Ricos novos e novos-ricos

José Horta Manzano

Novo-rico é a forma aportuguesada da expressão francesa nouveau riche. Tem conotação fortemente pejorativa exatamente como o original. Designa todo indivíduo de origem modesta que enricou em pouco tempo mas que, embora tendo atingido condição social e financeira superior, não adquiriu cultura nem boas maneiras condizentes com a nova situação. Outra palavra francesa de mesmo significado é parvenu, também dicionarizada.

De riquinhos que chegaram a amealhar alguns milhares de reais, o mundo está cheio. Não é desses que falo aqui. Refiro-me aos que juntaram centenas de milhões ou, em alguns casos, bilhões. Pra quem passou infância remediada, a tentação é grande de gritar a todos: «Cheguei lá!». Há mil maneiras de animar esse circo de vaidades.

Lamborghini semelhante à que Senhor Batista exibia na sala

Lamborghini semelhante à que Senhor Batista exibia na sala

Hoje caiu um pouco de moda, mas, algumas dezenas de anos atrás, compravam-se títulos de nobreza. Tivemos, no Brasil, diversos casos de descendentes de imigrantes italianos que se mostraram simpáticos ao rei da Itália e conseguiram nobilitar-se. Foi o caso de Francisco Matarazzo, que começou como mascate e chegou a ter o maior império industrial da América Latina em meados século passado. Foi “enobrecido” com o título de conde.

Outro que ainda hoje exibe o título adquirido é o conde Francisco Scarpa(*), aquele que outro dia chamou a mídia para assistir ao enterro de um automóvel de luxo no jardim. Na intenção de expor riqueza, acabou mostrando que a estupidez humana não tem limites. Teria sido mais elegante e útil leiloar o carro e doar o dinheiro ao Hospital do Câncer.

Hoje em dia, as poucas casas reais que sobram na Europa já não distribuem alvarás de nobreza como nos bons tempos. Para se destacar da multidão, novos-ricos têm de bolar outros métodos.

Estes dias, tem-se falado muito num certo senhor Batista, que chegou a possuir a maior fortuna do país, uma das maiores do planeta. Como legítimo representante da casta dos novos-ricos, esse senhor teve estapafúrdia iluminação: expôs um automóvel de luxo em plena sala de estar, ideia que Freud não teria dificuldade para explicar.

Parece, no entanto, que sua propalada fortuna não passava de vento, de puro gogó. Na verdade, o dinheiro era nosso. Desmascarado, o homem está fazendo atualmente um retiro espiritual no Complexo de Gericinó. Terá tempo de sobra para analisar as façanhas que cometeu.

Donald Trump: apartamento familiar

Donald Trump: apartamento familiar

«Un bien mal acquis ne profite jamais à celui qui le possède» ‒ um bem mal adquirido não beneficia jamais àquele que o possui, diz um sábio provérbio francês. Deus sabe por onde andará o automóvel de luxo, aquele da sala de estar, hoje devidamente confiscado. De qualquer maneira, o moço já não precisa dele: anda agora de carona nas elegantes peruas da PF.

Na outra ponta, no rol dos ricos novos que não se deixaram tentar pelo exibicionismo, temos Herr Ingvar Kamprad, de quem dificilmente o distinto leitor terá ouvido falar. Trata-se do criador da IKEA, rede de 330 enormes lojas de móveis distribuídas por 28 países, com cerca de cem mil funcionários. O faturamento anual é próximo de 30 bilhões de euros.

Originário de um vilarejo sueco, o homem está com 90 anos. Cresceu em ambiente modesto. Todo o dinheiro que ganhou veio do trabalho e não de trambiques com cumplicidade do governo. Dizem que levou vida simples e sempre viajou de classe econômica. Ano sim, outro também, aparece na lista dos mais ricos do mundo.

Cada um faz o que quer com o próprio dinheiro, isso é fato. No entanto, conforme o destino que cada um dá à própria fortuna, é fácil constatar o grau de sabedoria do afortunado: se é rico novo ou apenas novo-rico.

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(*) Em italiano, Scarpa quer dizer sapato, curioso sobrenome para um membro da nobreza, né não? De toda maneira, títulos nobiliárquicos não têm mais validade oficial na Itália atual.

Os 100 anos de Jânio

Sebastião Nery (*)

Chegamos cedo, dez da manhã. José Aparecido de Oliveira, o poeta Gerardo Mello Mourão e eu. Era um belo domingo de sol em São Paulo, na rua Santo Amaro n° 5. Jânio Quadros veio abrir o portão, feliz, sorridente. Cortava a grama com um carrinho anavalhado.

Era 1970, a ditadura militar corria feroz. Todo mês, quando em São Paulo, Aparecido arrebanhava alguns amigos para almoçarmos com Jânio Quadros. Foram chegando o padre Godinho, Roberto Cardoso Alves, Luís Carlos Santos, Oscar Pedroso Horta. Tomávamos uísque ou vinho. Aparecido pediu um vinho branco. Jânio escandia as sílabas:

‒ Zé, o Nery, que foi quase bispo, sabe que vinho é tinto. Vinho branco é uma bebida dos homens. A bebida de Deus é o vinho tinto. Se vinho branco fosse vinho, a missa seria com vinho branco. Já viram missa com vinho branco? Os grandes porres da Bíblia, de Noé, de Davi foram todos com vinho tinto, sim. Quando Jesus transformou água em vinho nas Bodas de Caná, o vinho saiu tinto. E era tinto o vinho da Última Ceia.

vinho-4Fomos para o almoço ‒ a mesa farta e colorida. Já estávamos no cafezinho, antes do conhaque e do charuto, quando dona Eloá chega perto de Jânio e diz-lhe alguma coisa ao ouvido. Jânio encrespa as mãos, revolve os olhos, passa os dedos retorcidos pelos cabelos e geme fundo:

– Não pode ser! Meu Deus, não pode ser!

As lágrimas desabam pelo rosto, ele se levanta:

– Muriçoca! Muriçoca morreu!

Perplexos, levantamo-nos todos. No fim do jardim, deitada na grama, morta, uma cachorrinha branca, meio amarelada. Jânio senta-se no chão, pega-a nos braços, aperta contra o peito, beija-a em soluços, chorando convulsivamente. Dona Eloá tenta levantá-lo:

– Jânio, temos outros cães no jardim. Ela se foi, os outros ficaram.

– Cães, Eloá! Cães! Cães há muitos, eu o sei. Mas a Muriçoca era única. E não porque a rainha Elizabeth ma deu. Quando me cassaram, quando o algoz fardado caiu sobre mim, todos me abandonaram, Eloá, até tu. Só a Muriçoca me acompanhou na solidão e na dor.

Dona Eloá olhou para nós, desolada:

– Não diga isso, Jânio. Sabe que não é verdade. Aqui estão os amigos.

– Amigos, Eloá, amigos… Mas a Muriçoca era um pedaço de mim.

janio-6Ele ali no chão, soluçando, a cachorrinha no colo, e nós abestalhados. Revirava os olhos e arquejava. E nos braços, o pescoço caído, como uma boneca de Chaplin, Muriçoca.

– Sepultá-la-ei eu mesmo, com minhas mãos e minhas lágrimas, no vértice do jardim. Ficará eterna na saudade, sob uma lápide de bronze.

E saiu andando a passos largos, os olhos tortos, cabelos desgrenhados, para o centro do jardim, beijando e apertando a cachorrinha contra o peito. E nós atrás. Uma tensa procissão medieval, como em um filme de Buñuel na Catalunha. No meio do gramado, Jânio parou, olhou para os quatro cantos, deu um passo, bateu o pé no chão:

– Será aqui, no vértice. Ela sempre comigo, até o último dia.

Jânio olhava para o céu, procurando a alma de Muriçoca na tarde fria que caía. Voltei lá outros dias. No vértice do jardim, uma lápide de bronze cobria o tumulo de Muriçoca. Jânio enganou São Paulo e o Brasil. Não enganou Muriçoca.

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(*) Sebastião Nery, jornalista, é editor do site SebastiãoNery.com.

Trump e os estrangeiros

José Horta Manzano

Segundo a definição da ONU, imigrante é a pessoa que não nasceu no país em que reside. Por esse critério, cerca de 13% dos habitantes dos Estados Unidos entram na categoria. A atual proporção de estrangeiros é praticamente a mesma que habitava no país há um século, nos anos de imigração maciça. De fato, a quantidade de habitantes nascidos fora do país em 1860 (13,2%), em 1880 (13,3%), em 1900 (13,6%) ou em 1920 (13,2%) equivale à de hoje.

Portanto, o número de imigrantes naquele país não deveria, em si, surpreender ninguém. Por um lado, o fenômeno não é novo. Por outro, o número não é assustador. Convenhamos, se um estrangeiro sai de casa pra fazer a vida do outro lado do mundo, não é por pura vocação turística. É sinal positivo que indica que há boas oportunidades de trabalho.

alfandega-3Tem mais: o imigrante tende a ocupar os extremos da escala social. A maioria cuida justamente das atividades que os nativos desdenham. São pessoas com pouca instrução, que aceitam empregos de baixo salário recusados pelos nacionais. Na outra ponta, estão os profissionais solidamente formados, disputados por universidades, centros de pesquisa, empresas de desenvolvimento tecnológico.

O grau de avanço de países de forte imigração parece demonstrar os benefícios que a vinda de estrangeiros traz. EUA, Suíça, Canadá, França, Austrália, Suécia, Nova Zelândia são bons exemplos. Não fosse a criminalidade descontrolada e o roubo institucionalizado, Brasil e Argentina também apareceriam nessa lista.

Na França, os imigrantes representam cerca de 12% da população. O grosso desses indivíduos vem de antigas colônias (Argélia, Tunísia, Marrocos, África subsaariana), países de maioria muçulmana. Como resultado, no imaginário popular, o imigrante é identificado como maometano. Para combater esse clichê, as autoridades evitam dar destaque à religião em recenseamentos. Embora a escassez de estatísticas ligando imigração e religião não elimine o preconceito, o esforço e a intenção são louváveis. Sem essa orientação oficial, a clivagem seria ainda mais importante.

Mr. Trump, truculento e pouco experimentado, nem sempre consegue calcular o alcance de seus atos. Acaba de fechar as portas dos EUA a pessoas oriundas de determinados países de maioria muçulmana. A decisão, ofensiva e de sabor medieval, equivale a identificar em cada cidadão dos países vetados um potencial terrorista. É inacreditável como um mandachuva, sozinho, pode causar estrago tão grande em tão pouco tempo.

green-card-1Acredito que, se pudessem voltar atrás, muitos dos que votaram nele reconsiderariam a escolha feita. De qualquer ponto de vista que se analise a ferocidade do novo presidente, só se conseguem ver consequências negativas.

O mundo civilizado está atônito. A antipatia planetária espalhada por Bush Jr. volta com força total. Os oito anos durante os quais Obama tentou amenizar a imagem do país estão escorrendo pelo ralo em poucos dias. Negar entrada no país até a cidadãos munidos de autorização permanente ‒ o chamado «green card» ‒ gera insegurança jurídica, situação típica de países atrasados. Vai-se dormir sem saber como será o dia seguinte.

Francamente, os EUA não mereciam um líder de mente tão embotada.

Pichação

José Horta Manzano

Chamada da Folha de São Paulo, 29 jan° 2017

Chamada da Folha de São Paulo, 29 jan° 2017

O mano tem razão. Acertou na mosca. O que falta é educação ‒ em todos os sentidos.

Educação cívica
Não vandalizar a paisagem urbana pra satisfazer seu diminuto ego.

Educação básica
Não causar dano a propriedade alheia.

Educação de bom senso
Não provocar a exasperação da esmagadora maioria dos concidadãos, que preferem uma cidade limpa. Não é inteligente botar a cidade inteira contra si.

Educação escolar
Pichação se escreve com ch, não com x.
Xô, ignorância!

Interligne 18cO mano tem razão:
O que falta é educação.

Make America great again

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 jan° 2017

Todos entenderam que a desintegração da União Soviética, na última década do século 20, anunciava o fim do bilateralismo. De fato, o fracasso de setenta anos de coletivismo demonstrou que os trilhos do comunismo não serviam. O sistema implantado por Lenin e aperfeiçoado a ferro e a fogo por Stalin chegou ao apogeu ao derrotar a Alemanha nazista mas foi incapaz de trazer prosperidade e bem-estar ao próprio povo. Acabou apodrecendo sozinho, de dentro para fora, sem bomba, sem guerra, sem choro nem vela.

Durante os vinte anos seguintes, a hegemonia americana instalou-se soberana. Nenhuma potência lhe batia nos tornozelos. Tinha chegado ao primeiro lugar por mérito e também, sejamos francos, pelo fracasso do adversário. Quando o inimigo joga a toalha, o vencedor, ao sentir-se todo-poderoso, baixa a guarda e amolece. Foi o que aconteceu.

Poucos se deram conta de que a Rússia, empobrecida e com o orgulho ferido, não se havia resignado a assumir o rótulo humilhante de «nação emergente». Quem já foi rei não perde a majestade assim tão fácil. As portas se escancararam para a entrada em cena de um salvador da pátria. E ele surgiu de onde ninguém esperava.

bandeira-eua-2No caos que se seguiu à débâcle do império, uma oligarquia formada por um punhado de novos-ricos tomou o lugar da antiga «nomenklatura». O grupo decidiu entregar as rédeas do país a um obscuro funcionário de carreira, na certeza de que, por detrás do pano, continuariam a dar as cartas. Erro fatal. Pinocchio, Dilma e tantos outros demonstram que esse tipo de acerto costuma falhar. Falhou.

Em quinze anos, Vladimir Putin botou pra correr a turma de padrinhos e, com mão de ferro, instalou-se no comando. Um pouco por sorte, um pouco por se ter rodeado de gente competente, conseguiu elevar espetacularmente o nível de vida do povo. Sua popularidade, já nas alturas, continua subindo. A prosperidade do país permitiu-lhe quintuplicar o orçamento militar. Sem estardalhaço, a Rússia voltou a meter medo. Retomou a Crimeia, considerada desde sempre como território nacional. Apossou-se de facto da região oriental da Ucrânia. De olho na base naval que detém em território sírio, não hesitou em apoiar o ditador do país, com o objetivo de conservar as preciosas instalações militares.

Por seu lado, a China encontrou em Xi Jinping o homem forte que lhe faltava. Sereno, mas firme e esperto, o mandatário entendeu que seu país tem tudo a ganhar com a nova paisagem multilateral. Menos belicosos que os vizinhos russos, os governantes de Pequim dão prioridade ao poderio comercial. Cada vez mais, capitais chineses se apoderam de marcas tradicionais, fato que passa batido para a maioria.

E os Estados Unidos, como ficam nestes tempos de transição? Têm ainda, ninguém duvida, o maior mercado e o mais forte poderio bélico do planeta. Mas a assunção de Donald Trump à Casa Branca, contrariando as aparências, ameaça esse predomínio. Sua campanha baseou-se no lema «Make America great again». (Repare o distinto leitor que, num lapsus linguæ, o «again» traz embutida a ideia de que o país já deixou de ser grande.)

bandeira-eua-2Em si, a ideia até que faz sentido: todo mandatário tem obrigação de aprimorar o desempenho do país e a prosperidade da população. O problema é o caminho escolhido: um agourento isolacionismo. Num mundo que tende à multipolaridade, construir muros e romper tratados de comércio internacional não é a melhor maneira de evoluir. Eliminar a versão castelhana do site da Casa Branca, então, é recuo infausto que demonstra estreiteza cultural. «Cê é grande, mas cê não é dois» ‒ responde a sabedoria popular às ameaças do valentão. Deslumbrado com o próprio umbigo, o presidente narcisista não se dá conta de que o mundo gira e o país vai acabar ficando pra trás.

A árvore plantada pelo ingênuo e parlapatão presidente dos EUA não dará os frutos que ele espera. Não tendo entendido como funciona o frágil e sutil equilíbrio entre as nações, optou por entrar de sola, como elefante em loja de cristais. Se for realmente rico como diz ser, deve saber que dinheiro é imune a patriotismo. Caso se sintam incomodados, os grandes capitais de que seu país dispõe não hesitarão em procurar portos mais seguros. E aquele que prometeu fazer «America great again» periga armar um desastre. A continuar por essa vereda, quando se apagarem as luzes do mandato, sua «America» vai estar «smaller» ‒ apequenada.

Nepotismo

José Horta Manzano

A doença é mundial e o mal está entranhado. Falo do nepotismo, o ato de favorecer parentes especialmente em matéria política. Para os poderosos, a tentação é grande. No Brasil, tem sido praga desde os tempos de Cabral. Algumas leis foram feitas nos últimos anos, mas é praticamente impossível eliminar o problema. Quem está lá em cima sempre dá um jeito de contornar interdições ‒ utilizando, por exemplo, testas de ferro para ocultar familiares.

canard-enchaine-1A França carece de legislação na matéria. Fica tudo por conta da ética ‒ da ética individual de cada político, entenda-se. No campo eleitoral, faz alguns anos que virou moda organizar eleições primárias, com participação do povo, para designar o candidato dos grandes partidos à presidência da República. Este ano, uma coligação de partidos de direita e de centro-direita seguiu esse caminho. Sete candidatos se apresentaram e enfrentaram três debates na tevê, quando cada postulante teve ocasião de expor seu programa. A votação aberta a todos os eleitores designou, ao cabo de dois turnos, Monsieur François Fillon para candidatar-se em nome da coligação.

François Hollande, atual presidente, à vista do balanço catastrófico de seu governo, decidiu não se recandidatar. Sentiu que daria vexame e perigava ser eliminado antes do segundo turno. Assim sendo, a coligação de partidos de esquerda e de centro-esquerda também organizou primárias para escolher candidato. Após o primeiro turno, domingo passado, sobraram dois finalistas. Vão se enfrentar neste domingo. Quem ganhar será o candidato.

Monsieur Fillon, candidato oficial dos partidos de direita, já foi primeiro-ministro do país durante o governo Sarkozy. Esta semana, o jornal «Le Canard Enchainé» ‒ respeitado semanário satírico publicado desde 1915 ‒ soltou uma bomba política. Acusou o candidato de ter, quando primeiro-ministro, nomeado a esposa para um «cargo fantasma». Trata-se de emprego fictício, daqueles em que o funcionário se contenta em receber o salário no fim do mês, sem sequer se preocupar em aparecer pra bater ponto. No total, Madame Fillon teria embolsado mais de meio milhão de euros de dinheiro público. Sem trabalhar.

nepotismo-1A polêmica está longe de chegar ao fim. A Justiça, que já está cuidando do caso, ainda não tomou decisão. O candidato, em entrevista dada ontem durante jornal televisivo de forte audiência, declarou que, caso se torne réu, abandonará imediatamente a candidatura. Se acontecer, estará criada uma confusão dos diabos. A eleição para a presidência do país está marcada pra daqui a três meses.

Entendo que tudo o que relatei possa ser de pouco interesse para o distinto leitor. Minha intenção foi mostrar que nepotismo e emprego fantasma não são exclusividades tupiniquins. O que nos diferencia é a repercussão que cada caso provoca. Em outros países, um único caso pode derrubar uma candidatura importante. No Brasil, tem gente graúda que, apesar de carregar nas costas dúzias de processos por improbidade, continua exercendo cargo na administração pública. Numa boa.

Crescendo e minguando

José Horta Manzano

Você sabia?

Toda criança brasileira sabe que a Lua crescente se parece com um C desenhado no céu. Quando chega ao quarto minguante, o astro assume o formato de um D. Fica fácil memorizar: C para crescente e D para decrescente. Quanto mais ao sul estiver o observador, mais o fenômeno é evidente. Já à medida que a gente se desloca em direção ao norte do país, a visão vai mudando. O desenho da Lua vai girando até aparecer deitado, como se esboçasse um sorriso. Ou como se desenhasse um muxoxo.

Crédito: Les comptines de Gabriel

Crédito: Les comptines de Gabriel, youtube

E no Hemisfério Norte, como é que fica? A imagem é exatamente inversa àquela que se observa no sul do Brasil. Ao norte do Trópico de Câncer ‒ onde vive a maior parte da humanidade ‒, a Lua crescente forma um D no céu. E a decrescente parece com um C.

Cada povo há de ter inventado maneira de memorizar. Nas regiões de língua francesa, a Lua crescente chama-se «premier quartier» (primeiro quarto). Para não esquecer, lembram-se da letra p de «premier». De fato, a parte redonda do p minúsculo mostra a imagem estilizada da Lua crescente tal como os que vivem no Hemisfério Norte a veem.

A Lua minguante se diz «dernier quartier» (último quarto). De novo, a parte redonda do d de «dernier» lembra a todos que a Lua está em fase decrescente. E por que acontece isso? Por que razão uns enxergam nosso satélite «de cabeça pra cima» enquanto outros o veem «de ponta-cabeça»?

by Marc Chagall (1887-1985), artista franco-russo

by Marc Chagall (1887-1985), artista franco-russo

A explicação não é complicada. Primeiramente, precisa saber que a órbita da Lua segue, pouco mais ou menos, o Equador da Terra. Agora, vamos exagerar. Imagine o distinto leitor que o observador se encontre no Polo Norte. Para ver a Lua, terá de olhar «para baixo», ou seja, para o sul. Agora vamos imaginar que outro observador esteja no Polo Sul. Terá de olhar «para cima» ‒ quer dizer, para o norte.

Cada um deles verá uma imagem invertida. Se a Lua estiver à esquerda do Sol para o observador do Polo Norte, ele verá um C desenhado no céu. No mesmo momento, o corajoso que se instalou no Polo Sul, se ainda não estiver congelado, verá a Lua à direita do Sol. Como resultado, a imagem vai se parecer com um D.

De qualquer maneira, que estejam aqui ou ali, os namorados vão continuar se encantando com a Lua. Mais ainda se estiverem longe do polo.

O passaporte e as estrelas

José Horta Manzano

Já na escola primária, aquela que já se chamou «grupo escolar» e que muda de nome a cada vinte anos, a gente ficava sabendo que existia uma constelação chamada Cruzeiro do Sul. Aprendíamos também que aparecia entre as estrelas da nossa bandeira. Como não nos ensinavam que outros povos também a avistavam, a gente ficava com a impressão de que o Cruzeiro só era visível a partir do Brasil. Era nossa constelação nacional. Era só anos mais tarde que a gente se iria dar conta de que outros habitantes da Terra também enxergam o Cruzeiro do Sul em noite de céu claro.

cruzeiro-do-sul-1A olho nu, somente cinco estrelas são visíveis, mas os livros ensinam que o conjunto é composto de 54 estrelas. Pra vê-las todas, o observador tem de munir-se de luneta ou telescópio. Só que, aí, vai-se o charme de distinguir aquela cruz tão característica.

Bandeira da Austrália - Cruzeiro do Sul representado corretamente

Bandeira da Austrália – Cruzeiro do Sul representado corretamente

A particularidade da constelação é só poder ser avistada a partir do Hemisfério Sul da Terra. Dizem que os primeiros europeus a contemplá-la foram os marinheiros portugueses, aqueles que se aventuraram além do Cabo Bojador. Há quem conteste. No fundo, pouco importa.

Fato interessante é que, hoje em dia, mais de meia dúzia de países ‒ todos do Hemisfério Sul, naturalmente ‒ incorporaram o Cruzeiro do Sul à bandeira nacional. Além do Brasil, Austrália, Papuásia-Nova Guiné, Samoa, Nova Zelândia e outros pequenos Estados do Oceano Pacífico fizeram isso.

Passaporte brasileiro - modelo antigo

Passaporte brasileiro – modelo antigo

Para figurar uma cruz, bastariam quatro estrelas, mas a constelação tem cinco visíveis a olho nu. Cada uma delas aparece numa extremidade e a quinta, que leva o apelido de «intrometida», fica no espaço que, se fosse num relógio, marcaria as 4 horas ‒ no campo inferior, à direita.

Bem ou mal, o antigo modelo do passaporte brasileiro trazia a «intrometida» na posição correta. Já o modelo atual negligencia essa particularidade. A representação estilizada situa a quinta estrela na posição das 8 horas do relógio ‒ em baixo, à esquerda.

Passaporte brasileiro - modelo novo

Passaporte brasileiro – modelo novo

É surpreendente que essa representação errônea tenha sido adotada. Não se pode deixar de perceber, nesse grafismo, a negligência com que se costuma lidar com coisa séria em nosso país. Devemos concluir que o desleixo deturpa até os símbolos da nação?

Os dois galos

Jean de La Fontaine (*)

Dois galos se meteram em peleja
A fim de saber qual deles seja
O capataz de um bando de galinhas:
Unhadas e bicadas tão daninhas
Levou um, que se deu por convencido,
E andava envergonhado e escondido.

O vencedor se encheu de tanta glória,
Que, para fazer pública a vitória,
Pôs-se de alto, voou sobre umas casas;
Ali cantava, ali batia as asas.

Andando nessas danças e cantares,
Veio uma águia, levou-o pelos ares;
E saindo o que estava envergonhado,
Gozou do seu ofício descansado.

by Félix Lorioux (1872-1964), artista francês

by Félix Lorioux (1872-1964), artista francês

Quem contemplasse bem quão pouco dura
Neste mundo qualquer prosperidade,
Livre estava de inchar por vaidade
Com um leve sucesso de ventura.

O que tem a alegria por segura
E doente, e o seu mal fatuidade;
Que ela passa com muita brevidade,
E vem logo a tristeza, e muito atura.

De mudanças o mundo está tão cheio,
Que hoje rio, amanhã estou sentindo
Uma grande desgraça que me veio:

Delira quem dos tristes anda rindo;
Que é absurdo gostar do mal alheio,
Quando o próprio a instantes está vindo.

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(*) Jean de La Fontaine (1621-1695), poeta francês que escolheu o caminho das fábulas para externar sua visão de mundo. A tradução da fábula «Les deux coqs», transcrita acima, é de Couro Guerreiro.

O poema adverte contra o perigo da arrogância e da jactância ‒ o orgulhoso sempre acaba dando-se mal.  Na versão portuguesa, identifica-se sabor luso ‒ ligeiramente arcaico, mas delicioso.

Do século passado

José Horta Manzano

Dia sim, outro também, lê-se o relato de algo acontecido «nos anos 90 do século passado». Fala-se também de pessoas nostálgicas «dos anos 50 do século passado». O distinto leitor já há de ter notado o modismo.

Trecho de editorial do Estadão, 23 jan° 2017

Trecho de editorial do Estadão, 23 jan° 2017

Vamos refletir um pouquinho. Seria, por acaso, concebível relatar algo acontecido «nos anos 90 do século atual»? Ou falar de pessoas nostálgicas «dos anos 50 do século atual»? Ou, pior ainda, de pessoas nostálgicas «dos anos 50 de dois séculos atrás»? Parece coisa de louco, não?

Pois é isso. Certas palavras sobram, portanto são descartáveis sem prejuízo da clareza do enunciado. Sem elas, a frase fica mais enxuta, mais fluida, mais elegante. Para referir-se a uma década do século passado, basta mencionar qual delas é. Todos vão entender.

Doação de órgãos

José Horta Manzano

Em matéria de doação de órgãos, a diferença de legislação entre países dá margem a análise psico-sócio-filosófica, se é que assim me posso exprimir. Tradição, comportamento social, crença religiosa entram em conta. Visão da igualdade entre cidadãos também.

No Brasil ‒ assim como praticamente no resto do mundo ‒ é longa a lista de pacientes que esperam pelo órgão que lhes permitirá continuar vivendo. O mui oficial portal do governo brasileiro é claro. Explica que «mensagens por escrito deixadas pelo doador não são válidas para autorizar a doação».

Na prática, isso significa que «apenas os familiares podem dar o aval da cirurgia, após a assinatura de um termo». O resultado é dramático: «metade das famílias não permite a retirada dos órgãos para doação».

doacao-1É surpreendente constatar que, de certa maneira, boa parte dos brasileiros ainda mantêm, com relação ao corpo físico, relação semelhante à dos egípcios de seis mil anos atrás, na época dos faraós. Como se sabe, naqueles tempos recuados, era generalizada a crença de que a preservação do corpo morto era importante para seguir viagem no além.

Na França, faz quarenta anos que a lei é clara nessa matéria. Quando um cidadão morre, parte-se da presunção de que tenha dado consentimento à doação de órgãos ou tecidos corporais. Diferentemente da regra vigente no Brasil, todo cidadão é considerado doador a menos que, em vida, tenha exprimido oposição formal.

Em lugar de criar um cadastro de potenciais doadores, foi instituído um registro nacional de não-doadores. Todos os que se recusarem à retirada post-mortem de vísceras ou tecidos do próprio corpo devem inscrever-se nesse arquivo. Melhor fazê-lo enquanto vivos, evidentemente.

by Ronaldo Cunha Dias, desenhista gaúcho

by Ronaldo Cunha Dias, desenhista gaúcho

Até aqui, o não-doador tinha de se alistar por meio de documento escrito, assinado e datado. Com a popularização da internet, o procedimento foi atualizado por decreto que entra em vigor neste 23 de janeiro. A partir de agora, todos aqueles que se recusarem a doar parte de seus restos mortais podem inscrever-se por meio de formulário disponível online.

Permitir que outros possam sobreviver graças a órgãos dos quais não vou mais precisar me parece óbvio, lógico e natural. Mal comparando, é como se, em vez de doar roupa que não me serve mais, preferisse jogá-la no lixo a dá-la a quem precisa.

É por isso que não acredito que a nova possibilidade oferecida pelo decreto francês venha a suscitar vocações. Não é um formulário online que vai transformar doadores generosos em egoístas que preferem deixar apodrecer o coração debaixo de sete palmos. Só escolhem esse caminho aqueles cujo coração já apodreceu em vida.

Carnificina

José Horta Manzano

Ah, o perigo está sempre à espreita do tradutor. Como costumo dizer, em matéria de tradução, nem sempre o que parece é.

Que não se preocupe o distinto leitor. A imprensa brasileira não foi a única a escorregar. Na França, rolaram pela mesma ladeira. Ao comentar o discurso de entronização de Mr. Trump, todos falaram em «carnificina» sem desconfiar que a afirmação não fazia sentido, que algo estava fora de esquadro.

Quando, no discurso de tomada de posse, o novo presidente falou em «American carnage», usou expressão informal, em princípio restrita a colóquio entre amigos.

Num pronunciamento importante como aquele, o homem deveria ter-se exprimido de outra maneira. Mas talvez seja exigir muito de um Lula de olhos azuis. Embora nascido e criado em berço de ouro, o novo presidente dá preferência a expressões caseiras, na intenção de aproximar-se, assim, do povão.

Chamada do Estadão, 20 jan° 2017

Chamada do Estadão, 20 jan° 2017

Carnage  entrou no inglês vindo diretamente do francês. A raiz latina caro/carnis deu prole importante. Em nossa língua, temos carne, carnal, carneiro, carnívoro, encarnar, descarnado. Temos também carnificina, termo utilizado justamente na chamada do Estadão. O estagiário, embasbacado, procurou no dicionário e ficou com a primeira acepção que encontrou.

Bobeou. Embora o significado usual de carnage seja realmente carnificina, não foi o que Mr. Trump quis dizer. Ele pensava na acepção secundária da palavra.

«American carnage» teria sido mais bem traduzido como fracasso americano, ruína americana, débâcle americana, tragédia americana. Nada que ver com carne sangrando.

Na antevéspera do gozo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não sou adepta de nenhuma teoria conspiratória. Admito, no entanto, ter sentido um frio na barriga e um arrepio percorrer meu corpo quando ouvi a notícia. Imaginei ter ouvido até uma gargalhada soturna do destino, alertando que ainda não é hora de celebrar a chegada de novos tempos para a sociedade brasileira. Como não tenho elementos para solucionar o mistério nem me sinto gabaritada para tanto, deixo para os especialistas a investigação e a análise das consequências do infausto acidente que custou a vida do ministro do STF encarregado da operação Lava a Jato.

A perplexidade com mais esse duro golpe na autoestima dos brasileiros foi tanta, porém, que meu cérebro se recusou a aprofundar o exame dos altos e baixos de nossa história contemporânea. Preferiu uma saída lateral e me induziu a juntar acontecimentos díspares para compor um painel ilustrativo de nossos traços culturais mais fortes.

Ao fim e ao cabo do desvario mental, a conclusão, inevitável, explodiu na minha cabeça: tantas tragédias acontecidas na antevéspera de eventos históricos decisivos para mudar o rumo de nosso país não podem ser mera coincidência. No processo, deve haver algum outro fator que ainda não está claro.

O batizado de Macunaíma by Tarsila do Amaral (1883-1973), artista paulista

O batizado de Macunaíma
by Tarsila do Amaral (1883-1973), artista paulista

Foi tentando interpretar as razões desse movimento pendular extremo de emoções, característico de nossa história, que me ocorreu a hipótese: há uma faceta distintiva da brasilidade que até hoje não foi investigada. Poderia se tratar, pensei eu de começo, de um transtorno bipolar, que vem nos afetando secularmente e que induz nossa sociedade a alternar momentos de grande autoestima e euforia (como acontece no Carnaval e no futebol) com momentos de depressão e autocondenação (síndrome do vira-lata do ponto de vista social e político).

Mesmo considerando a hipótese plausível, ainda faltava investigar as causas do transtorno. Tentei aprofundar a análise, introduzindo nela mais um elemento: o modo como a libido atua em cada esfera do nosso cotidiano. Pensei no grande investimento que fazemos na beleza e na exposição do próprio corpo, provável herança de nossos antepassados indígenas. Ao mesmo tempo, lembrei como incorporamos pesadas noções de pecado e culpa, decorrentes da tradição católica herdada dos colonizadores portugueses. Pareceu-me bastante provável que essas forças religiosas tenham acabado atuando como importante freio para sublimarmos o Macunaíma que insiste em viver dentro de cada um de nós.

Foi então que um insight me fez alterar ligeiramente o diagnóstico: temos, como cultura, um caráter francamente histérico diante da possibilidade de gozo. Com isso, quero dizer que nos condenamos a surfar perenemente na crista de uma onda de excitação, sem jamais encontrar descarga satisfatória. Sempre que sentimos que um orgasmo coletivo se avizinha, algo em nós se tranca, a musculatura social se retesa e impede o livre fluir das paixões, a concentração desaparece e a potência orgástica se perde, dividida em uma miríade de gratificações secundárias.

O paradoxal é que até mesmo nas esferas em que nos julgamos superiores aos demais povos – como na alegria, na conciliação, na inventividade e na capacidade de superação de obstáculos ‒ estamos sempre a um passo de atingir a merecida consagração, mas algo inesperado acontece que nos força a permanecer num platô intermediário que não é total prazer nem total alívio.

Relembrando e exemplificando: foi assim quando nos preparávamos para retomar a posse plena de nossa cidadania e explodiu em nosso colo a notícia de que a emenda de restabelecimento da eleição direta para a presidência não tinha passado no Congresso. Na sequência, novo coito interrompido quando tivemos de amargar a morte do primeiro presidente civil, Tancredo Neves, antes mesmo de ele tomar posse, após 21 anos de convívio com o arbítrio e o desprazer. A mesma quebra de expectativa se abateu sobre nosso organismo cívico quando, poucos meses depois de termos eleito o primeiro presidente civil por voto direto, fomos forçados a admitir que tínhamos escolhido uma raposa-marajá para tomar conta do galinheiro.

Outro ciclo de excitação e engrandecimento teve início com os avanços do governo social-democrata de Fernando Henrique e seu plano de controle da inflação. Já antevíamos o raiar esplendoroso do dia em que o Brasil seria finalmente reconhecido como um país sério, uma economia de primeiro mundo e um centro político de excelência. Logo, no entanto, nos entediamos com esse projeto de poder certinho demais, elitizado demais, intelectualizado demais. Em resumo, estávamos cansados da relação tipo “papai e mamãe” que mantínhamos com o poder central.

morte-1Já se agitava em nosso peito a vontade de nos deixarmos seduzir por um parceiro mais propriamente “latino”, mais fogoso e com mais “pegada” para diminuir as desigualdades sociais, nossa principal fonte de preocupações e culpa. Nos encantamos com o guerreiro-camponês que chegou embalado ao som do apelo de ‘sem medo de ser feliz’. Tudo ia bem na relação, quando ele resolveu nos propor um ménage à trois e trouxe uma mulher para dar continuidade aos tempos de diversão sem culpa. Não demorou muito para que nosso superego começasse a emitir sinais de alerta de que nosso parceiro não tinha intenções sérias, só queria se divertir.

Quando essa mulher tentou nos convencer de que poderíamos extrair prazer também do “amor que não ousa dizer seu nome”, a coisa desandou de vez. Reinstalou-se entre nós de imediato o desejo de autocontrole, de moralidade irrestrita e expurgo de todos os vícios.

A sequência desse enredo de ligações perigosas todos já conhecem: um acidente de avião matou o único candidato com brilho nos olhos e que prometia nos levar a sério, Eduardo Campos. Agora, face a mais um acidente inexplicado e inexplicável atravessando nosso caminho rumo ao prazer total, impossível não perguntar: com a saída de cena de Teori, quem poderá investigar a folha corrida de todos os nossos futuros parceiros amorosos e nos tranquilizar quanto à índole não-perversa dos atuais?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Discurso para a militância

José Horta Manzano

Pronto, o ciclo se fechou. Ou se abriu, fica ao gosto do freguês. Mister Trump subiu ao trono que já foi de George Washington, de Abraham Lincoln, de Richard Nixon e de George Bush.

O ritual aperfeiçoado ao longo dos anos foi seguido à risca. Numa época como a nossa, em que, cada vez mais, descerebrados se devotam a urdir atentados contra tudo e contra todos, forças policiais foram compelidas a tomar excepcionais medidas de segurança. A plateia teve de enfrentar bloqueios, filtros, verificações.

A Folha de São Paulo qualifica de "agressivo" um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

A Folha de São Paulo qualifica de “agressivo” um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

Felizmente, excetuada alguma baderna orquestrada por bléquiblóquis locais, nenhuma ocorrência grave veio perturbar a passação de poder. A sensação ficou por conta da esperada cerimônia de tomada de posse. Centenas de equipes de reportagem do mundo inteiro se tinham abalado para não perder uma migalha do grande momento.

E que se viu? Nada de empolgante, nada de novo, nada de massacrante. Foi manchete em todo o planeta a indumentária da nova primeira-dama, dado de capital importância para o futuro da humanidade. Graças à argúcia de repórteres a quem nada escapa, sabemos que Mrs. Trump estava vestida de azul-bebê, tom afeiçoado por Jacqueline Kennedy. Quem poderia ir dormir sem esse precioso relato?

trump-1E que se ouviu? Nada de empolgante, nada de novo, nada de massacrante. Quem foi ouvir Trump, saiu saciado: ouviu Trump. O novo presidente gastou vinte minutos repetindo exatamente os mesmos slogans que já havia martelado na campanha, todos do tipo «me engana, que eu gosto».

Fiquei sabendo que gente conhecida no mundo do espetáculo boicotou a cerimônia. Percebi que, na falta de um grande nome, tiveram de dar a uma adolescente o encargo de entoar o hino nacional. Tive notícia de que uma ou duas dezenas de parlamentares descontentes recusaram-se a comparecer ‒ atitude que, francamente, não combina com a democracia americana, justamente por acentuar o antagonismo entre «nós & eles», tão deletério e tão nosso conhecido. Ainda que muitos não tenham apreciado o resultado da eleição, esta não é a melhor hora para acentuar divisões no país.

O Estadão qualifica de "agressivo" um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

O Estadão qualifica de “agressivo” um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

Li análises alarmistas. Até gente fina, articulistas que costumo respeitar se deixaram impressionar pelo que disse o novel presidente. Bobagem. Vamos repor as coisas no contexto apropriado, minha gente. O pronunciamento de Mr. Trump foi o discurso final de campanha, o agradecimento aos que nele votaram. O homem não podia dizer outra coisa senão o que já vinha dizendo havia meses. Nem todos os analistas entenderam, mas a fala era dirigida aos que o elegeram, um discurso para uso interno sem nenhuma intenção de impressionar o mundo.

Vamos, camaradas! O diabo não é tão feio assim. Novato em política, Mr. Trump entra na arena galopando e encabritando-se como potro novo. O dia a dia vai-lhe mostrar que o mundo não funciona exatamente como ele imagina. O presidente vai deixar de galopar. Vai maneirar na andadura e acabará trotando como fizeram todos os seus predecessores.

Santo de casa ‒ 2

José Horta Manzano

Hoje em dia, vendem-se menos discos. Métodos de «streaming», de compartilhamento ou de pura piratagem fazem concorrência pesada à venda de gravações. Não era assim trinta anos atrás. Primeiro as ‘bolachas’ de vinil preto, depois os cedês (discos compactos) dominaram o mercado e reinaram, soberanos, por décadas.

Em 1989, uma canção estourou nas paradas de sucesso na França. Cantada em português brasileiro, chamava-se «Chorando se foi» e anunciava a chegada de novo ritmo, a lambada. Gravado por uma desconhecida moça chamada Loalwa, o disco vendeu mais de um milhão de meio de exemplares, fato notável. Na França, estações de rádio tocavam a música o dia todo. O disco foi o mais vendido no país durante 12 semanas seguidas ‒ praticamente o verão inteiro.

Loalwa Braz Vieira

Loalwa Braz Vieira

O sucesso perdeu todo brilho quando, no ano seguinte, estourou o escândalo: a música não passava de vexaminoso plágio da canção boliviana «Llorando se fué», lançada anteriormente pelo conjunto Los Kjarkas. O roubo tinha sido feito por um produtor musical francês que, ao vislumbrar potencial sucesso, simplesmente mandou botar letra em português e registrou-se como autor oficial da música, sob o pseudônimo de Chico d’Oliveira.

Em seguida, o espertalhão formou um conjunto disparate, com instrumentistas de nacionalidades diversas. Para o canto, escolheu Loalwa Braz, carioca residente na França, praticamente desconhecida pelo público, tanto lá como cá. O bom arranjo musical e o marketing frenético fizeram efeito. O sucesso foi retumbante.

Como não podia deixar de ser, os verdadeiros autores da canção entraram com processo por plágio. Mesmo sem ser musicólogo, qualquer um percebe que se trata da mesmíssima música, sem tirar nem pôr uma nota. Naturalmente, o falsário perdeu o processo e teve de devolver o dinheiro ganho indevidamente.

Depois disso, produtor, cantora e conjunto desapareceram da paisagem musical francesa. O ritmo dito ‘lambada’ sumiu pelo mesmo ralo. Hoje, passados quase trinta anos, o nome da cantora e de seu único sucesso voltaram às manchetes em notícia trágica.

lambada-1Foi assassinada por três assaltantes na modesta pousada que mantinha em Saquarema, no litoral fluminense. O corpo foi encontrado carbonizado. Jazia dentro do automóvel da própria cantora, incendiado pelos homicidas. A polícia informa que os criminosos já estão atrás das grades.

A entronização de Mister Trump na Casa Branca e a dramática morte do ministro Zavascki dominam hoje a atualidade, o que explica que a tragédia que atingiu a artista carioca tenha passado quase despercebida no Brasil. Em compensação, a mídia francesa não deixou de noticiar e lamentar o ocorrido. Todo francês cinquentão ainda se lembra dos movimentos eróticos ‒ e até lascivos ‒ aos quais a hoje esquecida lambada predispunha os pares.

Interligne 18cPlágio
Aqui está o clip original do conjunto boliviano Los Kjarkas.

E este é o clip de promoção de Loalwa e do grupo Kaoma.

Bosque existencial

Massimo Pietrobon (*)

Imagine que, para festejar seu nascimento, seus pais plantem uma árvore num grande relvado perto de sua casa. Escolhem uma árvore singular, bonita, especial.

No seu primeiro aniversário, escolhem outra árvore e a plantam no mesmo terreno.

Imagine que, em cada acontecimento importante, eles continuem a obra com diferentes tipos de plantas. Primeiros passos, primeiras palavras, primeiros dentes.

Conforme você vai crescendo, seus pais lhe transmitem o encargo e você mesmo dará sequência ao ritual de plantar a arvorezinha que lhe agradar, a cada acontecimento de sua vida: nascimento de um irmão, aniversários, viagens.

by Thomas Quoidbach (1983-), artista francês

by Thomas Quoidbach (1983-), artista francês

Esse prado onde seus pais plantaram as primeiras árvores já está se convertendo num bosquezinho. Um arvoredo que agora é seu e começa a se transformar no mapa de sua vida.

Em cada árvore será pregada uma plaquinha com o significado: «minha primeira namorada», «minha primeira viagem sozinho», «volta a casa depois de longa viagem de estudos»…

Esse livro vivo de sua vida vai crescendo e aumentando e dando flores e dando frutos ‒ ano após ano. Cada acontecimento, em vez de desaparecer no passado, crescerá, se encherá de frutos, lhe oferecerá sombra e lhe permitirá subir nos galhos.

Um dia, no final de sua existência, alguém se encarregará de plantar sua última árvore, encerrando a composição desse labirinto de vivências, esse bosque existencial.

E passear por ele será muito bonito.

(*) Massimo Pietrobon, trevisano, vêneto e italiano (nessa ordem), edita o blogue poliglota Capitan-mas-ideas.blogspot.it

(Tradução deste blogueiro)

Vai acabar

José Horta Manzano

Como é que é? ‘Nuestra América’ tem 31% das mortes mundiais? Eta manchete mal estruturada!

Chamada da Folha de São Paulo, 18 jan° 2017

Chamada da Folha de São Paulo, 18 jan° 2017

Se for assim, não precisa ser acadêmico pra vislumbrar o futuro da região: a esse ritmo de mortalidade, em poucos anos a América Latina deixará de existir. Por absoluta falta de habitantes.

A humanização dos presídios

José Horta Manzano

O uso do cachimbo faz a boca torta ‒ é o que se costuma dizer. Há um fundo de verdade na afirmação. Certos usos que vêm de um passado muito antigo vão-se perpetuando sem que a gente se dê conta. Passam os anos, e determinados costumes perduram sem levantar contestação.

O Brasil foi fundado na desigualdade. Começou já com europeus que, embora sujos e maltrapilhos, tomaram para si uma terra que já tinha dono. O embate foi desigual. De um lado, trabucos e armas de ferro; de outro, arcos de madeira e flechas de pedra lascada.

A desigualdade continuou com a divisão da população entre cidadãos livres e escravos. O desequilíbrio durou séculos sem que ninguém se comovesse com a situação, fato que hoje nos parece surreal. Apesar da independência, a sociedade continuou partilhada entre dois campos separados por um fosso.

Em princípio, a abolição da escravidão deveria ter aterrado a vala que distanciava os que tinham e podiam dos que nem tinham nem podiam. Não foi o que aconteceu. A diferença entre os habitantes do novo país apenas mudou de aspecto, mas o fundo permaneceu inalterado. O antagonismo entre senhor e escravo transformou-se em dicotomia entre os que podem e os demais.

Prison 2

Constituições, governos, golpes, revoluções se sucederam. Muita coisa mudou com o passar das décadas. No campo social, nosso país é hoje, sem dúvida, menos desigual do que era em meados do século 19. Assim mesmo, a boca deformada pelo uso do cachimbo continua torta.

A lei criou sistema de quotas para emprego público, candidatura a cargo eletivo, admissão em faculdade. Tenho fortes reservas contra todo sistema baseado em quotas, mas devo reconhecer que, pelo menos, elas mostram um reconhecimento de que algo estava fora de esquadro e precisava ser corrigido. A solução é canhestra, ainda que a intenção tenha sido louvável.

Outro dia, a esposa do embaixador da Grécia foi acusada de cumplicidade no assassinato do marido. Em virtude de pesados indícios de participação no crime, foi encarcerada. Os jornais deram a notícia sublinhando que, por não ter diploma de curso dito superior, a cidadã foi para uma cela comum.

Não tenho maiores informações sobre o caso nem me cabe opinar sobre o mérito da questão. Se a embaixatriz é ou não culpada, é a Justiça que vai determinar. O que me deixa perplexo é que, apesar de todas as medidas que têm sido tomadas nos últimos tempos para reduzir as desigualdades sociais, ainda subsista esse tipo de privilégio.

Dois séculos atrás, talvez fizesse sentido dar tratamento diferente a prisioneiros, quando um deles era diplomado em Coimbra enquanto o outro não passava de um joão-ninguém. Para a mentalidade de então, o convívio entre os dois estava fora de cogitação.

by Genildo Ronchi, desenhista capixaba

by Genildo Ronchi, desenhista capixaba

Muita chuva caiu desde então. Nos esforços que empreendeu para diminuir a desigualdade de tratamento dispensado aos cidadãos, o legislador se esqueceu do espinhoso problema da cela «especial» por oposição à «comum». A questão, que a monstruosa atualidade carcerária traz à tona, terá de ser abordada mais dia, menos dia.

Estamos todos de acordo sobre o fato de que os presídios brasileiros são sucursais do inferno. A solução, no entanto, não pode passar pela manutenção de celas especiais para certa categoria de cidadãos. Que se humanizem os presídios, que se neutralizem «facções» (=quadrilhas), que se repense toda a estrutura prisional do país. Já passou da hora. Mas que se elimine o privilégio representado pela cela «especial», reminiscência de um “Ancien Régime” guilhotinado duzentos anos atrás.

Há solução radical para apressar o aperfeiçoamento das condições carcerárias: é alojar condenados pela Lava a Jato em celas comuns de presídios comuns. A humanização de todos os locais de privação de liberdade viria rapidinho.

Falta de inteligência

Eliane Cantanhêde (*)

Depois de Lula e Dilma acabarem com as câmeras de segurança no Planalto em 2009, o governo dela extinguiu em 2015 o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão de inteligência que assessora o presidente da República nas diferentes áreas. Lula e Dilma temiam revelar quem circulava pelo poder? Tinham algo a esconder? E a extinção do GSI ‒ com o esvaziamento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ‒ foi puro desdém ou confusão entre inteligência e espionagem?

Dilma e Lula 4Conforme antecipou o Estadão, Michel Temer restaurou, logo ao assumir, o GSI e nomeou para o cargo o general da reserva Sérgio Etchegoyen, quadro de elite do Exército. Além de encontrar a Abin com um terço da equipe, o general descobriu que não tem como responder a pedidos judiciais ou legislativos sobre a movimentação de pessoas no Planalto. Sabe quem entrou pela portaria principal, mas não se o empreiteiro tal, o lobista tal ou quem quer que seja passou em qual gabinete, em que dia, por quanto tempo.

Qualquer órgão público, prédio de apartamentos, shopping ou loja tem câmeras de segurança, fundamentais para desvendar dezenas, talvez centenas de crimes, como o recente assassinato do embaixador da Grécia. Mas justamente o prédio mais importante do País não tem câmeras há oito anos. Um espanto!(…)

(*) Eliane Cantenhêde é jornalista. O texto é excerto de artigo publicado no Estadão de 17 jan° 2017.

Visita de Estado

José Horta Manzano

Não sei se o rancor aparece entre os traços de caráter marcantes dos chineses. O que sei que é que, apesar da aparência fria e distante, são muito sensíveis. Apegados a valores tais como a acolhida a visitantes, dão grande importância à maneira como são recebidos no estrangeiro.

Talvez pelo pouco caso com que foram tratados durante séculos pelos europeus, mostram susceptibilidade exacerbada ao mínimo deslize no modo como são recepcionados quando estão de visita ao exterior. Altas personalidades do governo chinês fazem questão de ser tratadas nos conformes.

Presidente da China: Xi Jingping & esposa Presidente da Suíça: Doris Leuthard

Presidente da China: Xi Jingping & esposa
Presidente da Suíça: Doris Leuthard

Tradicionalmente, a Suíça só recebe uma visita de Estado por ano. Dirigentes estrangeiros podem vir ao país quando desejarem, mas somente uma vez por ano se oferecem honrarias oficiais ao dirigente de um país. Este ano, é vez da China. A última visita de Estado de um presidente chinês tinha ocorrido no século passado, em 1999.

Naquela ocasião, a passagem do dirigente oriental tinha constituído verdadeiro desastre. No exato momento em que o ilustre visitante atravessava a praça em frente ao Palácio Federal, um grupo de cidadãos munidos de faixas, bandeiras e cartazes iniciou uma ruidosa manifestação contrária à anexão do Tibete ‒ assunto supersensível em Pequim.

No discurso que pronunciou logo em seguida, o presidente da China não escondeu a fúria. Mostrando-se amargo e ofendido, disse não entender como a Suíça não tinha capacidade de controlar o próprio povo. Azedo, acrescentou: «Vocês acabam de perder um bom amigo». Pegou muito mal.(*)

suisse-28-xi-jinping-1Mas o tempo dissipa querelas. O presidente mudou, os tempos mudaram. Mais poderosa que vinte anos atrás, a China se esforça para mostrar que merece o lugar de destaque que lhe vinha sendo negado por séculos. Para provar que o antigo comunismo já não existe e que o país se transformou em economia de mercado, o presidente Xi Jinping está na Suíça há dois dias. Veio chefiando a delegação de seu país para participar, pela primeira vez, do Fórum Econômico de Davos. É excelente ocasião para mostrar aos donos dos dinheiros do mundo que vale a pena investir na China.

O governo suíço, escolado pelo fracasso da visita anterior, fez o necessário para não ofender os visitantes. Os entornos do Palácio Federal transformaram-se em praça de guerra. O exército foi chamado para dar uma mão. Há barreiras por toda parte. Atiradores de elite estão posicionados em cima dos telhados. Ninguém circula pelas ruas. Até mesmo moradores da vizinhança têm de ser filtrados, identificados e revistados. Para não tolher completamente o direito de livre expressão, uma manifestação em favor do Tibete foi autorizada ‒ longe do palácio e horas antes da chegada do ilustre visitante.

suisse-29-xi-jinping-2Desta vez, pelo menos até agora, nenhuma gafe foi registrada. Apesar das estonteantes diferenças entre os dois países ‒ a região de Pequim, sozinha, abriga três vezes a população da Suíça ‒ há interesses comuns. A Suíça, que não faz parte da União Europeia, está de olho no imenso mercado chinês. A China, por seu lado, está interessadíssima na tecnologia de vanguarda que lhe faz tanta falta e que a Suíça domina.

Está aí uma das vantagens de não pertencer a nenhum bloco econômico ou político: a liberdade de estabelecer tratados e relações privilegiadas com outras nações. Amarrados por pactos rigorosos, membros da União Europeia ou do Mercosul nem sempre podem agir como melhor lhes parece. Têm de obter anuência prévia dos sócios.

No que diz respeito ao Brasil, está chegada a hora de afrouxar certos nós que nos mantêm atados ao bloco «devagar quase parando» ao qual nosso destino está unido.

Interligne 18c

(*) Esse episódio já foi mencionado em artigo meu de quatro anos atrás.