A Casa do Povo

José Horta Manzano

Na mesma coluna ‒ Direto da Fonte ‒, o Estadão de 11 dez° dá duas notícias. Uma pouco tem que ver com a outra. Enquanto uma era pra lá de previsível, a outra surpreende. Vamos aos fatos.

Pra lá de previsível
A jornalista informa os resultados de pesquisa levada a cabo pelo Ipsos, respeitado instituto francês de sondagem de opinião. As mesmas perguntas foram feitas a habitantes de 25 países. Queriam saber quais eram as lembranças que o ano de 2016 havia deixado. Boas? Más? Esperançosas?

Dezoito mil pessoas deram opinião, umas 700 respostas por país. O Brasil, pelo menos nessa pesquisa, tirou o primeiro lugar. Foi o país onde o ano findo deixou as piores recordações. Nada menos que 67% dos entrevistados sentiram-se felizes ao virar a última página da folhinha. Em miúdos: de cada 3 brasileiros, 2 respiraram aliviados no final do ano. Uff, acabou!

brasilia-6Surpreendente
O senador Álvaro Dias, paulista que já foi deputado e governador pelo Estado do Paraná, apresentou projeto de minirreforma política. Em sua visão, o número de deputados federais, atualmente fixado em 513, deveria ser reduzido para 405. A notícia não explica de onde saiu esse número. Por que não 404 ou 406?

Até aí, tirando os próprios interessados e numerosos assessores, acredito que estaríamos todos de acordo. Menos eleitos = menos gastos = eficiência turbinada. O nó vem a seguir.

O senador inclui no projeto um máximo e um mínimo de eleitos por Estado. Cada estado, independentemente da população, teria um máximo de 50 representantes. Na outra ponta, nenhum estado, por mais deserto que fosse, teria menos de 4 eleitos. No meu entender, essa fórmula consagra um erro de concepção.

Por uma dessas infelicidades do destino, a Constituição de 1988 estabeleceu que nenhum estado poderia eleger mais que 70 deputados federais nem menos que 8. A intenção declarada era evitar que estados mais populosos predominassem na cena política nacional. Dito assim, parece até coerente. Mas não é.

brasilia-7Nosso sistema representativo é bicameral. O Senado representa os estados, enquanto a Câmara representa a população. Todos os estados, grandes ou pequenos, são representados por três senadores. Tanto o Acre quanto Minas Gerais têm três eleitos. Assim, as unidades federativas têm, no Senado, poder idêntico.

Já a Câmara é a Casa do Povo: representa os habitantes. Em princípio, cada um dos deputados deveria corresponder a um lote populacional equivalente, isto é, deveria trazer a voz de cerca de 400 mil brasileiros. Não é o que se passa. Em obediência aos dispositivos constitucionais, o povo que habita em estados populosos sofre de sub-representação. Já os habitantes de estados menos populosos gozam de super-representação.

O projeto do senador perpetua essa distorção. O corte no número de deputados diminui as despesas, mas não corrige a desigualdade. Para mim, é solução capenga.

A falta que a lei faz

José Horta Manzano

Em matéria de aquisição e perda de nacionalidade, o Brasil está engatinhando, com legislação opaca e contraditória. Até certo ponto, dá pra entender. Até os anos 1950, enquanto os que entravam eram bem mais numerosos que os que saíam, o problema não existia. As regras para aquisição da nacionalidade brasileira eram claras, e o procedimento, simples e rápido. Terminada a grande vaga de imigração, o movimento se neutralizou entre os anos 50 e os 80. Imigrantes pararam de chegar em massa e brasileiros ainda eram raros a deixar o país.

Passaporte 1A partir da década de 1990, o pêndulo se torceu. Mais e mais brasileiros passaram a emigrar, enquanto o fluxo de chegada de estrangeiros se esgotou de vez. Casos de dupla cidadania, antes esporádicos, se multiplicaram. Brasileiros que detinham, por herança, outra nacionalidade não representavam problema. O nó só apertou quando os primeiros conterrâneos passaram a adquirir, por naturalização, uma segunda nacionalidade.

Que fazer? A Constituição de 1988 ‒ promulgada antes da grande debandada ‒ é curta e grossa. O Artigo n°2 estipula a perda da nacionalidade de todo brasileiro que adquirir outra nacionalidade por naturalização voluntária. Mais claro, impossível. Dado que não é comum alguém se naturalizar por obrigação, a Constituição proíbe, na prática, que brasileiro se naturalize. A pena é a perda da cidadania originária.

A massa de expatriados passou a sentir o problema na carne. O dilema apareceu em inúmeros casais, mistos ou não, com filhos ou sem. Por razões várias, quem vive no exterior pode, em algum momento, julgar que é conveniente adquirir a nacionalidade local. Seja por razões familiares, profissionais ou de simples convívio social.

Passaporte brasileiro 2Anos atrás, conheci brasileiros que, ao adquirir nacionalidade estrangeira, deixaram de ser brasileiros. Foram casos dramáticos que atingiram em cheio a personalidade. O naturalizado se sentia execrado, banido pela pátria. Uma situação penosa.

Passados poucos anos, o volume de casos dramáticos cresceu a ponto de forçar a promulgação de uma emenda constitucional de revisão. Foi em 1994. A solução, infelizmente, veio meio capenga. A lei continuou a entender que todo brasileiro que ousasse adquirir nacionalidade estrangeira continuava a perder a cidadania originária. Só não a perderia caso a naturalização fosse condição de permanência ou para exercício de direitos civis no território estrangeiro.

Passaporte brasileiroAo emigrar, os brasileiros costumam escolher países civilizados. Ora, país civilizado não exige naturalização de estrangeiros para outorgar-lhes permanência nem para estender-lhes o gozo de direitos civis. (Sem contar o fato de o entendimento do que sejam ‘direitos civis’ variar de um país a outro.) Em suma, com emenda constitucional ou sem ela, continuou tudo como dantes no quartel de Abrantes.

O mais incrível é que, passados 26 anos, ainda vivemos sob essa regulamentação dúbia. Ao adquirir nacionalidade estrangeira, seja por que motivo for, o brasileiro se insere numa condição incômoda, incerta, precária. Sua «brasilidade» pode ser contestada e até mesmo cassada(!) por um tribunal de justiça.

É urgente uma mudança que torne clara a legislação. Se pode, pode. Se não pode, não pode. Mas que fique claro.

Interligne 18h

Uma decisão tomada ontem pelo STF escancara a falta que faz uma legislação clara. É verdade que se tratou de julgamento fora do comum, envolvendo até acusação de homicídio. Não obstante, nada justifica que uma cidadã brasileira, ainda que acusada de crime, não se possa beneficiar da mesma lei que favorece outros nacionais. Pau que dá em Chico deveria dar também em Francisco. Trata-se de um caso meio cabeludo. Quem não ficou a par, pode ler aqui.

Aqui vivo, aqui voto

José Horta Manzano

Urna 7A notícia, de escasso interesse para a imensa maioria, foi dada pelo Estadão, mas passou praticamente despercebida.

Em janeiro passado, quando sua aura ainda guardava um restinho de brilho, o Lula deu uma passeada numa feira típica promovida pela comunidade boliviana. Subiu ao palanque, discursou, e, como ainda costumava acontecer naquela época, foi afagado pelo mestre de cerimônias da quermesse. Foi agraciado com epítetos tais como «migrante mais famoso do Brasil» e «pai da integração social da América Latina(!)». Pra você ver.

Entre uma empanada salteña e outra, um atônito Lula ouviu um coro com inusitada reivindicação: «Aquí vivo, aquí voto!». Não precisou traduzir. Nesse momento, um membro da corte que acompanhava o antigo presidente precipitou-se ao microfone para reafirmar que, se a integração das Américas não avançava, a culpa era «do preconceito das elites». Naturalmente.

Urna 5O Lula comeu empanadas, aceitou mais algumas ‘pra viagem’, foi-se embora. E tudo ficou por isso mesmo.

Por duas razões, o pedido dos bolivianos caiu no vazio. Primeiro, porque foi feito a um personagem já arredado do poder. Segundo, porque, com tantas questões mais prementes, o assunto periga permanecer em banho-maria por décadas.

Pois este blogueiro – que é do ramo – ficou sensibilizado com o assunto. Concordo com os bolivianos. No meu entender, é justo e desejável que estrangeiros votem no país em que se tiverem estabelecido.

Mas, atenção! Não é ir chegando e já se ir tornando eleitor – o caminho não é esse. O direito deveria ser concedido a estrangeiros estabelecidos há um determinado número de anos, cinco ou sete, por exemplo. Teriam também de provar não ter nome sujo na praça, nem nas finanças, nem na justiça.

urna 4Governantes são escolhidos para conduzir uma comunidade, não uma nacionalidade. É compreensível e desejável que estrangeiros estabelecidos há muitos anos no Brasil participem da escolha de governantes. É excelente empurrão para a integração.

Por que não se naturalizam então? – pode algum distinto leitor se perguntar. A Constituição de 1988, dita ‘cidadã’, determina que a naturalização somente seja concedida a estrangeiros que tenham vivido pelo menos 15 anos no Brasil. É muito tempo, daí a utilidade de expandir o direito de voto a estrangeiros que preencham as condições determinadas em lei.

Entra, sortudo

Dad Squarisi (*)

Quem quer? Nove em cada 10 brasileiros levantam a mão. Querem entrar no serviço público. A Constituição de 88 lhes deu um senhor estímulo. Tornou QIs & companhia apadrinhada práticas obsoletas como carteiradas e crachás de autoridade. A única porta de acesso é a seleção aberta a todos os interessados. Só os melhores entram.

A novidade despertou ambições. Criou a indústria dos concursos. Cursos preparatórios enriquecem empresários de norte a sul do país. Não são poucos os candidatos que abandonam o emprego e se dedicam aos estudos em tempo integral. Viraram profissionais. Concursandos passaram a ser chamados de concurseiros.

Concurseiro

Concurseiro

Nada mau. O Estado precisa de profissionais qualificados pra responder aos desafios de uma administração cada vez mais complexa. Recrutá-los com base na meritocracia, porém, tem sido tarefa turbulenta. O pomo da discórdia reside no processo de seleção. Falta seriedade e sobra amadorismo em entidades que organizam o certame.

Falhas em editais, organização e aplicação das provas constituem regra. Com frequência batem à porta da polícia e acabam na Justiça. O mais grave, porém, é a qualidade da cobrança. Qual a relevância, em concurso para nutricionista, saber o estado de origem da Luiza, garota que teve 15 minutos de fama na internet? Ou a frase final do livro sobre os affairs de Bill Clinton na Casa Branca?

As questões tropeçam em conteúdo e forma. Malformuladas, trombam de frente com a clareza e atropelam vírgulas, concordâncias, regências, colocações. A correção não fica atrás. Enchergar, trousse e rasoavel fazem a festa com receitas de miojo e nós pesca o peixe . Resultado: passa o sortudo. O injustiçado chora. Faz companhia ao contribuinte, que paga e não leva. Reclamar ao bispo? Qual o quê! Melhor engrossar o grito das ruas.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura.

Passo tímido, pacote flácido

José Horta Manzano

Dia 13 de agosto — que não era sexta-feira —, a OAB passou às mãos da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal seu projeto de reforma política. É um projeto tímido, que está mais para gambiarra que para reforma. Assim mesmo, poucos acreditam que venha a ser debatido e sacramentado por suas excelências a tempo de valer para as eleições de 2014.

Palhaço

Palhaço

A reforma aventada tem, pelo menos, o mérito de existir. É mais uma prova de que a sociedade pensante brasileira não está acomodada, muito menos satisfeita, com o funcionamento da política no País.

A OAB garante que, uma vez introduzida essa modificação, desaparecerá o chamado «efeito Tiririca». Essa incongruência, que faz que meia dúzia de candidatos totalmente desconhecidos sejam eleitos a reboque dos votos excedentários recebidos por um candidato estrela, não é novidade no País. Antes do nobre palhaço, Clodovil, Enéas e outros personagens em voga já exerceram o mesmíssimo papel. Essas figurinhas carimbadas são, aliás, ultracobiçadas. E não só por partidos nanicos.

É uma distorção flagrante do sistema de representação popular, mas não é a única nem a pior. Como já tive ocasião de comentar neste espaço algumas semanas atrás (post Época de mudanças), algumas disposições da Constituição outorgada em 1988 traem o princípio basilar de que todos os brasileiros são iguais perante a lei. A limitação do número máximo (70) e do número minimo (8) de deputados que cada Estado tem direito de mandar a Brasília desvirtua a isonomia entre os eleitores. Na hora de escolher seus representantes, os brasileiros não são todos iguais. O voto de um roraimense vale pelo de dez paulistas. É disfunção tão flagrante, que fica difícil captar por que a Assembleia Constituinte de 1988 terá introduzido esse dispositivo.

Palhaço

Palhaço

Uma outra mudança que, mais dia, menos dia, terá de ser feita é a introdução do voto distrital. O Brasil tem Estados enormes e pouco populosos. Tem também Estados menores, mas densamente povoados. No sistema atual, cada Estado representa um distrito. Não é a melhor maneira de proceder. No final, não sendo ligado a nenhum distrito, a nenhuma região particular de seu Estado, o deputado não se sente na obrigação de representar ninguém em especial. Como corolário, o eleitor não se sente representado por nenhum deputado em particular. Aliás, poucos são os eleitores que se lembram em quem votaram. No voto distrital, o País é dividido em distritos, cada um com população equivalente. E cada distrito elege o seu deputado, em votação majoritária de dois turnos.

Para corrigir de verdade, uma nova Constituição teria de ser escrita. Mas isso, além de ser demorado e trabalhoso, incomoda muita gente. Não vai ser fácil chegar lá. Vamos ter de nos contentar com puxadinhos, como esse que a OAB está propondo. Que remédio?

Cá entre nós: no duro mesmo, o «efeito Tiririca» é produto da ignorância de imensos contingentes de nossa maltratada população. É pela instrução pública que as reformas deviam começar.