Estamos com a maioria

José Horta Manzano

Mais um Datafolha saiu. Parece que essa turma trabalha de verdade. Desta vez, quiseram saber o que pensa o povo brasileiro da comemoração do 31 de março, dia que já foi “da Revolução Gloriosa” mas, decaindo com o tempo, tornou-se “do Golpe Militar”. Nenhuma farsa dura pra sempre; com o passar do tempo, arrancam-se máscaras e descobrem-se fedores.

A quota de 63% de brasileiros que estão de acordo para desprezar o 31 de março me surpreende um pouco. Imaginava que todos os integrantes da seita bolsonárica fossem devotos da militarização do Estado brasileiro. O resultado das últimas eleições mostrou um Brasil partido em dois. Ora, 63% está mais para 2 de cada 3 conterrâneos ansiosos para virar essa página.

O de 1964 não foi o único golpe de Estado a que se assistiu no Brasil. Nossa história está coalhada por dezenas deles. Mas tem uma coisa: só são comemorados os que deram certo e perduraram até hoje.

Um exemplo é o golpe dado em 1822 por D. Pedro, quando mandou a própria família às favas e se autoproclamou imperador. O gesto foi fantasiado de “Grito da Independência” e, com esse qualificativo, é comemorado até hoje. Foi golpe que deu certo.

Outro exemplo é o golpe dado em 1889 pelo Marechal Deodoro. A família imperial foi despachada para a Europa no primeiro barco, o governo constituído foi destituído e o regime mudou de nome. Nós nos esquecemos do golpe, mas comemoramos até hoje a “Proclamação da República”. Foi outro golpe bem sucedido.

O golpe de 1964 não deu certo. Instalou militares no poder por 21 anos, mas o poder civil acabou recuperando as rédeas. Longeva por longeva, a ditadura que se seguiu ao golpe de Vargas, em 1930, durou 15 anos, tempo pra nenhum aprendiz de ditador botar defeito.

Por que razão deveríamos santuarizar 1964, quando já esquecemos totalmente 1930? E 1977, 1955, 1924, 1918 e tantos outros golpes menos importantes, que praticamente viraram pó e foram instalados na lata do lixo da História, como se diz. Por que venerar o 31 de março?

A meu ver, falar ou deixar de falar nessa data não incita nem dissuade os militares de dar um golpe. O ex-presidente passou 4 anos inteiros a insinuar sua simpatia e seu desejo de que os militares dessem um golpe de Estado e o deixassem assumir a Presidência – o que não seria automático. Apesar da insistência, à exceção de um pequeno grupo de oficiais, os fardados não lhe deram bola e o deixaram falando sozinho.

Quanto a mim, fico com os 63% de brasileiros cansados de ouvir falar num tema que não lhes parece primordial. Os tempos mudaram. Militares já demonstraram não estar interessados em golpe. Temos tantos outros problemas, não me parece inteligente criar mais um.

Gente bem

by Alexandre Cechetto Beck (1972-) desenhista catarinense

José Horta Manzano

Uma vez, quando eu era criança, um coleguinha (ou uma coleguinha, não me lembro bem) me perguntou: “Teus pais são gente bem?”. Não sei se dei alguma resposta, o fato é que não entendi a pergunta. Nunca tinha ouvido a expressão e fiquei com vergonha de perguntar o que era.

Anos mais tarde, aprendi que gente bem são os cidadãos que pertencem à alta sociedade, à elite. São os “bem-nascidos”.Se assim for, minha resposta teria sido “Não, meus pais não pertencem à alta sociedade”.

Em 1957, a cantora Dolores Duran lançou um samba composto por Billy Blanco, bem chacoalhado, chamado Estatuto de boate. Começava assim:

Gafieira de gente bem é boate
Onde a noite esconde a bobagem que acontece
Onde o uísque lava qualquer disparate
Amanhã, um sal de fruta e a gente esquece

Faz tempo que não ouço essa expressão “gente bem”. Acho que envelheceu, foi aposentada e hoje goza de merecido repouso na gaveta do esquecimento.

Por seu lado, há outra, bem parecida, mas de significado diferente. É gente de bem. Essa, parece, surgiu durante o regime militar, lá pelos anos 1970. Incentivada sabe-se lá por quem, estigmatizava todo oponente à ditadura. Gente de bem era o cidadão ‘normal’, de bons costumes, vida regrada, se possível cristão e, sobretudo, apreciador do regime (ou, pelo menos, conformado de viver numa ‘democracia relativa’). Quem não fosse gente de bem levava, fácil fácil, o carimbo de terrorista.

Aqueles tempos sombrios passaram. Faz alguns anos, porém, um cidadão egresso das trevas decidiu reativar aquela expressão velhusca e dar-lhe uma segunda vida. A expressão é gente de bem e o cidadão, Jair Bolsonaro. Em suas falas, volta e meia o capitão soltava um “gente de bem” ou, melhor ainda, um “cidadão de bem”. O novo significado, sem surpresa, é bem próximo do que vigorava nos tempos ditatoriais: o cidadão de bem é aquele que adere à tortuosa ideologia da extrema direita ou, pelo menos, que se resigna calado.

O antigo “gente bem” passou. O “gente de bem” da ditadura também se foi. O “cidadão de bem” bolsonárico já está passando.

Tudo passa. Amanhã, um sal de fruta e a gente esquece.

Le rouge et le noir

O Capital, de Karl Marx
1a. edição – 1867

José Horta Manzano

Contava-se esta historinha nos tempos da censura que nossa ditadura militar nos impôs.

Um sargento é encarregado de vasculhar um centro estudantil e de recolher todo material subversivo. Chegando lá, deu uma olhada na estante dos livros, leu o título de cada um e estancou diante de um exemplar de “Le rouge et le noir”(*), romance do francês Stendhal, publicado em 1830.

Naquela época, diferentemente de hoje, todo cidadão com ginásio completo (escola média) tinha noções básicas de língua francesa. O sargento arregalou os olhos ao ver o livro que ostentava um título ousado. “Como é que é?”, pensou ele, “Vermelho? Só pode ser comunista.” E apreendeu o volume.

Lembrei da historieta ao ler a notícia de que a Secretaria da Educação de Santa Catarina, sem expor seus motivos, mandou recolher uma dezena de títulos das bibliotecas de escolas públicas de todo o estado. A lista das obras é tão heterogênea que parece rol de lavadeira: cuecas, cachecóis e camisas sociais, tudo se mistura lá dentro.

Entre os livros banidos há um best-seller assim como um clássico como Laranja Mecânica. Lá estão também quatro obras que, desconfio, entraram no rol por causa do título (ao estilo de Le Rouge et le Noir): Coração Satânico, Demonologistas – arquivos sobrenaturais, Exorcismo, O Diário do Diabo.

Fica a impressão de que essa proibição foi apenas balão de ensaio. Pela (falta de) lógica da amostragem, a lista integral almejada pelo governo catarinense deve ser quilométrica, capaz de esvaziar todas as bibliotecas escolares do estado.

Criar um index – um repositório de obras banidas – é ideia tão velha quanto a invenção da imprensa. Aliás, é até anterior: na Idade Média, livros manuscritos já eram condenados ao Index Librorum Prohibitorum, o elenco das obras proibidas. É que, naquele tempo, quem mandava era a Igreja. Hoje não é mais assim, mas tem gente que não foi avisada.

Nesse sentido, o governo de SC não está inventando a pólvora. Inventando, não está, mas está acendendo o estopim, manobra arriscada.

Toda proibição de obra literária é sintoma palpável de que a sociedade está descambando para o autoritarismo, ladeira traiçoeira que se desce fácil mas que dificilmente se sobe sem ajuda externa.

Povo atento e escolado, os catarinenses deveriam dar um basta curto e grosso a essa operação de solapamento da formação do espírito crítico da juventude. Que os jovens leitores sejam alertados para trechos obscuros de determinadas obras é boa decisão. Que eles sejam orientados para entender certos livros e analisá-los no contexto da época em que foram escritos é procedimento excelente. Agora, simplesmente esconder textos, como se esconde o pote de geleia dos guris menorzinhos, é medida contraproducente.

Os primeiros autos de fé promovidos pelo regime nazista na Alemanha tiveram lugar já em 1933. Todos sabem como terminou a aventura. Não convém seguir o mesmo caminho.

Um espirituoso poderia até argumentar que, finalmente, chegou o incentivo que faltava para fazer a criançada voltar a ler. De fato, tudo o que é proibido é mais saboroso…

Temos que abrir o olho, que com essas coisas não se deve brincar. Essa moda que começou banindo palavras do dicionário e agora se dedica a banir livros da biblioteca é perigosa. Não leva a bom porto.

(*) Stendhal nunca revelou a razão do título “Le rouge et le noir”. Muitas conjecturas já se fizeram. A mais aceita é a de que o vermelho simboliza o exército, enquanto o preto representa o clero.

Toda alusão ao comunismo que pudesse ser imputada a Stendhal seria anacrônica. De fato, quando Karl Marx publicou o primeiro volume de sua obra maior, “O Capital”, já fazia vinte e cinco anos que Stendhal havia falecido.

Lula… ambíguo?

O Globo, 8 jul 2023

José Horta Manzano

Li ontem um artigo que discorria sobre a relação mantida por Lula com ditaduras mundo afora, em especial com as latino-americanas. Não contesto o pensamento do autor, o que me incomoda é o título: “Lula é ambíguo com ditaduras”. Não é descrição adequada.

O dicionário esclarece que “ambíguo” é o que desperta dúvida, que admite interpretações diferentes e até contrárias. O comportamento de Lula com relação a qualquer ditadura não é nada ambíguo – é constante, claro e cristalino. Desde quando ele fundou o Foro de São Paulo, trinta anos atrás, sua posição não se moveu nem um milímetro. Todo regime ditatorial desperta sua simpatia.

Há que partir do princípio de que ditadura é ditadura, sem essa de “ditadura de esquerda” ou “ditatura de direita”. Quando se suprimem o direitos dos cidadãos a escolher seus representantes de forma justa, quando a imprensa livre é cerceada ou suprimida, quando a liberdade de ir e vir é entravada, tanto faz que o ditador se proclame de “direita” ou de “esquerda” – sempre ditadura será.

Lula nunca deu o menor sinal de ambiguidade nesse sentido. Nunca escondeu suas simpatias. Com grande desenvoltura, ele outro dia recebeu em palácio o mandachuva da Venezuela.

Ao regressar do Vaticano, pediu, com indisfarçada hipocrisia, que o ditador da Nicarágua libertasse “o bispo”, transmitindo assim um recado do papa. Digo que foi atitude hipócrita porque o mundo inteiro está sabendo que dezenas de membros do clero estão atrás das grades naquele país, todos perseguidos por serem religiosos. Lula, o falso humanista, só falou do “bispo”, com certo enfado, como se os demais não existissem.

A admiração que Luiz Inácio sente por autocratas é forte. Se ainda não foi visitar meia dúzia deles – Putin, Maduro, Ortega, os sucessores dos bondosos irmãos Castro – é porque assessores devem tê-lo retido pela manga.

Não é possível perceber ambiguidade na simpatia que nosso presidente demonstra por ditadores e autocratas em geral. Os Estados Unidos, por seu lado, são o fantasma que vem assombrando sua vida desde a juventude. A forte antipatia que Lula sente pelo grande irmão do norte é palpável, impregnada, inalienável.

Talvez seu cérebro ressentido veja, na proliferação de ditadores ao redor do mundo, uma forma de abalar o país detestado.

A cama já está feita

José Horta Manzano

Diversos analistas já deram o sinal de alerta para o perigo que nos espreita. Por razões que ainda estão por ser estudadas, os eleitores brasileiros abriram as portas do Congresso para ignorantes, incapazes e extremistas.

A partir daí, que Bolsonaro seja reeleito ou não, essa gente já detém a maioria no Senado e, mediante alguns poucos acertos, será majoritária também na Câmara.

Essa situação é como um trem engatado, que roda em alta velocidade em direção à autocracia (= governo de uma pessoa só). Como todos sabem, trem segue os trilhos, reto, sem olhar pros lados.

A não reeleição do capitão é a derradeira esperança de evitar o pior. É verdade que o Congresso continuará tal e qual, que não dá mais pra mudar. Mas pelo menos não teremos, no topo do Executivo, um desequilibrado metido a Mussolini tropical. Além do quê, um gelatinoso Centrão sempre acaba se acomodando aos caprichos do Presidente, seja ele quem for.

Estes dias, diversos analistas têm escrito sobre esse risco. Juntei alguns dos artigos e deixo aqui à disposição da graciosa leitora e do distinto leitor. A cama já está feita. Só falta o cafajeste se apossar dela.

É bom tomar consciência do triste destino que nos espera. O voto de cada um conta. Não deixe de votar e… vote bem!

 

 

 

 

 

 

Reflexões – 1

José Horta Manzano

A prestação de solidariedade que Bolsonaro fez à Rússia não me sai da cabeça. Ao fazer a jura de submissão diante de Putin, ele esboçou uma reverência, daquelas que se costumam reservar para a rainha da Inglaterra.

Porque que razão ele pronunciou a frase da “solidariedade”, visivelmente ensaiada? Vamos ver.

Putin é o modelo ideal no projeto que o capitão rumina para si. Para Bolsonaro versão 2022, Trump é o passado; o presente se chama Putin. O dirigente russo é a norma, a referência de tudo o que o capitão gostaria de ser. E de ter!

O ditador russo reina sozinho. Os outros poderes são marionetes, todos controlados por ele. O Legislativo vota as leis que Putin determinar. O Judiciário põe na cadeia quem Putin mandar.

A imprensa livre desapareceu. A Nôvaia Gaziêta, último jornal livre, fechou algumas semanas atrás. Adversários políticos e oponentes ao regime desapareceram: ou foram envenenados ou estão passando alguns anos num simpático campo de reeducação na Sibéria.

A tevê aberta é toda estatal e só conta ao povão a verdade putiniana. Um cidadão brasileiro comum está mais bem informado sobre o que ocorre na Ucrânia do que um cidadão russo comum.

É com esse paraíso que o capitão sonha: ter o poder absoluto, como Putin. E também possuir bilhões de dólares, evidentemente. Igualzinho ao autocrata russo.

Mas nossa realidade tupiniquim é diferente. Na minha opinião, a probabilidade de o capitão realizar seu sonho está próxima de zero. Nem mesmo se, por desgraça, fosse reeleito.

Não é angelismo da minha parte. É que nosso andar de cima é amebóide, uma enguia escorregosa que ninguém consegue apreender. Na minha concepção de “andar de cima”, ponho todos: parlamentares, magistrados, militares de alta patente e civis de alta estatura. Todos estão de olho no dinheiro, sim, mas o instinto de sobrevivência fala mais alto. Todos sabem que, com um Bolsonaro ditador, correriam perigo de ir parar atrás das grades.

O capitão pode (e ainda vai) causar estragos enormes ao país, mas não conseguirá implantar sua sonhada ditadura. Bolsonaro é um saco vazio, sem estofo. Sem ajuda, não pára em pé. Só está lá até hoje porque está sendo escorado.

O imperador do Japão

José Horta Manzano

Numerosos pontos ligam Bolsonaro e Lula, os dois principais concorrentes às presidenciais de outubro. Um ponto importante é o fato de ambos serem homens do passado.

Bolsonaro continua a viver com os pés fincados nos anos de chumbo que o Brasil viveu quando eram os militares que davam as cartas. Ele imagina ressuscitar a ditadura. Aliás, na sua cabeça, não é bem assim – a questão não é nem de reimplantar o sistema que vigorou no Brasil de 1964 a 1985.

De fato, por mais autoritário que fosse o regime daquela época, até que havia certa rotatividade no topo do Executivo. Do 31 de março até a eleição de Tancredo, cinco generais se sucederam no comando da nação.

Na cabeça de nosso aprendiz, não é assim que deve funcionar. Ele imagina ser guindado à cabeça de um regime sem rotatividade, sem alternância, sem mudança. Pretende permanecer no topo sozinho, como um Führer, um Duce, um Conducător, um Lider Máximo. Até a queda final, que pode ser por deposição ou coisa pior. Tudo que sobe acaba caindo um dia. Mas cada um se ilude como pode, não é mesmo?

Lula, nesse ponto, não pensa igualzinho a Bolsonaro. Por ter exercido a Presidência – pessoalmente ou por procuração – durante 14 anos, já perdeu as ilusões. Os quase 600 dias de cadeia lhe ensinaram que, quanto mais alto for o coqueiro, maior será o tombo. Sua parecença com Bolsonaro, em matéria de ligação com o passado, é forte, mas não se pode dizer que sejam idênticos.

Lula, que alguns dizem ser esperto como raposa, não quer (ou não consegue) entender que o mundo mudou. Não estamos mais nos anos 1970, em que ele subia numa caixa de sabão à frente da fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo, fazia um discurso inflamado para os companheiros, dizia o que lhe passava pela cabeça, e tudo ficava por isso mesmo. Ele ainda não se compenetrou de um fator inexistente à época mas fortíssimo hoje: o politicamente correto.

Nascido nos EUA anos atrás e potencializado por internet e redes sociais, a tendência a se exprimir de maneira politicamente correta impõe linguagem pasteurizada, isenta de palavras e expressões que possam, de perto ou de longe, ser consideradas ofensivas por esta ou aquela categoria de cidadãos.

Outro dia, Lula dircursou numa cerimônia de um partido chamado Solidariedade. (Abram-se parênteses: Este blogueiro acredita que todos os partidos deveriam se chamar Solidariedade. Afinal, ser solidário deveria ser a característica maior de todo afiliado. Fechem-se os parênteses) Lula sabe que muitos, neste país, acalentam o sonho de implantar o semipresidencialismo. No afã de demolir essa ideia que o horroriza, tirou do bolsinho uma metáfora infeliz. Referiu-se ao imperador do Japão de forma depreciativa.

Ato contínuo, uma torrente de críticas desabou. Deputados petistas se sentiram incomodados. Até (ou principalmente) a comunidade japonesa ressentiu-se da menção desairosa.

Sabe-se que história e geografia não são ocupam lugar preferencial nos parcos conhecimentos de nosso guia. Sabe-se que, apesar de ter passado 8 anos como presidente do país, outros assuntos devem ter lhe parecido mais interessantes – afinal, ler e estudar dá uma preguiça! História, geografia e geopolítica ficaram de fora.

Vai aqui um conselho ao Lula. Dificilmente ele lerá estas linhas, mas algum assessor bem-intencionado talvez possa transmitir-lhe a ideia.

Ô Lula! Da próxima vez que vosmicê quiser trazer a imagem de um homem poderosíssimo, use uma figura que não existe, mas que impressiona. Aqui estão algumas metáforas que não vão incomodar ninguém:

Ele age como se fosse o sultão de Samarcanda!

Ele pensa que é o imperador da Quirguízia!

Ele se acha o emir da Mongólia!

Deixo aqui a pista. Seus assessores certamente encontrarão outras variantes, que é pra não bater sempre na mesma tecla.

Aproveite, que conselho meu é grátis e desinteressado. Como dizia um irmão meu, “se é de graça, até injeção na veia”.

Festejar o 31 de Março?

José Horta Manzano

A história dos países é marcada por uma sucessão de deslealdades, golpes e revoluções. Não há outro meio de empurrar (ou emperrar…) a história de um povo. Se nunca tivessem ocorrido desvios da ordem estabelecida, ainda estaríamos nos cobrindo de peles e desenhando bichos na parede de acolhedoras cavernas úmidas. Talvez até estivéssemos engolindo comida crua, por não termos domado o fogo.

Todos os Estados carregam um histórico de cambalhotas. A meu conhecimento, nenhum escapou, nem menos nosso Brasil, apesar de ser visto como nação pacífica. Grandes passos da humanidade foram resultado de grandes golpes contra a ordem então vigente.

A Revolução Francesa, golpe pesado e magistral no sistema em vigor, foi um marco no processo civilizatório da humanidade. A Revolução de Outubro de 1917, que instaurou o regime comunista na Rússia, pautou a vida do planeta durante 70 anos.

Vamos agora ser cínicos (mas realistas). A partir de que momento um golpe contra a lei vigente se torna legal? Ou, em outra abordagem: Qual é o nome da lavanderia que aceita roupas manchadas de ilegalidade e, depois de lavar e passar, devolve as peças imaculadas, com virgindade refeita, prontas pra serem cultuadas?

A resposta é realista (mas cínica). Legal é a revolução que deu certo. Revolução que deu certo é o ponto inicial de nova etapa de uma civilização. Golpe que teve sucesso é marco de novo ordenamento de uma sociedade. Grandes fases de nossa história tiveram início como um ataque contra a ordem então vigente.

O 14 de Julho da Revolução Francesa é comemorado até hoje, enquanto que todas as datas da Revolução Russa desapareceram do calendário oficial daquele país. É a prova evidente do sucesso da primeira e do fracasso da segunda.

O Brasil-colônia tornou-se independente da metrópole em virtude de um golpe familiar, uma obscura deslealdade de filho pra pai, um golpe palaciano que reafirmou nosso sistema clânico de governança, já então em vigor. Tendo dado certo, o Dia da Independência é lembrado e festejado até hoje.

O Império do Brasil virou República em virtude de um golpe militar, uma desleal revolução de palácio. Tendo dado certo, também o Dia da República é lembrado e festejado até hoje.

A Revolução de 3 de Outubro de 1930 marcou o fim da República Velha e instaurou a ditadura de Getúlio Vargas. O novo regime durou 15 anos. Com a redemocratização do país, o movimento que levou Vargas ao poder perdeu o qualificativo de “revolução” e passou a ser chamado de “golpe”. É natural, visto que não se eternizou. Com o fim do regime, o 3 de Outubro deixou de ser comemorado e caiu no esquecimento.

A Revolução de 31 de Março de 1964 marcou o fim do período democrático que tinha tido início com a queda de Vargas, e instaurou nova ditadura – militar, desta feita. Durou 21 anos. Com a queda da ordem militar e a redemocratização do país, o 31 de Março deixou de ser comemorado. Pela ordem natural das coisas, seu destino deveria ser o esquecimento, que é o fim de todas as mudanças que não perduram. O que se costumava chamar de “revolução” passou a ser conhecido como “golpe”.

Curiosamente, no entanto, o finado regime continua sendo cultuado por uma franja estreita de sebastianistas barulhentos que parecem ter fixação num passado que muitos deles nem vivenciaram. Esse culto tem sido potencializado desde que a Presidência foi assumida por Bolsonaro, ele mesmo saudosista doentio.

Ainda esta semana, o general Braga Netto, ministro da Defesa, declarou que a ditadura imposta pelo regime militar “fortaleceu a democracia”(sic) e foi um “marco histórico da evolução da política brasileira”(sic sic).

Soou tão fora de esquadro quanto a declaração de Putin de que a invasão da Ucrânia visa a “desnazificar” o país. Coisa de manicômio.

Um ou outro político de segunda grandeza resmungou. E a imprensa, distraída e ainda fascinada com o estapeio do Oscar, publicou o resmungo como nota de pé de página.

E assim vamos banalizando o absurdo.

Os milicos que se cuidem

Ruy Castro (*)

Foi num dia de semana à tarde, em 1970, auge da ditadura —me contaram. Um garoto de seus 15 anos ganhou uma flautinha de plástico e foi à praia com ela. Sentado na areia, numa Ipanema vazia, tentou tirar o Hino Nacional —afinal, ouvia-o todo dia. Ao extrair algo parecido com a frase inicial, percebeu uma sombra entre ele e o Sol. Olhou para cima e viu um sujeito forte, bronzeado, de cabelo reco. O homem rugiu: “Por que está tocando isso?”. O garoto, surpreso, ficou mudo. Não havia resposta. O homem emendou: “Estou ali naquela barraca escutando tudo. Se continuar com gracinha vai se dar mal!”. Um vendedor de mate sussurrou para o garoto: “Coronel do Exército”.

É típico das ditaduras se apoderarem dos símbolos nacionais. O Brasil de Médici era uma diarreia verde-amarela. Uma geração de escolares foi submetida a anos de bandeira e hino diários, de pé, no pátio do colégio. Talvez por isso, um garoto de cabelo comprido tocando o Hino Nacional na praia pudesse ser um deboche, uma contestação.

O governo Bolsonaro não é uma ditadura – ainda. Mas, em algumas matérias, já se comporta como. Assenhorou-se, por exemplo, das cores nacionais e de conceitos como “povo”, “democracia” e “liberdade” e da expressão “homem de bem”. São “homens de bem” os que, contra a corrupção do PT, apoiam o extermínio de brasileiros pela Covid, promovido por ele.

Mas, agora, Bolsonaro se superou. Apropriou-se daquele que se considera o detentor do monopólio dos símbolos – o próprio Exército. Do mais tosco soldado ao mais empafiado general, Bolsonaro embolsou-os com benesses, empregos, cargos e uma ideologia intangível, em nome da qual passou a ditar-lhes o regulamento e fazê-los abdicar até de uma de suas cláusulas pétreas: a disciplina.

Os milicos que se cuidem. Um dia, ainda veremos Bolsonaro de dedo no nariz de um deles por tocar o Hino numa flautinha de plástico.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Demência de Bolsonaro

Ruy Castro (*)

Para nós que passamos 21 anos de vida adulta (1964-1985) sob a ditadura, os generais eram sujeitos sinistros, de óculos escuros, que nos ditavam quando, se e em quem podíamos votar, o que podíamos ler, ver, escutar, dizer e escrever e, se falássemos em instituições, direitos e liberdade, eles mandavam prender e arrebentar. Eles tinham as armas, as verbas e as canetas com as quais impor sua autoridade. E os porões, instrumentos de tortura e beleguins para aplicá-la. A mera visão de uma farda era intimidadora. Ela nos reduzia moralmente à menoridade, às calças curtas, à fralda.

Aí está algo incompreensível para um brasileirinho de hoje. Ele não entenderá como os militares podiam ter essa força. Para ele, militares são sujeitos que Jair Bolsonaro põe no governo, exibe nas redes sociais e logo começa a depreciar, diminuir, desmoralizar e, por fim, fulmina com a demissão. Em menos de dois anos, já fez isso com 16 generais, quatro brigadeiros e um almirante, e só entre os oficiais de alta patente.

Segundo levantamento da Folha, Bolsonaro demite um desses caciques por mês, até os que, por causa dele, abriram mão de suas promoções. Nada se compara, claro, ao esbofeteamento simbólico a que vive submetendo o general Eduardo Pazuello, pseudoministro da Saúde e seu mais dedicado ajudante de ordens.

Se Bolsonaro trata assim os graúdos, imagine seu apreço pelos 6.000 fardados do segundo time com que entupiu os ministérios, estatais, autarquias e bancos públicos. Só lhe servem para alimentar sua ilusão de que comprou o Exército.

Pode ser psicologia de galinheiro, mas estou certo de que Bolsonaro faz tudo isso para se compensar de humilhações em sua medíocre carreira militar. É uma forma de demência, que parece fascinar os generais – ou não se submeteriam a ela.

O brasileirinho de hoje tem razão. Se eles são assim, como conseguimos passar 21 anos sob suas botas?

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Os amigos do presidente

Carlos Brickmann (*)

Na época da ditadura que dizem que não houve, contava-se esta piada: quem denunciasse um comunista ganharia um Fusca; quem denunciasse dois comunistas ganharia um Fusca e um apartamento; quem denunciasse três comunistas iria em cana, porque conhecia comunistas demais.

E como a família Bolsonaro conhece gente que tem problemas, digamos, éticos! É o Queiroz, são aqueles milicianos que têm foto com alguém da família, é aquela tropa de gente empregada em seus gabinetes parlamentares e que mora a horas e horas de distância, tendo ainda de ocupar parte de seu tempo em outros trabalhos remunerados! E esse tipo de amigos e conhecidos agora se internacionalizou: Steve Bannon, guru de Olavo de Carvalho, talvez o maior ideólogo do bolsonarismo, foi preso nos Estados Unidos. Problema político? Não: a acusação é mesmo a de ter enfiado a mão no pudim.

Bannon sentou-se ao lado de Bolsonaro no jantar da embaixada brasileira em Washington (do outro lado, Olavo de Carvalho). Ali estavam sete ministros, inclusive o Imposto Ipiranga Paulo Guedes, mas Bannon era o astro. Já ídolo e amigo de Eduardo Bolsonaro, defendeu publicamente sua nomeação para embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Eduardo o chamou de ícone da luta contra o marxismo cultural. Bannon o escolheu como seu representante no Brasil, chefiando a seção brasileira do Movimento, grupo empenhado em lutar internacionalmente contra o comunismo.

Bannon foi guru de Trump, que o demitiu: nem ele o aguentou.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e blogueiro.

Cujus regio

José Horta Manzano

A lei é conquista do homem civilizado. Justa ou nem tanto, é um guia, o corrimão seguro ao qual nos agarramos para seguir caminho.

Quando a humanidade ainda se encontrava em estágio civilizatório menos avançado, o universo legal era refletido pela máxima latina “Cujus regio, eius religio”, que pode ser adaptada por “Como for o príncipe, tal será a religião”. Em outros termos, a religião (e a lei) do governante eram automaticamente impostas aos súditos. Numa boa, sem contestação possível.

Aliás, em muitas regiões do globo, esse princípio de submissão automática ainda vigora. Até em nossa terra, não faz muito tempo, a lei não era igual para todos, mas flutuava conforme o réu.

Essa prática de imposição da vontade do príncipe é típica de ditaduras, se bem que resquícios desse tratamento desigual sempre sobrevivem na prática de países democráticos. Mas essa já é outra história. Por enquanto, vamos nos agarrando ao corrimão que está aí. É o que temos.

Observação
O fato de o lulopetismo ter escorregado fora das margens da lei ao caucionar a ladroagem pode ser descrito como derivação, um efeito colateral da ignorância e da permissividade do rei. Com Bolsonaro, o quadro é outro. Temos hoje o afrontamento sistemático e permanente da lei elevado ao patamar de política de governo.

Se ditadura vier

José Horta Manzano

A hierarquização de funções é forte característica das Forças Armadas. E todo militar respeita a hierarquia. Quanto mais elevado estiver colocado na escala hierárquica, mais o fardado será sensível a qualquer quebra do respeito que o menos graduado deve aos que têm mais galões.

Na lógica militar, o inferior tem de respeitar o superior. Eis por que, na hora H, negaram apoio ao ministro Mandetta: entenderam que, ao afrontar o presidente, ele havia faltado com o respeito ao superior, ferindo assim os valores da hierarquia. Que o chefe esteja certo ou errado, pouco importa – o inferior tem de seguir as diretivas; se não estiver contente, que se vá.

Charles Chaplin in O Grande Ditador, 1940

A cada dia fica mais evidente que doutor Bolsonaro sonha em se apoiar nos militares para implantar uma ditadura da qual seria ele, naturalmente, o chefe maior. É urgente explicar a ele que, se os generais o respeitam hoje, não é pelo grau militar, mas porque foi eleito democraticamente, direitinho como manda a lei. Como presidente, é ele o chefe das Forças Armadas. Se, por hipótese, uma ditadura fosse implantada, a ordem democrática deixaria de valer e as cartas seriam redistribuídas.

No exato momento em que essa eventualidade tenebrosa ocorresse, Bolsonaro perderia a condição de eleito e retrogradaria à patente que tinha ao deixar o Exército. Aferrados à hierarquia, generais de quatro estrelas dificilmente se deixariam dirigir por um capitão da reserva que terá perdido o respaldo do voto popular. Portanto, se ditadura houvesse, seria sem o doutor.

Para azar nosso, o déficit de inteligência que acomete o capitão não lhe permite entender essa lógica. Vai daí, o homem continua clamando pela ditadura. Coisa de louco.

Política externa

José Horta Manzano

A prova de fogo que doutor Bolsonaro está sendo obrigado a encarar está entre as mais delicadas, especialmente para um governo inexperiente: a política externa. Nos tempos do petismo, não tivemos problemas com vizinhos. O Lula é que foi ao Oriente Médio buscar sarna pra se coçar. Foi porque quis, que seu ego imenso lhe fazia crer que estava destinado a liderar o planeta. Foi buscar sarna, encontrou, e saiu se coçando. E está se dedetizando até hoje pra se livrar da praga que rogou pra si próprio.

A encrenca que temos hoje na frente externa não é resultado de políticas nossas do passado. A ditadura venezuelana nasceu e se desenvolveu por si, ainda que o petismo lhe tenha dado uma força. A mão forte de Lula & cia., no entanto, não foi fator determinante pra garantir longevidade.

O problema que se nos apresenta é daqueles que nenhum dirigente deseja enfrentar, muito menos em começo de mandato. E até que não estamos nos saindo tão mal. Inteirados da rusticidade e do maniqueísmo primário de nosso ministro de Relações Exteriores, os integrantes da ala militar do governo não têm permitido que ele assuma protagonismo. Nem esse ministro, nem os bolsonarinhos ‒ que, por sinal, andam apagados. Minha avó dizia que criança, quando está quietinha sem dar um pio, é que está fazendo arte. Espero que os juniores não estejam tramando novo golpe.

Estivessem as decisões nas mãos do mandachuva do Itamaraty ou dos belicosos primeiros-filhos, o Brasil já teria declarado guerra ao vizinho, com bombardeio aéreo e envio de tropas de infantaria. Imaginem o desastre! Ainda bem que eles estão eclipsados. O exército bolivariano anda meio mambembe, é verdade. Assim mesmo, não convém provocar.

Señor Maduro, embora não tenha sido militar mas motorista de ônibus, entendeu que sua base de sustentação não está no parlamento, nem nas urnas, nem nas ruas. Sabe que está nas forças armadas. Ao longo dos anos, continuando o trabalho de seu antecessor, distribuiu benesses aos fardados. Os de mais alta patente não vivem num país flagelado pela fome e pela falta de medicamentos. Vivem numa outra Venezuela, um país de fartura onde tudo é possível.

Os agrados garantidos aos militares incluem promoções políticas, que nada têm a ver com ascensão por mérito. De tanto forçar a barra, as forças armadas têm hoje muito cacique pra pouco índio. Há mais de 2000(!) generais para um contingente de 123 mil homens. Isso dá um general pra cada 57 soldados ‒ um despropósito.

Só que essa abundância de graduados transmite falsa sensação de segurança. Na hora do vamos ver, quem combate não são os generais mimados e bem pagos ‒ são os soldados. Oficiais de alta patente, corrompidos e enricados, têm o rabo preso. Soldados rasos, não. E o que é que se viu diante das trapalhadas que tiveram lugar nas fronteiras este fim de semana? Pois vimos soldados desertando, entregando armas e declarando fidelidade ao presidente interino. Foram algumas dezenas. O número só não foi maior porque muitos deles têm família e temem represálias.

O desmoronamento final do regime pode demorar, mas é inevitável. No dia em que todos os soldados tiverem desertado, que vão fazer os dois mil generais? Bailar un merengue?

Desconvite seletivo

José Horta Manzano

Fazer política externa na base do xilique é a receita certa para o fracasso. Poucos dirigentes conseguem distinguir onde termina o governo e onde começa o Estado. E vice-versa. A maioria tende a confundir e enfiar as duas concepções no mesmo saco. Erram. Governos passam, o Estado fica.

Entre as atribuições do governo, a política externa é a que se encontra mais ligada ao Estado brasileiro. Saúde, Instrução Pública, Economia e demais funções ‒ embora devam submeter-se aos interesses maiores do Estado ‒ costumam assumir os contornos do governo de turno. A escola tornou-se mais politizada no governo do Lula. A Economia se abriu durante a gestão Collor. A Saúde teve até intervenção cubana no governo da doutora.

A política exterior e as Forças Armadas devem, mais do que as outras funções do topo da República, servir a interesses de longo prazo. Não são campo em que se deva mexer a cada instante. Estratégias diplomáticas e militares são de longo alcance.

Como ensina o manual de bons procedimentos, os dirigentes de todos os países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas são convidados para a tomada de posse do novo presidente. Por descuido da Constituinte de 1988, o mandato começa num 1° de janeiro, data incômoda que obriga muitos chefes de Estado ou de governo a mandar representante. Que fazer?

Rolls-Royce presidencial

Doutor Ernesto Araújo avisou que estava cancelando o convite feito aos presidentes da Venezuela e de Cuba. Estavam desconvidados. A quem se surpreendeu com a descortesia, logo explicou que a intenção do novo presidente era, logo no início do governo, romper relações diplomáticas com esses países. Está justificado.

Ontem entrou mais um país para a lista dos indesejados. Foi a Nicarágua. A alegação é de que está sob a férula de regime ditatorial. Só que não foi anunciado rompimento de relações com esse país, o que nos põe diante de uma incongruência. O Brasil convida todos os países com os quais mantém relações diplomáticas. Uma vez que se anunciou que as relações serão rompidas com Cuba e com a Venezuela, o desconvite faz sentido. Dado que não há perspectiva de rompimento com a Nicarágua, fica esquisito.

O pretexto de que se trata de ditadura não tem consistência. Na prática, a maior parte dos países africanos tem regime ditatorial. Todos os países árabes também entram nessa lista. Se o critério para desconvite for a falta de democracia, restam muitos por desconvidar.

Vê-se que os interesses do Estado brasileiro passaram ao largo nessa decisão do futuro ministro Araújo. Esses desconvites seletivos não respondem a critério consistente, mas a antipatia pessoal. Juntando essa presepada ao anúncio, feito pelo futuro presidente, de mudança de endereço de nossa embaixada em Israel, temos rematado contraexemplo de diplomacia. É exatamente o contrário do que deveria ser. Começamos mal.

Júbilo suspeito

José Horta Manzano

Outro dia, o novo presidente mexicano, recém-subido ao trono, anunciou que pretende contratar médicos cubanos, nos mesmos moldes do que fez o programa Mais Médicos no Brasil. Para o observador comum, a notícia é daquelas que não fedem nem cheiram. Cada dirigente organiza seus programas da maneira que lhe parecer mais eficiente. Foi eleito justamente pra isso.

Num gritante ato falho, nossa incendiária parlamentar Gleisi Hoffmann soltou entusiasmados rojões em comemoração à iminente contratação pelo México dos três mil médicos que estão deixando o Brasil.

A (quase ex-) senadora não se mostrou particularmente preocupada com o ganha-pão dos esculápios. Senão, vejamos: caso o presidente mexicano tivesse anunciado estar contratando médicos bielorrussos, vietnamitas ou zimbabuenses, ninguém imagina que ela estivesse festejando, pois não?

Fica claro, portanto, o motivo do júbilo de doutora Hoffmann. Está feliz de saber que os milhões de dólares extorquidos dos infelizes profissionais da saúde cubanos continuarão a irrigar a ditadura dos bondosos irmãos Castro.

Lava a Jato pro brejo?

José Horta Manzano

No primeiro momento, quando vazou a notícia de que o juiz Moro podia se assentar no topo do Ministério da Justiça, também senti certo desconforto. “Se o homem está tão bem onde está” ‒ pensei ‒ “por que diabos tirá-lo de lá? Não se mexe em time que está ganhando.”

Passaram-se alguns dias e a ideia foi amadurecendo. Ah, nada como um dia depois do outro (com uma noite no meio)! Com o espírito serenado e já acostumado à nova realidade, dá pra reavaliar a decisão do juiz. De toda maneira, ele aceitou o convite do presidente eleito. Vai virar superministro em janeiro.

O inconveniente maior que consigo enxergar é o fato de doutor Moro abrir mão da cátedra de juiz federal para tornar-se, no fundo, funcionário subalterno de doutor Bolsonaro. Trocou a inamovibilidade e a estabilidade da carreira de juiz pelos tremores de uma poltrona ejectável. Mas esse problema é dele. Fora isso, ganham todos.

Doutor Moro ganha em altitude perante o povo. Se, antes, já era figura pra lá de popular, pode agora abrir as asas pra voos mais ousados. Não seria espantoso se estivesse entre os pré-candidatos para as eleições presidenciais de 2022. Com boas chances de levar a taça, dependendo ainda do balanço de sua gestão.

Doutor Bolsonaro ganha em credibilidade. Dá um ‘chega pra lá’ no temor que alguns têm de ver a Constituição rasgada pra dar lugar a regime militar ou ditatorial. Doutor Moro é baluarte da lei. Quem tem vocação pra ditador não convoca Moro de assistente.

Ganha o Brasil, com maior amplitude e mais largo raio de ação de um incansável batalhador contra a corrupção nos altos escalões. Digam o que disserem, o ministro da Justiça ‒ mormente quando respaldado pelo presidente ‒ tem muito mais poder do que um juiz de Primeira Instância.

Uma consideração final. Tem gente por aí achando que, com a saída de doutor Moro, a Operação Lava a Jato vai pro brejo. Isso me faz lembrar a lição de um superior hierárquico, muitos anos atrás. Ensinou-me que a gente deve aprender a delegar, a não segurar todo o serviço, a deixar que colegas e subalternos assumam as rédeas. «Você verá que os controles deles são, às vezes, mais rigorosos que os seus.»

Desde então, já tive ocasião de comprovar a lição. Funciona. A Lava a Jato vai prosperar como nunca. Achar que doutor Moro é o único capaz de levar adiante uma operação dessa envergadura é fazer ofensa aos demais juízes. Que se cuidem os corruptos que já estiverem esfregando as mãos com a perspectiva da saída de doutor Moro. Perigam sentir saudades da mansuetude dele.

Jornalismo militante

José Horta Manzano

Às seis e meia da manhã, pela hora de Brasília, abro a edição online da Folha de São Paulo. Desfilando pela primeira página, encontro as seguintes chamadas:

  • Presidente da Gazint disse que Bolsonaro tem que ganhar para ‘não ter que gastar mais dinheiro’.
  • Grupos de WhatsApp pró-Haddad proliferam, e PT desconfia de armadilha bolsonarista
  • TSE abre investigação sobre Bolsonaro e compra de mensagens anti-PT
  • WhatsApp bloqueia contas; TSE e PTF apuram atuação eleitoral de empresas
  • Apoiadores de Bolsonaro começam a migrar grupos do WhatsApp para o Telegram
  • Empresários recuam em onda de apoio a Bolsonaro para não se expor
  • Repórter que descobriu envio de mensagens anti-PT participa do Eleição na Chapa
  • Bolinha de papel na cabeça de José Serra antecipa fake news
  • Roger Waters agradece vaias e chama Bolsonaro de insano. Músico diz que boicotaria o Brasil pela democracia caso candidato seja eleito
  • Comida na ditadura causava horror. Tem político querendo transformar o Brasil no país de 40 ou 50 anos atrás
  • O mercado ignora os riscos de um governo Bolsonaro
  • As reformas da extrema direita bolsonarista para destruir o Brasil

Não temos café
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Juro que é verdade, sem tirar nem pôr. Tudo na primeira página. Não estou tentando criar fake news ‒ pra entrar na moda. É consternante reconhecer que o autoqualificado ‘maior jornal do Brasil’ mais parece um panfleto partidário. O ativismo desse veículo, como diriam os franceses, é cousu de fil blanc ‒ costurado com linha branca. É patente, salta aos olhos. Só não enxerga quem não quer. Para conferir, basta dar uma olhada na sobriedade da primeira página dos outros dois jornais mais vendidos no país, o Estadão e O Globo. A diferença é comovente.

Vale notar que ter a maior circulação entre os jornais do país não significa ser ‘o maior’. São conceitos diferentes. Na Alemanha, o Bild tem, de longe, a maior circulação. Bate, com folga, qualquer concorrente. No entanto, com seu estilo de tabloide sensacionalista, está longe de ser ‘o maior’. Aliás, nem reivindica essa posição. É apenas o mais vendido, basta. A mesma coisa acontece com a Folha, que costumava ser jornal sério, mas está se perdendo.

A mídia tradicional tem visto seus leitores sugados pela internet. Cada veículo tenta solução própria para compensar a diminuição das vendas. “O maior jornal do país” parece ter escolhido caminho original. Mas é sempre perigoso vender a alma ao diabo. Como ensina o Conselheiro Acácio, as consequências vêm depois.

O suicídio de um partido

Pedro Luiz Rodrigues (*)

Caso fatos notáveis não venham a ocorrer, o Partido dos Trabalhadores deverá sofrer amarga derrota no segundo turno das eleições presidenciais, no próximo dia 28 de outubro.

Era apenas uma questão de tempo para que o partido começasse a se esboroar. Dado que desde sua criação (1980) viveu de contradições, de meias-verdades e de falsas aparências, nunca transitou com desenvoltura no ambiente da democracia. Como em obras que desabam, sobrou areia, faltou cimento.

A partir de quando o PT deixou de ser oposição e se tornou governo, suas bandeiras originais – que por vinte anos haviam seduzido massas de jovens idealistas – foram sendo jogadas na lata do lixo.

Honestidade, decência, transparência, todas deixaram de ser qualidades admiradas e praticadas por seus dirigentes. Os jovens idealistas ‒ não mais tão jovens assim ‒ perceberam (pelo menos alguns deles) que não haviam sido usados apenas como massa de manobra.

Fazer o quê? Quem nasceu pra tubarão não pode pretender ser golfinho. O PT diz que é democrata, mas não pode ser, porque seu objetivo final é a implantar uma ditadura, a do proletariado. Lula já jurou que o partido não é marxista, mas os intelectuais da agremiação continuam a produzir artigos recomendando seguir a pauta marxista-gramsciana, que rejeita a alternância democrática.

O povo não é burro, e aqueles que não esperam prebendas ou favores do petismo têm razões para morrer de rir com a notícia de que o PT, juntamente com seus aliados (PCdoB, PSOL e outros), estariam para formar uma “frente democrática” para contrapor-se à candidatura de Jair Bolsonaro.

Falsear, mudar de cara, é o que a dobradinha PT-PCdo B está fazendo agora, mais uma vez. Um de seus anúncios de campanha do primeiro turno era do tipo tradicional, muito vermelho, com os dois candidatos secundados pela imagem de Luiz Inácio Lula da Silva. Na versão para o segundo turno, o vermelho deu lugar ao verde, ao amarelo e ao azul, e Lula ‒ ao melhor estilo soviético ‒ foi simplesmente removido da fotografia.

Pedro Luiz Rodrigues

Para o PT, a derrota que se avizinha será estrondosa e definitiva; vai ser a pá de cal no túmulo de um partido que vem se suicidando aos poucos, desde 2005, quando o mensalão revelou à sociedade que o PT falseara suas credenciais morais para chegar ao poder e lá se manter.

Esse falseamento moral foi necessário para a participação do PT num regime democrático, onde as regras do jogo pressupõem aceitação da diversidade ideológica, alternância no poder e máxima lisura na defesa dos interesses do Estado.

O PT não aceita a democracia, nem a diversidade ideológica, nem a alternância no poder. Quanto ao Estado, cuidaram de aparelhá-lo partidariamente – inclusive o Itamaraty, instituição à qual pertenço – privilegiando a lealdade ou a subserviência ao partido em detrimento da qualidade e dos méritos profissionais.

Se saíram do poder no impeachment de Dilma (“o golpe, o golpe, o golpe”, do refrão partidário), serão definitivamente escorraçados agora, no final de outubro, pelo voto popular.

O PT não teve forças para corromper as instituições brasileiras, muito mais fortes do que as da Venezuela ‒ país próspero que os aliados do PT conseguiram levar à ruína.

(*) Pedro Luiz Rodrigues é embaixador e jornalista. Este artigo foi publicado originalmente no Diário do Poder.