A Nigéria e o Brasil

José Horta Manzano

Chegou a notícia em pleno Corpus Christi: o parlamento nigeriano acaba de votar uma lei que incrimina toda atitude que possa, de perto ou de longe, indicar simpatia pela homossexualidade. Casamento, relacionamento amoroso, adesão a grupo de direitos homossexuais, vai tudo para o mesmo saco. Não é mais contravenção. Não é mais delito. A partir de agora, é crime, e como tal será tratado todo e qualquer comportamento desse tipo. Veja aqui e aqui.

Pode-se apreciar ou não essa legislação. Fora da Nigéria, a cada um é permitido aplaudir de pé ou execrar o caminho escolhido pelas autoridades daquele país. Mas um mérito não se lhes pode negar: a clareza. Naquelas paragens, aquele que andar fora da linha sabe o risco que está correndo.Interligne 36

Enquanto isso, numa certa República sul-americana muito conhecida nossa, continuamos tergiversando. Em nosso País, as coisas não primam pela clareza. O que parece nem sempre é. O que não parece pode até ser.

Nosso Executivo pouco executa. Por meio de medidas provisórias, tenta, atabalhoadamente, legislar. Age de afogadilho, no dia a dia.

Nosso Legislativo se desobriga de legislar sobre matérias polêmicas. Deixa que outros tomem a iniciativa. Esperneia, faz biquinho, mas acaba dizendo amém aos ditames do Executivo.Bagues 3

Nosso Judiciário navega frequentemente em águas turvas. Volta e meia é chamado a dirimir conflitos para os quais não há base legal clara. Pouco a pouco, estamo-nos tornando um país onde a jurisprudência se substitui à lei inexistente.

É tudo muito estranho. Se considerarmos as nações cujo parlamento já deu embasamento legal definido a uniões homossexuais e adicionarmos aquelas que decretaram sua ilegalidade, o total já ultrapassa 30 países. Cada um é livre de estar ou não de acordo com esta ou com aquela decisão, mas o importante é que a lei foi votada.

E o Brasil liberal, tolerante, amigo, simpático, tropical, acolhedor, jeitoso, boa-pinta, ensolarado, emergente, prafrentex? Será que ainda pretende continuar muito tempo em cima do muro?

Cáspite! Que seja sim ou que seja não, mas legislar é preciso. Está ficando feio.

Urna eletrônica

José Horta Manzano

Os brasileiros costumam se orgulhar da excelência de seu atual sistema eleitoral. A máquina de votar ― apelidada, por extensão de sentido, de «urna eletrônica» ― trouxe um avanço impressionante. Guindou o País à modernidade. Será mesmo?

É verdade que a contagem dos boletins nos anos 50, 60 era lenta, muito lenta. Ao final da votação, encerrado o trabalho das secções eleitorais, as urnas eram lacradas e levadas, sob escolta policial, até uma central de apuração. Permaneciam ali estocadas e intocadas, sob guarda constante, até o dia seguinte, quando as equipes começavam a abrir uma por uma e a contar voto por voto, sob o olhar atento dos fiscais despachados pelos partidos.

Voto com cédula

Voto com cédula

Demorava, é verdade. O resultado definitivo de uma eleição nacional saía, na melhor das hipóteses, 3 ou 4 dias após a votação. Mas podia muito bem demorar duas semanas ou até mais.

Quando os franceses querem lembrar que é impossível ter tudo na vida, dizem que «on ne peut avoir le beurre et l’argent du beurre», não se pode ter a manteiga e o dinheiro da manteiga. Se a eleição à moda antiga, com cédula de papel, apresentava o inconveniente da lentidão da apuração, por outro lado era mais efetiva em caso de contestação. Uma recontagem dos votos era possível e até fácil de fazer.

Já o novo sistema ― eletrônico, sofisticado e modernoso ― me deixa com um pé atrás. Quem me garante que os números que teclei serão realmente creditados ao candidato que escolhi? Quem passou atestado de idoneidade aos gênios que programam aquelas engenhocas? Quem certifica que não há colusão entre as partes para beneficiar este ou aquele candidato, este ou aquele partido?

O exercício da democracia é alicerçado pelo voto popular, mas ainda não foi inventada maneira infalível de banir o risco de fraude. Portanto, a prioridade deveria ser a transparência e a exatidão no cômputo dos votos, não a rapidez da apuração.

Urna transparente

Urna transparente

A meu conhecimento, nenhum país europeu adotou o voto eletrônico. Por aqui pode-se votar na secção eleitoral, por correspondência, por procuração, por antecipação. Experiências têm sido tentadas até com voto via internet. No entanto, nada de «urna eletrônica». Donde se conclui que os europeus estão atrasados nesse particular? Eu não iria tão longe.

Se me fosse dado decidir, eu ficaria com o melhor de cada um dos sistemas. Explico.

1) Revogaria o direito de voto dos analfabetos. Um cidadão que não tem condições de ler ou de escrever num pedaço de papel o nome de seu próprio candidato é presa fácil para o voto de cabresto. É obrigação do Estado alfabetizar a população. Que o façam.

2) Voltaria ao voto à moda antiga, cabine com cortininha, cédula de papel e urna de material transparente.

3) Estenderia aos mesários a obrigação de contar os votos de sua secção. Terminada a votação, cada urna seria aberta na presença de todos os mesários e de eventuais fiscais partidários. Os votos seriam contados à vista de todos. Como se faz no resto do mundo.

4) Utilizaria os modernos meios eletrônicos para a transmissão dos resultados. Terminada a contagem, o resultado seria transmitido por canais especiais a uma central de totalização. As cédulas seriam conservadas para eventuais confrontações.

Essas mudanças tirariam a pulga que hoje vive atrás da orelha de muito cidadão.Interligne 38

Interligne 3eRecebi hoje de uma amiga um desses textos apócrifos que circulam pela internet. Não se pode saber quem o escreveu, nem se corresponde à verdade. Mas não deixa de ser um grito de alerta.

«Na verdade, não parece estranho que os países adiantados repudiam a urna eletrônica? Está aqui uma das inúmeras possibilidades de fraude à luz do dia.

Já fui fiscal de eleições duas vezes e sempre achei o sistema vulnerável. Numa das vezes,uma urna enguiçou.

Chamamos o TRE, que nos enviou um técnico, um rapaz de seus vinte anos. Pedi a ele que se identificasse e perguntei se era funcionário do TRE. Respondeu-me que trabalhava para uma firma terceirizada.

Abriu a urna, extraiu o disquete dela, tirou do bolso trazeiro da calça jeans um novo disquete e se preparava para instalá-lo no lugar do original. Antes que ele completasse a operação, pedi que me deixasse examinar o novo disquete. O apetrecho trazia apenas uma etiqueta do TRE, um carimbo, uma assinatura e um número de série. Nada provava que o disquinho fosse autêntico, neutro e seguro.

Perguntamos ao rapaz se a mesa tinha de autorizar a troca e autenticar o novo disquete. Ele disse que não, não precisava de nenhuma comprovação. E foi-se embora levando o disquete danificado.

Passei a ter minhas dúvidas sobre a segurança do sistema.»

 

Esquizofrenia

José Horta Manzano

Quando cheguei à Europa, quase 50 anos atrás, nós brasileiros éramos olhados com curiosidade. A gente se sentia realmente estrangeiro. Viajar custava caro, poucos podiam se dar ao luxo de fazer turismo de cá para lá ou de lá para cá. A maioria dos europeus nunca havia visto um visitante vindo de tão longe.

A Europa ainda era cheia de fronteiras, de vistos, de alfândegas. Hoje não é mais assim, mas naquela época, para passar de um país a outro, era absolutamente necessário apresentar documentos. Nossa nacionalidade era tão exótica, que cheguei a assistir a cenas surpreendentes.

Uma vez, ao atravessar uma fronteira rodoviária entre a Itália e a França, o policial de serviço recolheu nossos passaportes, mandou esperar, e desapareceu dentro da guarita. Voltou um momento depois acompanhado de um outro, que parecia ser seu chefe. Pelo olhar benévolo e inofensivo que nos lançaram, percebi que estavam movidos apenas pela curiosidade. Estavam vendo ― provavelmente pela primeira vez na vida ― gente de carne e osso proveniente de uma terra tão longínqua e improvável como era a nossa.

Alguns países exigiam visto de brasileiros. Entre eles, mui estranhamente, a Espanha. A autorização de entrada naquele país tinha um custo, é verdade, mas valia a pena: o visto espanhol era um prazer para os olhos. Uma enorme marca de carimbo de tinta roxa preenchia uma página inteira do passaporte. Metade da superfície carimbada vinha encoberta por uma fieira de estampilhas coloridas. Uma assinatura se sobrepunha ao bonito conjunto. O único senão é que todos os selos, sem exceção, traziam a cara de Franco, o feroz caudilho.

Espanha ― Selos antigos

Espanha ― Selos antigos

O tempo passou, as coisas mudaram. Hoje em dia, nem os próprios diplomatas brasileiros que servem na Europa conseguem dizer com exatidão quantos conterrâneos nossos, entre legais e clandestinos, vivem em cada país. Nos países mais concorridos, somos centenas de milhares.

Uma amiga minha, brasileira mas radicada há muitos anos na Europa, costuma dizer que dar um passeio em Genebra num domingo de verão à beira lago equivale a passear à beira-mar em Natal ou Fortaleza. A paisagem é bonita e os frequentadores são metade brasileiros e metade estrangeiros.

Talvez por falta de visão estratégica, o governo brasileiro costuma ser apanhado de surpresa assim que o panorama mundial se altera. Não só crises financeiras e outros eventos planetários têm o poder de colher nossos mandachuvas de calças curtas. Modificações paulatinas ― e previsíveis ― do comportamento dos cidadãos não costumam ser antecipadas. É preciso que a pressão esteja a ponto de fazer saltar a tampa para que alguém se preocupe em acionar a válvula de escape.

Assim foi com o aumento de brasileiros estabelecidos ― legal ou ilegalmente, pouco importa ― no exterior. Não aconteceu da noite para o dia. O aumento já vem se acentuando há um quarto de século. As representações consulares brasileiras, quase ociosas nos anos 60 e 70, foram-se tornando pouco a pouco mais movimentadas.

Até não faz muito tempo, pelo menos no consulado do Brasil em Genebra, o atendimento era caótico. Levas de conterrâneos se espremiam diante de dois exíguos guichês, senhas não eram distribuídas, não havia nenhuma cadeira disponível, o horário de atendimento era de 3 horas por dia. Cada um tinha seu problema: uma renovação de passaporte, uma legalização de documento, o registro de um recém-nascido, um documento militar, um título de eleitor, uma procuração. O atendimento só era possível na base da cotovelada.

Atendimento reverencioso

Atendimento reverencioso

De uns dois anos para cá, o esforço de um novo Cônsul-geral conjugado a uma tomada de consciência do Itamaraty operaram um milagre. Aquele apinhado de gente em frente do guichê é pesadelo do passado. Hoje marca-se hora ― perdão! ― hoje se agenda por internet e, no dia combinado, recebe-se atendimento personalizado. E pontual.

Não tenho informação, mas suponho que os demais consulados do Brasil estejam agora oferecendo o mesmo tratamento digno que recebemos aqui. Finalmente, o Itamaraty se deu conta de que os milhões de conterrâneos residentes no exterior não são banidos nem desterrados. São brasileiros como os outros e têm necessidade de atendimento.

É curioso constatar que a instituição que vem agora tratando os brasileiros do exterior com tanta urbanidade e tanto mimo é a mesma que afaga caudilhos confirmados e aprendizes, ditadores experimentados e iniciantes, e dignitários de regimes sanguinários no resto do mundo.

Sem dúvida, um caso curioso de esquizofrenia.

Invasão estrangeira?

José Horta Manzano

Há muito lixo circulando pela internet. Às vezes, aparece também alguma coisa interessante. O difícil é fazer a triagem, eliminar o joio e deixar só o trigo.

Outro dia recebi de um amigo um texto um tanto indignado reclamando da distribuição geográfica de ongs estrangeiras no Brasil. Desconheço quem possa ser o autor do libelo. Só sei que ele se insurge contra o fato de certas regiões do País estarem mais bem amparadas que outras.

Aqui vai uma versão recompilada.

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Por que não há nenhuma ong no Nordeste seco? Será que ninguém precisa delas por lá? Vamos analisar.

Quantas vítimas da seca crônica se podem contar? Por alto, uns 10 milhões de infelizes. Todos subnutridos, muitos com fome e com sede. No entanto, nenhuma ong estrangeira apareceu por lá para dar uma mão.

Por que há tantas ongs na Amazônia? Por que são tão necessárias? Vamos analisar.
Quantos índios há por lá? Fala-se em 230 mil. A população não sofre desnutrição. Nenhum deles passa fome nem sede. No entanto, cerca de 350 ongs estrangeiras estão por lá dando uma mão.

De onde vem esse desequilíbrio? Dizem alguns que, por detrás de ongs de aspecto inocente, escondem-se grandes grupos interessados nas riquezas minerais e vegetais do Norte úmido. Já o Nordeste seco atrai muito menos cobiça.

Dizem até que há mais ongs estrangeiras na Amazônia brasileira do que em todo o continente africano ― compreensivelmente mais necessitado que nosso «inferno verde».

Fim de citação.

Não tenho como comprovar esses números, mas tenho dificuldade em acreditar que nenhuma ong estrangeira se interesse pelo NE. Nem umazinha? Estariam então todas a serviço de interesses escusos? Teríamos aí a prova cabal de que uma conspiração de louros de olhos azuis está preparando o terreno para uma invasão de extensa porção do território nacional? Sei não.

Talvez a explicação seja menos cabeluda, bem mais chã. Admitindo-se que haja mais estrangeiros apoiando gente na Amazônia do que no Nordeste, por que não imaginar que o verde da floresta, a água onipresente, a abundância de alimento, o canto dos pássaros sejam o verdadeiro ímã? Afinal, toda ong é composta por gente como nós. Quarenta graus na poeira do interior do Piauí ou do Ceará é calor pra afugentar qualquer legionário.

Melhor ser otimista. Ou não?

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José Horta Manzano

Descaso
Em seu blogue, Diego Zanchetta alerta os distraídos dirigentes da cidade de São Paulo para o fato de a bandeira brasileira desfraldada justamente na ultrasimbólica Praça da Bandeira estar degradada, com um rasgo velho de três meses.

Bandeira Brasil rasgada

Bandeira Brasil rasgada

Para quem não conhece, explico que a praça e sua bandeira monumental podem ser avistadas tanto do prédio da Prefeitura quanto da Câmara Municipal. Os ocupantes atuais desses dois mui oficiais imóveis não podem alegar ignorância.

Com certeza estarão todos por demais absortos por seus negócios pessoais, sem tempo a perder com essas picuinhas.

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De mal a pior
Para quem esteve estes últimos dias passeando na Groenlândia, informo que, na sexta-feira 24 de maio, a presidência de nossa República foi exercida pelo senhor Renan Calheiros.

Os que votaram no coronel devem estar felizes. De qualquer maneira, ninguém pode reclamar. O presidente do Senado foi escolhido por seus pares. Afora os suplentes, todos os senadores foram eleitos por nós. Ou não?

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Arrombada a porta, põe-se a tranca
Quinta-feira passada um incêndio pavoroso irrompeu numa distribuidora de petróleo estabelecida num bairro residencial(!) de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Uma jornada inteira de trabalho não foi suficiente para que os bombeiros dessem cabo das chamas. O sinistro alastrou-se por residências próximas. Uma pessoa perdeu a vida.

Depois da catástrofe, o Secretário Estadual do Meio Ambiente do RJ declarou que a empresa não tinha licença para funcionar.

É compreensível que um camelô, que carrega sua empresa numa sacola, monte sua banquinha sem autorização, numa esquina qualquer, enquanto o rapa não aparece. Mas… uma distribuidora de petróleo?

Fica no ar a pergunta: se uma distribuidora de petróleo pode operar sem a devida autorização, para que serve uma instituição com o pomposo nome de Secretaria Estadual do Meio Ambiente? Não é mais que um cabide de empregos?

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Argentinização
Esta semana a imprensa deu uma notícia inquietante sobre a inflação. A Folha de São Paulo intitulou a matéria «Prévia da inflação oficial desacelera em maio para 0,46%, diz IBGE».

Previsão de inflação

Previsão de inflação

De que estou reclamando? Se a inflação dá sinais de baixar, por que o descontentamento?

Está nas entrelinhas, meu amigo. O que me perturba é a palavra oficial, presente no título e no corpo do texto. Quando se fala em «inflação oficial», subentende-se que exista uma outra, não oficial.

Estaremos voltando ao inferno dos anos 1980 e 1990? Dizem alguns que a Argentina é o Brasil amanhã.

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A frase do dia – 04

“O comandante de um navio de bandeira estrangeira que chegue ao Brasil precisa entregar 190 informações para as autoridades do governo brasileiro. Às vezes, a mesma informação segue em documentos diferentes para a Receita, a Marinha, a Anvisa e a Polícia Federal.”

Mario César Carvalho & Agnaldo Brito
in Folha de São Paulo, 26 maio 2013

Link aqui.

Lá, mas não cá

José Horta Manzano

Em junho de 2011, americanos atônitos descobrem que Anthony Weiner, deputado pelo Estado de Nova York, andava distribuindo fotos de suas partes íntimas a suas amantes. Mentira e escândalo sexual estão entre os comportamentos mais rejeitados nos EUA. O bravo deputado tinha transposto a linha vermelha. Foi impelido a renunciar ao mandato.

Em fevereiro de 2013, uma notícia embrulha o estômago dos alemães. Annette Schavan, Ministra da Educação acabava de perder seu título de doutora. De fato, apurações tinham revelado que sua tese de doutorado estava baseada em escritos pré-existentes, um escancarado plágio. Desenxabida, a ministra não teve outra solução senão abandonar o cargo.

Em novembro de 2012, um escândalo abala os Estados Unidos. Boquiaberta, a nação ficou sabendo que David Petraeus, o diretor da CIA(!), traía a esposa. Por aquelas bandas, certas virtudes ainda valem. O personagem tinha escamoteado uma delas. Não deu outra: teve de pedir demissão.

Em março de 2013, a polícia nacional francesa publica o resultado de um inquérito de 4 meses sobre Jerôme Cahuzac, Ministro do Orçamento. Pasmos, os franceses ficaram sabendo que Monsieur le Ministre havia fraudado a Receita. Era beneficiário de 600 mil euros depositados uma conta secreta no estrangeiro mas nunca declarados ao fisco francês. Não lhe restou outro caminho senão a renúncia ao cargo ministerial.

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Faz anos e anos que o Brasil inteiro está sabendo que Paulo Maluf tem problemas com a Justiça. Até uma (curta) temporada na cadeia já passaram, ele e o filho.

O homem é procurado por todas as polícias do mundo. Está na lista vermelha da Interpol. Caso cometa a imprudência de pôr um pé fora do território tupiniquim, será mui certamente preso e extraditado para os EUA. Para desencanto dele, terminaram-se os passeios despreocupados que fazia ― à custa do nosso dinheiro ― nos Champs-Elysées, na Via Veneto ou na King’s Road.Maluf

A Justiça de Jersey, ilha anglo-normanda onde nosso simpático personagem tinha encafurnado uma parte dos milhões roubados do povo, começou a devolver o butim diretamente à prefeitura de São Paulo. Em suaves prestações.

Como ensina a Constituição da República, todos os brasileiros são iguais. Alguns, no entanto, são ainda mais iguais que os outros. Um visionário presidente do País, aliás, confirmou essa incontornável realidade em declaração de junho de 2009, quando afirmou que seu companheiro José Sarney não podia ser tratado como pessoa comum.

Maluf tampouco jamais será tratado como pessoa comum. Pelo menos, enquanto permanecer no território nacional, que é vasto. Assim como se deu bem no tempo da ditadura, dá-se melhor ainda nos estranhos tempos atuais.

O mesmo presidente visionário ― hoje emérito ― que havia incensado Sarney foi outro dia pessoalmente levar sua homenagem a Maluf. Fazer uma visitinha de cortesia a um foragido da Justiça planetária não lhe pareceu indecente.

Afinal, Deus é brasileiro.

A frase do dia – 03

«Segundo o diretor do Instituto Nacional de Estatísticas (da Venezuela), Elias Ejuri, a demanda de papel higiênico cresceu nos últimos anos porque, graças à revolução bolivariana, “as pessoas estão comendo mais”. Nem o Indec argentino, encarregado de maquiar a inflação, se tem mostrado tão criativo.»

Rolf Kuntz in Estadão
in Estadão, 25 maio 2013
Link aquiInterligne 2

STF e mensalão

José Horta Manzano

Finalmente, a presidente desvelou o nome de seu preferido para ocupar a 11a. cadeira do Supremo Tribunal Federal. Cabe agora ao Congresso nacional referendar a concessão da toga ao ungido. Nossos representantes podem até, numa remotíssima hipótese, desautorizar a indicação presidencial e negar assento no STF ao postulante. Com o Congresso que temos, porém, essa conjectura está mais para delírio do que para realidade.

Até pouco tempo atrás, raros brasileiros acompanhavam as atividades do STF. Acredito até que a maioria nem sequer soubesse para que servia esse tribunal, nem quem eram seus componentes. O cidadão comum se interessava pela composição do colegiado do STF tanto quanto se importava com a diretoria do IBGE ou da Embrapa.

Mas… o mensalão perpassou pelo cenário nacional. E o palco para o qual se orientaram todos os holofotes foi justamente o Supremo. Como por acaso, o Brasil descobriu que o regime dispõe de um terceiro (ou seria apenas segundo?) poder, independente e autossuficiente. No ideário do brasileiro médio, o STF passou a exercer o papel que antes cabia à oposição. É a única instância que ousa enfrentar o governo. Aliás, muitos chegam a enxergar em seu atual presidente um sério concorrente a ocupar o Palácio do Planalto.Boi

No Brasil deste século XXI, um Executivo hipertrofiado mascara um Legislativo encolhido, afônico e submisso. O Planalto não se limita a orientar sua maioria no Congresso, mas frequentemente se susbtitui a ela. Sob forma de medidas provisórias, leis importantes são costuradas diretamente no seio do Executivo, passando ao largo de deputados, de senadores e de debate público. Os congressistas têm-se tornado meros referendadores de pacotes já decididos e embrulhados sabe-se lá por quais obscuras camarilhas. Pacotes que já vêm prontos, acabados e com laço de fita.

O 11° ministro do STF começou bem. Constitucionalista de formação, não parece apreciar a atual confusão de papeis. Fiel a Montesquieu, continua achando que decisões políticas devem ser tomadas pelos que foram eleitos para isso. Em resumo, cabe aos legisladores legislar, aos governantes governar, aos magistrados dirimir conflitos. É uma questão de bom-senso, mercadoria assaz escassa no País ultimamente.

Todos se perguntam como se comportará Luís Roberto Barroso com relação ao epílogo do julgamento do mensalão. Tanto pode declarar-se incompetente para interferir num processo que já vai adiantado quanto pode considerar-se apto a apanhar o bonde andando e participar das decisões que estão por vir. O tempo dirá.

Quanto ao mensalão, uma eventual confirmação das condenações não deverá alterar o estado atual das coisas. Muito pelo contrário. Após meses de processo público e ultramidiatizado, o Brasil pensante já formou sua convicção.

Conquanto alguns medalhões petistas tenham sido condenados por crimes vários, num acachapante revés para o principal partido situacionista, a popularidade da presidente não parece ter sofrido. É curioso, mas assim é.

Uma eventual confirmação da condenação, portanto, não deverá alterar o quadro. Já uma atenuação das penas pronunciadas ou ― pior ― a absolvição de condenados pode envenenar a situação e gerar uma onda de indignação, descrédito e revolta. Não seria bom para a atual maioria.

Paradoxalmente, os que se sentem contentes com a maneira pela qual o Brasil vem sendo dirigido nos últimos dez anos devem torcer para que a entronização do novo ministro no STF faça pender a balança no sentido da confirmação das penas.

Se assim acontecer, os condenados terão representado o papel de boi de piranha: sacrifica-se uma meia dúzia para permitir que o grosso da tropa de companheiros atinja incólume a outra margem do rio. Tanto a presidente quanto seu partido conservarão todas as chances de continuar no topo por mais alguns anos.

É melhor entregar os aneis para não perder os dedos.

O roto e o rasgado

José Horta Manzano

Tem gente que vive de ilusão. Um antigo presidente de nossa República declarou, dois dias atrás, que o Brasil «será a 5a. economia do mundo em 2016». Mas não parou por aí. Com sua soberba habitual, conclamou nosso País a «ajudar os vizinhos a sair da pobreza».

Mostrou-se, ademais, maravilhado com o fato de a presidência temporária de duas organizações internacionais estarem sendo atualmente confiadas a brasileiros. Considerando que há 33 organizações internacionais oficialmente reconhecidas, não é espantoso que duas delas tenham um presidente oriundo do país candidato a ser a 5a. economia. Ou não?Estatísticas 1

Não nos esqueçamos de que, além das organizações internacionais oficiais, há dezenas de ultrapoderosas ongs planetárias. O WWF, presidido por uma equatoriana, cuida dos animais selvagens. A UICN (União Internacional para a Conservação da Natureza), presidida por um chinês, encarrega-se da preservação da vida vegetal.

Das duas, uma: ou o Lula conhece esses fatos e os esconde de seu público, ou continua a viver completamente alheio à realidade mundial.

A bem da verdade, seja dito que a fortíssima Greenpeace conta com uma brasileira entre os sete membros de seu conselho diretor. Nosso messias provavelmente não concede grande atenção a ninharias dessa espécie. Pode também ser que seus diligentes assessores, inebriados com sua própria importância, não se tenham preocupado em pesquisar e transmitir o conhecimento ao chefe. É igualmente compreensível que os feitos de Osvaldo Aranha, que presidia a assembleia da ONU quando da criação do Estado de Israel, não sejam levados em consideração pelo ex-presidente. Pela lógica dele, a História do Brasil só começou em 2003. Portanto, fatos anteriores não merecem ser lembrados.

Quando o ínclito personagem diz que o Brasil precisa «ajudar os vizinhos a sair da pobreza», me faz pensar no roto falando do rasgado. Um dos fatores que mais retardam nosso arranque é justamente o fato de nosso país estar amarrado, por regras insensatas e por decisões ideológicas, aos caprichos de seus vizinhos pobres e arrogantes. Com a entrada da Venezuela no Mercosul, o clube dos «descamisados» acaba de ganhar novo membro de peso. A verdade é que, a cada dia que passa, ficamos mais longe de atingir o status de potência internacionalmente respeitada, tal como a imaginava nosso simplório mandachuva.

Ele não consegue entender, mas não custa repetir: não é só o tamanho absoluto da economia que faz um país avançar no processo civilizatório. A China, em números absolutos, é uma economia poderosa. No entanto, em números relativos, a visão é muitíssimo diferente. Há tanta desigualdade social naquele país quanto no Brasil, se não for mais. Injustiças, pobreza, miséria, iniquidade, trabalho em condições de semiescravidão, corrupção desenfreada em todos os níveis, censura de opinião, trabalhadores sem qualquer espécie de proteção social. É isso que nosso líder quer para o Brasil?Estatísticas 2

De que serve, então, ser uma economia poderosa, se a distribuição da riqueza é perversa e iníqua? Não é importante que um país seja rico em números absolutos. É importante que seu povo não dependa de bolsas e de quotas para sobreviver com decência.

No dia em que os brasileiros não precisarem mais de muletas governamentais para garantir vida digna, teremos chegado lá. Pouco importa que o Brasil seja a 1a. potência econômica, a 5a. ou a última. Estatística não enche barriga.

Tchau, mãe!

José Horta Manzano

Vocês todos com certeza já viram aquelas reportagens de televisão em que o locutor se posiciona numa calçada qualquer tendo ao fundo o edifício ou o evento sobre o qual quer chamar a atenção. Grande parte das reportagens dos jornais televisivos são hoje em dia feitas assim.Blabla 2

Vocês também já devem ter visto algum engraçadinho surgir de repente atrás do locutor para dar um adeusinho aos espectadores. Às vezes mostra a língua ou faz um gesto qualquer que lhe pareça espirituoso. Há casos extremos em que a reportagem ao vivo tem de ser interrompida, tal a balbúrdia que se forma em frente à câmera.

São momentos que nos levam a refletir sobre a vaidade humana. Quando digo vaidade, penso em seu sentido etimológico. O termo é parente de vão e remete àquilo que é oco, irreal, sem fundamento. A vaidade à qual me refiro tem a ver com presunção, exibicionismo, imbecilidade.

A mesma atitude que se pode tolerar num cidadão comum ― como o «tchau, mãe!» do adolescente que surge no campo de visão da câmera ― será tanto mais inaceitável quanto mais importante for a função de seu autor. Indivíduos aos quais a sociedade conferiu altas responsabilidades deveriam refrear seus ímpetos. Uma patacoada pronunciada por um ministro causa impacto infinitamente mais contundente do que o inconsequente «tchau, mãe!» do passante anônimo.

Por algum motivo que me foge ― talvez por não estarem realmente preparados para assumir as funções que exercem ― altos personagens da vida pública brasileira se permitem comportamentos surpreendentes, para dizer o mínimo.

Recentemente dois exemplos nos deixaram perplexos. O pronunciamento intempestivo do ministro Barbosa, presidente do STF, um dos figurões mais importantes da República, foi uma pancada. Declarou, assim sem mais nem menos, perante uma plateia de estudantes, que os partidos políticos brasileiros são “de mentirinha”. No fundo, não deixa o ministro de ter razão. Mas uma coisa é o fundo e outra, bem diferente, é a forma.Blabla 2

Se você ou eu dissermos, numa conversa informal entre amigos, alguma coisa desse tipo, ninguém vai-se escandalizar. Mas o presidente do STF não pode proferir julgamentos desse naipe em público. Bagunça o coreto.

Outro exemplo recente é a entrevista que Wilson Trezza, diretor da Abin, concedeu semana passada a uma jornalista. O personagem pistas sobre suas preocupações e sobre as medidas de segurança que preconiza. É de deixar boquiaberto.

Alguém poderia imaginar o diretor da CIA, do MI6 britânico, da DGSE francesa dando entrevista?(*) Mas nem em sonho! Não pode, minha gente!Uniforme vermelho

Tanto quanto a CIA, o MI6 e a DGSE, a Abin também é uma agência central de inteligência. Em termos prosaicos: é o serviço secreto, criado para garantir a segurança da nação e de seus cidadãos. Não tem cabimento seu diretor sair por aí dando entrevista e discorrendo sobre suas preocupações e seus planos.

No Brasil, ninguém mais se surpreende com nada. Se, amanhã, os agentes secretos decidirem usar uniforme vermelho, periga todos acharem isso normal.

Em nome da transparência, evidentemente.

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(*)
CIA ― Central Intelligence Agency (EUA)
MI6 ― Military Intelligence (UK)
DGSE ― Direction générale de la sécurité extérieure (França)
Abin ― Agência Brasileira de Inteligência

Miscelânea 02

José Horta Manzano

Lá como cá
Sylvie Andrieux, de 51 anos, é deputada socialista francesa há 15 anos. Acaba de ser condenada a 3 anos de prisão. Terá de cumprir o primeiro ano em regime fechado. Durante os dois anos seguintes, estará em liberdade condicional.

Seu crime? Desvio de dinheiro público. O tribunal reconheceu que a deputada favorecia ongs fictícias e associações inexistentes. Ao final, o dinheiro servia para comprar votos. O montante total do «malfeito» foi de 740 mil euros.

No Brasil, desvio de dinheiro público para compra de votos é «malfeito» tão banalizado que já não comove ninguém. Caso a Justiça decidisse mandar todos os infratores para a prisão, melhor seria cercar o Congresso.

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O exílio fiscal
Gérard Depardieu, o ultraconhecido ator francês, é russo fresco, ou seja, tornou-se cidadão russo há poucos meses. Declarou que se sente muito orgulhoso da nova nacionalidade.Gérard Depardieu 2

Para respeitar a obrigação que têm todos os habitantes do território russo, declarou seu endereço às autoridades competentes. Reside à Rua da Democracia n° 1, em Saransk. Sem brincadeira.

O ator acaba de desembarcar em Grojny, na Tchetchênia, para começar a rodar Turquoise, seu novo filme.

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Azeite «do bom»
Mesas de restaurantes europeus costumam servir de morada permanente a uma cestinha meio ensebada onde se alojam o sal, a pimenta, o tempero em pó e a indefectível garrafinha de azeite. Até restaurantes «de bandeja» ― semelhantes àqueles que no Brasil são chamados «por quilo» ― exibem a cesta.Cesta condimentos 2

Como Big Brother, a União Europeia cuida da saúde de seus súditos. Os europeus podem dormir tranquilos, que seus interesses estão em boas mãos. Acaba de ser editado um novo regulamento visando à proteção da saúde dos habitantes.

A partir de 1° de janeiro de 2014, os europeus dirão adeus àquelas garrafinhas bojudas que, raramente lavadas, eram preenchidas de azeite à medida que se iam esvaziando. A regra entra em vigor simultaneamente em todos os países-membros.

A administração da UE não quer mais ouvir falar em garrafinhas gordurosas contendo azeite de origem duvidosa. Os novos modelos terão de ser fabricados de forma a impedir a recarga. Uma vez comprados e utilizados, terão obrigatoriamente de ser descartados.

Sei não. Aqui como lá, sacumé, fatta la legge, fatta la burla(*). Já deve ter gente tentando encontrar um meio de recarregar as garrafinhas.

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Les saints de glace
Um dos espantalhos dos agricultores da Europa centro-meridional é o gelo. Não falo do frio do inverno, quando a natureza adormecida está preparada para receber neve e temperaturas glaciais. Falo das geadas de primavera.

A partir de março, a primavera faz ressurgirem brotos e flores. Em abril, a floração das árvores chega ao máximo. Cerejeiras, macieiras, pereiras, ameixeiras, abricoteiros colorem a paisagem. No começo de maio, as flores murcham, caem e dão lugar aos frutos.

Nessa época, as frutinhas são ainda pequeninas e frágeis. Uma tempestade de granizo ou um frio extemporâneo pode dar cabo delas. A preocupação maior dos agricultores é que uma geada sobrevenha e arrase com a plantação.

Desde a alta Idade Média, o povo acostumou-se a invocar a proteção dos chamados saints de glace ― santos de gelo. Trata-se de santos cuja existência é às vezes posta em dúvida, mas que figuram assim mesmo na hagiografia cristã. Implora-se a eles que intercedam junto ao Altíssimo para que não venha nenhuma geada nesse período crítico. A partir de junho, já não faz falta invocar nenhuma entidade: o perigo já está esconjurado pela força do verão.Saints de glace

Conforme o país e a região, cultuam-se diferentes santos de gelo. Na maior parte da França e da Suíça, o povo pensa em São Mamert, São Pancrácio e São Servásio, cujas festas são em 11, 12 e 13 de maio, respectivamente.

Regiões situadas mais ao norte preferem invocar santos cuja celebração ocorre alguns dias mais tarde. Ao contrário, territórios meridionais dirigem suas súplicas a santos comemorados logo no começo de maio.

A razão é simples: no norte da Europa, o perigo das geadas vai até o fim de maio, enquanto nos países mediterrâneos já praticamente desaparece no fim de abril.

Este ano, com invocação ou sem elas, a primavera ainda não se fez sentir. Os dias se alongam, é verdade. Flores já apareceram, já se foram, pássaros já procriaram. Mas o sol ainda não apareceu. Chove diariamente. A previsão é de fraca queda de neve sexta-feira 24 de maio, coisa que não se vê há muitas décadas.

Já não se fazem mais santos de gelo como antigamente. Ou será que o povo se descuidou e deixou de invocá-los?

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(*) Nem bem foi feita a lei, já se inventa a maneira de burlá-la. Provérbio italiano.

A frase do dia – 02

“Ressalvadas as óbvias variações conjunturais, há mais semelhanças estruturais entre os modelos políticos da colônia, do Império, da República, do Estado Novo, do regime de 1964 e do governo do PT que diferenças.

O paradigma do Estado hegemônico, que no período Collor, Itamar e Fernando Henrique começou a perder substância e poder ― apesar de marcado por inconsistência, transigência e culpa ―, recebeu dos governos Lula e Dilma o sopro renovador que o reinstalou mais uma vez na sua histórica posição hegemônica em face da sociedade.”

Francisco Ferraz
in Estadão, 21 maio 2013
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Sem gritar água vai

José Horta Manzano

A cidade do Rio de Janeiro já ia para seus 300 anos de idade. Londres e Paris não estavam longe de completar o segundo milênio. No entanto, nenhuma delas contava com sistema de canalização de águas usadas. E como faziam as gentes?

Ora, é simples. No Rio de Janeiro, os dejetos eram acumulados em casa, em barricas de madeira chamadas cubos. Chegada a hora de esvaziar o tonel, um escravo levava a mercadoria para despejá-la na praia mais próxima ou nalgum córrego. Esse labor se desempenhava de preferência à noite, talvez para evitar que o cheiro nauseante assustasse eventuais passantes.Rua medieval 2

Já londrinos, parisienses e mesmo cariocas pertencentes à casta dos sem-escravo tinham de se virar sozinhos. Lavavam seus pertences em bacias e faziam suas necessidades em penicos. De manhã, abriam a janela e simplesmente atiravam a imundície na rua. Como sinal de cortesia para com eventuais passantes, gritavam antes: «Água vai!»(*). Não esqueçamos que o Rio de Janeiro contava já com alguns sobrados, o que não facilitava a vida de quem se encontrasse no momento errado no lugar errado.

As ruas, já desde a antiguidade, costumavam ter uma valeta central ou lateral ― um afundamento do calçamento de pedra. A finalidade era justamente escoar, bem ou mal, as águas servidas. O espaço público era tratado como lixeira. Sob climas tropicais, em especial, ruas e praças haviam de exalar uma abominável fedentina.

A ideia de canalizar o esgotamento doméstico foi um passo admirável. Começou, naturalmente, em Londres, centro urbano mais importante do planeta em meados do séc. XIX. De lá, espalhou-se pelo mundo.Paraty

Até cem anos atrás, o volume de lixo era relativamente baixo. Além daquilo que o esgoto canalizado podia levar, sobrava o lixo doméstico, em maior parte orgânico. Firmas e escritórios deixavam papel e papelão.

Com o inchaço das aglomerações, o volume de lixo, naturalmente, cresceu. Até os anos 1950-1960, os dejetos continuaram sendo basicamente constituídos de restos de comida e de papel. Isso favoreceu o aparecimento da figura do catador de papel, ofício exercido ainda hoje. Dos anos 60 para cá, a composição dos detritos foi-se diversificando. Com a irrupção dos diferentes materiais plásticos, já não se encontra mais lixo como antigamente.Rua medieval 3

Hoje em dia, o plástico ocupa lugar preponderante. O metal, praticamente inexistente no lixo antigo, aparece agora aos montes, usado que é para acondicionar bebidas várias.

Países mais adiantados se deram conta de que os hábitos da população tinham de ser modificados. Sete bilhões de humanos produzem milhares de toneladas diárias de lixo, em boa parte reaproveitável. Reciclável, sim, mas desde que se respeitem normas básicas. Lixo orgânico não pode estar misturado com material plástico nem com metais. Papel é um mundo à parte. Vidro, então, não combina com nada. Como fazer?

Alemanha e nações escandinavas, entre outras, já tomaram sua decisão há pelo menos 20 anos: a triagem tem de começar em casa. É muito mais fácil separar na origem do que esperar que esteja tudo misturado, melado e emporcalhado.

Hoje em dia, cidadãos de vários países ― entre os quais os suíços ― já aprenderam: selecionam os detritos antes de descartá-los. Chega-se a ter 7 ou 8 recipientes em casa, cada um para um tipo de lixo. Em seguida, os recipientes são esvaziados em caçambas específicas. O lixo orgânico será transformado em adubo. Os metais, o plástico, o vidro, o papel retornarão ao ciclo de fabricação de onde saíram. É questão de bom-senso.

Anuncia-se estes dias que o senhor Haddad, prefeito da mais populosa aglomeração brasileira, anda implementando o aperfeiçoamento das megacentrais de triagem de material reciclável. Pretende dar cursos profissionais a catadores de papel. Até empréstimo do BNDES está sendo pleiteado para essa finalidade. Veja o Estadão e O Globo.Rua medieval 1

Por mais que a sorte dos catadores de papel possa condoer nossos corações, somos obrigados a admitir que é ofício em via de extinção. Desapareceram os acendedores de lampião a gás, os amoladores de faca, os motorneiros de bonde, os funileiros que consertavam panelas, os escreventes de feira livre. Os catadores de papel desaparecerão também, que tenham ou não seguido cursos de capacitação.

Ao persistir na opção atual, que deixa a triagem do lixo a cargo do poder público, o prefeito de São Paulo não está prestando um favor à população. Como é habitual nos políticos brasileiros que o têm apadrinhado, o senhor Haddad demonstra não dispor da visão que se espera de um estadista. Afaga os catadores de papel e vai empurrando o resto com a barriga. As gerações futuras que se virem.

É, o fruto nunca cai muito longe da árvore.Interligne 05

(*) A expressão sem dizer água vai (ou sem gritar água vai) permanece até hoje na língua. É usada quando alguém comete um ato bruscamente, sem pré-aviso. Corresponde exatamente à expressão francesa sans crier gare e à espanhola sin decir agua va.

L’inutile precauzione

José Horta Manzano

Na época em que Gioacchino Rossini (1792-1868) compôs seu Barbiere di Siviglia, ainda era comum que livros e óperas recebessem não somente um título, mas também um subtítulo. Este último era em geral mais longo e costumava ser mais explícito que o principal.

O título original do libreto do Barbiere é Almaviva ossia l’inutile precauzione ― Almaviva, ou seja, a precaução inútil.

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Segundo o Houaiss, doutor honoris causa «é título laudatório e homenageante, conferido a pessoa sem que esta tenha passado por quaisquer exames ou concursos». Em palavras mais chãs, é badalação. É como dar um agradozinho de Natal ao porteiro do prédio. Não vem necessariamente do coração, mas, nunca se sabe, pode-se até amanhã precisar dele.

O Lula andou passeando pela Argentina para acrescentar mais uma meia dúzia dessas medalhas de chocolate à sua já extensa coleção. Enquanto isso, as consequências nefastas dos erros cometidos por ele e por seus companheiros desde que assumiram as rédeas do País se tornam dia a dia mais evidentes.

Expressões como emergente, potência, Bric, G20, tão em voga até um ou dois anos atrás, andam rareando na linguagem atual.

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Entre as ideias fixas de nosso messias, sobressai a inamovível obsessão por congregar os países vizinhos numa espécie de Confederação do Equador versão 2.0. Países desafortunados de outros quadrantes também são bem-vindos. O objetivo talvez seja o de marcar a História como fundador de um novo Império.

No entanto, o mundo gira e, nessas voltas, a paisagem vai mudando. O fato é que a mania de grandeza de nosso líder tem sido vítima de reveses acachapantes.

Quando ele tentou se meter no meio dos briguentos do Oriente Médio, os contendores deixaram bem claro que não o tinham chamado e que não precisavam dele ― sabiam brigar sozinhos e preferiam que assim continuasse.

O baixinho maluco do Irã, além de não ter ainda conseguido fazer sua bomba, enfrenta contestação crescente. Do jeito que vão as coisas, não deve continuar na presidência de seu país por muito tempo. Será um companheiro a menos.

O bigodudo de Honduras, aquele que, com a complacência do Planalto, transformou a embaixada do Brasil em comitê de campanha, acabou deixando seu país com o rabo entre as pernas. Para nunca mais voltar.Barbiere di Siviglia libretto

Na Venezuela, o líder bolivariano acabou involuntariamente seguindo o conselho que lhe havia dado alguns anos antes um irritado D. Juan Carlos I da Espanha: se calló. O sucessor, além de bufão, é ainda mais destrambelhado que o original. Anda proclamando, a quem interessar possa, que sabe quem são os que não votaram nele. Com nome e endereço. Coisa de desequilibrado acuado.

Sobrou doña Cristina Fernández de Kirchner. Na falta de uma reedição da grandiosa Confederação do Equador, uma diminuta Confederação Platina podia até quebrar um galho. A coisa anda feia pros lados de nossos hermanos, mas, para quem cortejou até ditadores africanos, a Argentina é de bom tamanho. Vantagem adicional: ninguém corre o risco de terminar fuzilado como Frei Caneca.

Precavido, o Lula anunciou que anda rezando para que nossa presidenta se entenda bem com sua homóloga portenha. Como no Barbeiro de Sevilha, é precaução inútil. Não vai dar certo. Dois bicudos não se beijam. Tirando a corrupção generalizada, o Brasil e a Argentina pouco têm em comum. A experiência tem mostrado que uma associação dos dois países, além de contranatural, é contraproducente.

A imaginação de nosso líder anda fértil demais. Um abraço de Cristina equivale ao de um náufrago. Melhor não aceitar, sob risco de afundarem as duas.

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Lembrete
Não consta que alguma universidade brasileira tenha agraciado Sepp Blatter, presidente da Fifa, com o diploma de doutor honoris causa. Que não seja por isso! Os vereadores paulistanos cuidaram do assunto. Em nome de todos os habitantes da metrópole, conferiram ao mandachuva da nobre e imaculada entidade o título de cidadão paulistano.

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Miséria-zero

José Horta Manzano

Às vezes se ouve dizer que esta ou aquela estatística «foi manipulada». Está aí uma afirmação que não faz muito sentido. Em princípio, todas as estatísticas são manipuladas.

Se queremos mostrar que a progressão de um determinado número foi forte, basta iniciar a contagem no momento em que estava mais baixo. Se, ao contário, quisermos demonstrar que o mesmo número está beirando a estagnação, faremos nossa estatística partir do momento em que ele esteve mais elevado.

Curiosamente, a própria palavra estatística é uma invenção, uma criação artificial relativamente recente. Aparece na língua portuguesa, importada do francês, no começo do séc. XIX. A palavra francesa era uma adaptação do alemão Statistik, termo forjado pelo economista prussiano Gottfried Achenwall (1719-1772). Este último se tinha baseado no italiano statista, homem de Estado. Para Achenwall, a estatística reunia todo o conhecimento que um estadista deveria possuir.

O Brasil cresceu? Cresceu muito? Cresceu pouco? Depende. Se considerarmos o século XX inteiro, do advento da República até a atualidade, as estatísticas demonstrarão que o Brasil foi um dos países que mais cresceram em todo o planeta. Se tomarmos unicamente os últimos três anos, constataremos que o crescimento do País se aproxima da estagnação. Cada um escolhe os parâmetros que lhe interessam a fim de provar o que quiser.

Crédito: Folha de São Paulo

Crédito: Folha de São Paulo

No entanto, há realidades que não precisam de estatística para serem constatadas. Quando um pobre tem fome, tem fome. Embora as estatísticas demonstrem que ele está muito menos pobre do que estava alguns anos atrás, o infeliz continua com fome. Ninguém se alimenta de estatísticas.

A Folha de São Paulo de 19 de maio traz um artigo esclarecedor, assinado por João Carlos Magalhães. Demonstra, com clareza, que basta mudar um pequeno parâmetro para alterar o resultado do cômputo da miséria nacional.

Vale a pena dar uma olhada. A erradicação da miséria ainda está muito longe de ser alcançada. Não se atinge o estado de miséria-zero pelo simples condão da varinha mágica de presidentes. Nem de presidentas.

Do it yourself

José Horta Manzano

Você sabia?

Tudo começou com um menino esperto, curioso e observador. Era um negociante nato. Desde criança sabia que queria trabalhar por conta própria.

Dedicou-se ao ramo de móveis semiprontos, daqueles que o freguês mesmo monta em casa. A partir de sua Suécia natal, criou a Ikea, um dos grandes conglomerados do planeta. Pouco a pouco, foram sendo acrescentados outros artigos ao sortimento. Atualmente, vendem todos os utensílios e accessórios de que uma casa precisa.

O menino sueco, hoje com 87 anos, chama-se Ingvar Kamprad. Pertence ao restrito clube de bilionários confirmados por revistas especializadas. Vive na Suíça.

Sua rede de lojas, ainda desconhecida no Brasil, está implantada em 43 países. Anualmente, editam um catálogo de vendas. É um verdadeiro livro, espesso, em papel couchê, muito bem ilustrado. Distribuído gratuitamente de casa em casa, sua tiragem total é de 200 milhões de exemplares. Sai em 27 diferentes línguas. Dizem que nem a Bíblia é impressa em volume tão impressionante a cada ano.

Se alguém estiver interessado em conhecer a história do grupo, vai encontrá-la em português aqui.

A Ikea tem por norma dar a seus produtos nomes suecos. Sempre foi assim e, pelo jeito, ainda continuará por muito tempo. Para quem não conhece as línguas escandinavas, certos nomes parecem às vezes impronunciáveis. Já outros soam cômicos para nossos ouvidos. Dou-lhes aqui abaixo uma seleção dos que me pareceram mais engraçados.

Caso alguém pense que estou brincando, que consulte a página original da firma. Aqui.

Clique nas ilustrações para ampliar

Ik-Abat-jour

Ik-Arandela

Ik-Areia colorida

Ik-Baixela

Ik-Brinquedos

Ik-Cabide que volta

Ik-Cadeira para visitas

Ik-Caixa para geladeira

Ik-Colchonete

Ik-Copo

Ik-Cortina

Ik-Escrivaninha boba

Ik-Guarda-sol

Ik-Lata de lixo

Ik-Lustre

Ik-Mesa e cadeiras

Ik-Porta-retrato

Ik-Pregador

Ik-Tigelas para criança

Ik-Travesseiro

Imigração

José Horta Manzano

Os mais antigos hão de se lembrar. Quando éramos crianças, o Brasil andava cheio de estrangeiros. Nas grandes aglomerações, era muito comum encontrar pessoas, às vezes jovens, às vezes nem tanto, falando com sotaque.

Num tempo sem internet, o Brasil chegou a ter vários diários impressos em língua estrangeira. Havia jornais em alemão, em italiano, em espanhol, em japonês. Poucos subsistem e suas perspectivas de sobrevivência não são animadoras.

Nossas estatísticas nunca foram lá extremamente rigorosas, mas as estimativas convergem para um total de 6 milhões de imigrantes aportados entre 1870 e 2000.

Houve momentos, na década de 1920, em que metade da população da cidade de São Paulo era constituída de imigrantes, 50% dos quais eram italianos. Sim, senhores, o Brasil já foi um país cosmopolita.

Crédito: Editora Abril

Crédito: Editora Abril

A Folha de São Paulo deste 17 de maio traz uma reportagem interessante sobre o abrandamento das formalidades atualmente exigidas de um candidato à imigração. É natural que desapertem o gargalo. Já não são muitos os que querem se estabelecer. Se, ainda por cima, o caminho for pedregoso, muitos vão desistir.

O último recenseamento mostra que, ao contrário do que geralmente acreditamos, a população estrangeira vem diminuindo. Decresceu entre 2000 e 2010, enquanto a população do país continuava a crescer.

Parece que o antigo país de imigração já não exerce a mesma atração de antes. Uma vista d’olhos basta para constatar:

   – a média de imigrantes na população mundial é de 3%

   – a média de imigrantes na população dos EUA é de 15%

   – a média de imigrantes na população da América Latina (excluído o Brasil) é de 1,5%

   – a média de imigrantes na população do Brasil é de magros 0,3%.

O mundo mudou. Noventa e cinco porcento das autorizações de permanência concedidas atualmente pelo Brasil a estrangeiros são temporárias. Gente que vem por um tempo limitado, na maior parte dos casos a serviço de uma firma. Somente 5% das autorizações são concedidas em caráter permanente.

Já não se fazem mais imigrantes como antigamente…

Nacionalidade

José Horta Manzano

Você sabia?

Os primeiros europeus começaram a se estabelecer nas Américas por volta de 500 anos atrás. Nos primeiros tempos, brotaram apenas núcleos de povoamento, um aqui, outro ali, mais ou menos estáveis, sujeitos a desaparecer subitamente. Bastava uma epidemia, um ataque de indígenas, uma invasão de piratas ou de corsários para apagar a colônia do mapa.

Naqueles tempos recuados, vigorava o sábio e ancestral costume segundo o qual filho de peixe peixinho é. As colônias fundadas no continente eram mera extensão dos povos europeus que as tinham criado. Assim, um cidadão da Nova Inglaterra era tão britânico quanto um legítimo londrino. Um português nascido na Bahia, ainda que de terceira ou quarta geração, continuava sendo tão lusitano quanto se tivesse visto a luz em Viana do Castelo ou em Freixo de Espada à Cinta.Passeport français

As colônias britânicas foram as primeiras a se proclamarem independentes da metrópole europeia. É bem verdade que a França, por razões de rivalidade com a Inglaterra, deu aos colonos uma mãozinha mais que bem-vinda. Mas essa já é uma outra história.

Os ingleses não apreciaram nem um pouco o fato de perder a importante fonte de ganho. Espernearam durante algum tempo, mas acabaram se dobrando à realidade. A separação era sem volta.

Algumas décadas mais tarde, tanto a América portuguesa quanto a espanhola espertaram e se dispuseram a seguir o exemplo dos colonos britânicos. O povoamento ibérico era, no entanto, geograficamente extenso, esparso. E as comunicações entre os diversos núcleos era precária, quase inexistente. Esse fator inviabilizava uma ação concertada. As regiões colonizadas foram-se despedindo da metrópole, cada uma por sua conta. Pelos anos 1825, o continente já contava uma vintena de novos países soberanos.

Junto com a independência, apareceu a questão da nacionalidade. Se fosse mantida a tradicional regra da lei do sangue, a jus sanguinis, as novas nações estariam fadadas a ser povoadas por estrangeiros até o fim dos tempos. Com efeito, pela lei do sangue, filho de inglês é inglês, filho de espanhol é espanhol, e assim por diante. Somente a naturalização, ou seja, o abandono da nacionalidade herdada e a aquisição de uma nova poderia resolver o problema.

Mas os tempos eram outros. Poucos eram alfabetizados. Não se podia exigir que cada vivente enfrentasse os trâmites burocráticos inerentes a um procedimento de naturalização. Os habitantes da Nova Inglaterra encontraram solução bem mais simples para contornar o problema da naturalização maciça: instauraram a lei do solo, a jus soli. Pela nova norma, bastava nascer no território para adquirir automaticamente a nacionalidade do país. Para problemas iguais, soluções iguais. Todos os novos países americanos adotaram o mesmo princípio.

Passeport russe

Tão acostumados estamos com esse sistema, que não nos damos conta de que é criação relativamente recente. E tem mais: a instituição da lei do solo é praticamente restrita aos países americanos. Fora do continente, poucas são as nações que seguem essa doutrina. Por outro lado, todos os países do mundo mantêm, naturalmente, a lei do sangue para seus cidadãos.

Exemplificando, podemos dizer que, se um casal brasileiro tiver um filho na Alemanha, a criança não será alemã, dado que a legislação daquele país não conhece a lei do solo. O pequerrucho será necessariamente brasileiro. Brasileiro nato, ou seja, brasileiro desde o nascimento. Se assim não fosse, o infeliz não teria nacionalidade, seria apátrida.

Num exemplo inverso, o filho de um casal alemão nascido no Brasil terá, desde o primeiro choro, dupla nacionalidade: a alemã, pela lei do sangue; e a brasileira, pela lei do solo.

Portanto, todos os filhos de brasileiros nascidos no exterior são brasileiros natos. Se o parto ocorrer num dos (raros) países que reconhecem também a lei do solo ― os países americanos, em princípio ― a criança terá nacionalidade dupla, a brasileira e a do país de nascimento.

A jus sanguinis (lei do sangue) é universal. Afinal, gato que nasce no forno não é biscoito. A jus soli (lei do solo) é a exceção instituída para resolver a questão da cidadania nas antigas colônias do continente americano.

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Foi anunciado que uma estrela da tevê brasileira, Xuxa Meneghel, recebeu seu passaporte italiano. A Folha de São Paulo afirmou que ela «se tornou» cidadã italiana. O site Terra foi ainda mais enfático. Falou em «conquista» da cidadania peninsular. Ambos estão mal informados.

Xuxa, como todos os «oriundi», já nasceu com duas nacionalidades. Podia até nem saber disso quando era mais jovem ― provavelmente não sabia mesmo ― mas o fato de uma norma de direito ser desconhecida não anula sua validade.

O que a estrela fez foi apenas requerer seu documento de identidade italiana, papel ao qual sempre teve direito, ainda que não o possuísse antes.

Fato semelhante ocorreu com uma antiga primeira-dama do País alguns anos atrás. Muitos se escandalizaram porque aquela senhora «requereu» sua nacionalidade estrangeira. Nada mais falso. A nacionalidade ela sempre teve. O que pegou muito mal foi ela ter aceito, simploriamente, que lhe entregassem o passaporte enquanto o marido presidia o País. Podia ter esperado até que ele terminasse o mandato.

Enfim, bons modos não se compram, não se vendem, não se alugam, não se emprestam. Quem tem, tem. Quem não tem está condenado a passar a vida dando vexame.