tão jovem como nos tempos da revolução, conseguiu finalmente chegar à presidência pelo voto em 2006.

Eleito, tomou gosto pelo poder. Agindo como um Putin tropical, ajeitou regras e leis em causa própria, e acabou instalando um regime que não fica nada a dever à ditadura que tinha jurado combater – veja como são as coisas.

Tendo sido eleito em 2006 com mandato de 5 anos, deu um jeito de se reelejer em 2011 e de novo em 2016. Faz alguns dias, venceu sua quarta eleição seguida, para novo mandato de 5 anos. Frise-se que a vice-presidente é Rosario Murillo, esposa do tiranete, a confirmar o total domínio do clã. Considerando que ele já completou 76 aninhos, terá 81 ao término do mandato. Se chegar até lá.

Para alcançar seu objetivo eleitoral, o velho líder não hesitou em instalar o terror nos partidos de oposição. Começou seis meses atrás. Ditadorzinho descarado, mandou prender os sete adversários que poderiam representar risco para sua reeleição. Só deixou livres os cinco nanicos, que não lhe traziam perigo e que lhe eram, de certo modo, subservientes. Proibiu que observadores estrangeiros viessem conferir a lisura do voto e da apuração. Sem surpresa, venceu com 75% dos votos. Foi na semana que passou.

O mundo civilizado denunciou a farsa, mas o PT, partido do qual o Lula é presidente de honra, entrou na contramão. Soltou nota qualificando a re-re-re-reeleição de Ortega como “grande manifestação popular e democrática”. O texto ainda menciona o trabalho do ditador na “construção de um país socialmente justo e igualitário”.

Passados dois dias, diante da onda de indignação que se alevantou na imprensa brasileira, a direção do PT decidiu improvisar uma retratação. Doutora Gleisi Hoffmann jura de pés juntos que o primeiro texto não tinha sido submetido à apreciação da diretoria. Portanto, ficava o dito pelo não dito. O quê? Que uma nota daquele teor tenha saído sem o aval do comitê central? Acredite quem quiser.

O ocorrido dá margem a interpretação. Na minha opinião, foi o próprio Lula, que é falto de instrução mas cheio de esperteza, quem mandou os companheiros desdizerem aquele palavrório padronizado e carimbado anos 1970. Em plena campanha eleitoral, tudo o que nosso guia não quer é reavivar, na lembrança do eleitorado, o radicalismo e as amizades perigosas que seu partido tem alimentado durante décadas: Chaves, Maduro, os bondosos irmãos Castro, os ditadores africanos.

Mas ninguém é bobo. A primeira nota – solta, livre, espontânea e sem amarras – foi o reflexo do verdadeiro ADN (=DNA) do Lula e dos seus. O resto é lantejoula para enfeitar campanha e enganar trouxa.

Entre a permanência de um desonesto Bolsonaro e a volta de um desonesto Lula… ai, meu São Benedito! Ajude-nos a encontrar uma terceira via decente! Mas não demore muito!

De que cô qué?

José Horta Manzano

Na Suíça, vigora um sistema original de democracia. Dois métodos correm paralelos, ambos destinados à manifestação da vontade popular.

Do lado tradicional do sistema, estão os representantes do povo, deputados e senadores, eleitos pelo voto universal e secreto, com mandato fixo – como em qualquer democracia que se preze.

Por outro lado, menos comum em outras partes do mundo, o método plebiscitário é muito utilizado. Embora a possibilidade também seja prevista pela Constituição de outros países (inclusive a nossa), é raramente utilizada. Não é o caso da Suíça, país onde qualquer cidadão (ou grupo de cidadãos) pode lançar uma coleta de assinaturas, conhecida como “iniciativa popular”. O objetivo é reunir um determinado número de cidadãos que, com sua assinatura, confirmam estar de acordo com a matéria proposta.

Para ser válida, a iniciativa não pode entrar em colisão com a Constituição. Portanto, antes de lançá-la, seu texto será submetido à autoridade competente para análise. Uma vez considerada constitucional, é liberada. A coleta de assinaturas pode ser iniciada e deverá estar terminada dentro do prazo estipulado. Há diferentes modalidades de iniciativa, cada qual com um determinado número de assinaturas necessárias.

Uma vez obtido o número mínimo de assinaturas dentro do prazo, as pilhas de documentos são entregues ao departamento encarregado de validá-las. Cada assinatura será conferida. Se as regras tiverem sido respeitadas e o número de assinaturas válidas tiver sido alcançado dentro do prazo fixado, o governo marcará a data do voto popular.

É um dos aspectos que integram a chamada democracia direta. Em média, o povo suíço vota quatro vezes por ano. O voto não é obrigatório. Cada votação pode reunir duas, três ou mais iniciativas. O eleitor dará sua opinião sobre cada uma delas. Tanto podem ser de âmbito municipal, cantonal ou federal.

Assim mesmo, apesar de já ter esses amplos meios de exprimir sua vontade, a população ainda conta com a possibilidade de manifestar seus desejos (ou, mais frequentemente, suas contrariedades) por meio de passeatas e manifestações ao ar livre. (“Carreatas” ainda não estão na moda aqui. E muito menos “motociclatas”.)

Passeatas, há muitas. Nessas horas, o importante não costuma ser a vestimenta dos manifestantes, mas os slogans escandidos e, principalmente, os cartazes brandidos. O que vai aparecer na mídia e na tevê são justamente os cartazes, a palavra escrita. Vê-se gente vestida de preto, branco, azul, vermelho, amarelo, cor-de-rosa, e quantas mais cores houver. Não há código vestimentar. A mensagem não está na cor da roupa, mas na palavra gritada ou escrita.

É estranho que, nas manifestações de rua do Brasil deste começo de século, a vestimenta fale mais alto que as palavras. Às vezes, penso que essa bizarrice se deve à falta de argumentos – quem não tem o que dizer, veste-se de determinado modo como marca de identificação tribal. Mas posso estar enganado.

Nos tempos do lulopetismo, vinham todos de vermelho. Até o Lula e os acólitos. Vermelho, por acaso, é a cor preferida deste blogueiro, mas isso não vem ao caso; já gostava dessa cor antes que o PT existisse. Agora, desde que o capitão assinou contrato de locação no Palácio do Planalto, a cor dos desfilantes mudou: vêm todos de verde-amarelo.

Quando de grandes movimentos do passado, como as Diretas Já e as Marchas de 1964, o povo não vinha fantasiado. As convicções, boas ou más, estavam dentro das gentes e vinham expressas em cartazes. Por que mudou?

Lula e Bolsonaro são do tipo cabeça-dura. Não lhes viria à ideia sugerir a seus devotos que variassem a cor da indumentária. Então, aproveito a deixa para dizer o que penso. Acho que tanto um lado quanto o outro ganhariam se maneirassem no uso do vermelho, por um lado, e do verde-amarelo, por outro. Do jeito que está, fica caricato. Passa a ideia de rebanho domesticado e amestrado, o que não pega bem pra ninguém.

Dado que as manifestações de rua são marcadas com antecedência e amplamente divulgadas, todos sabem se o desfile é a favor deste ou contra aquele. Por que as cores, então? Fosse eu, daria aos apoiadores instruções para que cada um viesse vestido da cor que mais lhe agrada. Não está escrito em lugar nenhum que esquerdista tem de se vestir obrigatoriamente de vermelho, nem que um neofascista deve usar roupa amarela.

Está ficando ridículo para ambos os lados. Um desfile com um bando de vermelhinhos lembra mais um reclamo de outras eras, de um tempo em que crianças trabalhavam em fábricas e mulheres não tinham o direito de voto. Um desfile com um bando de verde-amarelinhos lembra mais um circo, em que alguns parecem proteger-se enrolados numa bandeira brasileira, como se tivessem medo de sermos invadidos pela Bolívia.

Vamos! Coragem, minha gente! O importante são as ideias e, principalmente, as palavras. A vestimenta não voga.

(*) De que cô qué?
Devo uma explicação sobre o título deste artigo. Este blogueiro, que teve avó mineira de Mariana, se lembra de piadas que deviam parecer muito engraçadas no século 19. Hoje, não tenho certeza de que fariam tanto sucesso. A bizarrice da cega preferência que os manifestantes de hoje demonstram por esta ou aquela cor me lembrou uma delas.

Na empoeirada cidadezinha do interior, um cliente entra na loja de armarinhos e pede um corte de tecido.

Balconista:
– De que cô qué?

Cliente:
– De caqué cô.

Trump, Bolsonaro e a reeleição

José Horta Manzano

A não-reeleição de Donald Trump, confirmada oficialmente ontem, há de estar acendendo luz vermelha no Planalto. De um vermelho vivíssimo.

Trump – todo-poderoso, carisma irresistível, voz de trovão, teatralidade convincente – é capaz do melhor e do pior. É daquele tipo de mascate capaz de vender gato por lebre e arrancar aplauso do comprador agradecido. Mas em meados deste ano ousou passar a mão num carregamento de respiradores que o ‘amigo’ Bolsonaro havia comprado na China e que transitavam pelos EUA.

Se esse homem – dono de todos esses atributos, dono da caneta mais poderosa do planeta, senhor da guerra e da paz, responsável pelo maior orçamento do globo – conseguiu a façanha de ser derrotado, como é que se pode enxergar o futuro do pequeno Bolsonaro? Antigamente, se dizia que estava preto. Na era do ‘politicamente correto’, convém dizer que está ruço.

O atual inquilino do Planalto não tem os atributos do ídolo, nem seu poder, sua força, sua riqueza. Não tem um corpo de assessores de alto nível. Não está apoiado num partido tradicional e organizado como Trump estava. Como então imaginar que, desprovido das armas necessárias, possa vencer a batalha da reeleição? (Posto que se segure na Presidência até lá, naturalmente.)

by Kleber Sales, ilustrador.

Bola de cristal, não tenho. Além do que, faltam dois anos para a eleição presidencial. Assim mesmo, sob reserva de acontecimento excepcional, a reeleição de nosso doutor parece causa perdida.

Sua personalidade pontuda, excludente e clivante não lhe valeu nenhum simpatizante além dos que tinha ao ser eleito. Pelo contrário, aqueles que votaram nele unicamente para se livrarem do PT devem estar dobrando a língua e se autoflagelando em penitência: nunca mais darão seu voto ao capitão.

Aos poucos, vai-se delineando um quadro semelhante ao de 2018. O eleitorado vai se fraturar em dois campos bem nítidos. No primeiro, estarão os bolsonaristas, que votarão no doutor porque gostam dele e estão felizes com seu desempenho. Do outro, estarão os demais, os eleitores dispostos a votar em quem quer que seja, desde que Bolsonaro seja derrotado.

Num primeiro turno, o voto antibolsonarista ainda pode se dispersar, mas no segundo, não tem perdão. São só dois candidatos. Não vejo como o doutor poderá ser reeleito, seja quem for o adversário. Ou será que Bolsonaro é mais talentoso que Trump?

Brasileiro não sabe votar?

José Horta Manzano

Para doutor Bolsonaro, a derrota de Trump já tinha sido uma senhora bordoada. Agora, nas municipais, conheceu uma derrota… que adjetivo usar? Vamos lá: estrepitosa. Ou fragorosa. Ou estrondosa. São todos termos que têm a ver com barulho forte de alguma coisa que se espatifa no chão.

O barulho foi tão forte que atravessou o Atlântico. Pela primeira vez, vejo a mídia europeia dar notícias das eleições municipais brasileiras – um assunto, em princípio, sem importância internacional. Pois imagine o distinto leitor que os principais órgãos soltaram uma breve nota sobre o assunto. A ênfase foi posta no fracasso de nosso doutor presidente no teste de meados do mandato.

Para todos os que, como este blogueiro e muita gente fina no planeta, andavam preocupados com a perspectiva de um Trump reeleito e de um Bolsonaro revalidado, foi um alívio. Um grande uff!

No tempo em que os militares mandavam, corria a voz de que ‘brasileiro não sabe votar’. Aliás, a frase foi repetida pelo Pelé, numa declaração imprudente que marcou o personagem e que o persegue até hoje. Olhe que, na época, podia até ser verdade, visto que os eleitores dos anos 70 eram menos esclarecidos que os atuais. Mas a situação mudou, e a prova está no resultado destas eleições.

Em mostra de amadurecimento cívico, o eleitor está reparando erros cometidos ao longo dos últimos vinte anos. Fosse hoje, é de duvidar que figuras simplórias como Lula, Dilma e Bolsonaro fossem eleitas.

by Angel Boligán Corbo (1965-), desenhista cubano

Ninguém está totalmente blindado contra aventureiros que prometem o que jamais poderão entregar. No entanto, o resultado destas municipais mostra um brasileiro menos ingênuo, mais objetivo, mais preparado para filtrar promessas e descartar potenciais estelionatários da política.

O resumo da ópera é que, se conseguir se segurar até o fim do mandato – o que não está garantido –, doutor Bolsonaro chegará ao fim da carreira em 2022. Não será reeleito. Nem ele, nem seu eventual indicado. Aliás, apadrinhamento de Bolsonaro é tóxico: é receber sua bênção e despencar nas pesquisas.

Outro que está queimado é o Lula. E seu partido junto. Não terão chance nenhuma de vencer em 2022. O Brasil acaba de mostrar que se enganou ao crer que Bolsonaro era o antídoto de Lula. Depois de experimentar ambos, optou por uma terceira via.

Assim, Lula e Bolsonaro podem saudar o público e sair de cena. Tanto eles como os respectivos afilhados. Assim que cair o pano sobre o atual governo, poderemos começar a reconstruir o país. Vai ser demorado e trabalhoso, mas não há outro jeito.

Memento mori

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que se aprendia latim na escola. Apesar de a língua dos romanos ter me provocado muita dor de cabeça e trazido muita nota baixa, guardei certa simpatia por ela. Volta e meia, quando dá, enxerto alguma citação, alguma máxima latina. Os romanos podiam ter seus defeitos, mas tinham notável bom senso.

Memento mori – é o título de um artigo que o Correio Braziliense publicou no caderno Opinião faz dois dias. O autor é Otávio do Rêgo Barros, general de divisão e doutor em ciências militares, aquele senhor sério e comedido que foi porta-voz de Bolsonaro do primeiro dia de governo até um mês atrás. Dizem as más línguas que ele foi expelido do cargo por ter caído em desgraça junto a um dos bolsonarinhos, aquele mais desequilibrado e intriguento.

O artigo do general já começa com citação latina, coisa fina. O texto é o reflexo do jeitão do autor: claro, pausado, bem explicado, ponderado, sóbrio. E erudito. Ele cita batalhas da segunda Guerra Púnica, travadas entre tropas romanas e cartaginesas 22 séculos atrás, embates em que entra em cena Aníbal Barca, aquele que atravessou os Alpes montado em elefantes. Me lembrou as aulas de dona Leocádia – quanto tempo!

Mas vamos deixar os elefantes e voltar ao general. Seu artigo, elegante, não cita nomes. Mas descreve claramente o comportamento do antigo chefe, Bolsonaro. O título, Memento mori (=Lembra-te que és mortal), refere-se a um costume romano. Quando voltavam de uma batalha, cobertos de glória, os generais faziam-se cercar de escravos que lhes sussurravam ao pé do ouvido essa frase o tempo todo. Era para não caírem na tentação de se deixarem embevecer por aplausos e adulações, que a glória é passageira.

Batalha de Zama
Segunda Guerra Púnica, 202 a.C.

No memorável artigo, o general Rêgo Barros faz um convite à reflexão. Depois de incentivar os outros Poderes da República e a imprensa a manterem firmeza e não recuarem diante de pressões, conclama a população a exercer seu papel de «árbitro supremo da atividade política».

O general não diz isto, mas, num país em que parlamentares são corruptos e organizações de classe – se é que existem – estão anestesiadas há duas décadas, o único canal aberto para o povo mostrar descontentamento é a rua. Manifestações como as de 2013, que acabaram por derrubar Dilma e o PT, são a única porta de saída deste pesadelo. Como conclamar o povo? Não sei. Vocês, que vivem no Brasil e são peritos em feicibúquis, tuítch e zap-zap, sabem melhor que eu. Minha parte, estou fazendo aqui.

Não sei como é que Bolsonaro foi escolher Rêgo Barros para o cargo de porta-voz. O general não combinava com a súcia que gravita em torno do Planalto. Sem condições: não podia dar certo.

Se o distinto leitor tiver 5 minutos, vale a pena ler o artigo do ex-porta-voz. Não é longo. Está disponível no site do Correio Braziliense. Aqui.

PT – Cancelamento de registro

José Horta Manzano

A procuradoria da Justiça Eleitoral deu parecer favorável a um pedido de cassação do registro do PT – Partido dos Trabalhadores. A agremiação é acusada de ter recebido financiamento do estrangeiro, o que é proibido pela legislação eleitoral. Dificilmente o caso progredirá. As reações dos extremos do espectro político foram contrastadas.

Do lado dos populistas de direita, choveram aplausos; os apoiadores de doutor Bolsonaro estão soltando foguetes. Do lado dos populistas de esquerda, o que se ouve são protestos indignados; os simpatizantes de Lula da Silva estão soltando fogo pelas ventas.

Se eu fosse do time dos populistas de direita, deixaria de lado esse sentimento de vitória e refletiria com calma; se eu fosse do time dos populistas de esquerda, esqueceria essa sensação de orgulho ferido e pesaria os prós e os contras.

Para o projeto de reeleição de doutor Bolsonaro, o desaparecimento do PT não convém. O presidente foi eleito na onda do anti-petismo. Volta e meia, ele nos assusta com o perigo da volta ao poder do adversário. Ora, se o PT desaparecesse, quem encarnaria o espectro da volta dos ‘comunistas’ no discurso bolsonarista? Melhor que o partido da bandeira vermelha continue existindo. E, se seguir desidratado como está, melhor ainda. Nada de cassar-lhe o registro.

Estrela do PT formada com sálvias.
Foi plantada no Alvorada quando Lula era presidente. Descaracterizou o jardim, um projeto paisagístico oferecido ao Brasil pelo imperador do Japão.

Para o projeto dos petistas – com exceção de Lula da Silva –, o desaparecimento do partido é uma bênção. O PT, convenhamos, anda com o nome sujo na praça. Mensalão e petrolão deixaram marca pesada, indelével, que não sai nem lavando com água quente. Há que considerar que a extinção da legenda não significa a sumidura dos afiliados. Alguns eleitos migrarão para outras siglas. Os que permanecerem, simplesmente fundarão um novo PT, com outro nome. Seria até boa ocasião para ascenção de figuras novas, menos ‘lulodependentes’.

Em princípio, mudar de nome parece manobra grosseira e fadada ao fracasso. Mas não é assim. Vejam o caso do DEM: alguém ainda se lembra que é a continuação do antigo PFL, sucessor da Arena, partido da ditadura? E alguém se dá conta de que o Cidadania sucedeu ao antigo PPS, partido que reclamava a abolição da propriedade privada?

Se a reciclagem deu certo para eles, havia de dar também para o PT. A mudança de nome seria o melhor caminho pra surgir como partido novo, livre de vícios e de pecados.

Nota
Não sou petista e muito menos bolsonarista. Que fique claro.

Ah, ça ira!

José Horta Manzano

Libération, veterano jornal da esquerda francesa, se pergunta se a epidemia de Covid-19 vai finalmente forçar o Brasil a cobrar impostos dos ricos. Esclarece que nosso país figura entre os mais desiguais do mundo, somente comparável a certos países da África ou do Oriente Médio. A diferença de posses entre os que têm mais e os que têm menos é brutal.

Explica que 206 bilionários brasileiros detêm 20% da riqueza nacional. Vamos fazer umas continhas. O país tem 200 milhões de habitantes. Vinte porcento da população dá 40 milhões de pessoas. Portanto, 206 ricaços possuem o que, em teoria, deveria pertencer a 40 milhões de compatriotas. É chocante. Diferenças sempre há, mas distorções a esse ponto são inconcebíveis num mundo civilizado.

O jornal francês assinala que o imposto é cobrado principalmente do consumo ou seja: do arroz e do feijão, da gasolina, das fraldas do bebê, do cafezinho e da farinha de mandioca. Portanto, pesa muito mais no bolso dos desfavorecidos. Os altos rendimentos são poupados. No Brasil, a alíquota máxima é de 27,5%, enquanto a média na OCDE é de 43,5% – um cruel desequilíbrio.

Apesar de suas simpatias pela esquerda, o jornal confessa que nem Lula e seu PT, em 13 anos de poder, ousaram corrigir as distorções. Ao contrário: se a era Lula fez os pobres um pouco menos pobres, em compensação, deixou os ricos bem mais ricos.

Libération conclui filosofando: no Brasil, os ricos ainda têm belos dias pela frente.

Aqui no original francês.

(*) O título deste post – Ah, ça ira! – faz referência a um refrão que surgiu em 1790, como prenúncio da Revolução Francesa. Ao longo dos anos, inúmeras versões e paródias se encaixaram na métrica dos versos. A mais ameaçadora delas é justamente a mais conhecida:

Ah, ça ira, ça ira
Les aristocrates, on les pendra!

Em tradução livre, fica assim:

Sim, venceremos, venceremos
Os aristocratas, enforcaremos!

Que fique claro: este blogueiro já passou da idade de ser incendiário. Não estou recomendando mandar nenhum bilionário para o patíbulo.

Direita e esquerda – uma salada?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 30 novembro 2019.

Na política brasileira tradicional, direita e esquerda têm sido noções difíceis de captar. A questão é simples: nunca foi habitual prestar atenção ao quadrante ocupado por políticos. Ser do norte ou do sul, mineiro ou baiano, rico ou remediado sempre contou mais do que ser de esquerda, de centro ou de direita. Basta voltar algumas décadas na história do país pra se dar conta da pouca importância dada ao bordo de cada figurão. Teria Juscelino Kubitschek sido de esquerda? De centro? De direita? E Jânio Quadros? E Getúlio Vargas, então, teria capitaneado uma ditadura esquerdista ou direitista? Tudo o que se puder dizer será baseado na visão que temos hoje. O recuo permite visão panorâmica. No calor das eleições de então, ninguém parou pra analisar esse aspecto.

Nos anos 1960 e 1970, num Brasil militar e rigoroso, o lugar ocupado pelo regime (esquerda ou direita) não era a preocupação maior. Importante mesmo (e todos sabiam disso) era não cutucar a onça com vara curta. Por certo levados pelo entusiasmo e pela incúria da juventude, alguns ousaram. Pela audácia, pagaram preço elevado; às vezes irreparável.

Nascida despretensiosa, a polaridade direita x esquerda descrevia a disposição dos membros da Assembleia da França revolucionária. À direita, sentavam-se os monarquistas, saudosos dos privilégios do ‘Ancien Régime’. À esquerda, ficavam os revolucionários, vidrados no guinchar da guilhotina e ansiosos por revolução radical. Dois séculos mais tarde, o quadro evoluiu. Direitistas já não lutam pelo rei nem temem a guilhotina. Esquerdistas já não anseiam por mudança radical da sociedade; ardem por ardis como espetáculos de pirotecnia, em que se começa por clímax tonitruante para, logo que se dissipam os brilhos, voltar tudo ao que era antes.

Nosso tabuleiro político sempre foi personalista, não partidarista. Houve carlistas, brizolistas, adhemaristas, mas nada de esquerda ou direita na visão popular. É difícil situar o momento que essa distinção entrou para a língua do povo. Em grandes linhas, coincide com a chegada do novo milênio. Dez anos antes, Collor de Mello inda prometia «caçar marajás» de todos os matizes, enquanto Lula se via um Robin Hood redivivo.

Faz uns quinze anos, com a subida do PT, ‘direita’ virou palavrão. Não se encontrou mais nenhum político brasileiro disposto a declarar-se ‘de direita’, peito aberto e olhar destemido. A meteórica subida de doutor Bolsonaro pôs à mesa uma versão tupiniquim do problema. A disposição gradual do arco político entre direita e esquerda se distorceu. Na nomenclatura oficial, a mesa virou. São hoje ‘esquerdistas’ todos os que ousarem discordar de algum ditame presidencial. No entanto, muito parlamentar não identificado com pensamento socialista ou de esquerda até que daria respaldo ao presidente, não fosse ele tão tosco e imprevisível. Para esse tipo de parlamentar, sobrou o ‘Centrão’, um caldeirão onde fumega uma sopa heterogênea de camarão e cabeça de bagre.

Grupos e associações que, não fosse a atual política tão distorcida, se declarariam direitistas, sem complexo, completando nosso arco multipartidarista, começam a renunciar à denominação tornada ofensiva por obra de nosso bizarro presidente. Não ousando o termo tradicional, declaram-se ‘liberais’.Traduza-se por direitistas não bolsonaristas.

Enquanto, lá no andar de cima, mentes sem luz se dilaceram em brigas familiares e intrigas palacianas, aqui no térreo, a coisa continua cada dia mais feia. Jornalistas econômicos preveem iminente apagão de mão de obra especializada no país. Apesar de sermos mais de 200 milhões, faltam jovens formados nas áreas estratégicas, as que deveriam estar delineando os contornos do Brasil futuro. Estudos indicam que, nos próximos dez anos, milhões de vagas deixarão de ser criadas devido à falta crônica de gente capacitada. Como consequência, haverá número exorbitante de gente sem especialização – e sem emprego –, perda de bilhões de dólares no faturamento de empresas de tecnologia e, o pior, a exclusão do Brasil do clube dos países que contam.

É problema real, cruel, evidente e premente que o país terá de enfrentar. Cuidar disso agora é bem mais importante do que fabricar réguas tortas pra medir a esquerdice ou a direitice de cada um. De toda maneira, a distorção está instalada de modo duradouro na mente do brasileiro: esquerda rima com corrupção; direita, com ignorância.

Nesta surpreendente República

José Horta Manzano

Do jeito que vão as coisas nesta surpreendente República, o Lula deve logo estar de volta à cobertura de São Bernardo. Se alguém está torcendo pra encontrá-lo no aeroporto e viajar no mesmo avião, esqueça: Lula não é homem de pôr os pés em aparelho comum e se misturar ao populacho. Desde que, em 2007, foi vaiado no Maracanã, quis ver o povo longe. Só se apresenta a plateias amestradas. Ao despedir-se de Curitiba, voará com as próprias asas – ou com asas amigas, o que dá no mesmo.

Do jeito que vão as coisas nesta surpreendente República, além de ser solto, o Lula deve logo ganhar direito a novo processo. O atual será anulado. Volta tudo à estaca zero. Com uma ajudazinha de nossa lenta Justiça, o homem pode dormir tranquilo: não viverá suficientes anos pra ver o fim do processo. Pode até receber de volta o sítio e o triplex confiscados, com direito a desculpas oficiais e indenização. Não duvide.

Do jeito que vão as coisas nesta surpreendente República, uma vez solto e “desjulgado”, o Lula se agarrará à primeira ocasião de se candidatar à presidência. Será em 2022. Sergio Moro tem dado mostra de que, até lá, deverá ter derretido por completo. Outros eventuais candidatos não são páreo. A disputa se travará entre o Lula e doutor Bolsonaro.

Do jeito que vão as coisas nesta surpreendente República, teremos uma situação do tipo “feitiço contra o feiticeiro”. Me explico. Em 2018, um desprestigiado Lula, no comando de um desgastado PT, foi o grande responsável pela eleição de doutor Bolsonaro. Se o demiurgo de São Bernardo tivesse sido menos arrogante e dado apoio a um candidato da mesma família política mas não afiliado ao PT, o resultado da eleição poderia ter sido outro.

Em 2022, caso os finalistas sejam doutor Bolsonaro e o Lula, a vitória periga mudar de campo. Fortemente desprestigiado com menos de um ano de mandato, o atual presidente deve estar na lona daqui a três anos. Apesar dos reveses, continua arrogante como só ignorantões conseguem ser. Sua antipatia fará dele o grande cabo eleitoral do Lula. Será o feitiço engolindo o feiticeiro.

Não dava

Vera Magalhães (*)

Mesmo não tendo em sua trajetória de deputado sindicalista, corporativista, pró-estatais e infiel a partidos nenhuma obra dedicada ao combate sistemático a privilégios, corrupção estrutural e desmandos de políticos, Bolsonaro conseguiu fazer prosperar na campanha o discurso de que era o mais indicado para empunhar essa bandeira. Como se apenas o contraponto ao PT lhe desse essas credenciais.

Não dava. O histórico político dos gabinetes da família Bolsonaro é o das mais velhas práticas da política: empregar cabos eleitorais, alguns deles fantasmas, muitos deles com ligações perigosas com milícias e outros grupos, com indícios fortes de prática de rachadinha de salários. Jair nunca atuou em nenhuma das grandes CPIs ou no Conselho de Ética da Câmara. Quem caiu na balela o fez porque quis.

(*) Vera Magalhães é jornalista. O texto integral foi publicado no Estadão de 11 set° 2019.

Reconstruindo Chico Buarque

Eduardo Affonso (*)

Meu primeiro texto a viralizar nas redes sociais, em 2015, foi uma carta aberta ao Chico Buarque. Nela eu me apropriava dos seus versos para confrontá-lo por ter se tornado cúmplice de malandro oficial, de malandro investigado na Polícia Federal. Por defender quem não tem decência, nem nunca terá; quem não tem vergonha, nem nunca terá; quem não tem limite. Por não se importar em ver a Pátria Mãe, tão distraída, ser subtraída em tenebrosas transações.

Dizia-lhe que ele estava diferente, que já não o conhecia mais. Trocando em miúdos, que, apesar dele – e do PT – amanhã haveria de ser outro dia.

Eu era um pote até aqui de mágoa, claro. A trilha sonora da minha infância incluía ver a banda passar cantando coisas de amor. Depois houve dias de me sentir como quem partiu ou morreu, ao meio-dia só pensar em dizer não, comer feijão com arroz como se fosse um príncipe e catar a poesia entornada no chão.

by Carlos Avelino, desenhista paulista

Chico me ajudou a pensar em Deus como um cara gozador, que adora brincadeira. A perder a vergonha de fazer amor até mais tarde e ter muito sono de manhã. A me supor capaz de subir uma montanha não como anda um corpo, mas um sentimento; de tirar o chão dos pés, de criar raiz e me arrancar, de me indagar se é perigoso a gente ser feliz.

Chico foi a voz dos que, ouvindo passos já no vão da escada, sabiam que não havia nada a fazer senão chamar o ladrão – e pedir que afastassem de nós este “cale-se!”. Foi a mais perfeita tradução daqueles tempos de um pé na soleira e um pé na calçada, de uma mulher chamada Angélica que só queria embalar seu filho que morava na escuridão do mar.

Mas eis que chegou o destino e carregou Chico Buarque para lá – para o lado dos que apoiam ditaduras, fecham os olhos às maracutaias, se indignam seletivamente. Em algum momento sua estrada entortou, e ele resolveu ir até o fim. Se é que não tinha sido assim desde sempre, e o dono destes neurônios não via.

O PT nos roubou uma década e meia. Desviou bilhões. Nos tirou a esperança de um país mais justo, mais solidário, sem miséria. De um Brasil de todos. E, de quebra, nos tomou Chico Buarque.

Pegamos ranço dele, da sua voz de taquara rachada, da sua prática de louvar o subúrbio e a favela, e morar no Leblon. De se derreter por Havana, Luanda e Manágua, e tirar férias em Paris. Tornamo-nos macarthistas tardios, fiscais da coerência alheia. Fizemos seu funeral no mesmo cemitério dos mortos-vivos onde o cartunista Henfil um dia sepultara Elis Regina, Carlos Drummond, Clarice Lispector e todos os que cometessem o sacrilégio de colaborar com o adversário político (na ocasião, o regime militar).

Jorge Amado não é só dos baianos ou de quem cultua os orixás. Adélia Prado não é exclusiva das devotas da Festa do Divino de Divinópolis, em Minas Gerais. Por que haveria Chico Buarque de ser monopólio da sua seita?

by Carlos Avelino, desenhista paulista

Se Vinicius de Moraes, também de esquerda, fosse vivo e frequentasse o palanque de Lula, Dirceu, Gleisi e Dilma, nosso amor por ele seria finito enquanto durasse essa opção política? Ou continuaríamos a amar seus versos por toda a nossa vida? Trataríamos Tom Jobim a pau e pedra? Negaríamos a Nara Leão a liberdade de ter opinião?

Santo Agostinho pregou odiar o pecado e amar o pecador. Dá para seguir sua lição ao revés: desdenhar da ideologia do autor e amar a obra. Até porque, ao contrário da relação pecado/pecador, não há vínculo entre o marxismo e a métrica, a acumulação do capital e a riqueza da rima, a ditadura do proletariado e a transcendência da poesia. “Mesmo miseráveis os poetas, os seus versos serão bons”…

Chico, o eleitor, tem o direito de professar ideias contrárias às da maioria da população – direito inalienável numa democracia e utópico nos regimes que ele apoia. Chico, o compositor, é parte da nossa memória afetiva, é patrimônio nacional, não importando se a História passou na janela, só ele não viu.

O PT, que inventou o “nós x eles”, ora, tenha a fineza de desinventar. De nossa parte, parar de jogar pedra no Chico e de adorá-lo pelo avesso é uma forma de começar a reconstruir a nós próprios.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto e colunista do jornal O Globo.