Lula & Trump

José Horta Manzano

Políticos despreparados têm um ponto em comum: agem de olho nos que os elegeram, descurando soberbamente o alcance dos próprios atos. Vou desenvolver o raciocínio.

Comecemos com um exemplo. No Brasil atual, o político incompetente vai se posicionar contra toda mexida no sistema previdenciário. Mostrar-se favorável a mudanças é postura impopular que lhe poderia valer a perda de parte do eleitorado. Assim, nosso personagem prefere agradar admiradores e fechar os olhos para a catástrofe anunciada caso não se reforme o sistema. Nem a perspectiva de que os próprios netos possam vir a sofrer as consequências de sua posição o demoverá da atitude oportunista.

Nosso espécime mais conhecido de homem politicamente despreparado é o Lula, aquele que ‒ parece inacreditável! ‒ foi presidente do país. Apesar de ter ocupado o cargo por oito longos anos, não conseguiu entender que até um pronunciamento feito diante de poucas pessoas pode ressoar muito além do restrito círculo.

O homem é conhecido por regular o discurso conforme a plateia. Diz sempre o que acha que o público quer ouvir. Coerência não é o seu forte. Pode perfeitamente afirmar hoje exatamente o contrário do que tinha asseverado ontem. É compreensível que políticos que agem assim recebam aprovação de cada plateia. Granjeiam votos e acabam chegando lá. É aí que começa o desastre.

Outro exemplo flagrante de político despreparado é Mister Donald Trump. Com discurso sob medida para satisfazer o próprio eleitorado, fraturou o país entre «nós & eles» e conseguiu eleger-se. Com cultura pouca e assessoria parca, não tem logrado desvencilhar-se da armadilha montada por ele mesmo. Continua adotando medidas dirigidas a impressionar os que o elegeram. Sua mente não é suficientemente larga para entender que suas decisões podem alcançar o planeta inteiro.

Ainda estes dias, num rasgo de valentia, Trump decidiu impor taxação às importações de aço e de alumínio. Seu eleitorado aplaudiu de pé: «É isso aí, Mister President!». O drama é que mister president é incapaz de se dar conta de que a economia mundial é um arranjo frágil e delicado como um castelo de cartas. Mexeu numa, o edifício periga desabar. Nestas alturas, os apoiadores do presidente americano estarão orgulhosos de ter votado nele e certos de que a exibição de músculos os fará mais respeitados. Enganam-se.

Como reação imediata, todas as bolsas sentiram o golpe e embicaram para baixo. O Canadá ‒ vizinho, amigo e irmão ‒ é justamente o maior exportador de aço para os EUA. Será, assim, o primeiro afetado pela medida. União Europeia, Brasil e todos os que comerciam com os EUA estão ressabiados. A Europa está seriamente cogitando taxar, em retaliação, importações provenientes dos Estados Unidos.

O pior da história é que o encarecimento do aço e do alumínio vai atingir em cheio os setores da indústria americana que Mr. Trump queria justamente promover. As indústrias automobilística, aeronáutica e bélica são grandes consumidoras de aço e de alumínio. O resultado imediato será a perda de competitividade de seus produtos, um desastre.

Taí, os extremos se tocam. Como pode o distinto leitor constatar, há pontos cruciais em que o Lula e Mr. Trump se assemelham. Ambos discursam para plateias amestradas sem se dar conta do alcance de suas decisões. Falam pelos cotovelos, da boca pra fora, com perigosa leviandade.

Vamos torcer para que o próximo presidente do Brasil não pertença a essa categoria de cidadãos. Não é necessário que seja grande orador, nem ultraconhecido, nem mesmo político tarimbado. O principal é que seja homem preparado para exercer o cargo e que chegue lá sem apelar para o populismo. Não vai ser fácil.

Controlando a falta de controle

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Até agora eu vinha me recusando a entrar no debate a respeito do mais recente escândalo brasileiro, o da carne. Sou, por assim dizer, parte desinteressada da questão, uma vez que sou vegetariana por opção há muito tempo. Por outro lado, sou também naturalista e tenho verdadeiro horror aos aditivos químicos de que a indústria alimentícia se vale para alterar a textura, consistência, cor, cheiro ou sabor de seus produtos. Isso posto, aviso aos carnívoros que podem contar com minha irrestrita solidariedade sempre que forem matreiramente induzidos a erro.

Ao conhecer as reações de nossas autoridades federais à operação Carne Fraca, no entanto, percebi que não poderia mais me eximir. Há alguns ângulos do escândalo que, em minha opinião, não estão recebendo a devida atenção. A polêmica em torno do assunto evidenciou, antes de mais nada, o secular conflito de interesses entre o lucro dos grandes empresários, a imagem internacional do país e as questões atinentes aos interesses e necessidades da população, sempre relegados a segundo plano. Mais grave, as acusações lado a lado acabaram servindo ao propósito de desviar as atenções do foco da operação.

Raciocine comigo: os meios de comunicação acolheram um tsunami de reações indignadas de consumidores, mas praticamente ninguém se dispôs a analisar o escândalo sob a óptica da corrupção dos fiscais e de um superintendente do Ministério da Agricultura. Hipóteses não faltam para explicar esse desvio inicial. Em primeiríssimo lugar, a quase ninguém escapa o fato de que a esmagadora maioria dos nossos compatriotas se sente cotidianamente traída pelas elites políticas e empresariais. Ou seja, descobrir que mais agentes públicos estavam se deixando enredar com propinas para não levar a cabo com decência as tarefas para as quais são pagos já não constitui surpresa alguma. Quem nunca deu como certa a possibilidade de um fiscal achacar empresários ou se deixar subornar, independentemente da área em que atua?

Tratada como mero “detalhe” irrelevante do escândalo, a conduta criminosa dos encarregados da fiscalização da carne foi rapidamente esquecida e cedeu lugar para o apedrejamento moral dos empresários do setor. Sem nem mesmo saber quantos e quais eram os inescrupulosos que não hesitaram em contornar as regras sanitárias para auferir lucros maiores, boa parte da população se deixou envolver numa discussão paralela a respeito dos valores e hábitos nutricionais de cada um. Novo round da luta “nós” contra “eles” teve início. Coxinhas e mortadelas inesperadamente colocados no mesmo barco não viram alternativa a não ser virar seus canhões contra vegetarianos e veganos, relembrando-os do abuso de agrotóxicos e da utilização, na lavoura nacional, de pesticidas proibidos em outras partes do mundo.

Aturdidos todos com a falta de opção para compor o cardápio familiar, acabamos nos esquecendo da necessidade de aprofundar as investigações para confirmar ou não as suspeitas de envolvimento do atual Ministro da Justiça(!) na estratégia de abafar o caso, substituindo fiscais honestos por outros mais “cordatos”. Daí veio o segundo desvio ‒ intencional ou não ‒ das atenções. Presidente e ministro da Agricultura apressaram-se em buscar os holofotes e os microfones para reafirmar o rígido padrão sanitário brasileiro “reconhecido internacionalmente” (omitindo que, se a suspeita da PF se confirmar, alguns lotes de carne exportada não passaram por ele), para se queixar de não terem sido procurados antes para explicar os procedimentos permitidos e dirimir mal-entendidos quanto à linguagem utilizada no setor e, mais enfaticamente, para lamentar a provável perda de credibilidade dos exportadores brasileiros num setor e num momento crucial para nos tirar da crise.

Em suma, o que era originalmente um crime contra a saúde do consumidor perpetrado em nome do enriquecimento pessoal transformou-se em lamúria contra nossas perversas elites para, finalmente, ser enquadrado como crime contra a saúde econômica do país. Sem esquecer que, no processo, se fez uma pequena pausa para nossas autoridades federais reclamarem do desequilíbrio entre os três poderes da República e sugerirem uma vez mais que a Operação Lava a Jato vem causando danos irremediáveis à nação.

Um feito e tanto.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Holanda versus Turquia

José Horta Manzano

Para federar um povo e obter apoio unânime, nada como apontar um inimigo comum. Todos têm de sentir que o orgulho nacional está ameaçado. Se a ofensa vier de fora do país, melhor ainda. A ideia não é nova. Desde sempre ‒ especialmente de um século para cá ‒, tem sido utilizada com esperteza por mandachuvas. Alguns usam do artifício com esmero, enquanto outros são mais desajeitados.

É inconstestável o sucesso de um Adolf Hitler, que conseguiu cristalizar em torno de sua figura a quase totalidade do povo alemão ao apontar os judeus como origem e causa de todos os males nacionais. Stalin foi outro que se sustentou durante décadas no topo do poder culpando imaginários “inimigos do povo”. Assim também agiram Chávez e os bondosos irmãos Castro ao designar o “império“ como inimigo prestes a destruir o país.

Países Baixos e suas províncias

Uma ditadura argentina decadente valeu-se dessa estratégia em 1982. Passou a ideia de que o país estava sendo vilipendiado pelo Reino Unido, que ocupava havia século e meio um naco do território nacional. A Guerra das Malvinas logrou apoio popular mas terminou num desastre militar que acabou por levar de cambulho o que restava de ditadura.

Em nosso país, bem que Nosso Guia & clique fizeram o possível e o impossível para cindir os brasileiros entre “nós“ e “eles“, noções vagas e nunca explicadas que cada um entendeu como quis ou como pôde. Não tendo convencido, a estratégia acabou não dando certo. Aliás, em matéria de estratégia, o lulopetismo mostrou-se particularmente manquitola.

A Holanda ‒ que convém chamar de Países Baixos, dado que Holanda é o apenas o nome das duas mais importantes regiões do país ‒ atravessa momento crítico. Daqui a dois dias, os eleitores vão às urnas renovar a câmara de representantes. Um certo Herr Wilders, candidato de extrema-direita, ameaça balançar o coreto. Suas ideias e propostas são radicais e drásticas. Entre elas, a proibição pura e simples de praticar a religião maometana, veja só. É improvável que consiga maioria no parlamento, mas pode baralhar a política do país.

Modesta refeição do ministério turco

A Turquia também atravessa momento complicado. O presidente Erdoğan convocou os eleitores para um plebiscito que terá lugar mês que vem. A intenção é mudar a Constituição eliminando o cargo de primeiro-ministro e transformando o regime em presidencialista, o que dará imenso poder ao quase-ditador. As pesquisas não são lá muito animadoras, razão pela qual cada voto importa.

Milhões de turcos vivem no estrangeiro, inclusive nos Países Baixos. Para motivá-los a votar «sim», o governo turco tem mandado ministros e emissários organizar comícios eleitorais em países europeus. Para reforçar, decidiram usar a velha tática de designar um «inimigo» externo. Escolheram a Holanda. Cavando um pretexto qualquer, dispararam palavras agressivas contra o governo de Haia. Para não levar desaforo pra casa ‒ o que daria votos ao candidato de extrema-direita ‒, o governo holandês viu-se na obrigação de tomar medida forte: proibiu a entrada no país de ministros turcos.

Ministra turca expulsa dos Países Baixos

Foi a conta. A Turquia e os Países Baixos estão em pé de guerra. A mídia, naturalmente, alimenta a polêmica. Redes sociais fervilham. A bandeira holandesa do consulado em Istambul foi arrancada e substituída por bandeira turca. A Turquia promete represálias ‒ que ninguém imagina quais possam ser.

Tudo não passa de encenação, mas o povão acredita, e é isso que importa. Por um lado, a movimentação tem servido à causa do presidente turco, que aumenta seu capital de votos. Por outro, está servindo também ao atual governo holandês, que demonstra ser capaz de defender-se sem entregar as rédeas à extrema-direita.

Entre mortos e feridos, salvar-se-ão todos. (Uma mesoclisezinha de vez em quando não faz mal a ninguém.)

Discurso para a militância

José Horta Manzano

Pronto, o ciclo se fechou. Ou se abriu, fica ao gosto do freguês. Mister Trump subiu ao trono que já foi de George Washington, de Abraham Lincoln, de Richard Nixon e de George Bush.

O ritual aperfeiçoado ao longo dos anos foi seguido à risca. Numa época como a nossa, em que, cada vez mais, descerebrados se devotam a urdir atentados contra tudo e contra todos, forças policiais foram compelidas a tomar excepcionais medidas de segurança. A plateia teve de enfrentar bloqueios, filtros, verificações.

A Folha de São Paulo qualifica de "agressivo" um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

A Folha de São Paulo qualifica de “agressivo” um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

Felizmente, excetuada alguma baderna orquestrada por bléquiblóquis locais, nenhuma ocorrência grave veio perturbar a passação de poder. A sensação ficou por conta da esperada cerimônia de tomada de posse. Centenas de equipes de reportagem do mundo inteiro se tinham abalado para não perder uma migalha do grande momento.

E que se viu? Nada de empolgante, nada de novo, nada de massacrante. Foi manchete em todo o planeta a indumentária da nova primeira-dama, dado de capital importância para o futuro da humanidade. Graças à argúcia de repórteres a quem nada escapa, sabemos que Mrs. Trump estava vestida de azul-bebê, tom afeiçoado por Jacqueline Kennedy. Quem poderia ir dormir sem esse precioso relato?

trump-1E que se ouviu? Nada de empolgante, nada de novo, nada de massacrante. Quem foi ouvir Trump, saiu saciado: ouviu Trump. O novo presidente gastou vinte minutos repetindo exatamente os mesmos slogans que já havia martelado na campanha, todos do tipo «me engana, que eu gosto».

Fiquei sabendo que gente conhecida no mundo do espetáculo boicotou a cerimônia. Percebi que, na falta de um grande nome, tiveram de dar a uma adolescente o encargo de entoar o hino nacional. Tive notícia de que uma ou duas dezenas de parlamentares descontentes recusaram-se a comparecer ‒ atitude que, francamente, não combina com a democracia americana, justamente por acentuar o antagonismo entre «nós & eles», tão deletério e tão nosso conhecido. Ainda que muitos não tenham apreciado o resultado da eleição, esta não é a melhor hora para acentuar divisões no país.

O Estadão qualifica de "agressivo" um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

O Estadão qualifica de “agressivo” um discurso enérgico, incisivo, vigoroso, robusto, mas que passou longe de ser agressivo.

Li análises alarmistas. Até gente fina, articulistas que costumo respeitar se deixaram impressionar pelo que disse o novel presidente. Bobagem. Vamos repor as coisas no contexto apropriado, minha gente. O pronunciamento de Mr. Trump foi o discurso final de campanha, o agradecimento aos que nele votaram. O homem não podia dizer outra coisa senão o que já vinha dizendo havia meses. Nem todos os analistas entenderam, mas a fala era dirigida aos que o elegeram, um discurso para uso interno sem nenhuma intenção de impressionar o mundo.

Vamos, camaradas! O diabo não é tão feio assim. Novato em política, Mr. Trump entra na arena galopando e encabritando-se como potro novo. O dia a dia vai-lhe mostrar que o mundo não funciona exatamente como ele imagina. O presidente vai deixar de galopar. Vai maneirar na andadura e acabará trotando como fizeram todos os seus predecessores.

Dilma e o nicho 38

José Horta Manzano

Hoje, amanhã ou daqui a um par de dias, dependendo das surpresas que nos reservem as mambembes sumidades que ainda servem o Planalto, dona Dilma vai-se embora pra casa. E já vai tarde.

Afabilidade nunca foi o ponto forte da «presidenta». Orgulhosa e arrogante, já mandou avisar que não desce a rampa de jeito nenhum. Só cumpre ritos que lhe sejam favoráveis. Esse, naturalmente, não é. Donde recusar-se a segui-lo.

Há antecedentes. Ao terminar o mandato, João Baptista de Oliveira Figueiredo, último presidente militar, recusou-se a passar a faixa a José Sarney, seu desafeto. Desatou o nó de maneira pouco cavalheiresca: escafedeu-se pela porta dos fundos.

Tivesse passado a faixa como manda o figurino, todos já se teriam esquecido. Como fez o que fez, deixou marca na história. Entre outros tropeços ‒ e foram muitos ‒, será lembrado por esse também. Para sempre.

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

Se dona Dilma já não é conhecida por qualidades de estadista, seus dons de visionária são ainda menos evidentes ‒ para não dizer nulos. O guru marqueteiro está fora do ar, atrás das grades. O padrinho, nosso guia, anda sumido, calado, apagado, torcendo pra passar despercebido.

Por tudo isso, é compreensível que dona Dilma tenha decidido sair pela porta dos fundos. Ela parece não ter consciência de estar acrescentando mais uma pincelada negativa ao próprio retrato. Como Figueiredo, será lembrada como «aquela que saiu pela porta da cozinha».

Temerário será acreditar que volte a subir a rampa um dia. Suas chances de voltar ao trono são quase iguais às de bolinha de roleta cair no nicho 38, aquele que não existe. No entanto ‒ nada é impossível ‒ a vida pode dar um boléu. A moça pode até estar de volta daqui a 6 meses.

Caso essa desgraça acontecesse, dá pra imaginar como seria o fim de mandato da petista? Dois anos de agonia interminável, discussões, discórdia, bate-boca, Parlamento paralisado, boicotes, bloqueios, enraizamento da cisão «nós x eles», greves, dólar nas alturas, capitais fugindo, nosso país rebaixado a nível bananeiro, descontentamento generalizado. Verdadeira guerra civil à brasileira.

Misericórdia, Senhor! Melhor nem imaginar. Não há de acontecer.

O retrato

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 2 abril 2016

Faz ano e meio. Assim que Dilma Rousseff conquistou, pela segunda vez, vitória nas urnas, utilizei este espaço para dar-lhe meus parabéns. Aproveitei para pedir-lhe que não perseverasse na tática de alargar brechas entre classes de cidadãos, estranho método inaugurado por seu predecessor. Sugeri que não exacerbasse antagonismos e que pusesse fim à retórica do «nós» contra «eles».

A bem da verdade, é de constatar que o recurso ao antagonismo entre categorias de brasileiros se atenuou no discurso presidencial. O mérito é menos da presidente e mais do deslocamento da imaginária linha de fratura. O encorpamento do campo adverso acendeu luz vermelha no Planalto e deixou claro que era melhor botar a metáfora de molho.

Manif 3Dá tristeza, contudo, perceber que, antes mesmo que Dilma Rousseff assumisse o cargo maior, o mal já estava feito e a ferida, aberta. Nem nos tempos em que nosso povo se debateu sob feroz ditadura ‒ varguista ou militar ‒ hostilidades e ressentimentos entre cidadãos foram tão palpáveis. Se o objetivo tático dos que ora nos governam era segmentar e categorizar o povo, podem gabar-se de ter atingido o intento. Para seu desalento, no entanto, a parcela que os apoia vem-se apoucando a cada dia. O chavão do tiro que saiu pela culatra se aplica.

Ao ritmo em que avança a carroça, o caminho se estreita e o horizonte se fecha. Prever o futuro, como diz o outro, não é tarefa fácil. Tudo indica, no entanto, que os humores do Congresso se preparam a abreviar o mandato de Dilma. Se assim for, a ordem constitucional dispõe que Michel Temer ocupe o trono vacante. Missão espinhosa.

Numa primeira análise, tirando a honra de ganhar retrato na galeria de presidentes, o encargo será áspero. As finanças vão mal, a economia vai pior, a inflação come solta, o desemprego cresce, o PIB encolhe, a confiança na classe política esfarelou-se. O regime político de países vizinhos, antes considerados parceiros preferenciais, dá sinais de esgotamento. Na comparação internacional, o Brasil desaponta. Com tantas goteiras no teto, como impedir a inundação da casa?

Dilma e TemerChavão por chavão, aqui cabe outro: há que fazer das tripas coração. Paradoxalmente, é menos complicado erguer sobre escombros do que consertar um buraco aqui, uma avaria acolá. Com o país do jeito que está, não sobra alternativa, há que refundá-lo. Michel Temer, senhor de vasta experiência em coisas da política, tem o estofo necessário para a tarefa e dispensa palpites. Assim mesmo, deixo aqui algumas reflexões.

O atual vice-presidente, caso assuma a chefia do Executivo, terá chegado lá sem ter recebido um voto sequer. Longe de sombrear sua gestão, essa particularidade lhe confere amplitude de ação. Dado que não fez promessas, não poderá ser acusado de trair eleitores ‒ uma vantagem e tanto! A situação do Brasil desceu a um estado tal de degradação que qualquer ação que não se assemelhe a manobra para escapar da Justiça só poderá ser benfazeja. O alívio que a maioria do povo sentirá ao se dar conta de que o pesadelo terminou há de traduzir-se em simpatia ‒ e até em certa condescendência ‒ para com o novo mandatário.

Será um mandato curto, pouco mais de dois anos. Se senhor Temer quiser deixar marca positiva e relevante na história do país, terá de agir rápido. Para começar, tem de alinhavar um ministério com titulares capazes e de ficha limpa. Dividir por dois o número de ministros será medida apreciada.

Surfando na onda que clama por um Brasil decente, o chefe do Executivo deveria engajar pleno esforço na implantação do parlamentarismo. A hora é agora, que não dá mais pra esperar. Nosso regime presidencialista simplesmente se exauriu, mostrou seus limites, está gasto até a lona. Não tem remédio.

Galeria de presidentes da República

Galeria de presidentes da República

Outra reforma importante, sem a qual o parlamentarismo não funcionará, é a instauração do voto distrital puro, majoritário, com deputados eleitos em dois turnos. É a única maneira de aproximar representantes de representados. Cada eleitor conhecerá o deputado que o representa. Um benefício extra virá no bojo do voto distrital: a diminuição radical do número de partidos e a extinção das legendas de aluguel. Não é coisa pouca.

Essas são as grandes medidas, complicadas para governante eleito, mas ao alcance de um presidente sem voto, que nada prometeu. Claro está que senhor Temer pode optar pela facilidade e deixar tudo como está. Nesse caso, sua biografia desertará os livros de história e sua memória se resumirá a um retrato na galeria.