Eremildo, o idiota

Elio Gaspari (*)

Eremildo é um idiota e acredita em tudo que o governo diz. Ele aplaudiu de pé o decreto que obriga os postos de gasolina a mostrar a evolução do preço do litro.

O cretino sugere a expansão da medida. As quitandas seriam obrigadas a mostrar o preço do tomate, do arroz e do feijão antes da posse de Bolsonaro. A gasolina, por exemplo, custava R$ 2,60.

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 10 jul 2022 n’O Globo. Aqui para assinantes.

Honrou a toga

Elio Gaspari (*)

O ministro André Mendonça foi terrivelmente ingênuo, até impróprio, na manhã de quinta-feira, quando foi às redes sociais para explicar seu voto do dia anterior condenando o deputado Daniel Silveira. Justificou-se como cristão e como jurista.

Juízes, diferentemente de vereadores e deputados, não devem explicações ao seu eleitorado. Decidem, e ponto final. Mendonça decepcionou os bolsonaristas que esperavam dele uma conduta à la general Pazuello. Podia ter pedido vistas, retardando o resultado do julgamento do deputado. Seria uma chicana vulgar. Podia ter acompanhado o voto de seu colega Nunes Marques, absolvendo o réu. Preferiu condená-lo a dois anos de prisão.

Afora a chicana do pedido de vistas, não havia o que fazer. Ao votar pela condenação mostrou que, uma vez no tribunal, demarcou a linha de sua independência. Por onde ela passa, só o tempo dirá, e ele ficará na Corte até dezembro de 2047: “Mesmo podendo não ser compreendido, tenho convicção de que fiz o correto.”

Quando um cidadão é nomeado para o Supremo Tribunal Federal, espera-se dele apenas isso. É verdade que alguns ministros do tribunal se comportam como criaturas da política, ora buscando holofotes, ora cabalando nomeações de servidores. São pontos fora da curva do ideal.

Ao se explicar nas redes sociais, Mendonça foi ingênuo. Contrariou o desejo de pessoas que esperavam dele o comportamento de um miliciano e nada poderá fazer, salvo alistar-se numa milícia judiciária.

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 24 abr 2022 n’O Globo. Aqui para assinantes.

O sonho e o pesadello

Elio Gaspari (*)

Sonham acordados
Quando o governador João Doria anunciou que em janeiro começaria a vacinação em São Paulo, o secretário executivo do Ministério da Saúde, coronel da reserva Élcio Franco (aquele que usa brochinho de crânio atravessado por uma faca), disse o seguinte:

– Senhor João Doria, não brinque com a esperança de milhares de brasileiros, não venda sonhos que não possa cumprir, prometendo uma imunização com um produto que sequer possui registro nem autorização para uso emergencial.

No dia 17 de janeiro, foi vacinada no Hospital das Clínicas a enfermeira Mônica Calazans.

Jogo jogado
Na quinta-feira, a repórter Paula Ferreira mostrou que Franco encaminhou ao Senado uma planilha informando que neste mês o ministério distribuirá 38 milhões de vacinas.

No dia 17 de fevereiro, o general Eduardo Pazuello anunciou que entregaria 46 milhões de imunizantes. Onze dias depois, a previsão baixou para 39,1 milhões.

Em duas semanas, evaporaram-se 7,9 milhões de vacinas.

O doutor deveria entrar na sala do general Pazuello admitindo:

– Chefe, estamos brincando com a esperança de milhares de brasileiros, vendendo sonhos que não podemos cumprir.

(A conta do Ministério da Saúde inclui 8 milhões de doses de um laboratório que ainda não deu entrada ao pedido de autorização da Anvisa, mas deixa pra lá.)

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 7 março 2021.

Esquerdalha

Elio Gaspari (*)

Em agosto de 2019, quando Alberto Fernández venceu as primárias para a Presidência da Argentina, Jair Bolsonaro resolveu atravessar a fronteira para escorregar numa casca de banana em terras alheias:

“Não esqueçam que, mais ao sul, na Argentina, o que aconteceu nas eleições de ontem. A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma de Dilma Rousseff, que é a mesma de Hugo Chávez, de Fidel Castro. (…) Se essa esquerdalha voltar aqui na Argentina, nós poderemos ter no Rio Grande do Sul um novo estado de Roraima”.

Era o tempo em que venezuelanos atravessavam a fronteira e vinham para o Brasil. Hoje os brasileiros gostariam de dar um pulinho na Argentina. Lá, desde a semana passada, a população está sendo vacinada contra a Covid.

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 3 jan° 2021.

Coisas de Pindorama

Elio Gaspari (*)

Um marciano passou pelo Brasil em 1821 e gostou das gazetas que defendiam a independência da Colônia. Voltou em 1823 e soube que ela fora proclamada, com o filho do rei de Portugal coroado imperador.

Imortal, o marciano foi aos comícios das Diretas de 1982 e encantou-se. Voltou em 1985 e soube que a campanha havia resultado na eleição indireta de Tancredo Neves, mas quem estava na Presidência era José Sarney, presidente do partido do governo em 1982.

O marciano resolveu nunca mais voltar ao Brasil. Ele vive em Washington e soube que o doutor Sergio Moro é novo sócio-diretor da firma em cujo portfólio de clientes está a Odebrecht com seu processo de recuperação judicial.

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 6 dez° 2020.

Amy e Kassio

Elio Gaspari (*)

O ministro Gilmar Mendes não gosta que se façam paralelos entre a Corte Suprema dos Estados Unidos e o Supremo Tribunal Federal.

O que aconteceria com a escolha da juíza Amy Coney Barrett, indicada para o tribunal, se dissesse aos senadores americanos que seu marido trabalha lá, mas não sabe exatamente o que ele faz? E se o senador em cujo gabinete o cidadão está lotado, também não souber?

O desembargador Kássio Nunes Marques não soube dizer aos senadores o que sua mulher faz no gabinete do senador Elmano Férrer. Nem ele.

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 25 out° 2020.

A lição de Ibrahim Sued

Elio Gaspari (*)

Em novembro de 1972 o jornalista Ibrahim Sued lançou seu livro “20 anos de caviar” na pérgola do Copacabana Palace. Barão do colunismo social, reuniu todo o Rio de Janeiro e autografou 1.012 exemplares. As pessoas pagavam pelo livro e o dinheiro era colocado em caixas de charutos.

Quando a festa terminou, Ibrahim entrou no seu carro com as caixas debaixo do braço. A noite havia sido uma consagração daquele turco enorme, criado na pobreza do velho centro da cidade.

Ibrahim saiu do Copa em direção a Ipanema. Em todo o percurso, metia a mão na caixa de charutos e dava um punhado de notas a guardadores de carros ou às pessoas que perambulavam pela Avenida Atlântica.

by Zelda Zonk, desenhista francesa

Um amigo que estava no carro disse-lhe:

– Ibrahim, desse jeito você vai detonar a renda da noite.

O ‘Turco’ respondeu:

– É isso mesmo, o dinheiro tem que circular. Se não circulasse, não chegava a mim.

Quem puder, pode repetir a lição de vida e de ciência econômica de Ibrahim.

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 5 abril 2020.

O Eremildo

José Horta Manzano

O jornalista Elio Gaspari criou o personagem Eremildo, o idiota. É o que outros chamariam de louco manso. A figura entra em cena a cada vez que um fato grotesco sobe ao palco da atualidade. Certos acontecimentos soam tão escandalosamente falsos que nenhum cidadão medianamente informado acreditaria. Eremildo, dotado de ingenuidade acima da média, acredita sempre no que lhe dizem, por mais absurdo que seja o enredo.

À beira de completar 78 anos, doutor Eduardo Suplicy ostenta admirável percurso político. Começou quarenta anos atrás e não parou mais. Só no Senado Federal foram 3 mandatos consecutivos ‒ 24 anos! Com um currículo desses, seria de imaginar que o velho político já tivesse abandonado arroubos adolescentes. Em outros termos, já deveria ter caído na real. Mas doutor Suplicy não pensa assim.

by Nei Lima, artista gráfico

Faz uns dias, conforme relatei aqui, signor Cesare Battisti abriu o peito e admitiu a verdade que escamoteava fazia muitas décadas. Sem mostrar-se arrependido, reconheceu que, sim, era culpado dos crimes pelos quais foi condenado. Nem Eremildo, o idiota, duvidou. A culpa do terrorista era tão evidente, tão cristalina, que a ninguém ocorreu duvidar da confissão.

Eu disse «a ninguém ocorreu duvidar»? Engano meu! Nem Eremildo, nem a velhinha de Taubaté, nem mesmo o Lula se manifestaram. Doutor Suplicy há de ter sido o único na face da Terra a pôr em dúvida a palavra do italiano. Ao saber da declaração do ora encarcerado, insinuou que a confissão lhe pode ter sido extorquida. Viciado pelo sistema brasileiro de justiça, onde habeas corpus, recursos e chicanas levam ao infinito o desenlace do processo dos que podem pagar, doutor Suplicy preconiza a realização de novo processo(!) para permitir a signor Battisti exprimir-se pela enésima vez.

E eu que pensava que o Eremildo fosse personagem de ficção.

Promessa de marciano

Elio Gaspari (*)

Nas últimas semanas, Bolsonaro e seu ministro Sergio Moro repetiram formulações genéricas que fazem sentido para quem está solto, mas são promessa de marciano para quem está preso. Por exemplo: negar a progressão da pena para quem pertence a uma facção dentro de um presídio.

Tudo bem, desde que se faça de conta que em alguns lugares é possível viver numa cela sem aderir à facção. Quem vai distinguir o preso primário que aderiu para proteger sua vida e a de sua família do bandido que chefia o grupo?

(*) Elio Gaspari é jornalista. O texto é parte de artigo publicado em 30 dez° 2018.

A caravana de Lula teve escolta policial

Elio Gáspari (*)

Nos primeiros dias de sua caravana pelo Rio Grande do Sul, Lula passou por algo que jamais lhe tinha acontecido. Em Bagé a estrada foi bloqueada e, de um guindaste, pendia um Pixuleco encarcerado. Em Santa Maria reuniram-se manifestantes para hostilizá-lo. Para chegar a São Borja, com escolta policial, teve que tomar uma estrada de terra porque a rodovia estava bloqueada. Em São Vicente do Sul um grafite dizia “Lula ladrão”.

O percurso do ex-presidente foi semelhante ao que ele fez em 1994, quando disputou a Presidência contra Fernando Henrique Cardoso e o real. Ele atravessou o Rio Grande do Sul num ônibus sem que houvesse um só incidente. Tinha a proteção discreta e suave de dois faz-tudo petistas. Um chamava-se Freud. O outro, Espinoza, media 2m02cm e pesava 112 quilos.

Lula chegava a uma cidade, às vezes reunia-se com fazendeiros ou empresários, ia para a praça e discursava. Em Rosário do Sul, desceu do palanque para entrevistar populares. Se o público não esquentava, dizia que lugar de político ladrão é a cadeia. Se fosse pouco, recorria a um infalível pedido de confisco dos bens do ex-presidente Fernando Collor. Esse era um tempo em que ele ainda falava “cidadões” (em Livramento), e o PT pedia nota fiscal de todas as suas despesas.

Mudaram Lula, o Brasil e seus adversários. O comissariado diz que os manifestantes hostis são uma “milícia fascista”, mas a partir de um certo momento a caravana foi protegida por uma patrulha do MST. Durante o consulado petista, o governo não patrocinou nenhum ato de violência, mas Lula chegou a ameaçar com o que seria o “exército do Stédile”, referindo-se a João Pedro, donatário do movimento dos sem-terra desde o século passado.

É de justiça lembrar que, em julho de 2003, um grupo de 15 militantes do PSTU foi protestar diante do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo contra uma visita do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e a reforma da Previdência de Lula. Apanharam, e o técnico judiciário Antônio Carlos Correia acabou com o nariz quebrado. Acusou os “pit bulls petistas”. Palocci está na cadeia, e o PT lutou contra a reforma de Temer.

Lula e seus adversários mudaram para pior. O Brasil, quem sabe.

(*) Elio Gáspari é jornalista.

Surgiu um Kennedy no Trumpistão

Elio Gáspari (*)

O partido Democrata designou o deputado Joseph Kennedy III para discursar na contradita à fala de Donald Trump na sessão de reabertura do Congresso americano. Ele falou durante 13 minutos e, quando terminou, o partido Democrata tinha uma nova estrela.

Com algum exagero, a cena foi comparada ao discurso de um senador pouco conhecido na convenção democrata de 2004. Chamava-se Barack Obama e tinha 43 anos. Quatro anos depois, foi eleito presidente dos Estados Unidos.

Joseph Kennedy III tem 37 anos, está no segundo mandato de deputado e é neto de Robert Kennedy, o senador assassinado em 1968, aos 43 anos, quando estava na bica para ser eleito presidente. Cinco anos antes, seu irmão John morrera em Dallas. (O mais velho da prole, Joseph, explodiu com seu avião durante a Segunda Guerra.)

O breve discurso de Kennedy o colocou na lista de notáveis do partido. Respondeu ao septuagenário Donald Trump com uma peça de perfeita oratória. Unificadora num país dividido, benevolente numa sociedade crispada, ele apontou para o futuro numa época de intransigências vindas do passado.

Condenou o muro que Trump quer construir na fronteira com o México com um toque da maestria retórica de Ronald Reagan em Berlim: “Minha geração vai derrubá-lo”. Surpreendeu, dirigindo-se aos imigrantes em espanhol: “Vamos a luchar por ustedes”. (Ele passou dois anos na República Dominicana fazendo trabalho voluntário.)

Foi um discurso de candidato a muito mais. Pela primeira vez, um Kennedy vai para a cabeceira da pista com chances de decolar. Seu pai foi um deputado medíocre, alguns de seus primos se meteram em escândalos. Com um currículo de primeira (diplomado pelas universidades de Stanford e Harvard), Joseph é abstêmio, casou-se com uma colega de faculdade e tem uma cabeleira normal, que lembra um pouco a do avô, nada a ver com a marquise laqueada de Trump.

(*) Elio Gáspari é jornalista.

Lula pode evitar a prisão asilando-se

Elio Gáspari (*)

“Nosso Guia” poderá achar que é melhor chorar no exílio do que em Curitiba

Lula vai preso? Quando? Existe uma outra possibilidade. Diante da prisão inevitável e próxima, Lula entra numa embaixada latino-americana, declara-se perseguido político e pede asilo diplomático. Não há nenhuma indicação de que ele pretenda fazer isso, mas a realidade ensina que esse caminho existe.

Pelo andar da carruagem, Lula será preso para cumprir a pena que lhe foi imposta pelo TRF-4. Está condenado a 12 anos de cadeia, e dois outros processos poderão render novas penas. Aos 72 anos, ralará alguns anos anos em regime fechado até sair para o semiaberto.

Como é melhor chorar no exterior do que rir na carceragem de Curitiba, Lula sabe que dispõe do caminho do asilo diplomático. Considerando-se perseguido político, conseguiria essa proteção em pelo menos duas embaixadas, a da Bolívia e a do Equador. Pedir proteção aos cubanos ou aos venezuelanos só serviria para queimar seu filme.

Para deixar o Brasil, Lula precisaria de um salvo-conduto do governo de Michel Temer. Bastariam algumas semanas de espera, esfriando o noticiário, e ele voaria. Uma vez instalado no país que lhe deu asilo, ele poderia viajar pelo mundo. Mesmo que voltem a lhe tomar o passaporte, isso seria uma irrelevância. Até 1976, João Goulart, asilado no Uruguai, viajava com passaporte paraguaio.

O asilo de Lula poderia agradar ao governo, pois, preso, ele seria defendido por uma constrangedora campanha internacional. (Guardadas as proporções, como aconteceu com o chefe comunista Luís Carlos Prestes entre 1936 e 1945.)

A vitimização de Lula perderia um pouco de dramaticidade, mas as cadeias ensinam que com o tempo a mobilização murcha, e a solidão da cela toma conta da cena.

A gambiarra tem um inconveniente. Ele só poderia voltar ao país nas asas de uma anistia.

(*) Elio Gáspari é jornalista.

O cabo e o duque

Elio Gáspari (*)

Para a crônica das condecorações do príncipe Philip e da sua mania de fazer piada com as medalhas alheias:

Não teria sido um almirante argentino quem devolveu um comentário grosseiro do duque de Edimburgo, mas um brasileiro, o almirante Heitor Lopes de Souza. Ele comandava o corpo de Fuzileiros Navais em 1968, quando a rainha e seu marido vieram ao Brasil.

Dois anos depois, ele contou o caso ao seu amigo Luís Fernando Freire. Philip disse-lhe que, com tantas condecorações no uniforme, deveria ter combatido em muitas guerras, ao que Heitor respondeu: “Não, mas estas medalhas eu não as ganhei na cama”.

Muitas serão as versões dessa piada, mas uma coisa é certa, o almirante não tinha papas na língua. Seu apelido era “Cabo Heitor”.

(*) Elio Gáspari é jornalista. Seus artigos são publicados por numerosos jornais.