Apagando o passado

José Horta Manzano

Até 6 de outubro, havia na cidade de São Paulo uma avenida quilométrica, cujo nome era compartilhado por dois ilustres membros da família Andrade. O primeiro trecho da via homenageava o escritor Mário de Andrade, enquanto o segundo lembrava o homem político Auro S. de Moura Andrade.

Mário, o Andrade escritor, não teve vida longa: foram somente 51 anos, de 1893 a 1945. Já Auro, o Andrade político, ficou uns anos a mais neste vale de lágrimas: viveu 66 anos, de 1915 a 1982. Mário tinha idade pra ser pai de Auro, pois nasceu 22 anos antes, o que significa que não conheceram o mesmo Brasil. É complicado comparar a vivência de cada um deles.

A cidade de São Paulo conta com mais de 50 mil logradouros, contando ruas, praças, avenidas, becos, ruelas & assemelhados. Todos os meses, são feitos novos arruamentos, e novos nomes têm de ser encontrados. Cabe aos senhores vereadores essa árdua incumbência. Só que eles nem sempre se restringem a nomear as vias que acabam de ser abertas. Seguindo o Zeitgeist (=espírito do tempo), preocupam-se também em corrigir tudo o que lhes aparece como “injustiça” ou como “erro histórico”. Apagam, assim, trechos inteiros de um passado que a maioria deles, aliás só conhece de ouvir falar. Fico pensando se conhecem mesmo…

Dia 7 de outubro, entrou em vigor uma lei que corrige um desses “erros”. O trecho da rua comprida que levava o nome de Auro (o político) perde o direito à antiga denominação. Passa a levar o nome de Mário (o escritor). Como resultado, Auro some do mapa e Mário fica com todos os quilômetros para ele. Isso implicará em repensar a numeração de cada imóvel (há muitíssimos prédios altos), um problema que vai aporrinhar os moradores. Mas a vereança não se comove com essas minúcias – afinal, estão ali para dar nome às ruas, não para resolver problemas dos eleitores, que diabo! De todo modo, não são eles que vão sentir o drama.

O motivo dessa mudança? Os edis ouviram dizer que doutor Auro de Moura Andrade teria “apoiado” o regime militar, enquanto doutor Mário de Andrade, não. É claro que Mário de Andrade não podia ter apoiado o regime. Há um anacronismo: ele já tinha falecido 19 anos antes do chacoalhão de 1964. Ninguém tem o direito de afirmar se o escritor teria “apoiado” ou não o movimento. Os vereadores parecem tomar como favas contadas que ele o teria reprovado. Não tenho tanta certeza.

Para quem não viveu aqueles dias, é bom dizer: o golpe de 1964 derrubou o presidente, mas não instaurou ditadura. Muita gente fina ficou do lado dos insurgentes – inclusive jornais sérios, como o Estadão. A verdadeira ditadura foi-se instalando aos poucos, com a supressão de eleições já marcadas, até que o golpe de misericórdia foi desferido com o AI-5, ao final de 1968. Nessas alturas, muitos dos que haviam apoiado o movimento já se haviam dessolidarizado. De qualquer maneira, não havia nada a fazer.

O senador Andrade não foi mais apoiador do regime militar do que grande parte dos políticos de sua época. Gente bem mais entusiasta que ele ainda continua tendo seu nome estampado em placa de rua de São Paulo. O exemplo maior é Paulo Maluf, atualmente em prisão domiciliar por ter usado suas offshores para esconder as centenas de milhões de dólares dos contribuintes que ele havia roubado.

Maluf, que foi notório lambe-botas dos militares, ainda conta com homenagem familiar. Seu pai, Salim Farah Maluf, ainda dá nome a três logradouros: uma rua, uma praça e uma avenida. E tem mais. Um complexo viário leva o nome de Maria Maluf, mãe de Paulo Maluf. A denominação do complexo foi oficializada por decreto de 1995, emitido na época em que – veja a coincidência! – o filho era prefeito da cidade.

Uma curiosidade picante: o Complexo Viário Maria Maluf termina no Viaduto Aliomar Baleeiro, figurão que se beneficiou como poucos do regime ditatorial. De fato, o baiano Baleeiro foi nomeado para o STF pelo presidente Castello Branco. Entrou numa vaga aberta pelo AI-2, quando meia dúzia de ministros em exercício foram demitidos e tiveram de ceder o lugar para outros mais dóceis. Não há previsão de que o viaduto que homenageia Baleeiro vá mudar de nome.

Dilema de bico

José Horta Manzano

Corrupto de mais de 60 anos de idade, quando apanhado, julgado e encarcerado, não demora muito pra pedir soltura por razões de saúde. E acaba conseguindo, que nossa sociedade ainda confunde velhice com doença.

Quem soube entrar por essa brecha foi o manhoso doutor Paulo Maluf. Nunca o encontrei, mas quem costumava cruzar-lhe o caminho quando ele exercia a função de deputado federal, até pouco tempo atrás, diz que o homem caminhava lépido, saltitante e lampeiro. Comparecia às sessões, distribuía sorrisos e mostrava estar em plena forma.

Foi só a PF bater-lhe à porta, pra ele aparecer curvado, titubeante, apoiado em bengala, com grande dificuldade de locomoção. Não deu outra. Apesar de condenado por roubos milionários contra a própria população que o tinha elegido, não passou mais de um mês na gaiola. Foi logo mandado pra casa por motivo de doença.

Doutor Maluf não foi o único, longe disso. O juiz Lalau, aquele que, nos anos 90, surrupiou milhões do Tribunal do Trabalho paulista, seguiu o mesmo caminho. Um punhado de outros estão na mesma condição de «condenado aposentado».

E o Lula, como é que fica? Em primeira análise, esgotados todos os recursos que lhe poderiam evitar a prisão, resta a porta da ‘desculpa de velhice’. Um paciente de 72 anos pode alegar a enfermidade que quiser ‒ todos acreditarão. Se for o caso, atestado médico é a coisa mais fácil de se obter. Porque é que o homem ainda não pensou nisso?

He, he.. Aí é que está o nó do problema. Ele pretende, como recurso pra aparecer na mídia diariamente, apresentar-se como candidato às eleições, pois não? Só que candidatura não rima com enfermidade. Não faria sentido um homem doente pretender assumir, por quatro anos, o cargo mais elevado do país.

Não se pode ter o sorvete e o dinheiro do sorvete. Ou é um ou é outro. Ou o demiurgo se candidata e continua na prisão, ou vai para prisão domiciliar por doença e, nesse caso, esquece a presidência. Por enquanto, nosso guia está dando preferência à cadeia. É sinuca de bico.

O furúnculo

José Horta Manzano

Lula na cadeia? Joaquim Barbosa candidato? Maluf na ala prisional do hospital? O registro do PT cancelado? A ‘coluna Prestes’ do Lula apupada? Bolsonaro no segundo turno? Moro endeusado? Ministros do STF acossados? A Constituição contestada? Parlamentares temerosos de sair às ruas?

À primeira vista, pode não ser evidente, mas esses fatos todos estão ligados. Fazem parte de uma teia que vem sendo tecida, no Brasil, desde que entramos neste terceiro milênio. Nada existe por si mesmo, cada ocorrência é produto do que veio antes e do entorno em que está mergulhada.

O clamor pela prisão do Lula tem a ver com a previsão do bom desempenho de doutor Bolsonaro nas eleições. O endeusamento de doutor Moro tem ligação íntima com o acosso a ministros do STF. O despacho de doutor Maluf à prisão guarda relação com o reclamo popular pelo cancelamento do registro do PT. Todos os fatos que mencionei no primeiro parágrafo estão entrelaçados. São, ao mesmo tempo, causa e consequência. Poderia multiplicar exemplos até encher a página, mas essa meia dúzia basta pra embasar o que quero demonstrar.

Nos primeiros anos que se seguiram à redemocratização, a atenção do Brasil foi monopolizada por um espantalho: a inflação. Era o pivô em torno do qual orbitava a nação. Não se falava em outra coisa, que não havia espaço. O noticiário econômico invadia a imprensa. Quem já era adulto nos anos oitenta e no começo dos noventa há de se lembrar: a inflação era tão corrosiva que ninguém sabia quanto ia receber no fim do mês. Salários eram corrigidos mês a mês. Ninguém tinha mais noção do preço de nada. Conforme a loja, o mesmo artigo podia ser encontrado a 10, a 20, a 30 ou a 40. Pouco importava.

É hora de refletir

O Plano Real deu um basta na situação. Presenteou os brasileiros com uma trégua de uns dez anos. A calmaria só começou a sentir os primeiros ventos agitados quando do estouro do mensalão, que assombrou o país em 2005. De lá pra cá, a situação veio num crescendo. O giro do remoinho vem se acelerando. Estamos chegando ao ápice. Várias reviravoltas podem acontecer num mesmo dia. É o que se chama crise.

Crise ‒ do grego krinó (=separação) ‒ é noção que se aplica a uma encruzilhada. Ao sofrer uma crise, o enfermo se encontra numa bifurcação. A partir daí, melhorará ou piorará de vez. Logicamente, quando um país está em crise, estará plantando o germe de seu amanhã. Ao fim do túnel, tanto poderá emergir uma nação melhor quanto bem pior do que era.

Há que guardar a cabeça fria neste momento. Há que manter distância dos fatos do dia a dia (ou da hora a hora…). Há que observar como se não tivéssemos nada que ver com o peixe. Deixar-se envolver e indignar pelo que acontece a cada instante é a melhor receita pra entrar em estado de choque emocional. Falar é fácil, mas há que fazer um esforço. Não vale a pena arriscar um infarto.

Nada é eterno, nem nós. Como furúnculo(*), a crise ainda vai se avolumar, se avermelhar e se inflamar até que estoure e permita a eliminação de toda a podridão acumulada. Sei que a metáfora não é lá muito apetitosa, mas a política nacional, neste momento, tampouco o é.

Pra frente, Brasil! A seleção venceu a Alemanha. Já é um bálsamo. Ou não?

(*) O termo furúnculo nos chegou através do latim. Os etimólogos não estão de acordo quanto à origem. Em princípio, furúnculus é diminutivo de fur (=ladrão). Mas o significado não combina. Alguns estudiosos tendem a ver no termo uma derivação de furio (que nos deu furor) ou ainda de ferveo (que nos legou ferver). Não há consenso.

Sensatez

José Horta Manzano

De tanto ouvir asneiras, baboseiras, sandices e barbaridades disparadas por figuras políticas, a gente acaba ficando com o ouvido calejado. Acostumado a levar pancada, o ouvido maltratado nem sempre se dá conta quando alguém pronuncia palavras sensatas, inaudíveis em meio à algaravia.

Não se pode catalogar doutor Raul Jungmann, recentemente nomeado ministro extraorinário da Segurança Pública, como figurinha carimbada da República. Está longe da notoriedade de um Sarney, de um Renan, de um Barbalho, de um Maluf. Não é a primeira vez que exerce cargo de ministro. Além de ter cumprido dois ou três mandatos de deputado federal, o político pernambucano já serviu como auxiliar direto do presidente da República em outras ocasiões.

Estes últimos dias, ouvimos dele duas ou três tomadas de posição que destoam do palavreado que políticos habitualmente dirigem à galeria. Foram observações sensatas, às quais não estamos mais acostumados.

Doutor Jungmann declarou-se impressionado com o Rio de Janeiro, onde «durante o dia, pessoas clamam, com razão, pela segurança contra o crime. E à noite, pelo consumo de drogas, acabam financiando esse mesmo crime». Dito assim, parece uma evidência. Mas tal franqueza não é comum no mundo político.

foto: Ueslei Marcelino/Reuters

A coisa não vem de hoje. No tempo de nossos avós, a população já transgredia quotidianamente a lei ao fazer sua fezinha no jogo do bicho. Felizmente, acertos de contas entre bicheiros eram, naquela época, menos violentos. Briga por domínio territorial não se fazia na boca de metralhadora. Bons tempos.

Além de dizer em voz alta o que todos pensam baixinho com relação ao financiamento do crime, o ministro botou o dedo noutra ferida. Como se sabe, advogados têm acesso praticamente livre a clientes encarcerados. Espantado com o fato de alguns presos ligados ao crime organizado disporem dos serviços de até 37 advogados(!), considerou que isso não é razoável.

Doutor Jungmann revelou que mandatários desses sindicatos do crime são enviados às faculdades de Direito a fim de recrutar estudantes ainda não formados. Assim, os novos «soldados» já deixam a universidade com clientela e ganhos assegurados. Como defensores exclusivos de traficantes de alto coturno, passam a integrar a tentacular organização criminosa. Para entravar essa prática, o ministro preconiza que conversas entre advogados e encarcerados seja monitorada.

Mais importante que o resto, Raul Jungmann garante que a Operação Lava a Jato vai continuar sem solavancos até que todos os suspeitos tenham sido investigados. É o que os brasileiros de bom senso esperam. Que assim seja. Nestes tempos estranhos, afirmações arrazoadas são pra lá de bem-vindas.

Coisas nossas

José Horta Manzano

As peripécias judiciais que nossos figurões têm atravessado estes últimos anos estão forçando a um curioso (e torto) raciocínio. Criminosos de colarinho branco dão mostra de dissociar condenação e cumprimento de pena.

Pelo que se lê, vê e ouve, o Lula & coorte de aduladores adotam esse conceito bizarro. Chegam a aceitar, ainda que de cara torcida, a condenação imposta pela Justiça. Não costumam se insurgir contra o comprimento da pena, mas contra o cumprimento dela.

E muitos incautos caem na cilada, reparem. Poucos se espantam com o rigor da sentença mas muitos aderem inconscientemente à tese de que a pena é mera abstração, desconectada da execução. Em resumo, admite-se que este ou aquele tenha sido condenado a cinco, dez ou vinte anos de cadeia, mas a o encarceramento propriamente dito nos parece impensável, inadmissível.

Em outras terras, a pena e seu cumprimento são uma sequência lógica e inexorável. Entre nós, são realidades independentes, figuras jurídicas que não se conhecem nem de elevador.

A coisa não vem de hoje. Doutor Maluf, condenado há quase vinte anos, continuou livre e solto. Seu encarceramento efetivo em dezembro último, ao invés de ser visto como consequência natural da condenação, é considerado por muitos como injusto, um exagero, uma obstinação do judiciário, uma vingança, uma crueldade.

Outro que tem reforçado a tese da dissociação entre condenação e prisão é o próprio Lula. Das declarações dele e dos que o rodeiam, depreende-se que uma coisa não tem nada que ver com a outra. Condenado, vá lá. Preso? Nunca!

São coisas nossas.

Nota
Coisas nossas é o título de um maxixe de Noel Rosa, gravado em 1932.

Recursos e apelações

José Horta Manzano

Para não-iniciados, a profusão de recursos, contestações, apelações, embargos e pedidos de «habeas corpus» à qual assistimos estes últimos tempos tem algo de surreal. Não se passa um dia sem que um juiz decida desdizer o que outro juiz acolá havia decidido. É permanente a insegurança jurídica.

Apaixonados por estatística observaram que os advogados do Lula têm por hábito entrar com um pedido desse tipo a cada seis dias. Dos outros personagens de alto coturno, sabemos menos ‒ mas pode-se imaginar que o exército de advogados de cada um siga o mesmo caminho.

As equipes de defesa fazem um pedido especial. Ao receber negativa, não se contentam. Entram com o mesmo pedido dias depois. Diante de nova negativa, apelam. E repetem, insistem, martelam até cair com um magistrado camarada que lhes outorgue decisão seja favorável. E isso é visto como absolutamente natural.

Para o cidadão comum que, embora tenha dado duro a vida inteira, não possui fortuna suficiente para sustentar um exército de advogados de renome, fica um sentimento de frustração. Se o honesto cidadão tiver a infelicidade de ser vítima de acusação falsa, será julgado. Caso tenha a desgraça de ser condenado injustamente, é provável que não tenha meios para levar adiante a causa e enfrentar novo julgamento. Justiça é isso?

O que ocorre na Justiça segue a linha do que vigora na Saúde Pública: a população se divide em duas camadas. De um lado, estão os que podem se permitir manter plano de saúde de primeira linha; de outro, estão os demais, obrigados a contentar-se com o SUS. Não precisa ser simpatizante comunista pra sentir aí um desagradável sabor de injustiça. Afinal, todos pagam, cada um na medida de suas posses, impostos diretos e indiretos. Mereciam ter os mesmos direitos.

Depois de driblar a Justiça por um quarto de século, doutor Maluf foi mandado para a cadeia, lugar onde um cidadão comum que tivesse cometido crimes semelhantes aos do figurão já estaria trancafiado há décadas. Desde que foi encarcerado, sua equipe de defesa apresenta, a cada semana, novo pedido de soltura. Até hoje, não tiveram sucesso, mas a insistência é tamanha que qualquer dia destes o condenado será mandado de volta à mansão familiar.

Um juiz mandou prender doutor Garotinho. Outro mandou soltar. O primeiro voltou a despachá-lo para a cadeia. O segundo voltou a soltar. Dizem que isso é sintoma de «bom funcionamento de nossas instituições». A mim, parece sinal de que a corda, de tão esticada, está a ponto de romper-se. As tais «instituições» estão mais pra falência que pro bom funcionamento.

Um juiz mandou apreender o passaporte do Lula. Outro mandou devolver. A argumentação de cada um deles não segue a mesma linha. Nada garante que amanhã um outro magistrado volte a mandar recolher o documento de viagem do demiurgo. Nem que, depois de amanhã, um enésimo juiz mande devolver. Até onde vamos?

Em países mais civilizados, coisas assim não ocorrem. Na esmagadora maioria dos casos, o condenado aceita a sentença de primeira instância e o processo termina ali. Entrar com recurso já é fato excepcional, que se justifica, por exemplo, quando surgem fatos ou testemunhos novos, não tratados no primeiro julgamento. Chegar à instância seguinte, a suprema, é fato raríssimo, digno de sair no jornal.

No Brasil ‒ para quem tem como pagar ‒ , entrar com recurso tornou-se regra. Vai aqui uma sugestão para desentupir a Justiça: que tal eliminar a primeira instância e submeter todo processo criminal diretamente a tribunal colegiado? A primeira instância passaria a tratar unicamente de casos menos graves, como litígio de vizinhança, guarda de filhos, atraso no pagamento de condomínio, agressão verbal. Economizaríamos tempo, esforço e dinheiro.

Dinheiro vivo

José Horta Manzano

Olhando assim, distraidamente, a gente quase não se dá conta, mas o fato é que a vida de corrupto está cada dia mais complicada. Corrupção sempre houve e não está perto de acabar mas antigamente passava praticamente despercebida. Uma vez a cada morte de papa, estourava um escândalo ‒ que costumava acabar numa confraternização em torno de uma bela pizza. E tudo bem.

A tendência a descerrar a cortina entrou na pauta do dia. O fator principal foi o advento da internet, que escancarou portas para a propagação da informação em larga escala e em alta velocidade. Muito lixo inútil circula na rede, mas quem tem o cuidado de separar o joio do trigo encontra informações preciosas. Sem o concurso da internet, a própria Operação Lava a Jato não teria tido o sucesso espetacular que teve.

Não devemos perder de vista que, apesar do sentimento difuso de impunidade continuada, terminamos o ano de 2017 com um balanço extraordinário, fora dos padrões nacionais. Temos um ex-presidente condenado a quase dez anos de gaiola, uma presidente destituída, os dois maiores figurões políticos da primeira década do século em prisão domiciliar ou fechada (Dirceu & Palocci). Sem contar governadores de Estado, prefeitos, deputados, senadores presos e condenados. Até o Maluf entrou em 2018 vendo o sol nascer quadrado. Um espanto!

A acelerada extinção de paraísos fiscais confiáveis tem dado dor de cabeça a muita gente com dinheiro para esconder. Nem a Suíça escapou! Os portos seguros que subsistem nem sempre inspiram confiança. Alguém cometeria a temeridade de guardar fortuna no Panamá ou em Chipre?

Doleiros existem às centenas. Quem quiser mandar para o exterior (ou de lá mandar vir) cinco ou dez mil dólares não encontrará problemas. Já pra dinheiro grosso, a história é diferente. Os grandes atores brasileiros do mercado de transferência internacional de capitais estão na cadeia ou com tornozeleira. A quem apelar?

Sobrou a última desesperada opção: guardar dinheiro em casa. Ninguém há de se esquecer da foto do ano, aquela que mostra um apartamento abarrotado com mais de cinquenta milhões. É a prova das atuais dificuldades de movimentar grandes montantes. Em outras épocas, aquela fortuna já estaria agasalhada em Genebra, em Luxemburgo ou em Jersey.

Mas o pior vem agora. Dia 1° de janeiro entrou em vigor instrução normativa exarada pela Receita Federal regulamentando movimentação em espécie. Todo pagamento acima de 30 mil reais em dinheiro será obrigatoriamente declarado, por quem recebe, à Receita Federal. Realmente, a coisa está preta.

Por curiosidade, fiz as continhas. Pra escoar aqueles 51 milhões encontrados no apartamento baiano ‒ pagando no máximo 29 mil reais de cada vez, para escapar ao contrôle ‒ seria preciso fazer 1750 pagamentos. E deixar um certo espaço de tempo entre cada um deles, que é pra não dar na vista. Já imaginou a mão de obra?

Francamente, corruptos profissionais precisam seriamente pensar em mudar de profissão.

 

A língua agradecerá

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 24 junho 2017.

Muitos traços distinguem a espécie humana dos demais seres animados. Talvez o mais marcante, o que condiciona o modo como encaramos a existência, seja a noção da morte. Animal vive o instante presente. Para ele, passado e futuro não funcionam como para nós. Se animais superiores retêm experiências do que passou, será para procurar repetir as prazerosas e para tentar evitar as dolorosas. O fato de o esquilo fazer provisões para o inverno não é resultado de raciocínio. O animalzinho obedece, sem se dar conta, ao comando do instinto.

Desde que o mundo é mundo, o homem sonhou com a imortalidade. Consciente de que o objetivo era inalcançável, agiu em duas frentes. Por um lado, fez o que pôde para prolongar a existência física. Por outro, aferrou-se a crenças religiosas. De fato, todas as religiões da terra – todas, sem exceção – fincam sua razão de ser numa vida pós-morte. A ideia de, exalado o último suspiro, desaparecer, virar pó e ser esquecido é simplesmente insuportável. Cada um de nós guarda, bem lá no fundo, a tola esperança de que a grande ceifadora, distraída, esqueça de nos convocar.

No entanto, ninguém fica pra semente. Pra deixar rastro de sua passagem, o homem das cavernas desenhava nas paredes. E não é que conseguiram o intento? Pinturas rupestres nos falam hoje de fatos e gestos de dez mil anos atrás. Um «João ama Maria» cercado por um coração e gravado a canivete num tronco de árvore manifesta a mesma preocupação. Enquanto estiver de pé, a árvore guardará a marca dos entalhadores.

Até dois séculos atrás, os meios de deixar lembrança eram poucos e estavam reservados para quem podia. Os mais abastados encomendavam escultura ou retrato pintado à mão. Se temos hoje ideia precisa de como era o rosto de um Napoleão ou de um Dom Pedro I, devemos o lembrete a pintores. Mas era solução apenas para um punhado de abonados. A invenção e a popularização da fotografia e do filme vieram paliar a ilusão de imortalidade de multidões. Vieram dar-lhes a ilusória sensação de que serão lembrados para sempre.

Circunstâncias às vezes fortuitas fizeram que alguns sortudos fossem mais longe que o populacho. Há personagens cujo nome se eternizou ao transformar-se em adjetivo comum. Platônico, pitagórico e cesáreo nos vêm da Antiguidade. O Renascimento, embora nos tenha deixado dantesco, manuelino e maquiavélico, negou a homenagem a Leonardo da Vinci, grande entre os maiores. A par da pobreza franciscana e da paciência beneditina, os tempos modernos foram mais pródigos em conceder notoriedade adjetiva. As artes e, em especial, a política deram contribuição importante. Temos cartesianos, bonapartistas, stalinistas, getulistas.

Conquista maior do que se ver transformado em adjetivo é chegar a substantivo. Não é pra qualquer um. A esmagadora maioria dos agraciados são cientistas que deram nome a uma unidade de medida. Pascal, Celsius, Kelvin, Newton, Hertz, Ampère, Watt, Ohm, Volta, Farad, Becquerel são alguns deles. Fora do mundo científico, poucos chegaram lá. Stalinismo, macartismo e coquetel-molotov perenizam tenebrosas celebridades. Mas chique mesmo – la crème de la crème – é virar verbo. O clube é pra lá de restrito. Além-fronteiras, merecem destaque linchar (de Lynch), pasteurizar (de Louis Pasteur), galvanizar (de Luigi Galvani), boicotar (de Charles C. Boycott) e sanforizar (de Sanford Cruett). Na trilha de seus vaivéns em matéria de abertura do país a migrantes, Angela Merkel está enriquecendo a língua alemã com novo verbo: merkeln, que significa hesitar, ficar em cima do muro. Malvadeza.

No Brasil, só dois exemplos me ocorrem. Etimólogos atribuem a origem do verbo badernar a uma bailarina de sobrenome Baderna, que levou a moçada ao desvario no Rio de Janeiro em 1850. No fim do século 20, as travessuras de antigo governador biônico paulista – hoje procurado pela Interpol – fizeram que o povo utilizasse seu sobrenome como sinônimo de roubar.

Estes últimos tempos, a brutal mudança de escala na rapinagem apequenou os feitos do antigo homem político de fala fanhosa. Badernou geral! Muito foi roubado e pouco tem sido devolvido. Esperemos que, depois de ter empobrecido o povo, alguns dos ladrões pelo menos enriqueçam a língua nos legando verbos novos para designar seus gestos. Não será ressarcimento total, mas já é melhor que nada.

Pensando bem – 14

José Horta Manzano

0-Pensando bem

Já diziam os antigos
«Tudo o que é demais cansa»
Assim mesmo, o fato espanta:
Nunca vi uma coisa assim
Como a Lista de Fachin.

Pra um político bandido,
Um Maluf, um Adhemar,
Dava-se pouca atenção
Saía até gozação.

Agora batemos no teto
O ambiente é abjeto.

Infelizmente, a overdose
Alivia a bandidagem
E dilui o desespero.

Quando a coisa é um exagero
Tem uma característica:
Já não é fato isolado
Passa a ser estatística.

Pensamentos com suas fontes

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Faz alguns dias, lancei uma espécie de desafio. Citei oito frases ‒ sem desvelar o nome dos autores ‒ e propus ao leitor que avaliasse a percepção que elas lhe causavam. Concordavam? Não concordavam? Prometi desvendar o enigma.

Promessa é dívida. Trago hoje o desfecho da novela. Logo aqui abaixo, está a lista de autores. A numeração e a ordem respeitam o post original. Para conhecer o resultado, basta clicar sobre o quadradinho que vem logo a seguir.

Se alguém deixou de ler o post original, ainda dá tempo: basta clicar aqui. Agora vamos ao fim do mistério. Tenho certeza de que muitos se surpreenderão.

Seus comentários são muito bem-vindos e me deixarão muito feliz. Clique no quadradinho pra ampliar.

Cabeçalho 16

 

Pensamentos sem suas fontes

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há um princípio geral da neuropsicologia que muitas vezes escapa à nossa atenção: a apreensão da realidade nunca é desprovida de filtragem emocional. Nossos órgãos dos sentidos estão condicionados, sem dúvida, aos estímulos provindos do mundo exterior, mas nem sempre nos damos conta de que eles também estão atrelados às nossas expectativas, princípios, valores e preconceitos. Em certa medida, ouvimos o que queremos ouvir, percebemos os sabores e odores que queremos perceber, temos as sensações táteis que queremos ter.

Blabla 8Os exemplos abundam. Mulheres que acabaram de parir conseguem ouvir os sinais mais sutis de desconforto de seu bebê, quando todos ao redor permanecem indiferentes. A simples visão de uma pessoa suada dentro de um transporte coletivo desencadeia em muitos circunstantes uma sensação olfativa desagradável. Infinitas brigas de casais acontecem quando um dos parceiros não registra conscientemente uma fala qualquer do outro e é acusado de desatenção ou indiferença. Sensações táteis podem ser potencializadas se sentimos admiração, medo ou repulsa pelo que estamos tocando, como a maciez da pele de uma criança, o frio do corpo de uma cobra ou a viscosidade de um verme.

Na área da linguagem humana, o abismo que separa o estímulo emitido e a forma como ele é recebido é sensivelmente mais profundo. Ao escolhermos palavras para manifestar uma opinião, sensação ou sentimento, esquecemos muitas vezes que o outro vai reagir não apenas à intenção que nos moveu, mas fundamentalmente ao peso emocional que cada palavra adquiriu ao longo de sua própria história. Além disso, enfrentamos mais um fator complicador: o tom de voz empregado ao dizer a palavra pode transformar o que pretendíamos ser um elogio em uma ofensa indesculpável.

Blabla 9Só os mais velhos lembrarão de uma frase polêmica dita por Mário Amato, então presidente da FIESP, a respeito da então Ministra da Economia (“Ela é muito inteligente, apesar de ser mulher”) ou de um argumento julgado ainda mais insultuoso usado por Paulo Maluf (“Tá bom, tá com vontade sexual, estupra, mas não mata”). Freud explicando ou não esse tipo de comentário, o que importa é registrar o severo risco de mal-entendidos ao transferir um conteúdo de nosso universo interior para o exterior, sem contextualizá-lo e sem aplicar o filtro da censura social.

Os desafios da comunicação humana já seriam difíceis de superar caso os problemas parassem por aí. Não é o que acontece. A imagem que fazemos da pessoa que fala ou escreve algo, nossas expectativas em relação a ela, a admiração ou desprezo que sentimos por ela também interferem pesadamente.

Blabla 10Há muitos anos, quando eu trabalhava na área de RH de uma grande multinacional, contratamos um consultor externo para ajudar na elaboração de um workshop que enfatizava a importância do planejamento. Para ilustrar o tema, o consultor optou por inserir uma frase de Karl Marx. Era uma ideia simples, sem duplo sentido e até um tanto ingênua, que apontava a diferença entre o homem, capaz de estabelecer um vínculo entre a meta desejada e sua estratégia de ação, e o animal, que se limita a improvisar soluções pontuais.

Para nosso espanto, em todos os grupos submetidos ao treinamento, várias pessoas reagiam com extrema antipatia à frase e muito tempo era perdido para tentar superar seu impacto negativo. Foi então que alguém levantou a hipótese de que a polêmica estivesse centrada na resistência ao contexto “comunista” do argumento. Quando mais tarde a frase foi apresentada aos demais grupos sem identificação da fonte, a hipótese comprovou estar certa: o argumento passou a ser rapidamente absorvido, sem nenhuma forma de contestação.

Blabla 11Talvez seja de bom alvitre levar em consideração a existência de possíveis restrições à fonte nestes tempos bicudos de triunfo da linguagem politicamente correta. A conclusão inescapável diante desse fenômeno é a de que, hoje em dia, não basta usar a palavra certa, o tom correto, nem adotar uma atitude blasée diante do tema a discorrer. É preciso cuidar para a imagem que projetamos não interferir negativamente na compreensão e na aceitação de nossas mensagens.

Valho-me dessas considerações para propor um joguinho descompromissado aos que me leem. É um exercício divertido e revelador ao mesmo tempo, garanto. Abaixo estão elencadas algumas frases de pensadores famosos, de diversos campos do conhecimento. A proposta é que você leia cada frase e gaste alguns segundos refletindo sobre ela, para avaliar seu grau pessoal de concordância e identificação com essas formas de pensar. Não se trata de um teste de conhecimentos gerais, nem de aferição da sensibilidade de cada um. Depois, quando o impacto emocional de cada raciocínio já tiver sido absorvido, você terá acesso ao “gabarito oficial”. Releia então as frases e examine desapaixonadamente o que mudou na sua percepção. Vamos lá:

     Blabla 12     • 1 «Anatomia é destino.»

     • 2 «Não fazemos aquilo que queremos e, no entanto, somos responsáveis por aquilo que somos.»

     • 3 «Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro.»

     • 4 «Tudo o que nos irrita nos outros pode nos levar a um entendimento de nós mesmos.»

     • 5 «A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes.»

     • 6 «A vocação de um político de carreira é fazer de cada solução um problema.»

     • 7 «O medo é pai da moralidade.»

     • 8 «Nem só de Proust vive uma mulher.»

Daqui a dois dias, identificaremos o autor de cada frase. Por enquanto, o distinto leitor está convidado a fazer a lição de casa. Fica o suspense.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Os cães ladram

José Horta Manzano

Quando a insistência é demasiada, a gente desconfia. Entre milhares de erros e de passos em falso cometidos pela dupla Lula/Dilma, com assistência de assessores duvidosos, está a facilitação da entrada da Venezuela no Mercosul. Um erro monumental.

Não é demais lembrar como se deu a entrada do novo sócio. As regras do clube estipulam que novos membros sejam obrigatoriamente aceitos pelos demais ‒ por unanimidade. No caso venezuelano, Brasil, Argentina e Uruguai já havia concordado. Último dos moicanos, o Senado paraguaio resistia. Entrava mês, saía mês, e nada de aprovarem a entrada de Caracas.

Mercosul 4À época, o presidente do país era Monsenhor Lugo. Rabo de saia, o eclesiástico era acusado de haver transgredido em repetidas ocasiões o voto de castidade. Libidinagem não costuma derrubar presidente; má gestão, sim.

Foi justamente por não tê-lo considerado capaz de continuar à frente do país que o congresso paraguaio o destituiu da presidência. O impedimento, embora tenha sido processado a toque de caixa, não feriu as disposições da Constituição paraguaia.

Doña Cristina Kirchner e doutora Dilma Rousseff não entenderam assim. Numa intromissão descabida em assuntos internos do país vizinho, argumentaram que a destituição do monsenhor tinha sido inconstitucional. De castigo, presentearam o Paraguai com um ano de suspensão do Mercosul.

País suspenso não é sinônimo de país excluído. Ainda que temporariamente impedido de participar dos debates rotineiros, o Paraguai manteve seu estatuto de membro fundador e de integrante do Mercosul. Toda decisão que exigisse unanimidade dos membros teria de contar com o voto guarani. Cristina e Dilma passaram por cima dessas miudezas. Valeram-se da suspensão para abrir a porta para a Venezuela. A porta dos fundos, na verdade.

Não ficou claro até hoje por que razão Brasil e Argentina se empenharam tanto para emplacar a Venezuela como sócia. Há quem alegue razões de ideologia. Fico de pé atrás. Nem Cristina nem Dilma nem os respectivos partidos são lá paradigmas em matéria ideológica. A aliança entre Lula e Maluf que o diga. A meu ver, embaixo desse angu tem carne. Conhecendo os protagonistas, é lícito desconfiar que a insistência se prenda a obscuras transações.

Mercosul 3Já emperrado por lutas intestinas, nosso infeliz Mercosul não precisava de um sócio malvisto por dez entre dez democracias do planeta. Não se pode dizer que o bloco tenha ganhado com a entrada do sócio problemático. A mais recente enrascada está acontecendo estes dias.

Em princípio, pelo sistema de rodízio, Caracas deveria assumir, pelos próximos seis meses, a presidência do Mercosul. O desconforto dos demais sócios é palpável. Entregar a presidência ao caudilho Maduro? Ninguém concorda. Reuniram-se em Montevidéu pra discutir sobre o assunto. A Venezuela não foi convidada. Assim mesmo, para aflição dos demais, a ministra de Relações Exteriores apareceu de surpresa.

Como em filme cômico, os enviados de outros países evitaram encontrá-la. Foi o retrato acabado de um bloco inerte, sem ação, sem importância, sem escapatória, sem futuro.

No fundo, no fundo, pouco importa que a presidência pro tempore seja exercida por este ou por aquele sócio. De qualquer modo, as discussões que se travam nessas cúpulas lembram aqueles cães que ladram sem se dar conta de que caravanas passam, avançam e progridem. Que continuem ladrando, tanto faz.

Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Meu Deus! Devo estar ficando louca! Não há como considerar normal que uma pessoa consiga compreender e lançar olhar compassivo aos dois lados de uma disputa, sem se posicionar automaticamente em cima do muro ou como defensora enrustida e hipócrita de uma das partes.

Vejo como verdadeiras certas afirmações de Dilma e de integrantes de seu partido, de sua base aliada e de seu governo, assim como constato que muitas pessoas engajadas na luta para derrubá-los estão também dizendo a verdade. É verdade que o golpe militar de 64 começou com uma passeata de 100 mil pessoas protestando contra o caos e a corrupção. Também é verdade que ela pagou um preço alto por ter participado da luta pela reconstrução democrática, mas isso não serve – ou não deveria servir – de salvo-conduto para isentá-la de punição por eventuais transgressões. A bem da verdade, dói-me que políticos que já militaram em grupos de esquerda apoiem medidas insanas ao chegar ao poder, como o controle social da mídia ou o sequestro da poupança nacional, como tentou Dilma e o fez Zélia, apenas porque sentem que já pagaram “pedágio” a governos autoritários. Não fui torturada nos porões do regime, mas talvez meus ouvidos o estejam sendo agora, e de forma mais insidiosa, por me saber livre para pensar e chegar a conclusões próprias.

Zélia Cardoso de Mello & Dilma Vana Rousseff

Zélia Cardoso de Mello & Dilma Vana Rousseff

Reprovo certas atitudes espetaculosas de Moro, da mesma forma que me sinto profundamente desconfortável com a desfaçatez e a pretensa superioridade moral de Gilmar Mendes, de Teori e de Rodrigo Janot. A coragem de Joaquim Barbosa para dar nome aos bois me fascinava, ainda que me incomodasse por sua rispidez, da mesma forma que me inquieta sobremaneira a leveza e despreocupação ética do atual presidente do STF.

Acho legítimo que a Globo, que sabidamente apoiou a ditadura militar e distorceu informes jornalísticos para ocultar sua conivência com ela, mude historicamente de posição e utilize agora seu vasto poderio de comunicação para divulgar os sucessivos escândalos políticos, como de resto o fazem todos os demais órgãos de imprensa, com um grau semelhante tanto de imparcialidade quanto de espetacularização.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade São Paulo, 19 março 1964

Marcha da Família com Deus pela Liberdade
São Paulo, 19 março 1964

Solidarizo-me com quem se sente enganado, traído por seus governantes, exausto de ser espoliado e sai às ruas clamando por transformação urgente, sem que forçosamente tenha de chamá-los de fascistas ou sugerir que eles aceitam servir gostosa e irracionalmente de massa de manobra para golpes contra a democracia. Acolho em meu peito a raiva e a frustração das pessoas que vêm militando há décadas ao lado do partido governante para implementar certos avanços sociais, sem me sentir obrigada a tachá-las de cegas, canalhas, corruptas ou inimigas do povo brasileiro.

Condeno veemente as manobras de Cunha, tanto para acelerar o processo de impeachment de Dilma quanto para evitar sua própria cassação. Não aceito que Renan se faça de desentendido, repetindo o discurso de Dilma sem se dar sequer ao trabalho de disfarçar o desejo de salvar a própria pele. Considero vergonhoso e humilhante que políticos enlameados até a raiz dos cabelos, como Maluf e Collor, posem de estadistas e ganhem assento na comissão que vai julgar o atual desgoverno. Jamais apoiaria um governo Temer construído à revelia dos anseios da população, em aliança com o PSDB ou outros partidos oportunistas de oposição, simplesmente por achar que ele seria um mal menor.

Não entendo, por mais que me esforce, o que significa ser de esquerda ou de direita no mundo atual, que dirá no Brasil. Não posso acreditar que uma seja detentora da verdadeira consciência social e outra composta só por uma elite nojenta, desprovida de valores éticos, já que suas práticas de governo se têm mostrado indistinguíveis. Não sei o que é ser elite, nem o que é ser povo, quando se empresta apressada e generalizadamente a ambos o caráter de alienação.

Fernando Collor de Mello & Paulo Salim Maluf

Fernando Collor de Mello & Paulo Salim Maluf

Também não compreendo porque artistas do peso de um Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil devam ser xingados, perseguidos e difamados simplesmente porque ousam manifestar suas crenças livremente, mesmo que anteriormente tenham se manifestado a favor de ditadores ou da censura a biografias não autorizadas. Posso lamentar, talvez, que sua sensibilidade poética não tenha se espraiado para uma visão de mundo mais de acordo com a minha ou a dos que protestam nas ruas, mas me parece impossível negar sua capacidade de discernimento.

Sou mulher, profissional liberal aposentada, de terceira idade. Nunca me senti representada por Dilma só porque ela também é mulher. Embora tenha acreditado lá atrás no tempo que as mulheres fossem portadoras de maior capacidade de gerir, servir, cuidar e amar, não foi isso que constatei ao analisar a vida e o governo de Indira Gandhi, Margareth Thatcher ou Cristina Kirchner. Não me parece lógico, portanto, me aliar irrefletidamente a qualquer uma que prometa um mundo mais igualitário, generoso e includente só por ter dois cromossomos X.

Da mesma forma, abri as portas de minha carreira profissional, enfrentando um mundo masculino organizado, poderoso e discriminador. Nunca me senti menos inteligente, menos capaz de suportar pressões nem menos sensível às demandas da realidade. Nunca busquei proteção ou defesa em meus chefes e colegas masculinos quando acusada de estar exagerando ou emocionalmente desequilibrada por estar sujeita à flutuação hormonal típica do gênero feminino, assim como não fui chorar no banheiro nessas ocasiões.

Indira Gandhi & Margaret Thatcher

Indira Gandhi & Margaret Thatcher

Respirei fundo quando fui excluída do mercado de trabalho por causa de minha idade, por compreender que a reciclagem da mão de obra é natural e desejável. Reuni as forças que me sobravam para encontrar um trabalho que ainda pudesse ser considerado útil pelas empresas e capaz de acrescentar um pouco mais de dignidade à minha vida de aposentada.

Sou exceção? Talvez. Numa curva estatística de distribuição normal, devo ser. Mas, se o critério for o de condições intelectuais, psicológicas ou morais para assumir que em casa onde falta pão todo mundo grita e ninguém tem razão, devo estar absolutamente dentro da média da população. Tenho dito.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Vale tudo

Cabeçalho 7José Horta Manzano

Dancing daysOs mais maduros hão de se lembrar dos tempos em que novelas como O Direito de Nascer, Pecado Capital ou Dancing Days eletrizavam o país e prendiam o povo em casa. Ninguém perdia um capítulo.

Em 1988, justamente na época das festas de Natal, falava-se menos em Papai Noel e muito mais no desenlace da novela Vale Tudo. Em conversas de elevador, de corredor e de botequim, a pergunta era sempre a mesma: quem matou Odete Reutemann?

Pecado capitalComo vivo fora e só vejo o Brasil de longe, desconheço qual seja a novela do momento. Ignoro se é boa e cativante como algumas do passado. No entanto, tenho certeza de que, por mais palpitante que seja, está sofrendo concorrência pesada.

Não, não me refiro a eventual programa cultural proposto por outro canal no mesmo horário ‒ antes fosse. Estou pensando no pipocar de notícias bizarras. Estes últimos anos, casos políticos tem-se transformado, com indesejável frequência, em casos de polícia. De dois dias pra cá, a colheita de notícias espantosas já dá pra compor um buquê. Veja só.

Interligne vertical 16 3KeO Supremo, em sessão solene, dá anuência para que o presidente da Câmara seja investigado como réu da Lava a Jato. Será o primeiro réu da operação a responder diretamente à corte maior.

A Justiça francesa informa que Paulo Maluf ‒ interventor no Estado de São Paulo na última ditadura ‒ foi condenado, à revelia, a três anos de prisão em regime fechado, a confiscação de 1,8 milhão de euros e a multa de 1,5 milhão de euros. A condenação é extensiva à esposa e ao filho.

A OAS, empreiteira gigante, admite o que negara até o dia anterior: financiou ilegalmente a campanha eleitoral de dona Dilma. Com vista a fugir à prisão, seu ex-presidente já está de caneta na mão para assinar acordo de delação.

O ministro da Justiça, considerado demasiado benevolente, é demitido e substituído por um promotor de quem o Planalto espera maior disposição para “controlar” a Polícia Federal.

Jesus, Maria, Josef! ‒ como se exclamam os vienenses quando o espanto é grande. O panorama político atual merece, mais que a velha novela, o título Vale Tudo. A pergunta agora é: quantos capítulos ainda faltam para Odete Reutemann sair de cena?

De quem é o dinheiro?

José Horta Manzano

Você sabia?

Banco 4Envolvidos nas megarroubalheiras do petrolão & companhia costumam negar enfaticamente «ter conta bancária no estrangeiro». Sem pudor, repetem isso ao depor numa CPI ou num tribunal, diante de câmeras de tevê, em casa, na rua e no bar.

Mais tarde, descobre-se que o inquirido, exatamente aquele que tinha jurado inocência de pés juntos e olhar destemido, é dono de dezenas de milhões bem guardados nalgum banco no exterior. Por que será que praticamente todos seguem esse ritual de negação?

Dinheiro 2É simples. Já faz dois séculos que donos de banco perceberam que parte dos clientes não desejava que a fortuna depositada se tornasse de conhecimento público. Queriam a maior discrição possível. Espertos banqueiros suíços foram os primeiros a se dar conta do anseio da clientela e a encontrar solução. Hoje, todos os paraísos fiscais adotam o mesmo sistema.

Pra contornar o problema e facilitar a vida do cliente, estabelecimentos especializados em acolher «refugiados fiscais» fazem o seguinte. Na abertura da conta, são mencionados dois nomes: o do titular da conta e o do beneficiário dos fundos. Os dois nomes tanto podem corresponder à mesma pessoa quanto a pessoas diferentes.

Dinheiro lavagemAssim, o indivíduo A pode abrir conta em seu nome e declarar que os fundos pertencem ao indivíduo B. Nos extratos e em todos os documentos oficiais, somente o nome do titular – o indivíduo A – aparecerá. Desse modo, o senhor B poderá, sem mentir, declarar que não tem conta em seu nome.

A astúcia permite ao beneficiário afirmar, de boca cheia e mão estendida no peito, que não tem conta no estrangeiro. E não tem mesmo. O que tem, na verdade, são fundos depositados em conta de outra pessoa.

Preste atenção: Malufs, Cerveròs e assemelhados não costumam negar a posse de fundos no exterior. Dizem e repetem que não têm conta, que nunca tiveram e que não pretendem ter. No rigor da semântica, estão dizendo a verdade.

Dinheiro 1O dinheiro desses senhores está em contas abertas em nome de terceiros. Eles são «apenas» beneficiários, ou seja, proprietários da grana. Perceberam a astúcia?

Juízes, promotores, responsáveis por CPIs e excelências em geral deveriam ser informados sobre essa artimanha, que só assim passarão a fazer a pergunta adequada. Está aí uma consequência de nossa crônica falta de abertura ao mundo.

Qui nome qué?

José Horta Manzano

Urna 7Uma das afiliadas ao Partido Comunista do Brasil, atualmente cumprindo mandato de deputada federal, está cotada para dirigir o Ministério da Cultura. Nada menos que isso.

A moça já foi prefeita de Olinda. Sua maior qualidade – salientada pelo Estadão – é ser próxima de ambas as cabeças da hidra bicéfala que encarna nosso Executivo. Trocando em miúdos: é vista com bons olhos por dona Dilma e por nosso guia.

Das dezenas de siglas que compõem a aquarela de nosso sistema partidário, o(s) partido(s) comunista(s) são, em teoria, os que contam com alicerce ideológico mais profundo. Em teoria, continuam aferrados à doutrina que, posta em prática por Lênin, terminou no desastre que vimos.

Manif 10Na ideologia comunista, «cultura» é termo dúbio, perigoso, ambíguo – um quase tabuísmo. Cultura é bom na medida que se encaixa nas diretrizes do partidão. Nada de arte degenerada, nada de peças, espetáculos, livros, novelas ou filmes que possam trazer embutida alguma crítica ao regime. Nem a mais leve desviação será tolerada. A censura é fortemente recomendada.

Que nosso Ministério do Esporte tenha estado, estes últimos anos, nas mãos de um nostálgico do paraíso soviético é compreensível. A exaltação da excelência física foi (e continua sendo) característica de regimes autoritários. Em competições olímpicas, a antiga União Soviética era páreo duro. É verdade que, no Brasil, a gestão do ministro comunista foi pífia. A culpa há de ter sido dos loiros de olhos azuis. Que fazer?

Já entregar as rédeas da cultura nacional a um membro de carteirinha do partidão parece-me temeridade. Se a ministra se encasquetar em impor o pensamento único, pode dar um angu danado. A não ser…

… a não ser que as siglas já não signifiquem mais nada. Pensando bem, acho que é isso mesmo.

Partido 1Faz tempo que o Partido dos Trabalhadores abandonou os trabalhadores para dar prioridade aos milionários. O Partido Progressista, bem mais conservador do que seu nome indica, congrega alguns dos milionários mais contestados do país: o Maluf à frente de todos. E por aí vai.

Desconfio que o partido comunista não fuja à regra. De comunista, só tem o nome. Essa insignificância da denominação de fachada de nossos partidos me lembra historinha antiga.

Interligne vertical 7Ao pedir ao cliente que escolhesse a cor da mercadoria, o caipira perguntou:
«Di qui cô qué?»

E o freguês:
«Di caqué cô.»

Vale transpor ao sistema político brasileiro. Na hora de escolher o nome do partido, fica assim:

Interligne vertical 7«Qui nome vai?»
«Caqué um, uai!»

Proponho que o nome de agremiações políticas seja abolido. Que se passe a conhecê-las unicamente pelo número. É mais que suficiente. Sou do 37. Só voto no 59. Prefiro o 83. Que tal?

Deus é mesmo brasileiro?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Deus triangulo 2Bom, eu não costumo achar que conheço a vontade de Deus ou seus planos para nosso futuro. Não posso nem mesmo argumentar que mantenho diálogos frequentes com a divindade, durante os quais Ele me explica os detalhes de algum acontecimento que não compreendo de imediato.

Esforço-me apenas para identificar os sinais de Sua intervenção em nosso cotidiano. E, se tenho feito a lição de casa com denodo e precisão, parece que Ele não se sente lá muito à vontade em ser nosso compatriota. Se não, vejamos:

Interligne vertical 11c1. Ele indicou recentemente como seu lídimo representante aqui na terra um argentino e, pior, não foi a única vez que preferiu apostar num cidadão de outro país. Ao contrário, em todos os pleitos anteriores, foi sempre um estrangeiro o escolhido;

2. Levou de nosso convívio nos últimos meses os mais doces e apaixonantes personagens de nossa cena artística, literária e educacional. Gente talentosa como Millôr Fernandes, José Wilker, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves. Acaba de atacar desta vez no plano político, levando-nos de um só golpe e sem aviso prévio um promissor integrante da nova geração de políticos brasileiros, Eduardo Campos. Não me entendam mal, não conheci Campos pessoalmente e entrei em contato com muito poucas de suas ideias. Nem o fato de ele ser neto de uma figura respeitável como Miguel Arraes me servia de garantia de que os rumos de nosso país seriam de fato mudados. Apenas ele me parecia ter um fogo que há muito tempo não se via por estas bandas e um brilho especial nos olhos. No conjunto, Deus nos levou todo um punhado de pessoas intelectualmente articuladas, bem humoradas, de bem com a vida e capazes de nos colocar na boca o gosto bom da esperança;

3. Essa última perda reeditou em meu peito a dor angustiante da perda de outro nome emblemático na história política nacional: Tancredo Neves. Depois de vinte e um longos anos de chumbo e sombras, desapareceu aquele que talvez tenha sido nosso último estadista. Já os ratos de porão de nossa elite política continuam vicejando e engordando, sempre tramando novos esquemas pelas nossas costas e levando seus parentes e pets para passear em jatos da FAB: Maluf, o clã Sarney, Renan, Collor, Arruda, Cabral, Lula, José Dirceu, Genoíno… a lista de nomes politicamente asquerosos não termina nunca;

4. Mesmo mantendo-o vivo, afastou de nós e do nosso território um personagem do calibre do ministro Joaquim Barbosa, o único magistrado em toda a história republicana que, ao menos a meus olhos, conseguiu se mostrar destemido, dando nome aos bois sem titubear e usando um linguajar simples de ser compreendido, fossem eles seus pares, governantes ou outras figuras públicas.

NuvensAnalisando esse padrão de intervenção divina na história de nossa pátria – ou seja, o de permitir que a tensão vá se acumulando, os ânimos se exacerbando e chegando próximo a um ponto de ruptura, sem que jamais haja uma real chance de descarga e alívio final da tensão – cheguei à conclusão de que só há duas hipóteses para explicar esses últimos acontecimentos: ou Deus quer que nos ferremos todos porque não temos como povo o potencial para gerirmos de maneira satisfatória nossas próprias vidas, ou Ele nos está dando, mais uma vez, um empurrão para que assumamos finalmente as rédeas de nosso destino. Na dúvida, por ignorância ideológica e por ser uma pessoa de boa vontade, opto pela segunda.

Imagino mesmo que se eu O cobrasse, ele diria algo como:

Interligne vertical 11“Mas, minha filha, não coloque toda a responsabilidade exclusivamente nas minhas costas. Eu lhes concedi o dom do livre arbítrio exatamente para que vocês pudessem relativizar o impacto de muitos de meus planos. Se não o fizeram, foi por vontade humana e não divina. Eu lhes dei um país rico em recursos, uma terra generosa e um povo amável e acolhedor. Por que vocês não colocam em prática os valores nos quais acreditam e ficam esperando que lhes caia dos céus a solução de todos seus problemas? O que você quer de mim? Que eu lhe indique o próximo salvador da pátria? Isso não é problema meu, ora bolas!”

P.S.:
Acabo de descobrir uma nova interpretação para a vontade de Deus em levar Eduardo Campos de nosso convívio. O que Ele queria, suponho eu, era assistir de camarote a disputa de quem pode se declarar seu verdadeiro – e único – herdeiro político! Como muitos de nós humanos, ouso acrescentar.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Recordar é viver ― 3

José Horta Manzano

Longe de imaginar que, poucos anos mais tarde, alguns de seus mais fiéis colaboradores seriam despachados pela Justiça para boa temporada de repouso nas acolhedoras dependências da Papuda, o Lula fez um de seus incontáveis vaticínios no dia 29 de maio de 2009.

Quando da inauguração de grandiosa obra no Rio de Janeiro, subiu ao palanque e declarou à populaça que «este país pode ser diferente se a gente aprender a não eleger mais vigarista nesse(sic) país».

Blá, blá, blá!

Blá, blá, blá!

Foi antes do julgamento do Mensalão e da aliança com Maluf, mas depois dos juramentos de amor eterno feitos a Collor e a Sarney. Fica evidente que o Lula já tinha dado início ao processo de eliminação dos vigaristas dessepaís.

Pelo tempo decorrido de lá pra cá, não deve ter sobrado nenhum sem-vergonha nessepaís. Foram varridos todos.

Melhor assim. O povo, reconhecido, agradece.

Interligne 18c

Reportagem disponível no site Globo
Vídeo disponível no youtube

A ousadia

José Horta Manzano

Ainda que muitos não liguem a mínima pra isso, bato pé firme: não aceito que o meu País se transforme em esconderijo de bandidos, fugitivos de Justiça ou párias internacionais. Já bastam nossos bandidos, nossos fugitivos de Justiça e nossos párias nacionais. Já temos Dirceus e Malufs em quantidade suficiente. Chega, obrigado.

Uma coisa é dar abrigo a perseguidos por razões de raça, de etnia, de religião, de orientação sexual, de opinião política. Outra coisa, bem diferente, é acolher bandidos e fugitivos de Justiça. Coração de mãe não é covil de malfeitores.

Interligne 28a

O Brasil mudou muito de uns 5 ou 6 anos pra cá. A economia já não vai tão bem quanto ia, é verdade. Apesar disso ― ou, talvez, por causa disso ― o povo parece ter aberto um olho. Se a proposta de acolher uma futura Copa do Mundo tivesse de ser tomada agora, em 2014, é duvidoso que fosse aceita.

Briga 2O povo descobriu que tem dirigentes. E os dirigentes se deram subitamente conta de que não vivem em círculo fechado. Perceberam que têm um povo por detrás e que essa gente pode até ― ora, vejam só! ― cobrá-los por seus feitos e malfeitos. Francamente, o mundo está de ponta-cabeça.

Pela primeira vez na história dos campeonatos mundiais de futebol do pós-guerra, o Chefe de Estado do país-sede não dirige palavras de boas-vindas aos participantes. Nada, nenhuma saudação! Três pombas se encarregaram de acolher zilhões de telespectadores de olho colado na telinha. Que vexame! Podiam ao menos ter integrado no magro espetáculo de dança uma coreografia de saudação ao mundo. Ficou demonstrado que nossos dirigentes temem o povo.

Interligne 28a

Que é que tem acontecido no mundo? No plano internacional, Chávez desceu sete palmos, Ahmadinedjad foi varrido pra fora da arena e nossos belicosos vizinhos de parede ― atolados em problemas ― andam meio apagados. Do lado de cá das fronteiras, o Lula se foi, o Amorim foi mandado pra escanteio, o ‘top top’ Garcia se recolheu à sua insignificância. Dona Dilma está mais é preocupada em se manter de pé num momento em que todos tentam puxar-lhe o tapete.

Interligne 28a

O nome do senhor Glenn Greenwald, empresário, advogado e jornalista americano, é bastante conhecido no Brasil. Todos o conhecem por ter anunciado ao mundo que os EUA tinham meios de espionar o planeta.

Briga 3Não foi, digamos assim, uma revelação de capital importância. Todos já sabiam disso. Há certas verdades sobre as quais é melhor manter a boca calada. Sabe Deus por que razão, Greenwald passou por cima dessas conveniências. Julgando-se dono da virtude, houve por bem botar a boca no trombone e proclamar bem alto o que todos já sabiam. Causou alguma marolinha, mas nada que abalasse o equilíbrio do planeta. O maior prejudicado foi ele mesmo.

O que menos gente conhece é o passado errático, movimentado e sulfuroso do jornalista. Poucos sabem que já foi até proprietário de um site pornográfico ― atividade pra lá de malvista em sua terra de origem. E que não se justifique como «erro de juventude»: foi 12 anos atrás, quando o advogado já tinha 35 aninhos. O gajo é useiro e vezeiro em matéria de desacato a seu próprio país.

Interligne 28a

O senhor Greenwald concedeu entrevista estes dias ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Ele reivindica que o Brasil dê asilo a Snowden ― aquele maluquinho que andou roubando informações secretas de seu país e, procurado por todas as polícias do mundo, há um ano se encontra encurralado nas estepes russas.

A certa altura, o jornalista preconiza que o Brasil ofereça abrigo a Snowden. Segundo ele, «o Brasil não deve ter medo de deixar os EUA zangados, e acho que qualquer país independente vai acolher o Snowden. Na Europa, os países são muito submissos aos EUA e jamais vão fazer algo que os EUA não queiram. A questão é se o governo brasileiro é independente, mesmo.»

Briga 4Inacreditável! Um estrangeiro atreve-se a lançar desafio às autoridades brasileiras! Justamente um forasteiro que vive em nosso território em situação análoga à de um asilado ― não ousa voltar à sua terra por medo de ser preso.

A que ponto chegamos! A escalada da agressividade continua. Hoje, qualquer um xinga a presidente da República, ameaça de morte o presidente do STF, acusa a Justiça de parcialidade, destrói patrimônio público ou privado, e fica por isso mesmo.

Agora temos o que faltava. Um estrangeiro, que, embora esteja sendo aqui acolhido «de favor», ousa desafiar as mais altas autoridades da República com algo do tipo «vamos ver se você é homem».

É insuportável.

Frase do dia — 57

«Na celebração do Natal com os catadores de lixo e os moradores de rua, Dilma foi chamada de “presidenta Lula” por engano pelo apresentador da cerimônia. E o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), também presente, recebeu vaias da plateia.»

Do Radar Político, sobre churrasco oferecido pelo Instituto Lula a seletos convidados. In Estadão, 19 dez° 2013.

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«Não sei o porquê da vaia. São parceiros!»

Comentário de uma leitora, postado ao pé do artigo.