O que o Lobo Mau diria a Bolsonaro

Eduardo Affonso (*)

Sr. presidente (ou candidato — nunca sei ao certo),

Invadi o provedor que o Elio Gaspari usa para fazer chegar aos vivos (principalmente aos muito vivos) certas mensagens do Além e valho-me dessa tecnologia de ponta para me dirigir ao colega, daqui do mundo das fábulas, onde bichos falam, e toda história tem uma moral.

Permita que me apresente e justifique a intimidade de tratá-lo de igual para igual: sou o Lobo Mau, aquele que contribuiu para o aumento do déficit habitacional entre os porquinhos, fez disparar a taxa de mortalidade de cordeiros e vovozinhas e lançou mão de feiquenius para tentar devorar Chapeuzinho Vermelho.

Tenho percebido, de sua parte, a apropriação de muitas das minhas estratégias — e não posso me furtar a lhe lembrar que elas nem sempre deram certo.

Como eu, o senhor bufou e mandou pelos ares a casa de palha. Bufou, bufou e derrubou a casa de pau. Animado com o sucesso, bufou, bufou, bufou e… não conseguiu pôr abaixo a casa erguida com cláusulas pétreas. Os porquinhos 01, 02 e 03, meus companheiros de fábula, poderiam ter lhe contado que, bufando, se consegue muita coisa, mas não tudo.

O senhor se travestiu de liberal na economia, assim como eu de vovozinha. Mas as orelhas grandes, que fizeram ouvidos de mercador às demandas pela reforma administrativa e por um modelo fiscal mais justo, ficaram de fora. O nariz grande, que farejou vantagens na manutenção da TV estatal e da empresa do trem-bala, também. O olho grande, que insistiu em intervir na Petrobras e travou as privatizações, idem. Por fim, a boca grande mastigou o equilíbrio fiscal e engoliu o teto de gastos. O senhor vai levar um susto maior que o meu quando o caçador entrar em cena — e olha que eu tinha imunidade por ser espécie em via de extinção.

Sua pinimba com as urnas eletrônicas é plágio descarado daquele meu entrevero, às margens do riacho, com o cordeiro. Nunca foi segredo que eu quisesse porque quisesse comê-lo, mas precisava de uma boa desculpa. Inventei que ele sujava a água que eu bebia. Isso seria impossível, haja vista ele estar 20 passos adiante de mim, no sentido da correnteza. Criei outras narrativas (se não era ele, era o irmão dele etc.), mas sem chegar ao ponto de sugerir que a direção em que corria o riacho não fosse auditável. Um lobo, ainda que mau, tem seus limites lógicos e éticos. Fosse o senhor, mesmo com os goles d’água impressos, um novo pretexto seria fabricado.

Sabemos do triste fim do cordeiro (triste para ele, não para mim, que o comi tão logo desmontou minha terceira ou quarta falácia). Quanto ao senhor, prepare-se: até o mais cordial dos cordeiros já aprendeu que bom cabrito é o que mais berra.

O pastor que gritava “é o lobo, é o lobo!” quando eu nem estava nas imediações teve sérios problemas no dia em que resolvi assuntar o rebanho. Os aldeões já estavam dessensibilizados para a ameaça.

Em outro momento, minha amiga raposa@uva entrará em contato para lhe falar de um golpe que ela tentou aplicar, o “as urnas estão verdes”. Não colou. E leão@rei manda dizer que deu boas gargalhadas com a PEC do senador vitalício.

Um abraço fraterno do

Lobo Mau

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Credibilidade por água abaixo

Exportação

José Horta Manzano

Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha de SP, entrevistou o pecuarista Pedro de Camargo Neto, ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira e ex-presidente da Associação dos Produtores e Exportadores de Carne Suína. Aqui está um trecho da entrevista.

O senhor rompeu com o setor agrícola em 2020 ao sair da Sociedade Rural Brasileira. Por quê?

O nível de ilegalidade que a gente vive na Amazônia é crítico. O garimpo ilegal está cada dia mais controlado pelo crime organizado, o Brasil começa a perder controle de parte de seu território, há muita grilagem de terras públicas, desmatamento, extração ilegal de madeira.

E a reação do governo é muito ruim, é de omissão mesmo. Vai dar trabalho recompor a credibilidade que vínhamos conquistando. Isso já está nos causando muitos problemas. Hoje, quando você se senta com a União Europeia para discutir qualquer assunto, como uma questão sanitária, ela reage questionando nossa credibilidade. Parte do setor declarou apoio à política ambiental do governo, e eu não concordei. Por isso saí.

Carta aos brasileiros

José Horta Manzano

 

 


No momento em que escrevo,
o total de adesões ultrapassa

meio milhão de cidadãos


 

Você, que ainda não assinou, está fazendo falta! Não deixe passar a oportunidade de inscrever seu nome na História do Brasil. Vai ter o que contar pros netinhos.

https://estadodedireitosempre.com

Carta aos brasileiros

José Horta Manzano

 

 


No momento em que escrevo,
o total de adesões ultrapassa

398.000 cidadãos


Quando tiveram a ideia, os organizadores da carta da USP em defesa da democracia acharam que, se chegassem a coletar umas trezentas assinaturas, já estaria de bom tamanho.

Hoje, poucos dias após o lançamento da carta aberta, as adesões continuam crescendo exponencialmente. É uma enxurrada de cidadãos que guardavam o grito preso na garganta e encontraram um poderoso meio de soltá-lo e se fazerem ouvir.

Nove ministros eméritos do STF assinaram a carta. Centenas de personalidades do Ministério Público, da Receita Federal, da Polícia Federal, dos Tribunais de Contas, da Abin, da Defensoria Pública também firmaram o documento.

A lista de assinaturas continua com milhares de nomes do meio universitário, empresarial, intelectual, econômico, cultural, artístico, financeiro, diplomático, jurídico, advocatício e ambiental.

Uma avalanche de adesões de cidadãos comuns – desconhecidos do grande público, mas sensatos e de boa vontade – completa a lista.

Nem com seu exército de computadores fantasmas mais uma ajudazinha de hackers russos o capitão conseguiria tal proeza.

https://estadodedireitosempre.com

Bolsonaro questiona urna eletrônica por má-fé

Pedro Doria (*)

Todo ano de eleição, nós, jornalistas, arranjamos algum jeito de produzir algo explicando como funciona o sistema de votação brasileiro. No jargão das redações, é uma “matéria de serviço”. Sua utilidade é ajudar o eleitor a se nortear no dia do voto. É para que ele entenda o processo. Neste ano, explicar como funcionam a urna e a contagem dos votos, porém, não é mero serviço. É uma defesa ativa da democracia. E, sim, nosso sistema está entre os mais seguros e eficientes do mundo.

O principal ponto que garante a segurança da eleição brasileira é que todo o processo, apesar de digital, não ocorre na internet. Nem as urnas nem os computadores que contam os votos estão na grande rede. Em seu discurso, o presidente Jair Bolsonaro se aproveita de conceitos pouco compreendidos para deixar as pessoas inseguras. Confusas. A ação é de clara má-fé. O presidente da República mente, mente acintosamente, mente sabendo que está mentindo.

Porque a urna em que digitamos nossos votos não está ligada à internet, um hacker não pode entrar nela e modificar qualquer coisa. Poderia se estivesse em frente, fisicamente, à máquina. Mas não seria nada discreto. Teria de ligar um teclado, espetar um pen drive, fazer uma operação que chamaria a atenção de todos ao redor. Para ter efeito e mudar os resultados de uma eleição, seria necessária a ação de milhares de hackers trabalhando em milhares de urnas cada um. Sem que qualquer um percebesse. Não é razoável acreditar na possibilidade.

Quando a votação se encerra, o presidente da mesa ordena que a urna imprima cópias do boletim. Ali está, no papel, o número de votos registrados para cada candidato e partido naquela urna. Esse documento é afixado na porta da zona eleitoral, em público. Se você, eleitora ou eleitor, quiser confirmar que seu voto para um candidato obscuro a deputado estadual foi registrado, basta passar no local em que votou e confirmar que pelo menos um ponto ele garantiu.

Já houve eleições municipais em que prefeitos celebraram vitória antes de haver resultado oficial, simplesmente porque os fiscais do partido foram mais ágeis que o TRE. Somaram os votos de boletim em boletim. Foi o que ocorreu em Jaboticabal, interior de São Paulo, em 2020. O prefeito que fez festa, aliás, é do PL de Bolsonaro.

Além do registro em papel, o presidente de mesa também grava os resultados num pen drive que tem assinatura eletrônica e é criptografado. Essa mídia é transportada fisicamente para uma das centrais locais da Justiça Eleitoral, onde, após a assinatura ser checada para garantir que não houve adulteração, os dados são mandados para Brasília. Para a sede do TSE. Como? Por satélite, numa rede privada que o tribunal contrata e, claro, não está conectada à internet.

Em Brasília, os votos chegam a um supercomputador da Oracle que presta um serviço chamado, no jargão técnico, de cloud on-premise. Nuvem no seu local. Sim, se chama nuvem. Mas tem esse nome porque é uma infraestrutura como a de nuvem, porém privada. Colocada no escritório do cliente que busca, justamente, a certeza de que não é possível violar via internet seu sistema.

Bolsonaro, por causa disso, sugere que os dados estão na nuvem. Não, não estão. Fala de uma sala secreta – a contagem ocorre dentro de um computador, não de uma sala.

Vários estados americanos, todos republicanos, fazem eleição digital sem voto impresso, parcial ou integralmente. Várias cidades francesas. São os dois países que inventaram a democracia. Não se trata de uma jabuticaba brasileira. A eleição é segura. E Bolsonaro, obviamente, está com medo de perder.

(*) Pedro Doria é jornalista e escritor.

Em defesa do Estado de Direito

José Horta Manzano

Não é costume deste blogueiro fazer manifesto político. Em princípio, me contento em dar minha opinião. No entanto, por culpa de um presidente desonesto e desequilibrado, nosso país vive uma situação excepcional e perigosa que ninguém deve ignorar. Não é possível ficar comendo pipoca, na posição de espectador, pra ver a boiada passar. Se continuarmos de braços cruzados, ela passará.

Até poucos anos atrás – como vimos em 2013 – o povo demonstrava insatisfação saindo às ruas em imponentes passeatas. Não se vê mais. Não sei se terá sido por causa da covid ou por influência do trabalho à distância, o fato é que passeata saiu de moda. Deixou de ser o modo de expressão de descontentamento do cidadão.

Em lugar dela, manifestos virtuais vêm ganhando força. Em reação aos desmandos do pior presidente que o Brasil já conheceu, um grupo de figurões sensatos preparou uma resposta. Trata-se de uma carta aos brasileiros afirmando sua fé na democracia.

Os primeiros signatários são magistrados, procuradores, advogados, empresários, banqueiros. Dois dias depois de lançada, a carta já se aproxima de 200 mil signatários. E está aberta ao distinto público.

Proponho a todos que se manifestem. Vamos engrossar o coro? Eu já assinei. Dê uma passadinha pelo site – vai lhe tomar 2 minutos. O link está aqui:

https://estadodedireitosempre.com

E passe a dica a seus contactos! Quanto mais numerosos formos, maior será o impacto.

O Brasil decente agradece.

Brasil e suas violências

José Horta Manzano

É interessante notar que um observador afastado, independente e não envolvido emocionalmente com nosso país consegue ter uma visão desapaixonada do drama que enreda o povo brasileiro. Para nós outros, que estamos envolvidos emocionalmente, é praticamente impossível fazer um julgamento neutro e imparcial.

O JDD (Journal du Dimanche) é um jornal semanal francês. Seu forte são entrevistas e artigos de fundo. A mais recente edição traz uma entrevista de Maud Chirio, historiadora francesa especializada em analisar a realidade brasileira.

Ela começa discorrendo sobre o aumento da violência:

“É violência urbana, mas há também uma explosão de violência feminicida, homofóbica e transfóbica e um aumento da violência política.”

E dá sua avaliação do momento político:

“O Brasil não é um país sob um regime ditatorial. É um regime baseado na desconstrução do Estado, que permite que a violência social floresça e seja incentivada na sociedade.”

E prossegue:

“Se Jair Bolsonaro for reeleito, o que é extremamente improvável, ou se ele manipular ou pressionar as eleições, estaremos em um ponto de inflexão. O Brasil poderia sair completamente do caminho democrático.”

Até chegar à impiedosa conclusão de sua análise:


“O Brasil é um país que está embrutecendo.”


É de arrepiar. E pensar que o capitão imagina poder contar suas lorotas aos quatro ventos sem que ninguém se dê conta da feia realidade. Temos um bobão no Planalto. Um bobão perigoso.

Sexo por obrigação

 

Myrthes Suplicy Vieira (*)

De todos os pronunciamentos delirantes a respeito da condição feminina, sua estrutura psíquica e interpretações quanto à sua disponibilidade para o sexo feitos ultimamente por integrantes da ala masculina ultraconservadora brasileira, o mais surpreendente e intrigante foi sem dúvida o registrado pela pena do digníssimo procurador de São Paulo, Anderson Gois dos Santos.

Num e-mail enviado a seus colegas da Procuradoria, ele propõe textualmente que “é de fundamental importância recuperar a ideia do débito conjugal no casamento”. E acrescentou, para perplexidade geral: “A esposa que não cumpre o débito conjugal deve ter uma boa explicação, sob pena de dissolução da união e perda de todos os benefícios patrimoniais”.

Fiquei tão impactada com o caráter medieval da proposta que fui pesquisar na Internet o que significa aos olhos da lei o débito conjugal e como esse conceito se insere na jurisprudência brasileira. Descobri que ele teve origem no Direito Canônico e foi absorvido no Código Civil de 1916. Depois que a constituição de 1988 introduziu a necessidade de observância do direito à dignidade de toda pessoa humana e a igualdade de direitos entre homens e mulheres no casamento, a tese perdeu amparo legal, embora hoje em dia ainda existam casos de pedidos de divórcio aceitos em tribunal por ter a mulher se recusado a fazer sexo com o marido.

Dado o furor condenatório com que juristas e colegas procuradores receberam a proposta, acusando seu autor de estar disfarçadamente defendendo a legalidade do estupro marital, ele achou por bem se antecipar e esmiuçar as ‘terríveis’ consequências sociais da não-aprovação de sua proposta: a recusa feminina em cumprir suas obrigações sexuais teria o potencial de levar a “traições desnecessárias” [não deixou claro se, no seu entender, haveria alguma forma de traição necessária], consumo de pornografia e acúmulo de pedidos de divórcio.

Arrogou-se ainda o direito de pontificar sobre questões fora de sua área de especialização, fazendo uma incursão amadora, típica de almanaque de farmácia do início do século 20, ao território da psicologia e da psiquiatria. Associou o feminismo a um “transtorno mental” ainda a ser catalogado num futuro CID [Classificação Internacional de Doenças], apontou as causas do distúrbio como “problemas com os pais na criação” e “muita mágoa no coração”. E foi além, descrevendo no mais misógino dos estilos a luta pelo empoderamento feminino como uma “tentativa de suprir profundos recalques e dissabores com o sexo masculino, gerado por suas próprias escolhas de parceiros conjugais”. Culpa da vítima, é claro.

Confesso que fiquei na dúvida se o foco de sua intervenção era efetivamente o de discutir os aspectos psicossociais pertinentes às obrigações conjugais ou se, além e acima dessas preocupações, pairava na mente dele a urgência de encontrar formas jurídicas seguras de proteger o patrimônio financeiro do homem casado, livrando-o da necessidade de dividi-lo com uma esposa não merecedora de tal ‘privilégio’.

Não pretendo ir a fundo na exploração das impropriedades científicas nas quais ele incorreu ao se manifestar sobre traumas psicológicos, dificuldades de identificação com o papel sexual e motivações aberrantes que comporiam em tese o perfil das mulheres feministas. São tantos e tão complexos os fatores envolvidos nessa questão que prefiro me abster, por puro cansaço e tédio antecipado. Deixo a cargo dos especialistas em psiquiatria a revelação de quais e quantos transtornos mentais estão na base da virilidade tóxica, essa sim uma doença passível de enquadramento num próximo CID.

Entretanto, reservo-me o direito de apontar a sobreposição ilógica de conceitos díspares que permeiam o raciocínio do douto procurador. Lídimo representante do pensamento binário, ao misturar num mesmo balaio a recusa a fazer sexo com o parceiro oficial e o comportamento feminista, ele deixa entrever que aposta que feminista é toda mulher que não gosta de homem. O que, convenhamos, deve ser fonte de muita angústia e ansiedade para ele.

No entanto, o que mais chamou minha atenção na proposta de revitalização da norma de “débito conjugal” foi a desconsideração – intencional ou acidental – da existência também da obrigação do marido em manter relações sexuais regulares com sua esposa. Passei horas me divertindo com a possibilidade de inversão do raciocínio, isto é, a eventualidade de uma mulher ingressar na justiça com uma queixa contra o esposo por ele ter falhado em cumprir suas obrigações sexuais no casamento e consequentemente pleitear que ele fosse destituído dos direitos à divisão do patrimônio do casal.

Em meio a piruetas mentais, acabei concebendo a seguinte cláusula contratual pré-matrimonial que poderia ser exigida pela mulher: “A parte masculina do presente contrato compromete-se a realizar o ato sexual com a parte feminina no mínimo 3 (três) vezes por semana, por todo o tempo que durar a convivência do casal, independentemente da presença de fatores limitantes à atividade, como idade, doenças físicas e mentais, abatimento com a situação financeira, consumo de bebidas alcoólicas ou drogas psicoativas e outros elementos intervenientes ocasionais, com penetração obrigatória em cada coito e número indeterminado de tentativas, até que a parte feminina atinja o orgasmo ou se declare plenamente satisfeita. Se, para tanto, a parte masculina não corresponder às expectativas de desempenho da parte feminina, assim descumprindo a presente cláusula, sob qualquer tipo de alegação, estará ele sujeito à pena de dissolução unilateral do contrato conjugal e perda do direito à divisão dos bens patrimoniais auferidos pelo casal”.

Cheguei até a fantasiar uma cena de novela rural ilustrativa desse novo enquadramento jurídico: uma “coronela”, empresária de sucesso no ramo agropecuário, entra no quarto do casal e dirige-se ao marido, que está deitado, de pijama e cueca furada, fingindo dormir, com as seguintes palavras: “Levanta já daí, seu imprestável! Vai se lavar porque hoje eu vou te usar”. Ou ainda, num contexto mais urbano, uma cena em que a mulher informasse ao parceiro intimidado por não conseguir uma ereção: “Vamos logo que hoje eu estou sem tempo e sem paciência. Se você não der no couro, vou dar para o primeiro que passar pela minha porta”.

Voltando a falar sério, qualquer que seja o ângulo pelo qual a proposta do procurador seja examinada, fica claro que não se trata apenas de anacronismo obscurantista: é um total desconhecimento da fisiologia humana e do funcionamento psíquico. Como associar sexo a obrigação se estamos falando de uma pulsão animal natural e instintiva que tem como principal propósito o prazer e o alívio das tensões? Como garantir a necessária lubrificação na mulher e a ereção masculina se na cabeça dos parceiros há um imperativo categórico de desempenho imediato? Até mesmo entre animais inferiores na escala filogenética, se a fêmea da espécie não consente com a cópula, mesmo estando no cio, ela simplesmente não acontece. Não há nada que o macho possa fazer para dissuadi-la da recusa, a não ser estupra-la, é claro – mas, se isso acontecer, quase certamente ocorrerá em meio a muita luta, sangue e provável despedaçamento de corpos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A coisa e o nome da coisa

José Horta Manzano

Minha avó jamais pronunciou a palavra câncer, o nome da doença. Quando lhe perguntavam de que tinha morrido fulana, costumava responder: “Foi daquela doença horrorosa que a gente nem gosta de falar o nome”. E logo encerrava o assunto e mudava de conversa.

Em fase terminal, câncer é doença muito sofrida. Se hoje em dia ainda é assim, imagine nos tempos de antigamente. Tratamentos balbuciavam, analgésicos não eram poderosos como hoje. Só de pensar, dava medo.

Desde que aprendeu a falar e a dar nome a seres e coisas, o ser humano demonstrou ser altamente supersticioso. Dizer em voz alta o nome de seres maléficos ou de coisas desagradáveis era perigoso: podia chamar desgraça.

Assim como os antigos sentiam (e os modernos continuam sentindo) pavor do câncer, há muitos que evitam pronunciar a palavra morte ou o verbo morrer. Para contornar, os mais poéticos dizem que fulano descansou, que expirou, que nos deixou, que se foi. Os mais crus dirão que abotoou o paletó, que vestiu o pijama de madeira, que bateu as botas. Religiosos ou reencarnacionistas preferirão dizer que voltou para a casa do Pai ou simplesmente que desencarnou.

No Brasil – mas não só –, há os que jamais pronunciam a palavra diabo. É que nunca se sabe – ao ouvir seu nome pronunciado em voz alta, belzebu pode até achar que está sendo chamado. Melhor evitar. Há uma série impressionante de substitutivos, que vão desde o corriqueiro demônio até o requintado príncipe das trevas, passando pelo cão-tinhoso, lúcifer, satanás, maldito, cornudo, tentador, pai do mal e tantos outros.

Os povos latinos e mediterrâneos parecem ter especial aversão à raposa. É verdade que o canídeo opera de noite, quando todos estão recolhidos, e pode fazer estrago grande num galinheiro. Das línguas da família latina, apenas o italiano continua a utilizar palavra derivada do original: usam volpe, uma adaptação fonética da vulpes latina. (É curioso notar o paralelismo entre a vulpes latina, que quer dizer raposa, e o Wolf germânico, que designa o lobo. Mas essa já é outra história.)

Na Idade Média, todo lar criava algumas galinhas para seu sustento. Evitavam pronunciar o nome da raposa, num esforço para evitar que ela se sentisse convocada a dizimar o galinheiro. Todos deram um apelido à vulpes latina.

O catalão diz guineu, palavra de origem incerta. O francês escolheu renard, em referência a uma fábula medieval. O espanhol prefere zorro, termo que, segundo uns, provém do vasco, e, segundo outros, tem origem na língua portuguesa, de um antigo adjetivo zorro, que significava ocioso, folgado, vagabundo. Quanto a nós, dizemos raposa (=rabosa), em alusão ao imponente rabo do animal, que parece espanador felpudo.

Ah, como seria prático se, quando a gente quer afugentar uma realidade, bastasse mudar-lhe o nome! Por mim, mudava já o nome do presidente da República. E o de todos os que até agora se apresentaram para suceder-lhe. Assim, afastava toda essa gente. Que fossem cantar noutra freguesia e deixassem campo livre para gente bem-intencionada.

As palavras que escondem os fatos

Carlos Brickmann (*)

O ex-presidente Jânio Quadros era mestre nisso: pendurou chuteiras na porta de sua sala (para indicar que não pretendia mais disputar eleições), apareceu com uma calça por cima da outra, a de cima arregaçada para mostrar a de baixo, simulando distração.

O então prefeito César Maia, no calor do verão carioca, saiu de casa todo agasalhado, entrou num açougue e pediu sorvete. Doidos? Não: doido é quem pensa que isso é para valer. Na verdade, queriam manter-se nos holofotes e escolher o tema das discussões.

A reunião de Bolsonaro com os diplomatas para falar mal das urnas em que se elegeu por mais de vinte anos foi absurda. Ou não: para o presidente, é melhor que discutam o inglês mambembe de sua assessoria e a ideia boba, e não o preço do leite e da carne. Alta de preços é tema de interesse de toda a população. Uma chatíssima discussão cheia de fatos duvidosos não causa prejuízo eleitoral nenhum.

Quem não é bolsonarista critica; quem é fará tudo para explicar como aquela atitude foi brilhante ou correta. E ninguém vai mudar de ideia por causa disso. Boa parte dos eleitores não vai perder seu tempo discutindo fragilidades cibernéticas e como corrigi-las.

Ah, confirma que o presidente pensa num golpe? De novo, os bolsonaristas negam que ele pense num golpe e, se ele tentar o golpe, descobrirão um bom motivo para o apoiar. E os antibolsonaristas estão convencidos de que ele só pensa nisso.

Esse tipo de discussão serve apenas para ocultar o que deve ser discutido.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

Prepare seu coração

José Horta Manzano

Dentro de 71 dias, seremos milhões a depositar nossa confiança (ou nossa ojeriza) na familiar urna eletrônica. Fazemos parte de um contingente habilitado a votar que supera a marca de 150 milhões de cidadãos.

Por mais que alguns ainda mantenham ilusões de terceira via, uma análise desapaixonada revela que a escolha dos eleitores já não contempla essa perspectiva. A eleição está afunilada, e restam apenas dois candidatos no páreo.

Pouco importa o programa de governo que apresentem – se apresentarem algum. Nosso próximo presidente será aquele, dos dois, que for alvo do nível de rejeição mais baixo. Mais uma vez, a maior parte do eleitorado não votará por convicção, mas por eliminação.

Meu voto não será de adesão. Por mim, os dois candidatos iriam para a lata do lixo. Com uma pedra em cima, que é pra nunca mais saírem de lá.

O voto nulo não faz sentido. É deixar que outros decidam em meu lugar. Vou escolher o menos pior. Prepare seu coração.

Cartaz com boas-vindas a Lula
“Lula é um bandido”
Uberlândia, junho 2022

Cartaz com boas-vindas a Bolsonaro
“Bolsonaro é um assassino”
Washington, março 2019

Me ajuda aí, pô!

José Horta Manzano

Muita gente está até hoje refletindo sobre a irresponsável convocação que o capitão fez ao corpo diplomático lotado em Brasília para lhes dar um “brienfing”. No dia em que o presidente tiver deixado o poder e for feito um balanço, esse episódio será um dos pontos infames – são tantos! – que serão recordados de sua desastrosa passagem pelo Planalto.

Ao refletir retrospectivamente sobre o simulacro de governo que nos vem sendo imposto há três anos e meio, vai ficando claro que o capitão é exemplo cuspido e escarrado da figura do pidão. O termo, coloquial mas dicionarizado, designa o indivíduo que vive pedindo as coisas, que passa a vida na expectativa de que outros resolvam seus problemas.

Já no dia a dia, longe de apresentar as realizações de seu governo, o presidente se apoia em “laives” e falas de cercadinho para se lamuriar. Em vez de se mostrar tranquilizante, aparece regularmente sob os trajes de quem pede ajuda, por não estar conseguindo cumprir seu papel.

Há momentos em que o pidonismo fica ainda mais evidente. Tome-se o Sete de Setembro do ano passado, quando Bolsonaro se comportou como se estivesse prestes a anunciar um golpe de Estado com a entrada do país em regime ditatorial. A coisa pegou supermal. O Judiciário, a imprensa, presidentes de instituições e cidadãos comuns encresparam. O ambiente ficou tão pesado que, com medo do camburão, o presidente apelou para seu lado pidão. Chamou Michel Temer, pediu conselho, e o resultado todos conhecem: aquela carta ao povo, com pedido de desculpas. Que o capitão, sozinho, nunca conseguiria redigir.

Outro momento de “me ajuda aí, pô” foi quando Bolsonaro se encontrou com Biden, à margem da Cúpula das Américas. Ele jura que não disse isso mas as paredes, que têm ouvidos, contaram que o capitão pediu ajuda a Biden para evitar que Lula subisse ao poder e instalasse o comunismo no Brasil. A gente fica aqui imaginando na má impressão que o pedido extravagante deixou na cabeça de Biden, que conhece Lula e sabe que ele já esteve 8 anos no poder sem sequer tentar instalar o comunismo no país.

A recente convocação de embaixadores se inscreve no mesmo quadro do pidão compulsivo. Naquela ocasião, o discurso de Bolsonaro foi além do simples pedido. No fundo, era uma chantagem. O recado subliminar era: ou vocês me dão uma ajuda aí, ou vão ter de aguentar o Lula na Presidência.

Conclusão? O pidonismo é mais uma característica – desagradável e negativa – que vem enriquecer a já abastada coleção de horrores que povoam a mente de nosso perturbado capitão.

Os esbirros de Bolsonaro

Ruy Castro (*)

Às vezes falo aqui nos esbirros de Jair Bolsonaro. Já foi uma palavra comum na imprensa, mas ficou fora de moda, daí leitores me perguntarem o significado. Houve quem a confundisse com espirro, sem saber que, achando repulsivos os espirros de Bolsonaro, eu jamais macularia esse espaço com eles. Para outros, talvez eu quisesse escrever esporro, o que faria sentido – nunca houve presidente tão estúpido e dado a governar por esporros. E ainda outros arriscaram esparro e esbarro. De fato, as duas palavras têm a ver: esparro é aquele que dá um esbarro na vítima para o punguista bater-lhe a carteira. Bolsonaro fica bem nos dois papéis, de esparro e punguista.

Esbirro, tecnicamente, é um agente da polícia, um guarda, um guarda-costas. Mas é ainda sinônimo de beleguim, que, nos dicionários, remete a tira, capanga, jagunço, quadrilheiro, alguém entre a lei e fora dela. Os esbirros a que os velhos jornais se referiam eram a guarda pessoal de Getulio Vargas no Catete, comandada por Gregorio Fortunato, e os de Carlos Lacerda na Guanabara, em torno de Cecil Borer. Muita gente foi para o Caju ou para o Pronto-Socorro depois de passar por eles.

Bolsonaro ampliou o conceito de esbirro. Não se limita mais àqueles rapazes carecas e sarados, incrustados no Bope, na PM e até na Câmara dos Deputados, que ele e seus filhos gostam de condecorar. São agora qualquer um a quem ele delega o trabalho sujo, como o de executar certas medidas cruéis e violentas –Marcelo Queiroga, Augusto Heleno, Braga Neto, Luiz Eduardo Ramos, Fábio Faria, Mario Frias, Sérgio Camargo.

Esbirros que ficarão na história foram também Eduardo Pazuello, Abraham Weintraub, Fabio Wajngarten, Ernesto Araújo, Ricardo Salles, Sergio Moro, muitos mais. Não importa que alguns se tenham voltado contra o chefe. Um dia, ladraram e morderam em seu nome.

Os esbirros de Bolsonaro se julgam finos. Mas não são, não. Esbirro é esbirro.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Liberdades fundamentais

De Gaulle e a coletiva de imprensa de maio 1958

José Horta Manzano

Corria o mês de maio de 1958 e a França estava em crise política. O regime em vigor não se adequava aos novos tempos. O General De Gaulle, que permanecia no ostracismo desde o fim da Segunda Guerra, foi chamado para resolver a crise e conduzir o país a dias melhores.

Aureolado como um messias, ele pôs suas condições. Queria mudança de regime, nova Constituição e poderes reforçados para a Presidência. Enquanto o país se preparava para desempoeirar sua governança, o velho general convocou jornalistas para uma entrevista coletiva.

Vieram 500 jornalistas – quantidade maior do que a sala comportava. As credenciais para assistir a palestras de De Gaulle costumavam ser disputadas a tapa. Ágil no manejo da língua e rápido de raciocínio, o figurão fazia o espetáculo sozinho.

Lá pelas tantas, um jornalista perguntou:

Est-ce que vous garantiriez les libertés publiques fondamentales?

[Caso fosse eleito], o senhor garantiria as liberdades públicas fundamentais?

E De Gaulle, na lata:

Est-ce que j’ai jamais attenté aux libertés publiques fondamentales? Je les ai rétablies! Pourquoi voulez-vous qu’à 67 ans je commence une carrière de dictateur?

E eu por acaso algum dia entravei as liberdades públicas fundamentais? Fui eu que as restabeleci! Será que o senhor está imaginando que, aos 67 anos de idade, eu começaria uma carreira de ditador?

Gargalhadas gerais.

De fato, o general assumiu a Presidência, ficou 12 anos no cargo, se reelegeu pelo voto popular e respeitou a Constituição à risca. Nunca esbanjou dinheiro público. Um exemplo? Embora residisse no Palácio do Eliseu com a esposa, mandou instalar um relógio medidor de energia nos aposentos presidenciais para poder pagar do próprio bolso seu consumo de eletricidade. Ao deixar o poder, entregou uma França melhor do que havia recebido.

O Brasil costuma funcionar diferente. Agora mesmo, temos um presidente cuja maior preocupação não é a economia de dinheiro público.

Por coincidência, nosso experiente capitão também tem 67 anos. Só que, ao contrário do general, gostaria muito de iniciar uma carreira de ditador.

Sabemos que ditador não será. Mas que vai dar trabalho daqui até o fim do ano, ah, isso vai!

O vexame

Reinaldo Azevedo (*)

A vergonha a que [Bolsonaro] submeteu o país na reunião com embaixadores, deixando-se ladear por generais não menos golpistas do que ele próprio, indica que é chegada a hora de reagir.

O país precisa saber onde estão os empresários que consideram a democracia inegociável e onde estão os negociantes de democracia. A hora é agora, não depois.

Como se viu, na conversa com os embaixadores, Bolsonaro sugere que está apenas defendendo a democracia. Nunca a pistolagem antidemocrática, que se fantasia de verde-amarelo, chegou tão longe.

(*) Reinaldo Azevedo é jornalista, analista político e blogueiro.

Brienfing

José Horta Manzano

A propósito do encontro do capitão com o corpo diplomático, todos apontaram o dedo para o imperdoável erro de grafia da palavra inglesa “Briefing”, que apareceu na tela grafada “Brienfing”. Só essa mancada já teria bastado pra desmerecer o discurso, não precisava nem soltar aquele caudal de asneiras.

A língua inglesa tomou o termo briefing do latim breve (brevis), que chegou à Grã-Bretanha através do francês medieval bref. No original, a palavra corresponde a nosso breve (= curto, pequeno, que dura pouco tempo).

Em inglês, com o passar dos séculos, o sentido de briefing foi se alterando. Na língua atual, designa o ato de dar instruções preparatórias a alguém. Por exemplo, antes de uma missão, o piloto de guerra passará por um briefing, ocasião em que receberá instruções precisas sobre o que deve fazer.

Portanto, o “Brienfing” presidencial há de ter posto os diplomatas na incômoda situação de quem volta aos bancos da escola para receber instruções de um desvairado dirigente estrangeiro. Uma ousadia com forte potencial ofensivo.

Sorte tem a douta equipe presidencial de ter caído com diplomatas do século 21, que costumam ser gente letrada, que não liga para gesticulação de ignorantes. Em outros tempos, poderia até ser considerado casus belli – ato suficientemente grave para justificar uma declaração de guerra.

Pobre Brasil! Em apenas duas décadas, como te rebaixaram!