Monsieur Pap Ndiaye

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 28 maio 2022

O semipresidencialismo imposto pela Constituição francesa criou um país bicéfalo, em que um presidente (chefe do Estado) convive com um primeiro-ministro (chefe do Executivo). Em teoria, o poder de cada um é equivalente, embora distinto. Na prática, o do presidente é muito maior do que “as quatro linhas da Constituição” lhe atribuem – parodiando expressão em voga em nossas altas esferas. Seu poder é diretamente proporcional à força de sua maioria no Parlamento.

Uma vez reeleito o presidente, a tradição manda que a totalidade dos ministros, incluindo o primeiro-ministro, deem demissão do cargo. O presidente nomeia então novo primeiro-ministro, e a maioria dos ministros são substituídos por caras novas. Foi o que aconteceu estes dias. Entre os estreantes, surgiu um nome vindo da sociedade civil, um cidadão que nunca havia ocupado cargo político. Trata-se de Monsieur Pap Ndiaye, novo titular do Ministério da Educação Nacional.

Sua nomeação provocou uma onda de choque que balançou as estruturas do país. Todos ficaram surpresos, muitos protestaram, alguns se indignaram. Percebe-se até uma não disfarçada revolta proveniente das bordas do espectro político. Faz uma semana que analistas políticos não param de discutir a nomeação. Vamos ver por que razão.

Monsieur Ndiaye é um intelectual brilhante. Seu currículo é de dar inveja a muita gente fina. Ele é diplomado em História pela Escola Normal Superior, o nec plus ultra do ensino universitário nacional. É titular de um doutorado obtido na Escola de Estudos Superiores de Ciências Sociais, onde é palestrante especialista em História dos Estados Unidos e em temas ligados às minorias. É diretor do Museu da História da Imigração. Além disso, seu currículo inclui cinco anos de estudos na Universidade da Virgínia (EUA), onde preparou sua tese de História. É ainda autor de meia dúzia de livros, entre os quais “Obama na América Negra”.

Ninguém contesta a bagagem cultural do novo ministro nem sua capacidade a assumir a elevada função. A grita que se alevanta vem de círculos ultraconservadores (mas não só deles). O problema maior é o seguinte: Monsieur Ndiaye é negro. Sua mãe é francesa e branca, enquanto seu pai é senegalês e negro. O novo ministro nasceu em família atípica. Além de resultar de miscigenação pouco habitual no país, seu pai foi o primeiro negro africano diplomado pela Escola Nacional de Engenharia da França, uma façanha. O ministro se autodefine como “um puro produto da meritocracia republicana”.

Já faz quarenta anos, desde o governo Mitterrand, que a França se habituou a conviver com ministros não-brancos. Já houve ministros da Integração e dos Direitos Humanos negros. Madame Taubira, negra originária da Guiana Francesa, foi titular do cobiçadíssimo Ministério da Justiça durante quatro anos. Nenhum desses personagens foi objeto de rejeição explícita. Por que razão a nomeação do novo ministro da Educação enfrenta uma onda de repúdio tão forte?

É que o ultradiplomado ministro possui duas características incompatíveis aos olhos de muita gente: é negro e pensa, o que é imperdoável. Se tivesse sido nomeado somente para dar um verniz de diversidade ao conjunto de ministros e acrescentar um pingo de cor à foto de grupo, ninguém reclamaria. Mas o homem pensa, e todos sabem disso. Um negro que pensa – e que vai cuidar da Educação Nacional – assusta.

Monsieur Ndiaye é conhecido e respeitado nos círculos universitários. Todos conhecem seus trabalhos e seu posicionamento em defesa dos imigrantes e das minorias. Uma vista d’olhos ao título de seus livros dá uma ideia: “Os negros americanos: da escravidão a Black Lives Matter”, “A condição negra: ensaio sobre uma minoria francesa”, “Os negros americanos: a caminho da igualdade”.

Os que o rejeitam provavelmente nunca leram suas obras. Pouco importa. Um negro dotado de ideias próprias aceitar comandar o Ministério da Educação lhes parece de uma petulância insuportável. No Brasil, essa polêmica parece um exagero, coisa de gringo. Mas há que tomar cuidado. A persistir a palavra de ordem do “nós x eles”, instaurada pelo lulopetismo e insuflada pelo bolsonarismo, em pouco tempo estaremos como a França.

As férias do presidente

Jornal online Fórum, de tendência lulopetista

José Horta Manzano

O autor da manchete tropeçou na concordância(*), mas acertou na petulância.

Estou me referindo à petulância de um presidente que faz questão de mostrar que trabalha pouco. Deve achar bonito.

Em outras terras, presidentes e figurões de alto coturno costumam ser bastante discretos na hora de sair de férias. Não querem jornalistas nem fotógrafos por perto. Nem dão informações, nem publicam foto em rede social.

Nosso presidente, petulante, não vê problema nenhum em divulgar seu pouco apego ao batente. Numa terra em que tem gente batalhando duro, de sol a sol, pra poder sobreviver!

(*) As regras de nossa língua pedem que, quando o sujeito estiver no plural, o verbo acompanhe. O sujeito da frase é viagens. Portanto, a forma verbal deveria ser fizeram e não fez.

E eu com isso?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Quando a polícia carioca, mesmo contra a determinação do STF, intensificou as operações contra o tráfico de drogas nas favelas que resultaram em dezenas de mortes de moradores e pessoas que não tinham nada com isso, fiquei chocada com a violência desmedida mas não protestei porque não moro no Rio de Janeiro nem em comunidades de morro.

Quando a polícia paulista introduziu desafiadoramente blindados e atiradores de elite nas recentes incursões na Cracolândia, fiquei aterrorizada com a possibilidade concreta de reação armada dos traficantes e consequente morte indiscriminada de passantes e moradores, mas segui em frente cuidando dos meus afazeres porque não sou viciada, nem tenho parentes e amigos nessa condição, e também não moro nas adjacências.

Quando a polícia rodoviária federal de Sergipe jogou gás de pimenta e gás lacrimogêneo dentro de uma viatura matando um esquizofrênico negro cujo único deslize era estar pilotando uma moto sem capacete, fiquei indignada com a inadmissível barbárie, mas acabei me distraindo com a necessidade de cuidar da minha própria sobrevivência: afinal, os preços dos alimentos estão pela hora da morte, os planos de saúde já são impagáveis e ninguém consegue encontrar estabilidade financeira, nem empregos mais bem remunerados.

Quando chuvas torrenciais ocasionaram centenas de mortes em diversos estados brasileiros, fiquei, é claro, entristecida diante de tanta dor e sofrimento, mas lembrei que isso é consequência inevitável do aquecimento do planeta – e que, portanto, resta muito pouco para nossas autoridades fazerem para evitar a repetição dessas tragédias. Além disso, não moro em área de risco e respeito o meio ambiente, fazendo coleta seletiva.

Quando bandidos disfarçados de entregadores de moto passaram a assaltar e, por vezes, matar pedestres desavisados para roubar seus celulares, comecei a me sentir um tanto insegura, mas logo espantei as sombras porque não uso celular em público e nunca ando sozinha à noite. É bem verdade que tenho irmãos, sobrinhos e amigos que se expõem a esse risco, mas sei que eles estão um pouco mais protegidos por não circularem em bairros de periferia e morarem/trabalharem em áreas onde há maior presença de forças de segurança.

Quando o número de casos de violência doméstica, feminicídio e pedofilia começou a crescer em função do confinamento na pandemia, roguei a Deus que ela terminasse o mais rápido possível e que nossas autoridades encontrassem algum jeito de serem mais efetivas no combate a esses males; mas não me incomodei tanto, uma vez que moro sozinha e não tenho filhos.

Em suma, sei e sinto que involuímos como sociedade, que a realidade brasileira adquiriu tons surreais e macabros e que não há perspectivas concretas de construirmos um futuro promissor para nossa pátria. No entanto, mesmo perplexa com tantas catástrofes, permaneço fiel a meus princípios democráticos: sou uma cidadã de bem, cumpridora dos meus deveres sociais, pago meus impostos regularmente, sou instruída, bem-informada politicamente, temente a Deus e não me meto na vida das pessoas. Se ao menos meus compatriotas entendessem que a cada ação corresponde uma reação, as coisas seriam muito mais fáceis de administrar, tenho certeza.

Sou a favor das liberdades individuais: cada um que cuide do seu próprio nariz e evite como puder colocar-se em situações de perigo e confronto social, racial, religioso, político e de classe.

E você?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

No Sergipe?

José Horta Manzano

O nome de alguns estados brasileiros deve ser precedido por artigo, mas Sergipe, certamente, não é membro desse clube.

Por um lado, temos os que pedem artigo:
o Amazonas, o Rio Grande do Sul, o Ceará, o Acre. E diversos outros.

Por outro, há o clube dos que rejeitam artigo:
São Paulo, Santa Catarina, Pernambuco, Rondônia, etc. E, naturalmente, Sergipe.

Que ninguém jamais escreva o Sergipe” como na chamada do jornal. Nem por decreto do papa. Pega mal.

A Colômbia e o sonho de Bolsonaro

Cédula eleitoral colombiana

José Horta Manzano

Hoje se vota na Colômbia. Escolhe-se o presidente da República. Ao que parece, as autoridades do país são como nosso presidente gosta: rejeitam a modernidade. Não aceitam o que ela traz de bom, essas coisas que facilitam a vida de todos. Urnas eletrônicas entram nesse grande balaio de rejeições. Xô!

Na Colômbia, vota-se à moda antiga, voto em papel, facilmente auditável. Ao chegar à seção, o eleitor vai receber um “tarjetón”, que é o nome dado à cédula eleitoral. É uma folha de papel tamanho A4 dividida em nove campos, cada um contendo a foto de uma dobradinha de candidatos – à Presidência e à vice-Presidência.

Cada campo contém ainda o nome dos candidatos e o logo da coalizão que os apoia. O resultado é uma folha atraente, cheia de cores. As fotos até que ajudam eleitores de poucas letras que pudessem ter dificuldade em encontrar o preferido.

Ao chegar ao posto de votação, o eleitor recebe uma cédula. Vai para a cabine e faz uma marca na dobradinha de candidatos preferidos. Se preferir votar em branco, vai encontrar um campo pensado justamente para isso.

Pode ser qualquer marca, desde que seja visível. Recomenda-se, no entanto, que o eleitor faça um grande xis no quadrado desejado. Se quiser votar em branco, que faça o xis no último quadrado.

Toda cédula que apresentar marcas em mais de um campo, inclusive no de voto em branco, será considerada nula. Fico a imaginar que a quantidade de votos nulos deve ser grande.

Ah, se um eleitor se enganar na hora de fazer o xis, não tem problema: basta voltar à mesa e pedir nova cédula. Sai de graça.

Excluindo o fato de que não há urna eletrônica, o ato de votar até que se parece com o nosso. A diferença grande vem na hora da apuração.

Procurei saber como se desenvolve a contagem dos votos. É um esquema complexo. Cada seção eleitoral abre sua urna e conta os próprios votos. Em seguida, preenche uma ata com a totalização. Essa ata será transmitida a uma entidade centralizadora que, por sua vez, se encarregará da totalização geral.

Imagine os riscos de fraude existentes em cada etapa do processo. Basta um dos mesários cooptar os colegas oferecendo, por exemplo, recompensa em dinheiro. A partir daí, estando todos de acordo, tudo é permitido. Dois subterfúgios são simples de executar: 1) Substituição de cédulas verdadeiras por cédulas trazidas já preenchidas; 2) Anulação de votos destinados a um candidato não desejado – para anular, basta fazer uma marca em mais de um quadrado.

Tanto o Lula quanto o capitão conseguiram comprar o Centrão, que representa meio Congresso. Pra quem fez isso, comprar mesário é aquele tipo de coisa que se faz com um pé nas costas. Mais fácil ainda quando é feito com nosso dinheiro.

Vendo isso, dá pra entender por que razão nosso presidente reclama de nosso sistema eleitoral, dia sim, outro também. É que o esquema brasileiro é hermético, sem manipulação possível, não oferecendo nenhuma porta de entrada para gente mal-intencionada.

Um presidente normal veria nas eleições colombianas uma excelente oportunidade comercial para o Brasil. É a possibilidade de vender nosso know how e urnas made in Brazil ao país vizinho. Mas nosso presidente não é normal. Sua grande preocupação neste momento é que, segundo as pesquisas, um candidato esquerdista está bem colocado para disputar o segundo turno colombiano.

Já pensou se ele vencer a eleição? A Colômbia, nossa vizinha de parede, será dirigida por um esquerdista! Será que esquerdismo é contagioso? Será que pega? Será que pode ressuscitar o comunismo? Será que pode nos transformar em jacaré?

Matriz e filial

Chamada Estadão, 28 maio 2022

José Horta Manzano

Não se pode dizer que quem escreveu a chamada do Estadão tenha escrito bobagem. Errado, não está. Mas está esquisito. Dizer que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia era “afiliada” a Moscou soa estranho.

Deve-se evocar afiliação quando se fala de clube, de partido, de firma comercial. Uma igreja séria não tem “filiais”. Quando há uma relação hierárquica entre ramos da mesma organização eclesiástica, melhor será dizer que uma é subordinada à outra, ou que está assujeitada, ou ainda que vive sob tutela da principal. Ex:

“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, subordinada ao patriarcado de Moscou…”
“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, assujeitada ao patriarcado de Moscou…”
“Igreja Ortodoxa da Ucrânia, sob a tutela do patriarcado de Moscou…”

O termo “ruptura”, utilizado na chamada, não está errado. Mas existe uma palavra específica para a dissidência de um ramo com relação ao tronco. É cisma, substantivo masculino. Quem fez um pouquinho de História Geral talvez se lembre do grande Cisma do Oriente (do ano 1054), que dividiu o cristianismo em dois grandes ramos: o catolicismo e a ortodoxia.

A chamada do jornal contém mais uma imprecisão. Não é correto falar em “ruptura com a Rússia”. A ortodoxia ucraniana não é um Estado, portanto a afirmação não faz sentido. A Igreja Ortodoxa Ucraniana não rompe com a Rússia (país), mas com o patriarcado (ortodoxo) de Moscou.

Portanto, a chamada do jornal estará mais bem escrita assim:

Igreja Ortodoxa da Ucrânia, subordinada ao patriarcado de Moscou, anuncia cisma.

ou

Igreja Ortodoxa da Ucrânia, assujeitada [ao patriarcado] de Moscou, anuncia cisma.

Viva o Brazil!

Brasil em 1821, às vésperas de se tornar independente.
Repare que o nome do futuro país se escrevia com Z

José Horta Manzano

Já vi gente irritada por ter visto a palavra Brazil grafada com Z em textos escritos em inglês. Há quem reclame e quase se ofenda com isso. Se pudessem, exigiriam que o nome de nosso país fosse sempre escrito com S.

Sem ranzinzice nem histeria, vamos ao fundo da questão.

Foi no século 19 que as colônias espanholas e portuguesas da América alcançaram independência. Foi uma atrás da outra. Naquela altura, o resto do mundo teve de lidar com o nome de países novos: Argentina, México, Peru, Nicarágua e muitos outros.

Entre eles, estava o nosso. Só que tem uma coisa. Nossa grafia daquele tempo não era normatizada (engessada) como hoje. Eram poucos os que sabiam escrever, e cada um deles grafava como lhe parecia adequado.

Mas o nome do país era unanimidade: todos grafavam com Z (Brazil).

Nosso primeiro nome oficial por extenso foi Imperio do Brazil; em seguida, tivemos os Estados Unidos do Brazil. O mundo viu, anotou, copiou e escreve até hoje Brazil com Z.

Nos dois séculos que decorreram desde a independência, nós mexemos na ortografia oficial inúmeras vezes. Faz já algumas décadas que ficou combinado que o nome do país deve se escrever com S.

Mas como fazer para avisar ao resto do mundo que nossa ortografia mudou?

Pensando bem… será que vale a pena explicar que limpeza é com Z, mas despesa é com S?

Não é moleza… (Com Z)

Observação interessante
Em qualquer texto em inglês, o nome da capital, Brasília, aparece sempre com S. Por quê será?

A razão é simples: Brasília, que então tinha o apelido de Novacap, foi apresentada ao mundo em 1961 grafada com S. Cada língua adaptou o original a sua escrita própria. Muitas ficaram com o S mesmo; entre elas, o inglês.

Falta ensinar aos ingleses que nossas atuais regras mandam acentuar o i do meio. Ou quem sabe será melhor esperar até a próxima reforma ortográfica? Assim, evita-se ficar incomodando o tempo todo.

O camburão

Pesquisa Datafolha, 26 maio 2022

José Horta Manzano

Pesquisas de intenção de voto, há muitas. Mas ninguém pode negar que, nestes tempos de campanha para a Presidência, a mais ansiosamente aguardada no país é a Datafolha. A mais recente saiu quentinha do forno ontem, dia 26.

Dá Lula na cabeça seja qual for a configuração. Nosso guia bate com folga qualquer adversário. Aliás, “qualquer adversário” é força de expressão. Espremida a fruta, constata-se que os candidatos são só dois: Bolsonaro e o Lula.

Se a eleição fosse hoje, como a prudência manda dizer, teríamos uma disputa entre dois nomes. Salvo o milagre de a terceira via tomar fermento e crescer rapidinho, o panorama vai permanecer assim até outubro.

Daqui até lá, o capitão vai continuar esperneando, distribuindo dinheiro a parlamentares do Centrão, loteando a máquina federal, discursando raivoso, trocando ministros e presidentes da Petrobrás, tratando com benevolência matadores e desmatadores. Também vai continuar a praticar seu esporte favorito: dar um tiro no pé diariamente. Portanto, sua pontuação no eleitorado não tende a subir.

Daqui até lá, o Lula vai continuar fazendo o que sabe fazer melhor: reuniões com este e com aquele, conchavos, confabulações, jantares com endinheirados, discursos raivosos, promessas, promessas promessas. Vai dar seus tirinhos no pé também, que ninguém é de ferro. Resultado do páreo: sua pontuação tende a continuar estável.

Portanto, se tudo continuar como está – e parece que assim será –, o Lula é bem capaz de levar no primeiro turno. A partir daí, o roteiro é o de um filme de ficção política. Cada um pode imaginar o seu. Este blogueiro criou um script muito bom, um pitéu capaz de ganhar o Festival de Cannes.

  • Inconformado, Bolsonaro ensaia um golpe de Estado.
  • É apoiado por um punhado de generais palacianos e por um sargento aqui, um cabo acolá.
  • Fracassa.
  • É preso.
  • Desce a rampa – que digo! – sai discretamente por uma porta lateral em frente à qual um camburão está à espera.
  • Atrás dele, vai a meia dúzia de generais palacianos, em fila indiana.
  • Em 48 horas, o filme termina.
  • Dia 1° de janeiro, o Lula assume.

Observação final
Que o Lula não saia dessa muito enfatuado, achando que ganhou por mérito próprio. As coisas não são bem assim. Se ele for eleito, seu grande cabo eleitoral terá sido o capitão. Se o presidente fosse outro – qualquer outro –, o Lula não ganhava de jeito nenhum. Xô!

Ainda bem que o vice é Geraldo Alckmin. O Lula já tem idade, nunca se sabe o que pode acontecer. Com Alckmin, pelo menos, dificilmente teríamos censura à mídia e apoio a ditadores sanguinários, uma obsessão do Lula.

O dia seguinte

José Horta Manzano

24 maio 2022
Uvalde (Texas), EUA
Um adolescente que carregava pouco bestunto e muita raiva no coração resolveu se vingar a esmo de uma sociedade que lhe parecia opressora. Armou-se como verdadeiro Rambo e atirou na própria avó. Em seguida, dirigiu-se à escola que havia frequentado até outro dia e atirou às cegas. Adicionando crianças e adultos, matou mais de vinte. Foi abatido pela polícia.

Rio de Janeiro, Brasil
Operação policial de extrema violência levada a cabo na Vila Cruzeiro (Complexo da Penha, Rio de Janeiro) deixou um rastro sangrento de 25 mortos. Segundo relatos, bom número dentre os metralhados são “vítimas colaterais”, gente cujo único crime era estar no lugar errado, na hora errada. Ressalte-se que nosso ordenamento jurídico proíbe justiça expeditiva, execuções sumárias e atos de tipo miliciano-mafiosos como esse.

25 maio 2022
Washington (DC), EUA
Joe Biden, presidente da República, fez declaração emocionada sobre o massacre da véspera. Declarou-se “sick and tired” (= enojado e cansado) com a multiplicação desse gênero de ocorrência. A bandeira nacional que ondula sobre a Casa Branca foi baixada a meio-pau. O presidente acrescentou que, nos próximos dias, viajará ao Texas para uma visita pessoal às famílias das vítimas da tragédia.

Brasília, Brasil
Jair Messias Bolsonaro, presidente da República, utilizou o Tweeter para dar parabéns aos “guerreiros”(sic) do batalhão policial que “neutralizaram”(sic) marginais. O presidente não declarou ter intenção de fazer visita de consolo às famílias das vítimas – pessoas que ele deve considerar sub-humanas. Em Brasília, a bandeira nacional não foi baixada a meio-pau.

Os espanhóis dizem: “Más vale vergüenza en cara que mancha en el corazón” (= Mais vale vergonha na cara que mancha no coração). Há os que preferem a mancha. Por não sentirem vergonha. Ou talvez porque lhes falte o coração.

Peruada

Correio Paulistano, 29 março 1935

José Horta Manzano

Até os anos 1930, peruada estava para os perus como galinhada estava para as galinhas: designava um bando de perus, nada mais. É um tanto controversa a razão pela qual os estudantes da Faculdade de Direito da USP dão esse nome aos desfiles e às brincadeiras que organizam uma vez por ano.

Há quem diga que, certa feita, os rapazes furtaram perus de um parque da cidade e os transformaram em alimento digno de saciar a fome de muitas bocas. Outros dizem que não é bem assim e que a tradição já vem dos tempos do imperador.

As primeiras menções de peruada como nome dos festejos estudantis aparecem na imprensa dos anos 1930. No Correio Paulistano de 29 de março de 1935, o comitê organizador publica um comunicado com as regras do trote – chamado ‘peruada’. Avisam que o couro cabeludo de todo calouro será rapado. Acrescentam que ainda será cobrada de todos uma “modesta” quantia de 20$000 (vinte milréis, valor considerável para a época, equivalente ao preço de venda de 100 jornais).

Numa demonstração de que não é de hoje que as classes abastadas gozam de privilégios inalcançáveis para os mais modestos, o comitê informa que, mediante pagamento de 200$000 (duzentos milréis, soma astronômica, correspondente ao preço de 1.000 jornais), o calouro será poupado e poderá conservar as melenas.

É muito triste constatar que, passados noventa anos, o país continua empacado. Continuamos vivendo numa sociedade dividida entre os que têm e os que não têm.

Não é chocante que haja desnível financeiro entre cidadãos. O que choca é o exagero. A enorme riqueza não assusta; o que horroriza é a extrema pobreza. Não me parece escandaloso que um indivíduo possua bilhões; já a existência de cidadãos que passam fome é a demonstração de que a sociedade é disfuncional.

Em nosso país, há os que não têm teto, há os que passam fome, há os que têm de trabalhar para sustentar os próprios estudos, há os que são obrigados a ter mais de um emprego para sobreviver, há famílias vivendo debaixo de viadutos, há iletrados e analfabetos.

Enquanto isso, um presidente anda de jet ski e um ex-presidente dá festa de casamento para 200 convidados. Ambos são candidatos nas próximas eleições. São muito bons na hora de insultar-se mutuamente, mas quando vem a hora de apresentar um plano consistente para fazer o país avançar, o que se vê é o nada e o que se ouve é o silêncio ensurdecedor.

Algo enguiçou no país, e ninguém parece muito preocupado em desenguiçar.

Aborto x armas

José Horta Manzano

A polêmica atualmente em cartaz nos EUA entre os que aprovam e os que desaprovam a proibição do aborto voluntário levanta uma interrogação sobre uma flagrante contradição.

Os favoráveis à proibição do aborto, que organizam passeatas, levantam bandeiras, acusam profissionais da área da saúde e protestam porque vidas estão sendo ceifadas por um ato criminoso, são os mesmos que se declaram favoráveis à liberação, venda livre e disseminação de armas, cuja finalidade é exatamente ceifar vidas.

Um dia, eles terão de se decidir. Não podem ser a favor da vida num caso e contra ela no outro.

De volta para o futuro – 2

José Horta Manzano

O esfacelamento da União Soviética, no início dos anos 1990, abriu as portas da Rússia para as grandes empresas ocidentais. O país estava na lona. Precisava de recauchutagem completa Foi nessa leva que entraram as montadoras de automóveis.

Os russos deram adeus aos velhos Lada, aqueles carros tipo pé de boi de fabricação soviética que o Brasil chegou a importar nos anos 1980 e dos quais a gente costumava dizer que até a chave já vinha enferrujada.

Trinta anos se passaram, e a implantação das grandes construtoras automobilísticas se firmou e se reforçou. Até outro dia, estavam produzindo a todo vapor para um mercado de 145 milhões de consumidores.

Nisso, Vladímir Putin teve a estúpida ideia de invadir a Ucrânia. E veio a guerra. E vieram as sanções econômicas. E tudo parou. Nesse embalo, as montadoras europeias puxaram o carro (expressão caseira que cai bem neste caso). Entre as que se foram, está também a francesa Renault, atual proprietária da antiga Avtovaz, que fabricava o Lada.

No entanto, com ou sem guerra, o mercado russo continua exigindo carros. Mas, sem os estrangeiros, como fazer? A importação está fechada. Insumos, peças e componentes eletrônicos importados não entram mais no país.

As autoridades de Moscou decidiram engatar o modo desespero. Tomaram uma decisão que representa um retrocesso de três décadas na produção de automóveis no país.

Foram-se embora as montadoras? Sem problema. Ressuscita-se a velha Avtovaz e vamos em frente.

Faltam câmeras de ré? Sem problema. Põem-se à venda veículos sem câmera.

Faltam sistemas de freio ABS? Sem problema. Os carros novos vêm sem freio ABS.

Faltam airbags? Sem problema. Carro novo não precisa de airbags. Nem frontais, nem laterais.

Um decreto emitido pelo Executivo russo acaba autorizar que carros novos sejam comercializados sem uma série de equipamentos de segurança que eram exigidos até agora. Na Rússia, mudam-se leis com a mesma facilidade com que se mudam no Brasil.

Num país onde o número de acidentes de carro já está acima da média mundial (e se aproxima do assustador morticínio brasileiro), analistas acreditam que haverá 2000 ou 3000 mortos a mais por ano.

O decreto governamental afrouxa também as normas de emissão de gases poluentes. Volta-se ao que vigorava em 1988.

Este artigo devia ser lido por aqueles que acreditam que sanções econômicas não atrapalham. Este blogueiro repete o que já disse em outras ocasiões: há muitas maneiras de fazer pressão sobre um governo. Não é preciso ameaçar bombardeio.

Se, por desgraça, o capitão viesse a ser reeleito ou – pior ainda – se ousasse tentar um golpe institucional para permanecer na Presidência ilegitimamente, não é só freio ABS que vai faltar. O Brasil vai parar.

Talento de uns e de outros

Carlos Brickmann (*)

O talento de Musk
Elon Musk, que amealhou uma fortuna de mais de cem bilhões de dólares, é sem dúvida um gênio. E não apenas por ter criado, do nada, a Tesla, fabricante de cobiçados carros elétricos cujo valor em Bolsa supera hoje o da General Motors, da Toyota, da Volkswagen; não só por produzir foguetes espaciais e vendê-los para a Nasa. É um gênio por convencer o presidente da República de que pode fornecer internet à Amazônia via satélite, conectando à rede 19 mil escolas rurais e colaborando no monitoramento ambiental da região, sendo que sua empresa de internet, a Starlink, não cobre essa área e não tem satélites operando na órbita exigida.

Sua SpaceX pode lançar rapidamente esses satélites – mas estará ele disposto a investir nisso a poucos meses do fim do governo, sem saber se o presidente será mesmo reeleito?

O talento de Bolsonaro
Já Bolsonaro conseguiu convencer Elon Musk de que o monitoramento ambiental da Amazônia pode render um bom contrato. O problema do Brasil não é monitoramento, que é bem feito por gente ligada ao próprio Governo, em entidades como o INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.

Para Bolsonaro, o monitoramento é uma dor de cabeça: mostra direitinho como caminha a devastação. E fica mal para o governo mostrar ao mundo esses dados de desmatamento ilegal.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

O lapso de Señor Cuadrado

José Horta Manzano

Gabriel Boric, o jovem presidente do Chile eleito recentemente, arrancou a todo vapor, disposto a mostrar-se antenado e sintonizado com as tendências dos tempos atuais. Estendeu tapete vermelho para o feminismo e para a linguagem inclusiva – adulada por uns, execrada por outros.

No discurso de entronização, Boric já deu o tom. Afirmou que seria “o presidente dos chilenos e chilenas”. Sua alocução foi recheada daqueles cansativos “todos e todas”, “chilenos e chilenas”, “cidadãos e cidadãs”. O moço ousou adulterar uma frase famosa de Salvador Allende – seu ídolo, assassinado em 1973 pelos esbirros de Pinochet. Onde Allende havia dito “o homem livre”, acrescentou “a mulher livre”.

Até na distribuição das pastas ministeriais, especial atenção foi prestada às mulheres. Foi criado o Ministério da Mulher e da Igualdade de Gênero. Evidentemente, a titular é uma mulher.

Semana passada, o subsecretário da Saúde Pública, um certo Señor Cuadrado, discursou ao lado das titulares da Saúde e da Igualdade de Gênero. Diante de uma plateia de jornalistas, discorria sobre o trabalho que sua secretaria vem exercendo para oferecer remédios à população carente.

A certa altura, lançou: “E avançamos sobretudo na ideia do direito à saúde, no qual os e as medicamentos são fundamentais para poder garantir o acesso à saúde”.

A gargalhada geral ecoou por toda a mídia latino-americana e foi parar até no Youtube. O excesso de zelo do aplicado funcionário pregou-lhe uma peça e mostrou a inconsistência e o artificialismo da linguagem dita “inclusiva”. Esse modismo, que alguns entendem como obrigatório, é tentativa de distorcer idiomas sedimentados há séculos.

Quem envereda por esse caminho mostra não entender que gênero gramatical não se confunde com sexo humano. As duas noções nem sempre vão de mãos dadas.

Falar para um público de bom nível já é suficientemente complicado, especialmente numa terra como a nossa, em que a língua caseira diverge sensivelmente da norma culta. Não vale a pena acrescentar um fator complicador.

A régua

Myrthes Suplicy Vieira (*)

 


“O homem é a medida de todas as coisas”

Protágoras


 

Bolsonaro ouviu o canto do galo do poder absolutista mas até hoje não descobriu de onde ele vem, nem que tipo de vocalização lhe seria necessária para reproduzi-lo com sucesso por aqui. Escutou o canto da sereia mas, acreditando que não passava de singela homenagem de seus seguidores fardados, desatou-se do mastro e jogou-se atabalhoadamente na água.

 

Freud e Paulo Freire
Tivesse algum dia se dado ao trabalho de esmiuçar o pensamento desse e de outros filósofos da antiguidade, saberia que tudo é relativo, inclusive e principalmente sua autoridade. Imediatista, megalomaníaco, voluntarista e incapaz de pensamento crítico, ele confunde alhos com bugalhos e costuma tomar a parte pelo todo – provavelmente entenderia a palavra homem como simples indicador de gênero. Acreditando ser ele próprio medida de tudo à sua volta, julga que o Brasil e o mundo deveriam se curvar à sua paralela noção de realidade, aos seus princípios morais (ou falta deles), às suas vontades e ambições.

Tivesse lido Freud alguma vez, saberia que seu psiquismo está fixado na fase de onipotência típica de Sua Majestade, o Bebê. Entenderia que nessa etapa primitiva do desenvolvimento psíquico não existe mundo fora dele e a mãe (pátria) é apenas um seio que jorra leite sempre que requisitado. Tudo leva a crer que, por circunstâncias familiares adversas (mãe omissa e pai castrador), Bolsonaro jamais superou a fase do narcisismo infantil e regride continuamente à ilusão de poder inquestionável sempre que se sente ameaçado por alguma autoridade externa.

Tivesse ido além do título do livro de Paulo Freire, compreenderia que “se a educação não é libertária, o sonho do oprimido é se tornar opressor”. Se educar é frustrar, como postulam os especialistas, ele nunca se deixou educar para a cidadania. Sua formação militar o ajudou a radicalizar a noção de que toda obediência tem de ser necessariamente cega, acrítica: afinal, soldados não são feitos para pensar. No entanto, num arroubo juvenil e ainda apostando em sua superior autoridade moral, achou um dia que poderia subverter o dogma supremo da hierarquia militar. A humilhação máxima que sofreu ao ser expulso do exército por transgressão marcou sua personalidade para todo o sempre.

 

A ferida narcísica
A profunda ferida narcísica que se abriu em seu peito e o ressentimento acumulado desde então tornaram-se a marca registrada de sua atuação no mundo político e transformaram o caráter de virilidade tóxica – compensatória de sua impotência – em marco distintivo do bolsonarismo. Dando sequência ao seu complexo de Édipo embutido e jamais resolvido, Bolsonaro e bolsonaristas continuam tentando a todo custo matar o Pai Supremo, simbolicamente representado pelo Judiciário e encarnado na figura de Alexandre de Moraes, antes que sejam eles próprios castrados.

Desde que assumiu o poder em 2019, ele se comporta literalmente como se tivesse comprado a fazenda Brasil de porteira fechada. Dono de todas as consciências, ele não se cansa de instituir como regra que a ninguém é dado enxergar o mundo com outras cores ou rebelar-se contra seus éditos, uma vez que “autorizado” por seu povo e seu exército.

 

O STF e a Constituição
Professor de Deus, ele vem dando aulas diárias de constitucionalidade aos ministros do Supremo. Exibe em tom ameaçador seu douto saber jurídico, abordando temas de alta relevância para a democracia e o estado de direito, afetos principalmente ao conceito de liberdade de expressão, mas se aventurando também em questões secundárias, como a demarcação e exploração de terras indígenas, os limites de ação da Petrobrás na determinação de preços e as exigências legais imprescindíveis para a realização de eleições limpas e auditáveis.

Pontifica livremente sobre critérios de inocência e culpabilidade de parlamentares e membros do seu governo, sobre liberdade de imprensa, sobre equilíbrio e autonomia dos três Poderes da República, sobre o “interesse público” da não-adoção de medidas que beneficiariam minorias e sobre tudo o que causa “legítima comoção” na população brasileira, como se ela estivesse contida como um todo no seu grupinho de aliados e apoiadores.

 

Meu reino, meu gozo
Reinar sozinho, sem se sentir constrangido pelos tais pesos e contrapesos democráticos, seria sua única possibilidade de gozo orgástico – e ele sabe que nunca o poderá atingir graciosamente. Para chegar lá, seria preciso ter capacidade de entrega, abrir mão do desejo de ser o condutor e deixar-se ser conduzido no balé amoroso, o que lhe é impensável. Se não vai por bem, deve raciocinar, então é legítimo que se faça pelo estupro das instituições democráticas.

Mas não lhe basta o poder secular. Precisa também fazer seus apóstolos acreditarem que ele possui traços divinos de liderança carismática: a obsessão pela verdade que liberta, o pendor pastoral (“Eu sou, realmente, a Constituição”), acreditar-se ungido pelo próprio Deus para conduzir os destinos da nação.

 

Cloroquina e ivermectina
Como iluminado defensor das liberdades individuais, transgredir é com ele mesmo. Quanto mais normas legais forem quebradas em sua gestão, mais sente seu poder fortalecido e reforçada a crença de que ele é a única régua admissível para medir acertos e erros na condução dos negócios públicos – como transformar reserva natural em polo turístico, defender o trabalho infantil, defender a tortura, defender o excludente de ilicitude para policiais e militares, armar a população civil ou eliminar os radares de trânsito.

Na sua visão, é mera questão de tempo para que a OMS declare oficialmente que as vacinas são, de fato, experimentais e que foi um erro usá-las para substituir a cloroquina e a ivermectina, já que, além de custarem muito caro, podem ter efeitos colaterais inaceitáveis, como causar Aids em adolescentes ou miocardite em crianças, ou ainda conter chips para transformar pessoas em robôs. Ou para que o Supremo declare que, “dentro das quatro linhas da Constituição”, só ele teria o direito de decretar confinamento na pandemia, e interdite governadores e prefeitos que não seguissem a orientação federal. Sociólogos, filósofos e historiadores também se renderão um dia ao fato de que o nazismo foi um movimento de esquerda e que é possível perdoar o Holocausto mas não esquecê-lo, uma vez que “quem esquece seu passado não tem futuro”.

 

O psiquiatra aprendiz
Sua mais recente – e estupefaciente – incursão foi no universo da psiquiatria. Demonstrando sua expertise na área de psicopatologia aplicada à política, alertou para os eleitores ainda indecisos: só um “imbecil ou psicopata” defende a volta do AI-5.

Campeão mundial de atos falhos, resta saber se ele mais uma vez se autorrotulou sem querer (“O chefe do executivo mente”) ou se a crítica velada ao comportamento padrão de seus apoiadores mais exaltados foi só uma maneira de recriminá-los por vazarem antes da hora a intenção de golpe caso fracasse nas urnas. Ou talvez ainda ele tenha imaginado que, se vencedoras, as hostes de esquerda vão tentar instituir a ditadura do proletariado e, assim, roubar dele a bandeira do fechamento do Congresso e do STF.

Vale conferir com o psiquiatra-chefe de plantão após a abertura das urnas.

 

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Novas vagas

Estadão, 20 maio 2022

José Horta Manzano

Ganha dez minutos de massagem cardíaca quem conseguir criar velhas vagas.

O custo de vida anda nas alturas. Se poupar reais é bom, economizar palavras também é. Com as verbas do MEC racionadas do jeito que estão, é proibido jogar fora palavras.

Na chamada do jornal, criação de vagas basta e já dá o recado. O “novas” está sobrando.

De volta para o futuro – 1

José Horta Manzano

O sonho de todo comerciante é baixar seus custos sem prejudicar a qualidade do produto ou do serviço fornecido. Os armadores – aqueles que cuidam de transporte marítimo – têm de prever a evolução de seus custos com grande antecedência. Considerando o planejamento, a construção e a entrega, fabricar um cargueiro de grande porte leva muitos anos.

Não é segredo para ninguém que as reservas globais de petróleo são limitadas, e que vão se extinguir um dia, talvez até antes do que se pensa. Guerras e tensões mundiais, por seu lado, podem levar o preço dos combustíveis fósseis às alturas, como é o caso atualmente.

O item mais pesado na planilha de gastos de um navio cargueiro é justamente o óleo combustível. O objetivo de todo armador é baixar quanto possível sua utilização.

“Solid Sail” – retenha essa expressão. Vai se tornar comum dentro em breve. Trata-se de nova geração de vela que, em vez de queimar petróleo caro e poluente, aproveita a energia mais abundante nos mares do planeta: o vento.

A vela tipo “solid sail” não é feita de tecido, como nos atuais veleiros de turismo. É construída com materiais compósitos, uma aliagem que apresenta diversas qualidades interessantes: baixo custo, leveza, solidez e resistência.

A nova geração de velas é fácil de recolher. Não funciona mais como nos filmes de pirata, em que um marujo tinha de subir por uma escada de corda e enrolar o pano no muque, baloiçando aos ventos de mares nunca dantes navegados. Tudo é automatizado. Basta apertar um botão, e a vela se recolhe sozinha, dobrando como persiana. É crucial em caso de forte vento contrário ou de tempestade em alto mar. Nessas horas, o barco volta a ligar o motor tradicional.

Os primeiros navios a experimentar esse novo modo de propulsão estão em fase de construção nos Chantiers de l’Atlantique, canteiros navais franceses. Nesta fase experimental, estão sendo produzidos barcos menores. Dependendo do desempenho deles e de futuras encomendas, porta-contêineres e cargueiros de grande porte serão construídos.

A ideia é excelente e, excetuando as petroleiras, deixa todo o mundo contente. Diminui os custos de transporte, não polui o mar e não contribui para o aumento do efeito estufa. O novo conceito não elimina o combustível, mas reduz fortemente seu uso.

Pensando bem, a ideia de fazer longas viagens em barco à vela não é nova. Mais de meio milênio atrás, as caravelas de Vasco da Gama já havia chegado à Índia à força do vento. Ora pois.

Dois avisos

José Horta Manzano

Na quarta-feira 18 de maio, a Casa Branca mandou dois avisos.

Primeiro aviso
Suécia e Finlândia apresentaram seu pedido oficial de entrada na Otan. Para refrescar a memória, a Otan é uma aliança militar de defesa mútua do tipo “um por todos, todos por um”. Inclui os EUA, o Canadá e praticamente todos os países europeus, com exceção das micronações e dos países neutros (Suíça e Áustria).

No fundo, o interesse maior de cada membro do clube é abrigar-se debaixo do “guarda-chuva” nuclear dos Estados Unidos, a maior potência militar do planeta. É a melhor garantia contra agressões como a que a Ucrânia está sofrendo.

Só que tem um problema. A admissão da Suécia e da Finlândia não será imediata. O processo pode levar 6 meses ou mais. Enquanto isso, tecnicamente os dois países não fazem parte da aliança e, em princípio, não contam com sua ajuda.

É um período perigoso. Se sofrerem um ataque – da Rússia, de quem mais? – terão de se defender sozinhas.

O presidente Biden mostrou ter entendido o drama. Ontem mesmo a Casa Branca publicou um comunicado oficial garantindo que, mesmo neste período em que o procedimento de adesão não está finalizado, os EUA acudirão Finlândia e a Suécia “para deter e enfrentar toda agressão ou ameaça de agressão”. Traduzindo: para os EUA, os dois países já fazem parte do clube.

O recado foi direto para Putin: mexeu com eles, mexeu comigo. Não ouse!

Segundo aviso
No mesmo dia, Elizabeth Bagley, diplomata indicada por Biden para o cargo de embaixadora dos EUA em Brasília, foi sabatinada pelo Congresso americano.

Durante a audição, a diplomata lembrou que tem 30 anos de experiência em supervisão de eleições ao redor do mundo. Disse ter certeza de que as eleições brasileiras de outubro serão livres e justas, dada a tradição do país nesse particular.

Com estilo diplomático, fez uma referência leve mas incisiva ao comportamento do capitão, que tem feito o que pode para conturbar o processo eleitoral. A nova embaixadora mostrou estar ciente de que “os tempos serão difíceis” por causa “da quantidade de comentários”. Não chegou a apontar o autor dos “comentários”. Nem precisava.

São múltiplas as maneiras de exercer pressão sobre um país. Nem sempre é necessário recorrer a uma invasão. A futura embaixadora americana traz na sacola recados para o capitão. Se ele continuar a perturbar o processo eleitoral e, pior ainda, se ousar tentar derrubar a ordem constitucional, as consequências serão imediatas e vigorosas.

Diferentemente do que Bolsonaro parece acreditar, os países no mundo atual são interdependentes. O Brasil não é uma ilha. Nosso país depende de tecnologia estrangeira para funcionar. Um avião enguiçado precisa de peças americanas. Um aparelho de ressonância magnética é fabricado no exterior. Nossa indústria – química ou mecânica – é tributária de insumos americanos.

O que a embaixadora dirá a Bolsonaro – e que não sairá nos jornais – é justamente isto: se vosmicê ousar dar “aquele” passo torto, a torneirinha vai fechar e o Brasil vai parar. Será um caos. Um embargo americano pode ser extremamente dolorido, que o digam Cuba e o Irã.

Com o país enguiçado e o povo revoltado, quem vai levar um chute no traseiro é vosmicê.

Pronto, já lhe dei o aviso adiantado.

Falou pouco, mas bem

José Horta Manzano

O Estadão de hoje traz o relato de uma palestra dada por um antigo morubixaba do Google. O empresário americano ocupou o maior cargo da empresa de 2001 a 2011, o que não é coisa pouca.

Não conheço o grau de rotatividade de caciques no Vale do Silício. Permanecer por dez anos em função tão elevada me parece uma façanha. O homem deve ser bom mesmo.

Declarou:


O Brasil tem tudo, menos um governo estável. Vocês têm uma única língua, um país de 200 milhões de habitantes, uma cultura fantástica e são pessoas ótimas.”


Até aí, tudo tranquilo. Quem é que não gosta de receber flores?

E o figurão continuou:


Para mim, os problemas do Brasil são muito mais sobre as regras do governo. Conheci quase todos os presidentes brasileiros e acredito que vocês precisam de um jeito de ter um presidente e instituições experientes para evitar que mais presidentes acabem presos.”


O grifo das últimas palavras é meu. Não sei em que tom o palestrante as pronunciou, mas pouco importa: ele acertou o tiro. Em poucas linhas, mostrou ser bom conhecedor de nossos problemas.” Tudo está aí, resumido.

Vantagens e problemas
Na primeira frase, estão as vantagens. O país é habitado por um mundaréu de gente cuja língua de escola é a mesma, o que facilita enormemente as comunicações e as interações. É um privilégio observado com inveja por outros países.

Não temos conflitos étnicos. Essa história de “nós x eles” (inventada pelo lulopetismo e reforçada pelo bolsonarismo) é artificial. Existem fraturas sociais, como por toda parte, mas elas não podem ser resumidas a “nós de um lado, eles do outro”. A fórmula é vaga e redutora. Nós quem? Eles quem?

Na segunda frase do palestrante estão nossos problemas.

Presidente experiente
Que precisamos dar um jeito de eleger um presidente experiente é evidente verdade. Quem haverá de constestar? A Presidência não pode continuar sendo utilizada como pátio de recreação de aprendizes, como vem ocorrendo há duas décadas.

Que precisamos de instituições mais experientes é outra verdade. Eu diria até mais: que, além de experientes, sejam eficazes. Temos anomalias intoleráveis:

  • presidente com poder de anistiar correligionários,
  • ministro do STF que dá entrevista pra divulgar sua opinião pessoal,
  • deputados que fazem a festa com dinheiro extorquido do povo por meio de orçamento secreto,
  • presidente da Câmara com poder de bloquear centenas de pedidos de impeachment,
  • presidente da República que comete crimes de responsabilidade um atrás do outro.

Tumor invisível
Essas mazelas que acabo de citar – e que, de tão acostumados que estamos, nos parecem inofensivas e naturais – são o tumor que ninguém quer ver. Um estrangeiro, que não pode ser acusado de ser petista nem bolsonarista, vê com maior clareza o que o brasileiro comum não consegue enxergar.

Nossas leis e nossos costumes políticos estão distorcidos e corrompidos. O debate político desapareceu. Não há mais argumentação. O que interessa é insultar, caluniar, demolir, desmontar, cancelar adversários (verdadeiros ou imaginários), tratados sempre como inimigos.

Se os dois principais candidatos à Presidência tivessem de enfrentar um exame tipo vestibular para avaliar a aptidão para o cargo, dificilmente passariam. Teriam de cair fora da lista de candidatos, o que seria um alívio para a República.

Um “Enem presidencial” tem de ser instituído para candidatos ao cargo maior. É o único caminho para termos um dia “um presidente que não acabe preso”.