Lula no Egito

José Horta Manzano


“A única coisa que se pode fazer é pedir paz pela imprensa, mas me parece que Israel tem a primazia de descumprir, ou melhor, de não cumprir nenhuma decisão emanada da direção das Nações Unidas”


O texto acima faz parte da declaração dada por Lula no Egito, país onde foi fazer turismo no Complexo de Gizé para visitar as pirâmides. No segundo dia, aproveitou para se encontrar com o ditador de turno, um senhor sorridente que leva o vistoso nome de Abdul Fatah Khalil al-Sissi.

Luiz Inácio se esmerou no discurso, falou bonito, usou até o verbo emanar, mas tropeçou na hora de escolher uma palavra para expressar a liberdade que as Nações Unidas dão a Israel para fazer o que quiser.

Disse que Israel tem a primazia de descumprir ordens da ONU. Primazia é superioridade, competência, excelência de algo ou alguém. Certamente não é o que Lula queria dizer. Ele quis sublinhar a licença especial que, segundo ele, Israel tem para dar de ombros às determinações onusianas e agir como bem entende.

Em vez de primazia, tinha a escolha entre uma dezena de termos:

  • Licença (como citado acima)
  • Consentimento
  • Permissão
  • Privilégio
  • Anuência
  • Direito
  • Apanágio
  • Regalia
  • Carta-branca

A lista não é extensiva. Há outras palavras ainda. Ficam para a próxima, não é, senhor Presidente?

Lembre-se de que quem usa “emanar” não pode escolher termo inadequado no mesmo discurso, pior ainda, na mesma frase. Se não, vão acabar pensando que o discurso foi escrito por outra pessoa. O que cai mal, francamente.

Israel atacado

Porta de Brandenburgo, Berlim (Alemanha)
iluminada em apoio ao povo israelense

José Horta Manzano

O ataque desfechado pelos dirigentes do movimento islâmico Hamas ao território israelense deixou o mundo de queixo caído. Os israelenses responsáveis pela proteção do território nacional estão até agora se perguntando como foi possível acontecer uma catástrofe dessas proporções.

Ninguém imaginava que um bando, que costuma ser etiquetado “terrorista”, fosse capaz de ir além de ataques suicidas com bombas amarradas na cintura de mulheres e adolescentes.

O ataque organizado se fez por terra, por mar e por ar, coisa de louco. Por terra, na falta de tanques, vieram homens a pé; por ar, na falta de aviação, vieram parapentes. Uma versão de guerra de segunda categoria, mas que estropia e mata do mesmo jeito.

Os que estavam em solo israelense, gozando um dia feriado com temperatura amena, hão de ter levado o maior susto da vida. Deve ser apavorante você estar à toa na modorra e, de repente, ver chover do céu foguetes explosivos e incendiários.

Em outras terras, seria o caso de demissão coletiva do primeiro-ministro e todos os seus ministros. Mas, com Mr. Netanyahu (também conhecido como Bibi), as coisas não funcionam assim.

O homem parece ter sido atarrachado em sua poltrona. De lá, ninguém o tira, nem choro nem decoro, nem grito nem atrito. Ele afronta a Justiça, faz modificar a lei em seu favor e tornou-se o primeiro-ministro mais longevo da história de seu país.

A imprensa internacional informou, em primeira página, que “o Brasil convocou uma reunião de urgência do Conselho de Segurança da ONU”. Algum distraído pode até achar que Luiz Inácio está de novo se metendo onde não foi chamado. Mas não é isso. O fato é que, no sistema rotativo do C.S., nosso país ocupa atualmente a presidência pro tempore. Daí a iniciativa.

A nota oficial brasileira lamentou ainda o ataque do Hamas. Lula confessou estar “chocado”. O texto se ateve a generalidades e, diplomaticamente, evitou apoiar ou condenar um dos lados. Já está de melhor tamanho do que as declarações estabanadas que o mesmo Luiz Inácio havia dado com relação à guerra na Ucrânia, falas tão tendenciosas que o mandaram pra escanteio quanto a eventuais negociações de paz.

O conflito que estourou ontem é uma guerra assimétrica. De um lado, temos um Israel provido de exército, marinha e aeronáutica de desempenho respeitado. Foram apanhados de surpresa, mas já devem estar se recompondo. De outro, temos um Hamas integrado por homens motivados, sim, mas desprovidos da parafernália que caracteriza as forças armadas modernas.

Além disso – e aqui está o nó da questão – em qualquer guerra, o inimigo deve ser claramente designado. Uma guerra entre Israel e Palestina poderia ser uma etiqueta. Só que há um problema grave: a Palestina não é um Estado independente nem reconhecido no concerto das nações. Oficialmente, a Palestina simplesmente não existe. Como é que se pode guerrear contra um Estado que não tem existência real e só sobrevive na imaginação?

Hamas não constitui um Estado. Como todo grupo sem existência oficial, está geograficamente disseminado por boa parte da região. Alguns dirigentes vivem em território libanês, outros no Egito, outros ramos no Irã.

Pra poder varrê-los do mapa, seria preciso primeiro saber quem são e onde estão. O Hamas não dispõe de um Kremlin, onde se alojam os cabeças do regime. Estão espalhados. Israel vai encontrar tremendas dificuldades para “exterminar” esse grupo.

Na prática, não está claro por que razão o Hamas decidiu fazer esse ataque agora e dessa maneira. Que vantagem Maria leva? O tempo talvez traga a resposta.

Lula e Zelenski

José Horta Manzano


“Ukrainian soldiers are doing with their blood what the U.N. Security Council should do by its voting”.

“Soldados ucranianos estão fazendo com o próprio sangue o que o Conselho de Segurança da ONU deveria fazer pelo voto”.


Essa foi uma das frases mais impactantes do discurso pronunciado ontem por Volodímir Zelenski no púlpito das Nações Unidas.

Não há como discordar. A ONU foi criada, ao final do segundo conflito mundial, justamente com o objetivo de evitar novas guerras. Praticamente todos os países ao redor do globo são membros da organização, dos mais poderosos ao mais desvalidos.

De 1945 para cá, muitos conflitos estouraram. Embora tenham matado muita gente – e cada morte sempre poderia ter sido evitada –, os embates não autorizados pela ONU têm sido relativamente localizados.

Contudo, a invasão da Ucrânia pelo exército russo deu início a uma guerra de grandes proporções, totalmente ilegal e não autorizada pelas Nações Unidas. Assim mesmo, o Conselho de Segurança falhou.

Entender é fácil: a Rússia, que é o país agressor, tem direito de vetar qualquer resolução do C.S. que não lhe agrade, um privilégio concedido unicamente a cinco membros da organização: EUA, França, Reino Unido, China e a própria Rússia.

Esse poder de veto é arma de dois gumes. Por um lado, garante que uma das grandes potências que o detêm bloqueie toda decisão tresloucada ou cabeluda que pudesse ser tomada. Por outro lado, garante que não seja tomada nenhuma decisão que colida com os interesses de um dos cinco membros privilegiados.

No caso da guerra na Ucrânia, uma resolução do C.S. impondo o fim das hostilidades iria contra os interesses russos, eis por que um texto assim não tem chance de passar. Seria vetado pela Rússia.

Não sei se Lula da Silva se deu conta de que sua birra contra o Conselho de Segurança empata com a visão que Zelenski tem dessa instituição. Ambos os dirigentes entendem que passou o tempo em que cinco países tinham o direito de tutelar os demais. Zelenski pede a anulação do direito de veto russo, enquanto Lula pede uma reforma geral do Conselho. Elas por elas, os dois pedem a mesma coisa.

Em vez de bancar o difícil, fazer biquinho e menosprezar o baixinho que dirige a Ucrânia, nosso presidente (que também não é nenhum gigante) devia aproveitar a maré e se associar ao colega de Kiev, pelo menos nessa cruzada em favor de uma repensada geral da “governança mundial” – termo que aquece o coração de Luiz Inácio.

Neste ano e meio de destemida resistência à invasão russa, Zelenski, apesar da cara feia, granjeou um imenso capital de simpatia. Lula, que de cara feia também entende, é outro que (ainda) carrega um balde de simpatia e admiração.

Se se dessem as mãos, juntando o capital de um com o balde do outro, é certo que dariam um passo mais decisivo em direção ao objetivo de ambos: uma boa reformulada do Conselho de Segurança da ONU.

Ânimo, Lula, às vezes precisa fazer um esforço!

Ilha da Fantasia

Sessão de abertura da ONU
Nova York 19 set° 2023

José Horta Manzano

Acabo de escutar o discurso de Lula da Silva na abertura da Sessão Anual da ONU. No final, devo dizer que fiquei aliviado. O pronunciamento foi curto e desapaixonado. Quem esperava frases de impacto e posicionamentos memoráveis voltou decepcionado e de mãos abanando.

O discurso não foi o de um caixeiro viajante, mas o de um promotor turístico. Luiz Inácio vendeu um país invejável, onde a energia elétrica é limpa, o desmate amazônico praticamente acabou, a democracia ressuscitou, o plano Brasil sem Fome corre a pleno vapor, a igualdade salarial entre sexos está alcançando o objetivo, a Bolsa Família voltou pra ficar.

Depois desse discurso, fica a quase certeza de que as massas migratórias que arriscam a travessia do Mediterrâneo para chegar à Europa vão preferir cruzar o Atlântico para ter às costas brasileiras.

Do lado positivo, temos ainda a reafirmação da luta do Brasil de Lula contra a desigualdade, a intolerância, a xenofobia. O mundo agora sabe que, diferentemente dos países hoje mais adiantados, temos a firme intenção de promover um desenvolvimento sem poluir nem destruir o meio ambiente.

O mundo ficou sabendo ainda que Lula é um grande líder do “Sul Global”. Cuida do G20, do Brics e da Agenda de Belém, instituição que congrega 50 milhões de amazônidas (palavra chiquérrima).

Já do lado negativo, foi estranho que a única menção nominal de Lula tenha sido a Julian Assange, jornalista australiano atualmente encarcerado na Inglaterra à espera de extradição para os EUA. Nosso presidente asseverou que esse senhor “não deve ser punido”. Independentemente de concordar ou não com Lula, achei que não cabia a um presidente do Brasil adiantar-se às deliberações da Justiça de um país estrangeiro. É como se um líder estrangeiro dissesse que este ou aquele cidadão brasileiro não merece ser condenado. É bola fora.

No capítulo “Palavras Inúteis”, Lula mencionou de passagem os conflitos na Palestina, no Haiti, na Líbia, em Burkina Faso e em outros países africanos. Falou do risco de golpe de Estado na Guatemala, mas silenciou sobre o golpe permanente que há anos vem sendo dado na vizinha Nicarágua por Ortega, ditador atual e amigão do petista.

Não podia deixar de mencionar a Ucrânia. Esperto, deu uma pirueta. Não mostrou ódio nem simpatia por Kiev. Disse apenas que, na Ucrânia, “não conseguimos impor a Carta da ONU”. E logo fugiu do assunto.

Para terminar com fecho de ouro, Lula montou em seu cavalo de batalha: a reforma do Conselho de Segurança da ONU. Assim como Pútin, que desejava entrar para a História como aquele que recompôs o Império Russo, Luiz Inácio tem a pretensão de ser lembrado como aquele que permitiu a entrada do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança.

Só que… nenhum dos dois vai conseguir. Pútin, por problemas evidentes: se não conseguiu nem domar a Ucrânia, como é que se apossaria da meia dúzia de países europeus que faltam para integrar seu império?

Já nosso Lula, faz anos que entretém um sonho furado, sem nenhuma ancoragem na realidade. Por acaso, os cinco membros permanentes do CS são os vencedores da última guerra mundial e – veja a coincidência – as principais potências atômicas do planeta. Partindo do princípio que não teria cabimento o Brasil entrar sozinho no CS e que cada membro atual tem direito de veto, o problema passa a ser ser cabeludo.

A China não aceitaria o Japão como novo membro. A Rússia vetaria a Índia. Se o Brasil entra, por que não o México? A Alemanha seria olhada com desconfiança por meio mundo. Como o distinto pode perceber, o problema é mais que cabeludo: é insolúvel.

É por isso que a reclamação que Lula tirada do bolsinho do colete a cada discurso é maçante, cansativa, estéril como birra de criança que se joga no chão e esperneia. Não serve pra nada.

Resumindo, o discurso não foi tão mal. O contraste com as falas estranhas de Bolsonaro foi flagrante. A plateia aplaudiu em vários momentos – só isso já diluiu as imperfeições.

Perguntar não ofende ‒ 9

by Sam Jovana, desenhista mineira

José Horta Manzano

Nas últimas semanas, o Brasil de Lula enviou uma delegação à Venezuela, recusou-se a assinar uma resolução da ONU condenando as violações dos direitos humanos na Nicarágua, permitiu que navios de guerra iranianos atracassem no Rio de Janeiro, recusou-se terminantemente a enviar armas para permitir à Ucrânia se defender da invasão russa.

A pátria inquieta vê surgir no horizonte um Lula bolsonarizado. Além de não desgarrar dos cacoetes do passado, diz palavrões, expõe rancores em público. Tudo vem envolto num bolsonaresco perfume de obstinação.

Para onde ele pretende levar o país?

Tout ça pour ça?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 24 setembro 2022

“Tout ça pour ça” é expressão que os franceses utilizam para indicar que um grande esforço deu resultado pífio. Tudo isso pra isso?

Bolsonaro botava fé na ida à Inglaterra para o funeral de Elizabeth II. Assim que a nota de falecimento chegou, postou na rede um texto enigmático em que elogiava a falecida e explicava: “porque não foi apenas a rainha dos britânicos, mas uma rainha para todos nós”. O sentido da frase não ficou claro. De que maneira teria ela sido uma rainha para todos nós? Talvez fosse apenas uma tentativa canhestra de saudar uma personalidade importante. Quase todo o mundo tinha simpatia pela rainha da Inglaterra; de lá a considerá-la “nossa rainha”, há uma boa distância. Ficou esquisito.

Seu comitê de campanha julgou que estar presente na cerimônia fúnebre seria ótima oportunidade para dar ao bom povo a ilusão de ter um presidente influente, aceito nos altos círculos da governança planetária, enfronhado com os grandes deste mundo. O decreto de luto nacional de três dias saiu rápido, em edição extra do Diário Oficial. Note-se que o Brasil não é integrante do Commonwealth e que Bolsonaro, diferentemente de Lula, FHC e Dilma, nunca se encontrou com a rainha.

Ficou a incômoda impressão de que o luto decretado tinha um fundo interesseiro. O presidente pareceu estar pedindo para ser convidado para o funeral. Até os ladrilhos da Abadia de Westminster sabiam que nem todos os dirigentes do planeta seriam convidados. Sabia-se que ninguém que pudesse criar constrangimento receberia convite. Mas… e Bolsonaro? Ele já criou caso com tanta gente! Charles III é fervoroso militante da causa climática, enquanto nosso presidente milita pelo fim da floresta amazônica. É lícito crer que foi o receio de não ser convidado que impeliu o capitão a ser tão obsequioso.

Deu certo. O convite veio, com direito a cumprimentar o rei. O soberano não concedeu mais que um minutinho a cada dirigente estrangeiro, mas o importante é que Bolsonaro conseguiu ser retratado ao lado dele. Na foto, o capitão parece sorridente demais para um encontro com quem acabava de perder a mãe. Deu tapinha no ombro do rei, numa intimidade inusitada, gesto lesa-majestade. Mas a foto saiu. Vai ajudar na eleição da semana que vem? Que acredite quem quiser.

Bolsonaro pernoitou na residência de nosso embaixador. Ruidosa recepção matinal defronte à sacada o esperava, preparada por apoiadores paramentados como manda o figurino: todos de amarelo, alguns enrolados no lindo pendão da esperança. Na hora, levei um susto ao imaginar que nossos compatriotas que moram no Reino Unido fossem todos bolsonaristas. Por ingenuidade ou malícia, o capitão pareceu achar a mesma coisa. Tanto é que, sentindo-se elevado às nuvens, fez discurso de improviso. Inflamado, acusou antecipadamente o TSE de fraude caso ele não vença no primeiro turno.

Após reflexão, percebi que minha primeira impressão estava errada. Nós, brasileiros do exterior, não lemos todos pela mesma cartilha. Aqueles que vociferaram na tranquila manhã londrina, em pleno período de luto e recolhimento nacional, não eram representativos da colônia brasileira. É que os não bolsonaristas – lulistas, ciristas, tebetistas, abstencionistas – aproveitaram o feriado para dormir até mais tarde. Iam lá se expor à violência gratuita de devotos ensandecidos? Ainda não enlouqueceram.

Dois dias depois, no discurso de abertura dos trabalhos na ONU, o capitão teve grande oportunidade de redimir-se. Mas subiu ao púlpito e não decepcionou: leu um texto com algumas platitudes e muitas inverdades. Descreveu um Brasil de folheto turístico, de deixar o País das Maravilhas com inveja. Achei até que, ao final da fala, a plateia se fosse levantar em peso para precipitar-se ao consulado do Brasil para solicitar um visto de permanência. Conhecendo o capitão, ninguém se levantou.

Ao fim e ao cabo, Bolsonaro perdeu excelente oportunidade de dar uma trégua aos eleitores que pretende conquistar. Desaparecer do cenário por alguns dias teria sido bom para sua campanha, visto que não proferiria as habituais ofensas que freiam sua subida nas pesquisas. Só que, mesmo no exterior, ele persistiu em deteriorar a própria imagem. Foi jogo de resultado zero.

Tout ça pour ça? Manda outra, capitão! Com essa, vosmicê deu com os burros n’água.

Bolsonaro e os cristãos perseguidos

Perseguição aos cristãos

José Horta Manzano


“Quero aqui anunciar que o Brasil abre suas portas para acolher os padres e freiras católicos que tem sofrido cruel perseguição do regime ditatorial da Nicarágua. O Brasil repudia a perseguição religiosa em qualquer lugar do mundo.”

Trecho do discurso proferido por Bolsonaro na ONU em 20 set° 2022


Até quando tenta mostrar uma faceta pseudo-humanitária, o capitão é desonesto e distorce a realidade. Até quando quer parecer bonzinho, ele expõe seu lado clivante e discriminatório.

À primeira vista, quem acompanhou o trecho do discurso que citei acima fica com a impressão de que finalmente o presidente conseguiu exprimir um sentimento de empatia, ainda que tardio. A farsa, no entanto, desaba quando se toma conhecimento da impiedosa perseguição que sofrem os cristão mundo afora.

A ong Open Doors (Portas Abertas), fundada em 1955 por um fervoroso holandês, milita em favor dos 360 milhões de cristãos perseguidos no planeta simplesmente pelo motivo de serem cristãos.

Essa ong protestante publica todos os anos um “índice mundial” da repressão aos cristãos, esmiuçando todos os tipos de maus tratos. Em seguida, classifica os países numa escala que vai de “opressão diária discreta” até “violências extremas”. Frise-se que a imensa maioria das vítimas são de religião católica.

Em 2021, mais de 360 milhões de cristãos foram vítimas de perseguição, com variados graus de violência. Eles são católicos, ortodoxos, protestantes, batistas, evangélicos, pentecostais e outras denominações – distribuídos por 76 países. O número de cristãos assassinados em 2021 foi de 5.898. O número de igrejas e templos fechados, atacados ou destruídos foi de 5.110.

A China é a campeã de fechamento de igrejas. Aproveitando-se da crise da covid, quando tudo foi fechado, deixaram de autorizar a reabertura de templos cristãos. A Nigéria é a que mais assassina cristãos. O Afeganistão, desde que os talibãs assumiram o poder, é o pior país para um cristão viver sua fé.

A ilustração mostra os 50 países em que a perseguição dos cristãos é mais intensa. Observando bem, vê-se que a Nicarágua, citada no discurso de Bolsonaro, não aparece. Por que, então, esse país aparece na fala presidencial? Por que o Brasil só abre as portas para nicaraguenses, abandonando os demais à própria sorte?

Há duas hipóteses.

A primeira é que a equipe presidencial simplesmente não sabia da existência dessa ong – que, por sinal, está implantada também no Brasil. Sabe como é, falou em “ong”, Bolsonaro se arrepia todo, imaginando que são todos vagabundos de olho em nossas riquezas minerais. Logo, por esta primeira hipótese, a citação da Nicarágua no discurso fica por conta da ignorância presidencial.

A segunda hipótese é mais sutil. Sabedor de que Lula parece apreciar o ditador da Nicarágua a ponto de chamá-lo de “companheiro”, Bolsonaro quis matar dois coelhos de uma só cajadada. Deu uma alfinetada no Lula ao lembrar que o regime do “companheiro” nicaraguense persegue religiosos e mostrou-se magnânimo abrindo as portas do Brasil para acolher os perseguidos. Logo, esta segunda hipótese fica por conta da perfídia presidencial.

Pensando bem, o mais provável é que as duas hipóteses sejam verdadeiras, o que nos leva ao cruzamento da ignorância presidencial com a perfídia presidencial. Que Deus nos acuda!

A fome no mundo

José Horta Manzano

A agência de notícias EFE informa que o Brasil está exercendo a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU durante o mês de julho.

Ao assumir o encargo, Senhor Ronaldo Costa F°, nosso representante permanente junto à ONU, assegurou que “o Brasil vai promover a segurança alimentar que está em fase crítica em razão da guerra na Ucrânia”.

Nós todos aplaudimos de pé – quem não aplaudiria? Dá tristeza pensar nos milhões e milhões de humanos que logo logo vão começar a passar fome. São populações pobres da África e do Oriente Médio, cujo alimento básico é o pão, feito com trigo ucraniano.

Ao ler a notícia, pensei também nos 33 milhões de brasileiros que passam fome habitualmente, com guerra ou sem ela. O governo, que orienta seu representante a fazer declarações humanitárias na ONU, é o mesmo que despreza os famintos nacionais, porque são pretos, índios, pobres.

O Brasil vai “promover” a segurança alimentar no planeta. Eu me pergunto qual é o significado do verbo promover nessa frase. Vai despachar navios carregados de mandioca e milho para os famintos do mundo? Vai mandar uns trocados para assistir a esses infelizes? Ou vai ficar no discurso  estéril, só pra inglês ver?

A hipocrisia não tem limites.

Türkiye

O presidente da Turquia em convescote com seus ministros

José Horta Manzano

Governante esperto sabe tomar a temperatura do país e adotar medidas que reconfortem o povo. Nosso país, atualmente presidido por um senhor estranho que se esforça em solapar os interesses nacionais, está desacostumado de ver no trono um governante normal.

Em 2021, a inflação turca atingiu o patamar de 36%, o mais alto dos últimos 20 anos. Como se sabe, inflação nesses níveis desorganiza a economia, e quem mais sofre com isso são as classes populares. A carestia não perdoa e deixa um rastro de descontentamento.

Recep Erdoğan, que se mantém no topo do poder turco há duas décadas, botou o termômetro e constatou que sua popularidade está baixando. Agora não perde ocasião de se mostrar antenado com os anseios do povo turco. Suas decisões podem até nem ser de grande utilidade para o dia a dia da população, mas são espetaculosas.

Em inglês, o nome da Turquia é Turkey. Acontece que, como contei em post de alguns dias atrás, essa palavra, em inglês, tem função dupla. Tanto serve para dar nome ao país quanto para designar o o peru (a ave). Que se saiba, essa particularidade nunca incomodou nenhum turco.

Aliás, observe-se que os turcos usam a palavra portakal (derivada de Portugal) para dizer laranja, fato que jamais comoveu nenhum português. Esses mesmos turcos chamam o mês de abril de Nisan (pronuncie Nissan), sem que nunca se tenha ouvido reclamação por parte da montadora japonesa.

Com intenção de melhorar sua popularidade, o presidente turco teve uma ideia. Mandou carta ao secretário-geral da ONU solicitando que seu país não mais fosse chamado de Turkey, mas sim de Türkiye, que é a forma original turca. A ONU, que deixa a cada país-membro a liberdade de ser chamado como preferir, aceitou imediatamente o pedido.

A partir de agora, em todos os documentos oficiais da organização, a Turquia passou a ser identificada como Türkiye. Com isso, o presidente do país espera ser reconhecido por seus súditos como o protetor da nação, aquele que cuida dos interesses do país e do povo.

Só tem uma coisa: a mudança de nome é só pró-forma. Na pronúncia, vai ficar tudo como antes. Ao deparar-se com a inabitual forma Türkiye, os de língua inglesa continuarão a pronunciar… Turkey.

Vamos ver se a popularidade interna do presidente turco melhora. Tenho cá minhas dúvidas. Quando a carestia aperta, esse tipo de mudança cosmética costuma ser inócua.

Em todo caso, ele pelo menos terá tentado. O nosso, nem tentar tenta.

Conselho de Direitos Humanos

Conselho de Direitos Humanos
Resultado do voto de 7 abr 22 sobre a permanência da Rússia
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José Horta Manzano

O Conselho de Direitos Humanos é o órgão da ONU encarregado de promover e proteger os direitos humanos no planeta. É formado por 47 países-membros eleitos pela Assembleia Geral. Ontem, 7 de abril, as Nações Unidas se reuniram em assembleia geral.

A questão do dia era a exclusão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

Por alguma razão, uma vintena de países preferiram ausentar-se da sessão na hora do voto. Abaixo está o detalhe da escolha dos 175 que votaram.

93 países votaram SIM (a favor da exclusão da Rússia)
24 países votaram NÃO (contra a exclusão da Rússia)
58 países se abstiveram

Agora vamos a um joguinho de adivinhação.

Pergunta
Cite 5 países que votaram para excluir a Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

Resposta
Ora, essa é fácil. Dá pra citar até mais. Basta olhar para os países mais civilizados – ou daqueles que aspiram a entrar para o clube dos civilizados. Entre outros, sem surpresa: Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, França, Dinamarca, Portugal, Itália, Suíça. Mas também latino-americanos, inclusive vizinhos próximos: Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Costa Rica, Peru, Colômbia, Equador.

Pergunta
Cite agora 5 países que votaram contra a exclusão, ou seja, que julgam que a Rússia merece permanecer no Conselho de Direitos Humanos.

Resposta
Cuba, China, Coreia do Norte, Irã, Síria, Nicarágua, Bolívia. E a Rússia, evidentemente. Entram ainda nesta categoria os países que orbitam em torno da antiga União Soviética e que dependem de Moscou: Quirguízia, Uzbequistão, Casaquistão, Tadjiquistão.

Pergunta
Cite, pra terminar, 5 países que ficaram em cima do muro. São os que se acovardaram e preferiram se abster mostrando tibieza de posicionamento numa hora grave da humanidade. (A meu ver, optaram pela pior atitude: o não pronunciamento. Os outros países pelo menos tiveram a honradez de exprimir a posição; já os da turma de cima do muro se furtaram à própria responsabilidade.)

Resposta
O Brasil! Mas não estamos sozinhos. Em nossa companhia, estão a Guiné-Bissau, o Bangladesh, o Egito, o Catar, a Arábia Saudita, o Paquistão, a Indonésia.

Diz o adágio que quem cala consente. A não-reprovação da Rússia de Putin equivale a uma aprovação. Ou, pior, à indiferença diante do modus operandi de um país que, se deu grandes nomes à humanidade no passado, está dominado há 20 anos por uma casta de selvagens. E não merece ser admitido entre nações decentes.

Ah, se o Barão do Rio Branco imaginasse que, um século após sua morte, teríamos regredido a um tal estágio de acovardamento!…

A Amazônia é nossa

Amazônia: um condomínio de 8 coproprietários

José Horta Manzano

Nosso capitão continua imerso em confusão mental. Não tem capacidade de entender o que se passa fora de sua bolha. Se o que acontece no Brasil já lhe escapa, o que ocorre na martirizada Ucrânia está totalmente fora de seu alcance.

Bolsonaro, que não lê e só se informa pelo que contam seus aduladores pelas redes sociais, não sabe os comos e os porquês do que se passa no mundo. Rússia, para ele, é aquele país muito grande, em que ele passou um frio danado ao descer do avião, por ter esquecido de perguntar qual era a temperatura externa.

Deve-se lembrar também que a Rússia é o país onde outro dia ele teve de dar as narinas cinco vezes ao teste anticovid, mas em seguida foi recebido como um rei por um baixinho de nome meio cômico que até parece palavrão. Deve saber ainda que seus amigos agrotrogloditas brasileiros importam fertilizantes da Rússia. Afora isso, não deve saber grande coisa. Pelo que se vê, seus áulicos também não.

Nem de longe ele consegue perceber que nosso planeta se encontra em uma daquelas esquinas cruciais da História, num daqueles momentos em que o futuro da humanidade nas próximas décadas está sendo equacionado.

Talvez não lhe tenham contado que, dois dias atrás, quando a assembleia geral da ONU aprovou uma moção exigindo a retirada imediata das tropas russas da Ucrânia, apenas 5 dos 193 países-membros se opuseram. O Brasil aprovou a moção, decerto à revelia do próprio Bolsonaro.

Reconheço que, ao escrever os parágrafos acima, forcei um pouco nas tintas. Pouco. O exagero é leve. A verdade não está muito longe. Acho até injusto espalhar a responsabilidade pelos membros do clã e da equipe do capitão. Se ele mostrasse interesse, tenho certeza de que encontraria rapidamente assessores bem informados e solícitos, prontos a esclarecer. O problema é que ele não quer. E ponto final, talquei?

O mundo está atento a cada fragmento de informação que chega do front. Noite passada, bombas caíram a alguns metros da maior central nuclear da Europa, no sul da Ucrânia, com 6 reatores e geração total de 6.000 megawatts (Angra 1 gera 640 megawatts). Mais de um milhão de cidadãos daquele país já encontraram refúgio nos países vizinhos, onde estão sendo acolhidos com carinho. Ontem, o presidente da França, depois de passar hora e meia (contadas no relógio) em conversa telefônica com Putin, fez comentário assustador: “O pior ainda está por vir”.

Enquanto isso, nosso esclarecido capitão continua firme em seu fascínio por Putin. Parece até que tem atração por homens poderosos – Trump, de estatura avantajada, e agora Putin, menos dotado pela natureza, com seu metro e setenta. Ainda ontem, fez declaração agradecida ao ditador russo. Confessou estar feliz pelo cala-boca que Putin teria dado ao mundo sobre uma suposta e irreal internacionalização da Amazônia brasileira.

Pouco inteirado da realidade, Bolsonaro acredita que as expressões Amazônia e Amazônia brasileira são sinônimas. Não são. A Amazônia – falo da floresta integral, ou do que resta dela – se estende por 8 países. O Brasil tem, portanto, 7 sócios nessa região. A internacionalização, seja lá o que isso possa significar, da Amazônia é irrealizável. Teria de expropriar parte do território de 8 países, um dos quais é a própria França (Guiana Francesa). Seria um quebra-cabeça impossível de resolver.

Embora a espoliação da Amazônia brasileira seja o pesadelo número 1 de muito general, e do próprio Bolsonaro, ela é inviável. Inviável não: ela acontece diariamente. A espoliação vem sendo praticada por garimpeiros, madeireiros e grileiros ilegais, nas barbas do andar de cima. Ou com sua cumplicidade.

Portanto, quem tiver contacto com o capitão faça a fineza de informá-lo que não precisa reverenciar Putin, visto que não é a Amazônia brasileira que está prestes a ser ocupada por sabe-se lá que exército. É o mundo que está diante de uma encruzilhada. O embate é entre a democracia e a autocracia oligárquica. Estamos decidindo em que mundo queremos viver.

Não convém confiar em autocratas. A Ucrânia também acreditava que os russos eram um país-irmão. Até que um dia os mísseis de Putin começaram a derrubar prédios e seus tanques de guerra invadiram o país.

No dia em que zunirem os mísseis de Putin, o que é que Bolsonaro vai fazer? Pedir ajuda a quem, se já se indispôs com todos?

Genocida, não!

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 janeiro 2022

A validade de um estudo científico só é autenticada depois de ele ter sido avaliado e abonado por um conjunto de reconhecidos cientistas da mesma área. É o que os ingleses chamam ‘peer review’.

Costuma-se traduzir essa expressão como ‘revisão por pares’, ‘revisão paritária’ ou até, um tanto desajeitadamente, ‘arbitragem’. A tradução flutuante vem do fato de não ser comum, entre nós, designar de “pares” os que exercem a mesma função ou os que pertencem à mesma categoria. Assim, qualquer tradução literal periga sair meio manca. Mas, pela atual tendência de integração de conceitos estrangeiros a nossa língua, a solução já foi encontrada: mantém-se a expressão inglesa, com casca e tudo.

A organização MedRxiv, cujo estranho nome se deve pronunciar “med-archive” (‘arquivo médico’) é um repositório online de preprints da área médica, clínica e de saúde. Preprint, como o nome sugere, é a publicação prévia de artigo científico ainda não validado pelos pares.

Agora vamos aos fatos. Alguns dias antes do fim de dezembro 2021, uma dezena de cientistas brasileiros assinaram, sob forma de preprint, um alentado estudo sobre a correlação entre vacinação, hospitalização e morte de maiores de 60 anos. A primeira constatação, como se imaginava, é de que a taxa de óbitos decresce à medida que a vacinação se generaliza.

Em seguida, os signatários do estudo valeram-se de fórmulas complicadas demais para serem descritas por não-iniciados como este escriba. O que interessa são as conclusões. E elas são comprometedoras para o governo brasileiro. O incrustado negacionismo gerado pela ignorância presidencial custou caro ao país. Em vidas humanas.

O estudo estima que milhares de idosos brasileiros foram salvos pela vacinação: um total de 75 mil, só no ano de 2021. Não fosse a vacina, esse contingente já não estaria mais entre nós. Essa é a parte decente da história. Em paralelo, há um lado bem mais sombrio.

Todos se lembram dos esforços envidados pelo capitão para frustrar – ou, pelo menos, retardar – a compra de vacinas anticovid. Baseados em análise dos dados e em cálculos atuariais, os cientistas chegam à conclusão de que, se a vacinação tivesse começado 8 semanas antes, 48 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Quarenta e oito mil mortes! Para efeito de comparação, essa hecatombe equivale à queda de 185 Boeings modelo 767 lotados, com 260 passageiros cada um, sem nenhum sobrevivente pra contar a história. Ou 4.800 desastres como o de Capitólio (MG), que ocupou as manchetes com suas 10 vítimas – um Capitólio por dia, durante 40 meses sem parar. Estamos falando apenas das mortes evitadas.

Muitos chamam Bolsonaro de genocida. Estão errados. Genocídio é palavra relativamente recente, criada nos anos 40 e oficializada por convenção da ONU de 1948. A definição é rigorosa: exterminação sistemática de um grupo humano por motivos de raça, língua, nacionalidade ou religião. É, portanto, limpeza étnica – um ato extremado levado a cabo por motivos religiosos ou por loucura.

Os atos de Bolsonaro não correspondem à definição. Sabe-se que ele não gosta de pobre, mas a negação da pandemia não causou morte só de pobres. Sabe-se que ele tem medo de “comunista”, mas o atraso na compra das vacinas não mandou só “comunistas” pro cemitério. Sabe-se que ele é misógino, mas a louvação da cloroquina não matou só mulheres.

Bolsonaro tem alguns parafusos soltos. Sua loucura é apimentada por ignorância, poltronice e preguiça – condimentos explosivos, mas que não chegam a configurar um genocida que se preze. Genocidas verdadeiros, não houve tantos assim. O século XX conheceu alguns dos grandes, tais como Hitler (Alemanha), Pol Pot (Cambodja) e Stalin (URSS). Há outros menos conhecidos. Por mais que tenha feito, nosso capitão não entra nessa categoria.

Genocídio requer método e planejamento, conceitos que não frequentam o universo mental de Bolsonaro. Ele não passa de um ser perturbado, atrasado, sem instrução, paranoico, que chegou à Presidência numa esquina da história que não se repetirá. Está mais pra patacão que pra genocida.

Aerolula x Aerobolso

José Horta Manzano

Acho que ninguém esqueceu de quando, no longínquo março de 2020, Bolsonaro foi visitar o amigo Trump, que o recebeu em seu resort particular de Mar-a-Lago.

Na volta, 22 integrantes da comitiva, que tinham viajado no Aerolula (que agora deveríamos chamar de Aerobolso ou talvez Aeronaro) receberam resultado positivo no teste anticovid. Vinte e dois!

Passou-se exatamente um ano e meio durante o qual Bolsonaro praticamente não viajou para o exterior. Por um lado, foi por causa da covid. Por outro, é porque ninguém quer ser visto ao lado do capitão. Dado que fogem dele como da peste, ninguém o convida.

Ele então aproveitou a ocasião da abertura dos trabalhos anuais da ONU para dar um pulinho a Nova York. Aproveitou pra vacinar a esposa e pra levar a turma pra espairecer, gastar nosso dinheiro em hotéis estrelados e fazer umas comprinhas com o cartão corporativo. A ONU de Nova York é o único lugar aonde ele pode ir sem ser convidado, ainda que o preço a pagar seja comer pizza na calçada.

Na volta, os infetados por covid já começaram a aparecer. O primeiro foi o próprio ministro da Saúde (da Saúde!), aquele que cometeu o delicado gesto de apontar o dedo maior em riste aos que demonstravam não gostar do chefe dele. Em seguida, começa a cair gente graúda. Saiu hoje a notícia que o presidente da Caixa é a 4a vítima. Se não apareceu mais gente contaminada, é porque muitos – provavelmente todos, com exceção de Bolsonaro – estão vacinados.

Esse avião presidencial está mais pra navio fantasma, embarcação mal-assombrada, carroça com urubu trepado. Será praga do presidente barbudinho que preferiu comprar essa aeronave, deixando pra trás a nacional Embraer?

Não sei, mas, se fosse eu, mandava benzer esse avião. Eu é que não punha os pés lá dentro, nem que me pagassem.

Bolsonaro em NY: o que restou?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 setembro 2021

Uma imagem vale mil palavras. De fatos antigos, acontecidos num tempo em que não havia como fixar uma cena no instante em que ocorria, o único testemunho que ficava era a palavra escrita. Episódios importantes para construir e estruturar nações foram retratados em pintura, com anos de atraso, o que ajudou a forjar a memória nacional.

É o caso da tela pintada por Pedro Américo que retrata o momento em que Dom Pedro, então príncipe-regente, levanta a espada e lança seu grito de “Independência ou Morte”. No imaginário coletivo brasileiro, não restam dúvidas: a cena do brado ocorreu exatamente como aparece no quadro, pintado quase 70 anos depois do ocorrido. É caso típico de imagem que vale mil palavras.

Dia 19 de setembro, Bolsonaro e comitiva desembarcaram em Nova York. A finalidade do deslocamento de dezenas de pessoas – ministros, assessores e pessoal técnico – era coadjuvar o chefe, que leria um discurso de 15 minutos na abertura dos trabalhos anuais da ONU. Aos dirigentes de todos os países-membros (presidentes, primeiros-ministros, emires & assemelhados), tinha sido dada a possibilidade de enviar, com antecedência, um vídeo pré-gravado, a ser projetado no devido momento. O Brasil podia ter escolhido esse caminho, econômico e eficaz. A China e tantos outros fizeram. Desconheço as razões que levaram Bolsonaro a comparecer à cerimônia para ler, de corpo presente, o texto que lhe haviam preparado.

Obedecendo a uma lógica misteriosa e singular, o capitão até hoje não se vacinou contra a covid. Ainda que pareça bizarro, gaba-se disso e faz questão de revelar a turra a quem quiser ouvir. Nenhum outro integrante da comitiva admitiu ter rejeitado a vacina. A exceção fica por conta do general Ramos, que, faz meses, confessou ter-se vacinado às escondidas, que é pra não desagradar ao chefe. Vista a ausência de confissão por parte dos demais integrantes, é permitido concluir que sim, todos estão vacinados. Portanto, o engajamento deles junto ao capitão não se faz por adesão cega à doutrina bolsonarista nem por amor incondicional a piqueniques de rua. Os motivos de cada um serão outros, que não convém aqui esmiuçar.

A cidade de Nova York não permite que não-vacinados adentrem espaços públicos fechados: museus, teatros e, naturalmente, restaurantes. O capitão sabia disso antes de partir. Talvez tenha imaginado que um figurão como ele ia poder escapar a certas regras chatas, como acontece em Pindorama. Não deu certo. Por aquelas bandas, não é não. Como resultado, logo na primeira noite em solo americano, o jantar da turma foi um pedaço de pizza de cara gordurosa, degustada de pé, numa sinistra calçada nova-iorquina, por um grupo sorridente e desinibido.

Pouco se disse sobre a encorpada composição da excursão aos EUA: 8 ministros, 5 assessores de primeiro escalão, o presidente da Caixa, dois embaixadores, a primeira-dama e um dos bolsonarinhos, aquele que é deputado. Na foto da degustação da pizza de calçada, falta pelo menos metade desse povo. Onde estarão? Não gostam de pizza e foram comer pastel do outro lado da rua? Ou resolveram desafiar a ira do chefe e tiraram do bolso o papelucho proibido: um certificado de vacinação? A história não diz.

No dia seguinte, a fotografia da fina flor do Executivo brasileiro reunido para comer pizza junto à sarjeta saiu na imprensa mundial. Além de veículos óbvios, como os dos EUA, do Canadá, da França, de Portugal, da Espanha, da Itália e da Alemanha, outros, menos prováveis, publicaram a foto e o relato da situação a seus incrédulos leitores. Cheguei a ver a notícia, com foto e tudo, em jornais da Turquia, da Noruega, da Suécia, dos Emirados e até do Sri Lanka. Se você achava que ninguém nunca zombaria de seu país, pode se desenganar: Jair Bolsonaro & sua tribo já se encarregaram de tornar realidade esse pesadelo.

Dois dias mais tarde, Bolsonaro leu seu discurso na tribuna na ONU. O que a história marcou, porém, é que o fato mais importante produzido na excursão não foi exatamente a fala do capitão. O discurso, um farto tecido de fatos falsos ou distorcidos, não interessou a ninguém. A imprensa mundial não deu importância. O que ficou na história, isso sim, foi a imagem do extravagante piquenique. Vai fazendo cada dia mais sentido: na política brasileira, quando se encomenda a pizza, é porque a comédia está chegando ao fim.

 

 

Tendo chegado a NY sem certificado covid, Bolsonaro opta por comer na rua
Excelsior, México

 

 

Bolsonaro: recusada a entrada em restaurante
Expressen, Suécia

 

 

Não vacinado, Bolsonaro come pizza numa calçada de Nova York
Khaleej Times, Emirados Árabes

 

 

Em NY, Bolsonaro come pizza na rua por não estar vacinado
Leggo, Itália

 

 

Bolsonaro teve de comer pizza numa rua de NY por falta de certificado de vacina
Los Andes, Argentina

 

 

Boris Johnson sugere a Bolsonaro vacinar-se com AstraZeneca
Nation, Sri Lanka (Ceilão)

 

 

 

O presidente não pôde ser servido, mas poderá entrar no recinto mais importante (a ONU)
Nettavisen Nyheter, Noruega

 

 

Não vacinado, Bolsonaro entra no regime “pizza-coca” nas ruas de NY
Ouest France, França

 

 

Por que o presidente Jair Bolsonaro está comendo pizza na rua em NY?
South China Morning Post, China

 

 

 

“Jantar de luxo em NY”
Não-vacinado, Bolsonaro tem de comer pizza na calçada
Der Tagesspiegel, Alemanha

 

 

Bolsonaro, que foi à assembleia da ONU em NY, não pôde entrar em restaurante por não estar vacinado
T24, Turquia

 

 

Bolsonaro na ONU

José Horta Manzano

Assim como eu, o distinto leitor certamente se dá conta da importância da imagem que um país dá ao mundo externo. Os estrangeiros não estão necessariamente a par de tudo o que acontece no Brasil. É capaz de não saberem da crise hídrica, da suspensão da vacina para adolescentes, da situação de miséria crônica em que se debate grande parte do povo, da violência – verbal e física – que se tornou a forma preferencial de expressão do brasileiro.

Também não imaginam que o Lula não era exatamente o “pai dos pobres”, o sujeito bonzinho e injustiçado, que só trabalhou em favor dos desvalidos, e que acabou sendo castigado por ter sido bom. Não sei se já se deram conta de que o governo Bolsonaro é tão recheado de corruptos quanto todos os que antecederam – talvez até pior. Se ainda não acordaram, logo toca o despertador.

Seja como for, a melhor política é não deteriorar a imagem que nosso país projeta. Se nada se pode fazer para melhorar, que pelo menos não se trabalhe para piorar. A começar pelo primeiro escalão da República.

Embora não tenha a visibilidade de uma Copa do Mundo de Futebol, a abertura anual dos trabalhos da ONU é acompanhada ao redor do globo. Bolsonaro não era obrigado a comparecer. Em várias ocasiões, o Brasil já chegou a ser representado por um um ministro, não pelo presidente. Podia também ter optado por mandar um vídeo gravado. Preferiu ir pessoalmente. Nada contra. Só que…

Só que, sacumé, Bolsonaro é Bolsonaro. Ele é sempre igual a si mesmo, nunca muda. De espírito arruaceiro, adora transgredir. Se não pode pescar, ele pesca. Se não pode andar sem máscara, ele vai de cara nua. Se tem de se vacinar, ele não se vacina. E faz isso com muito orgulho. Sua egolatria lhe ocupa todo o espaço mental, sem deixar lugar para outro pensamento.

É por isso que não se dá conta de que não foi a Nova York a turismo, mas como representante de mais de 200 milhões de conterrâneos seus, todos seres humanos como ele. Seus atos e gestos transbordarão da esfera pessoal para serem interpretados como a expressão da vontade dos brasileiros. É o Brasil inteiro que, tendo recusado a vacina, foi barrado no restaurante e obrigado a comer pizza na rua, de pé, sem prato, plantado numa calçada sinistra, com a mão nua segurando o petisco gorduroso.

Agora já é terça-feira, e Bolsonaro acaba de discursar. Assisti ao vivo. Foi uma fala sem importância, saudada por aplausos protocolares vindos de uma plateia mais interessada no discurso seguinte – o de Joe Biden. O pronunciamento do capitão foi o que se esperava: pra inglês ver. Segundo ele, nossa cobertura vegetal está intacta desde o descobrimento. Todos os habitantes do território vivem num país de conto de fadas, felizes, dinheiro no bolso e feijão no prato. E, com a graça de Deus, protegidos contra o perigoso comunismo que bate às portas. De que anda reclamando esse povo venturoso?

Todos sabem que o que o capitão diz não se escreve. Sua palavra vale tanto quanto uma nota falsa. Portanto, o que ele disse, tanto faz como tanto fez. Não vai mudar a visão que o mundo tem de nosso país e de nosso governante. Infelizmente.

Você tem carteira?

José Horta Manzano

O especialista em relações internacionais Jamil Chade, baseado em Genebra, foi durante anos correspondente do Estadão. Na coluna que assina atualmente no UOL, trouxe hoje informação importante e pra lá de preocupante.

Faz alguns meses que a ONU, diante do descalabro que a pandemia representa especialmente para países menos afortunados, instituiu um programa especial visando a garantir, na medida do possível, que todos os habitantes do planeta tenham acesso à vacina anti-covid. O programa, chamado Covax, tem exigido alentado esforço de coordenação.

Até o presente, o Covax já recebeu a adesão oficial de 95 países. A Europa inteira e até a China confirmaram presença. No começo, o governo brasileiro fez corpo mole. Talvez, sem confessar, contasse com a mão amiga e benevolente de um Trump firme no governo que, em atenção à sólida amizade que tem com nossa primeira famiglia, nos garantiria, a tempo e a hora, acesso às vacinas americanas. Em quantidade ilimitada e ao melhor preço.

O tempo passou, Trump rodou e o plano gorou. Ao fim e ao cabo, o Brasil se encontra hoje em posição precária. O programa Covax oferecia a cada país o direito de comprar vacina suficiente para um mínimo de 10% e um máximo de 50% da respectiva população. O Brasil optou pelo mínimo: 10% dos habitantes. Portanto, a menos que comece a chover vacina nos próximos meses, é magra a chance de o distinto leitor ser beneficiado pelas vacinas do programa Covax: não mais que 1 chance em 10.

Se não conseguir ser atendido (e se a “vacina do Doria” não for suficiente para toda a população brasileira), só resta um caminho: dar uma carteirada pra furar a fila. Falando nisso, você tem carteira?

Observação
Apesar da importância, o assunto tem sido pouco divulgado entre nós. Note-se que é compreensível. Ficaria estranho se a população soubesse que um governo que, além de ser anti-vacina e estar infestado de terraplanistas e negacionistas, se inscreveu na fila dos que querem receber vacina. Pegava mal pra cachorro. A militância era capaz de entrar em greve. E os bots também.

Que clique aqui quem quiser conhecer a história tim-tim por tim-tim.

Discurso na ONU

José Horta Manzano

Salvo intérpretes simultâneos, ninguém presta muita atenção aos discursos pronunciados na abertura da sessão anual da ONU. Intérpretes, naturalmente, são obrigados, por dever de ofício, a não perder uma palavra. Fora eles, cada um dá importância ao discurso de seu presidente. E a mais nada.

Não escutei todos os discursos – só faltava! –, mas acompanhei o de Bolsonaro, o de Trump e o de mais meia dúzia de dirigentes. Não pretendo aqui fazer análise comparativa entre todos, mas vou revelar a impressão que algumas passagens me deixaram.

Os discursos de Trump e de Bolsonaro seguiram linha semelhante: traziam ambos a palavra de um governante acuado, angustiado, preocupado com o próprio destino. Tanto o discurso de um quanto o do outro se destinavam ao público interno.

Sabe-se que Trump anda pisando em ovos, de olho nas eleições de novembro. Sabe-se também que Bolsonaro anda sentindo o cerco da justiça e da polícia ao próprio clã. Nas entrelinhas, o discurso de ambos deixava transparecer essa preocupação.

Sem atuação internacional digna do tamanho do país, Bolsonaro mencionou as forças de paz que, ao longo da história, contaram com participação de militares brasileiros. Ah, a falta que uma política internacional faz!

Uma diferença notável entre os discursos lulopetistas e o de Bolsonaro é que aqueles reivindicavam, a cada ano, um lugar para o Brasil entre os grandes, com direito a assento permanente no Conselho de Segurança. Com Bolsonaro, parece que o Brasil se acomodou no papel de coadjuvante.

Tanto Trump quanto Bolsonaro se gabaram de ter feito tudo o que não fizeram. Ambos pintaram um quadro de combate à pandemia como se tivessem sido eles os idealizadores. Nada mais falso; foram eles o principal empecilho. Bolsonaro teve o topete de sugerir que foi ele quem deu instruções a prefeitos e governadores. Todos sabem que não foi assim; prefeitos e governadores tiveram que batalhar firme para aplicar as políticas preconizadas pelas autoridades sanitárias mundiais.

Sem se dar conta da contradição, Bolsonaro diz o sim e o não, o verso e o reverso. E faz isso na mesma frase. Em exercício de negacionismo explícito, disse que a floresta, por ser úmida, é incombustível. Logo a seguir, quase sem pausa pra respirar, acrescentou que as queimadas são provocadas pelo caboclo e pelo índio que queimam o roçado em busca da sobrevivência. Afinal, o mato queima ou não queima, doutor?

Trump e Bolsonaro destoaram da polidez aveludada que costuma reinar naquele recinto. O americano atacou veementemente a China, acusando seu maior parceiro comercial de todos os males. O brasileiro acusou (sem provas) a Venezuela pelo derramamento de óleo que atingiu nosso litoral no ano passado. Como se sabe, a origem daquele desastre nunca ficou estabelecida com segurança.

Ficou mais uma vez demonstrado que presidente de uma república não pode ser improvisado. As falas de Trump e de Bolsonaro são a prova disso. Ambos são gente saída não se sabe de onde, sem eira nem beira, oportunistas sem o mínimo de cultura e de abertura de espírito indispensáveis para exercer a função que lhes foi outorgada.

Bolsonaro pronunciou (e louvou) o nome de Trump, o que não é habitual, nem fica bem. Escancara uma subserviência que só faz rebaixar a «soberania» reclamada pelo Planalto. O presidente de Cuba não perdeu a ocasião para queixar-se do «império» (leia-se os EUA); é recorrente.

A Rússia foi feliz na instalação das bandeiras como pano de fundo, atrás de Vladimir Putin. Apareciam, lado a lado, a bandeira nacional e a da ONU. Ficou bonito. Tanto a estética quanto a simbologia ficaram nos trinques.

No fundo, o que mais me agradou da apresentação do Brasil foram as legendas. Tradução benfeita e legenda colocada à margem inferior, permitindo visão integral da imagem. A tradução foi impecável. Pena não se poder dizer o mesmo do discurso. Mas disso a gente já sabia. Ou não?

Lula em Genebra

José Horta Manzano

O distinto leitor há de se lembrar que, pouco antes das eleições de 2018, Lula da Silva solicitou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU que desse parecer sobre a possibilidade de ele – então preso em Curitiba – se candidatar. Numa liminar, o Comitê recomendou ao governo brasileiro que deixasse o Lula ser candidato. Nosso governo repeliu a recomendação, numa decisão, a meu ver, acertada. Aceitar a injunção teria ofendido a soberania do Brasil e de seu Judiciário.

Aproveitando seu atual giro turístico em terras europeias, o ex-presidente desembarcou em Genebra faz dois dias. Veio pressionar pessoalmente o Comitê. Seu objetivo deixou de ser a candidatura às últimas eleições; essas são águas passadas. Quer agora que a entidade lhe conceda uma espécie de salvo-conduto, de absolvição ampla e irrestrita – uma carta branca que apague e anule os erros do passado, as condenações, as penas e suas consequências.

Genebra (Suíça), seu lago e seu jato d’água

A empreitada não é simples. Sem querer prejulgar o processo, é difícil imaginar o egrégio Comitê de Direitos Humanos da ONU afrontando a Justiça brasileira em decisão colegiada e final. Lula já foi condenado em três instâncias. Não dá mais pra falar em perseguição contra sua inflada pessoa unicamente por obra de doutor Moro.

Quanto ao resultado da solicitação, quem viver verá. Pelo momento, fico imaginando que o Lula deve ter economizado um bocado pra poder se oferecer o luxo desta viagem. Paris e Genebra são conhecidas pelo elevadíssimo custo de vida. Como é que ele faz pra pagar viagem, hotel, refeições e tutti quanti? O homem deve estar com dinheiro saindo pelo ladrão. (Sem alusões.) Sua bênção, padrinho!

Great again

José Horta Manzano

Tem coisas que a gente não entende. Parece que essa gente que nos governa tem uns parafusos soltos. É verdade que não roubam tanto quanto os lulopetistas. (Pelo menos não se divulgou, até agora, nenhum assalto maior.) No entanto, são estranhos; tomam atitudes estrambóticas; dão tiro no pé, um atrás do outro.

Alguns meses atrás, deram de insultar autoridades estrangeiras, especialmente francesas. Esquecidos de que o desenvolvimento cultural do Brasil deve mais à França do que a qualquer outro país, insultaram a esposa do presidente Macron. E não foi lapso de um desavisado. Na brecha aberta pelo presidente, entraram o ministro da Economia e o ministro das Relações Exteriores(!). Coisa de adolescente maluquinho e descompromissado com a seriedade do cargo.

Faz alguns dias, vazou – por negligência ou intenção – um relatório sobre a segurança nacional, elaborado pelas autoridades militares cuja função maior é a defesa do território. Entre outras alucinações, pode-se ler que, no horizonte do próximo quinzênio, o maior inimigo potencial do Brasil é… a França. A França! Os que queimaram as pestanas pra chegar a essa conclusão são, com certeza, mais iluminados que nós outros.

Um enredo provável da catástrofe está explicitado no dito relatório. Segundo o documento, a França aglomeraria forças na Guiana Francesa, prontas a tomar posse dos cinco milhões e meio de quilômetros quadrados da Amazônia brasileira, área equivalente a dez vezes o território francês. De quebra, ocupando Belém, Manaus e todas a cidades e vilas da região. A legitimação internacional viria da ONU, pressionada pela França.

Fica a impressão de que os autores do enredo têm assistido demais a telefilmes de série B, daqueles em que o herói branco, alto, forte e loiro consegue – com meia dúzia de capangas – tomar de assalto uma inteira republiqueta de mestiços. E dizer que o relatório ‘vazado’ emana do Ministério da Defesa da República do Brasil. É desconcertante.

“Persiste o curto-circuito entre Paris e Brasília”
Les Echos (equivalente a nosso Valor Econômico)

Antes que o bom senso escoe de todo pelo ralo da ignorância, recomenda-se que os iluminados que vazaram o ridículo relatório se lembrem de que Brasil e França estão compromissados num negócio bilionário, em andamento há vários anos, envolvendo a compra de 4 submarinos da classe Scorpène. Um deles, o Riachuelo, já foi entregue. Faltam 3, todos eles já batizados: o Humaitá, o Tonelero e o Angostura. A França fornece; o Brasil compra.

Não convém acusar de «pior inimigo do Brasil» justamente aquele país de quem se está comprando sofisticado material militar. A repercussão desse assunto na França foi abominável. O gênio militar brasileiro está sendo motivo de zombaria.

Imagino que, por detrás dessa enormidade, esteja a paranoia de doutor Bolsonaro. Esse desequilíbrio de personalidade de nosso presidente está custando caro ao país. Quando o doutor se for, teremos de encontrar um presidente equilibrado, com parafusos ajustados, disposto a «Make Brasil great again – Fazer o Brasil voltar a ser grande». Ou, pelo menos, “parar de se apequenar”.

Ex aurea etiam sede in paludem rana resilit
Até de um trono dourado, a rã pula sempre de volta ao pântano
Máxima latina

Visto negado

José Horta Manzano

Não sei se a ideia terá saido direto da cabeça de Mr. Trump ou da de algum acólito. Tanto faz. Combina com o estilo de caubói truculento que, para azar dos americanos e do resto da humanidade, está aboletado na Casa Branca. O fato é que os EUA negaram, esta semana, visto de entrada no país ao ministro de Relações Exteriores do Irã. O estrangeiro não tencionava fazer turismo nos Estados Unidos, mas participar de uma reunião do Conselho de Segurança da ONU. Como todos sabem, a sede principal da organização está situada exatamente em Nova York.

Que fique claro: não estou aqui louvando o regime dos aiatolás e tampouco recebi procuração para defendê-los; o problema não é esse. O nó está em outro lugar.

Em 1945, a Organização das Nações Unidas estava em formação sobre os escombros da Segunda Guerra. A primeira assembleia teve lugar em 1946, em Londres. Naquela ocasião, os países-membros decidiram aceitar a proposta do Congresso americano de instalar a sede principal nos EUA. Depois de longa hesitação na escolha da cidade que acolheria a organização, ficou acertado que seria em Manhattan, Nova York.

O imenso edifício levou 5 anos pra ser construído. Foi inaugurado em 1951. Um tratado foi então assinado entre a ONU e os EUA. Entre outras especificidades, a sede nova-iorquina goza de estatuto de extraterritorialidade, exatamente como qualquer embaixada. O governo dos EUA comprometeu-se a conceder visto de entrada a toda autoridade estrangeira que o solicitasse. Isso demonstra que, tendo em vista que a sede da ONU goza de estatuto extraterritorial, a entrada do estrangeiro nos Estados Unidos nada mais é que passagem. Ele faz o percurso do aeroporto até Manhattan como qualquer passageiro em trânsito.

Portanto, se a notícia da não concessão de visto ao ministro iraniano for verdadeira, temos aí escândalo de proporções planetárias. Pode-se discutir se o assassinato do general iraniano, ordenado por Donald Trump em pessoa, foi ato de guerra ou não. Pode-se também discutir se a retaliação iraniana foi atentado terrorista ou não. Toda opinião é respeitável e cada um tem a sua. Já quanto ao visto negado, no entanto, nenhuma discussão é permitida: trata-se de atentado contra o bom senso. É não cumprimento de palavra dada. Os EUA estão renegando o compromisso que assumiram ao acolher a ONU. O presidente do país não tem o direito de atropelar o que foi combinado.

Quando doutor Bolsonaro, com seu linguajar tosco, ofende a honra e a dignidade de jornalistas que o vêm entrevistar, ninguém diz nada. Todos enfiam o rabo no meio das pernas e engolem qualquer patacoada como se natural fosse. Espero que a banda pensante dos dirigentes do planeta não se acovarde. Não se pode conceder a Donald Trump o poder de tomar esse tipo de decisão por conta própria. Da próxima vez, pra contornar esse estropício, a ONU devia usar sua sede europeia, situada em Genebra (Suíça). O civilizado governo suíço jamais negará visto a ministro nenhum.