Europa e Brasil: parceria contestada

José Horta Manzano

Como todo agrupamento de gente que bota os miolos pra tabalhar, também o Parlamento Europeu é percorrido por correntes de pensamento diversas e muitas vezes divergentes. Os 751 componentes vão desde os que sentem saudades de Mussolini até os que gostariam de ressuscitar Stalin. Entre esses extremos, todos os matizes da política estão presentes.

Faz anos que o Brasil ‒ atado ao Mercosul ‒ tenta conseguir regime de parceria preferencial com o bloco europeu. A lentidão da negociação deve-se a corpo mole de ambos os lados. Do lado nosso, é aquela bagunça que se conhece: querelas entre Brasil e Argentina, suspensão do Paraguai, entrada perturbadora da Venezuela, ideologização do grupo.

Parlamento europeu

Parlamento europeu

Do lado europeu, o interesse pela negociação é escasso. As exportações brasileiras para a Europa constituem-se basicamente de produtos agrícolas. A Europa, embora nem todos se deem conta, é grande e tradicional produtor agrícola. Até frutos tropicais vêm sendo produzidos nas redondezas. Com sucesso.

Temos hoje bananas das Canárias (Espanha) e da Martinica (França). Abacates são israelenses ou espanhóis. Laranjas e outros cítricos vêm da Itália e da Andaluzia. Come-se arroz italiano, tailandês ou americano. Vagem, hortaliças e feijão são cultivados na Lombardia. A Holanda, apesar da alta densidade populacional, encontra espaço para ser o maior fornecedor de tomates e pimentões do continente. Não sobra muito para o Brasil exportar além da gabiroba e outros produtos de minguada demanda. Estou exagerando, mas não muito.

Chegou ontem intrigante notícia. Um grupo representando pouco menos de 5% dos deputados do Parlamento Europeu apresentou moção exigindo que as negociações entre a UE e o Mercosul sejam suspensas. Os peticionários, figurinhas carimbadas da assembleia, argumentam que o afastamento de Dilma Rousseff seja sinal de um golpe urdido por parlamentares corruptos.

Parlamento europeu

Parlamento europeu

A meu ver, a petição tem motivação complexa. Há numerosos ingredientes nesse molho. Por trás da moção, há parlamentares alinhados com a extrema esquerda ‒ gente que, apesar de já ter deixado pra trás a juventude, conservou os ideais incendiários dos anos 70. Há também apoio conivente dos grandes produtores agrícolas europeus ‒ com a França na linha de frente ‒ que não veem no Brasil uma solução, mas um sério concorrente.

Há ainda os maria vai com as outras, aqueles que enxergam os acontecimentos brasileiros como quem observasse um golpe de Estado na Birmânia. Tanto faz como tanto fez. Afinal, para um parlamentar da Estônia ou da Eslováquia, pouco interessa o que estiver acontecendo em Brasília, desde que o tomate continue a lhe ser servido na salada. Situa-se nesse grupo a esmagadora maioria dos parlamentares. Não têm visão exata do que ocorre na política brasileira.

É precisamente aí que entra a necessidade de o Brasil acionar lobby ativo junto ao Parlamento Europeu. A ação do chanceler Serra é um começo promissor. Esclarecer, explicar, insistir, convencer ‒ eis a chave que poderá abrir o mercado. A suspensão forçada do Paraguai para permitir a entrada fraudulenta da Venezuela no Mercosul, quatro anos atrás, não comoveu a UE. Mais que isso, diante do evidente atropelo dos fundamentos da democracia venezuelana, não se ouve um pio dos europeus. Como é possível que uma mudança de governo clara e dentro das regras, como a que ocorre no Brasil atual, possa ser contestada?

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

A movimentação proativa do atual governo brasileiro está na direção certa e deve ser intensificada. Se a decisão for deixada unicamente nas mãos da UE, a parceria privilegiada com o Brasil periga não se concretizar tão cedo. Será que estaríamos dispostos a contribuir para exterminar o futuro?

Se l’Italia fosse il Brasile

José Horta Manzano

Tenho um amigo italiano enamorado pelo Brasil. Originário da região de Veneza, Massimo Pietrobon é blogueiro e poliglota. Vive a maior parte do ano em Barcelona (Espanha), mas sempre que pode dá uma escapada pra rever a Terra de Santa Cruz.

Apaixonado por Geografia em geral ‒ e por mapas em particular ‒, Massimo teve uma ideia outro dia. Tomou um mapa da Itália e deu a cidades italianas importantes o nome de localidades brasileiras. Para cada caso, acrescentou uma justificativa, algum aspecto que sirva de elo entre ambas. Ficou interessante e curioso. Dou aqui abaixo um apanhado das muitas correspondências entre os dois países encontradas pelo Massimo.

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Para começar, São Paulo, cinzento e chuvoso mas principal centro econômico, só pode corresponder a Milão. Por seu lado, o Rio de Janeiro, caótico mas denso de beleza e de turismo, se encaixa bem com Roma, a outra metrópole italiana.

I love ITFlorianópolis, bela, turística e ilhoa, compara-se com Veneza, que tem as mesmas características. Recife, centro-mor do Nordeste, se conjuga maravilhosamente com Nápoles, centro-mor do Sul da Itália. Perto de Nápoles, está Amalfi, preciosidade histórica. E ao lado do Recife, o que é que está? Olinda, naturalmente, nossa joia antiga e carregada de história.

Outro ponto focal do Sul italiano é a ilha da Sicília, a confrontar com o outro representante do Nordeste brasileiro: a Bahia. Portanto, Salvador é Palermo.

A longínqua Amazônia, com Manaus, isolada capital, só pode ser a Sardenha e sua capital Cagliari. Ambas as regiões são selvagens e souberam conservar a cultura dos primitivos habitantes.

E Bolzano, a capital do Tirol do Sul, onde predomina a língua alemã? Corresponde a Blumenau, centro maior da imigração germânica no Brasil. Já as belezas históricas e naturais da Toscana se adaptam bem às preciosidades e às paisagens das Minas Gerais.

Turim, cidade organizada e funcional, combina com Curitiba, ao passo que o grande porto industrial de Gênova tem tudo a ver com o de Santos. Falando de cursos d’água, o mais importante da Itália é o Rio Pò, que se lança ao mar num delta cuja capital é Ferrara. Não é absurdo compará-la a Belém, situada exatamente onde o Amazonas desemboca no Atlântico. Outro ponto comum é que as duas cidades estão encharcadas de História.

I love BRPorto Alegre, cidade portuária que já se aproxima dos confins culturais do Brasil, é Trieste, onde já é perceptível a mestiçagem entre italianos, eslavos do sul e remanescentes do antigo Império Austro-Húngaro.

Na hora de comparar cidades saídas de uma prancheta de urbanista, não há que hesitar: a italiana Latina e nossa Brasília têm esse ponto em comum.

A grande cidade brasileira situada próxima de um dos pontos cardeais da rosa dos ventos é João Pessoa, que marca o extremo leste das Américas continentais. Na Itália, corresponde a Reggio Calabria, que assinala a ponta sul da bota.

Bandeira brasileira com as cores italianas

Bandeira brasileira com as cores italianas

Não há como não mencionar a região de Parma, de onde é exportado para todo o mundo o delicioso queijo parmesão, aquele sem o qual o macarrão perderia a graça. (Dizem que macarrão sem queijo é como amor sem beijo…) Que se compare Parma com nosso Estado de Minas que, no Brasil, é referência em matéria de queijo.

Há certamente outras semelhanças. Que o leitor curioso ponha o bestunto a funcionar. Buona fortuna a tutti!

PS: Para visitar o site original, clique aqui.

Engraçado

José Horta Manzano

Você sabia?

A expressão «sem graça» não admite hífen. Escreva sempre assim, ao natural, fazendo cara de paisagem: sem graça. É tão simples, que a gente se pergunta como é que tem gente que acha difícil.

Eu disse simples? Quanta ilusão!
Se um lado sobe, o outro desce
Na primavera, tudo floresce
Sem primavera, não há verão
Na ortografia, não há perdão.

Já vem a vingança: «sem-gracice» exige o sinalzinho. Quem se esquecer do hífen leva zero. Conheceu?

Não ficou claro? Pouco interessa.
É oficial. Não se discute!
Espernear? Se aborrecer?
Você vai ter de obedecer.

Samba da benção

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 maio 2016

Ninguém nasceu sabendo. Geração espontânea, só em ficção científica. Ao nascer, trazemos apenas as sementes do que poderá ser. A germinação depende de muitos fatores. O ser humano é produto dos que o antecederam e contribuíram para gerá-lo. O mesmo vale para coisas e fatos. Toda situação descende de uma fieira de acontecimentos que a precederam e que acabaram por provocá-la.

A ingratidão é defeito muito sério. Convém reconhecer e guardar apreço por tudo e por todos os que contribuíram para uma chegada a bom porto. O distinto leitor há de ter na memória o Samba da bênção, fruto de feliz parceria. Nasceu em 1963, num lampejo genial de Vinícius de Morais e Baden Powell. O primeiro escreveu, o segundo musicou.

Baden e ViniciusO miolo da composição encerra longa declamação, popularizada na voz do poeta diplomata, que saúda e pede a bênção a predecessores e mestres antigos, sem os quais a obra nunca teria existido. É excelente exemplo de gratidão e de reconhecimento.

Nosso país vive um momento grave, desses que não advêm mais que uma ou duas vezes a cada século. Por obra da evolução tecnológica, a tevê já não se resume a exibir novelas pra contentar o bom povo. Tampouco o telefone se limita a bate-papos. Ambos desenvolveram capacidades nunca dantes sonhadas. Informam e formam uma população cada dia mais politizada. O caminho é sem volta.

A nova mídia, impiedosa e voraz, transpassa barreiras antes intransponíveis e respinga até em grotões. Em poucos minutos, redes sociais atingem um contingente de brasileiros que nem mil dos antigos comícios conseguiriam alcançar. Hoje, todos sabem de tudo e já começam a se inteirar dos comos e dos porquês da coisa pública. As descobertas nem sempre são agradáveis. De vez em quando, alguma coisa boa até que aparece. Mas, convenhamos, em matéria de gestão do Estado, a aspereza das notícias espanta. A cada vez, a gente acha que bateu no fundo do poço, mas o dia seguinte se encarrega de adiar o sonho: o fundo é sempre mais fundo.

Poço 1Nem tudo é miséria, no entanto. Vamos olhar para o lado bom das coisas. Vamos fazer como Baden e Vinícius. Saudemos os arautos dos novos tempos.

Primeiro, vamos saudar a evolução da mídia, sem a qual ainda estaríamos imersos nas trevas. Pedimos a bênção também à inflação devorante que nos martirizou até vinte anos atrás. Sem ela, não saberíamos dar valor à estabilidade que nos acariciou até um passado assaz recente.

E que dizer, então, do incomparável «coup de théâtre» de Roberto Jefferson, raio em céu sereno, gesto sem o qual a tevê teria continuado, modorrenta, a transmitir novelas e amenidades? Sua bênção, companheiro!

Também hão de nos conceder bênção os guerreiros do povo brasileiro! Não fosse a ação ousada e altruísta daquela gente visivelmente desapegada de bens materiais, a pátria estaria ainda à espera de uma hipotética passionária. Homens destemidos, punho levantado diante da adversidade, que imagem mais linda! Aprendemos muito com eles. Terão nossa eterna gratidão.

Piramide 2E como ficam os grandes empreiteiros? O trabalho beneditino, discreto e continuado desses visionários foi componente pra lá de importante pra nos conduzir aonde chegamos. Hão de deixar rastro indelével. Sua bênção, companheiros!

Graças especiais temos de render a nossa presidente hoje afastada, mulher de pulso, que, contra ventos e marés, levou ao paroxismo a doutrina recebida de seu patrono. Não fosse por seu encarniçamento, o Brasil nunca teria chegado aonde chegou. Sua bênção, mãe e madrinha!

Lula caricatura 2aDeixei para o fim o mais importante, o guia maior, ironicamente base e topo da mesma pirâmide. Em trinta anos de ascensão, transformou-se em catalisador. Agregou gente fina, outros nem tanto. Em sua órbita gravitaram muitos: este em busca de fama, aquele à cata de fortuna, uns querendo um trampolim, outros certos de que o poder do chefe lhes garantiria proteção eficaz e eterna. Por um tempo, cada um imaginou ter encontrado o caminho das pedras. Saravá!

A todos os que mencionei ‒ e aos milhares que a exiguidade do espaço me impede de nomear ‒, peço a bênção. Podem todos eles orgulhar-se de nos ter ensinado o que fazer. E, principalmente, o que não fazer.

Vaticinam as profecias que, antes que a Grande Transformação venha conjurar a mediocridade, há que surgir monstros. Está aí o sinal dos novos tempos: um festival de monstros e de monstruosidades ‒ só não vê quem não quer. Que os cidadãos de bem retenham a lição, antes que este Samba da bênção se converta em Samba do cruz-credo.

Obama e os nós

José Horta Manzano

Obama 2Em 2009, quando o Prêmio Nobel da Paz lhe foi atribuído, Barack Obama há de ter-se sentido meio sem graça. Até aquele momento, o gesto mais vistoso do recém-eleito presidente tinha sido o Discurso de Cairo, interpretado como guinada na política externa americana.

Foi pronunciamento importante, sem dúvida, mas daí a valer Nobel da Paz… vai um longo caminho. A opinião pública mundial ficou cismada. Por que teriam agraciado o presidente por antecipação? Que esperavam dele?

Passados quase oito anos, com o fim do mandato chegando, Obama não conta com a simpatia unânime de seu povo. Se lhe fosse permitido candidatar-se a um terceiro mandato, não é certo que viessem a reelegê-lo. E o prêmio que lhe deram adiantado como é que fica? Foi justificado ou não?

O julgamento pleno somente será dado pela História daqui a algumas dezenas de anos. No entanto, há que reconhecer que o governo de Obama desatou três grandes nós da política externa de seu país.

Nó 1Primeiro foi o Irã. Fazia mais de 35 anos que os EUA e a antiga Pérsia estavam de relações cortadas. Se nada fosse feito, a situação podia se eternizar. Prudente mas pragmático, Obama deu os passos necessários para sustar o embargo comercial e normalizar as relações. Com a bênção americana, o Irã voltou ao convívio do mundo civilizado.

Em seguida, veio Cuba, outro nó amarrado fazia já meio século. No fundo, nada tinha mudado na ilha caribenha que justificasse melhora nas relações com o “império”. A decisão unilateral da presidência americana ‒ para desespero de bolivarianos & aprendizes ‒ balançou o coreto. Por inspiração de Obama, a situação entre os dois países deu grandes passos para o descongelamento.

Obama 1O terceiro nó está sendo desfeito estes dias. A ida de Obama a Hiroshima ‒ primeira visita de presidente americano em exercício à cidade martirizada por fogo atômico ‒ é forte em simbolismo. Obama já deixou claro que não haverá pedido de desculpas, dado que considera não fazer sentido excusar-se por atos que já fazem parte da História. Seja como for, faz 70 anos que o povo japonês esperava por essa visita oficial. O primeiro-ministro nipônico já está até pensando em retribuir com uma visita a Pearl Harbor.

Diferentemente do predecessor, o famigerado Bush Júnior, Barack Obama deixará atrás de si um balanço positivo. O mundo continua cheio de problemas, como a questão israelo-palestina e o contencioso russo-ucraniano. Mas alguns nós terão sido desfeitos. Obama se esforçou pra fazer jus ao prêmio antecipado que lhe tinham atribuído.

Crescendo e minguando

José Horta Manzano

Você sabia?

O interesse pelos astros começou na noite em que o primeiro homem levantou a cabeça e viu aquele mundaréu de pontinhos luminosos no céu. Faz muito tempo, muito mesmo.

Cinco mil anos atrás, quando papirus e papel não haviam sido inventados, tabuinhas de argila já registravam informação sobre os astros e seu movimento aparente.

O Sol e a Lua, maiores e mais rápidos que os demais, foram os primeiros a chamar a atenção. O Sol, que aparecia sempre redondo e do mesmo tamanho, passou impressão de regularidade. A ideia de firmeza e constância foi reforçada pelo fato de o astro levantar-se e pôr-se, com pequenas variações ao longo do ano, sempre à mesma hora. Já a Lua variava de aparência com frequência. Embora os ciclos fossem regulares e graduais, a impressão que ficou foi de inconstância.

by Anja Uhren (1991-), artista alemã

by Anja Uhren (1991-), artista alemã

Num tempo em que o Direito da Mulher ainda não havia entrado nas preocupações humanas, o mundo era machista, bem mais que hoje. As línguas que atribuíam gênero aos substantivos puseram o Sol no masculino e a Lua no feminino. Assim aprendemos nós, nunca ninguém reclamou nem achou esquisito.

É interessante notar que a língua alemã ‒ caso único, a meu conhecimento ‒ fez o inverso. Em alemão, Lua é palavra masculina (Der Mond) e Sol é do gênero feminino (Die Sonne). Curioso, não?

Quando a professora pede aos aluninhos, já no Kindergarten (Jardim da Infância) que desenhem o Sol e a Lua, já se sabe: o Sol virá de batom e trancinhas enquanto a Lua terá chapéu e bigode.

Interligne 18gCrescendo e minguando
Continuando nosso assunto selenita(*), lembro que todos nós aprendemos, desde pequeninos, que a Lua crescente forma um C, enquanto a minguante desenha um D no céu. É fácil reter: C para crescente e D para decrescente.

É possível que o distinto leitor não saiba que, vista do Hemisfério Norte, a imagem é invertida. Por estas bandas, quando a Lua desenha um C é porque está na fase minguante. E vice-versa. Vasto mundo…

Interligne 18g(*) Selenita
Selene vem de raiz grega que traz ideia de esplendor, luz. Os antigos não sabiam que a Lua não faz mais que refletir a luz do Sol. Pouco importa. Deram ao astro noturno um nome que traduzia essa luminosidade.

Embaixadores bem tratados

Cláudio Humberto (*)

O presidente Michel Temer ordenou uma “repaginada” nas cerimônias de recebimento das credenciais de embaixadores estrangeiros enviados a Brasília.

Dilma Rousseff os tratava mal, demorando meses para receber credenciais. Deixava-os num limbo, sem poderem exercer suas atividades. As mudanças começam nesta quarta-feira 25 maio, quando Temer receberá as credenciais de seis diplomatas.

Rampa 1Os primeiros a conhecerem o jeito brasileiro de bem receber serão os embaixadores do Paquistão, da Grécia, do Congo, da Namíbia, do Iraque e da Croácia. Terão direito à rampa do Planalto, aos Dragões da Independência e até a conversa privada com o presidente.

De forma grosseira, Dilma se recusou, certa vez, a receber as credenciais do embaixador da Indonésia, país que havia fuzilado um traficante de droga brasileiro.

(*) Cláudio Humberto, é jornalista. Publica coluna diária no Diário do Poder.

Limbo ou… o insustentável peso de ser brasileira

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Há mais de uma semana mergulhei de cabeça num estado anímico a que dou o nome de “limbo” e que, infelizmente, me é para lá de familiar.

Para não iniciados, trata-se do conceito católico de “lugar fora dos limites do céu, onde se vive de forma esquecida, longe da beatitude”. Embora não deva ser confundido com o purgatório, já que ao limbo estão destinados os justos e os inocentes que, por falta de batismo, guardam o pecado original, minha sensação de desamparo parece a de um pecador emperrado a meio caminho entre céu e inferno.

Z-Unknown 1Fora do contexto religioso, limbo rima com ostracismo e esquecimento. Em qualquer contexto, é fácil imaginar o desconforto e a tortura psicológica de se sentir num lugar em que nada ata nem desata.

Minha experiência de limbo traduz-se pela sensação de estar à margem da vida e de olhar ao redor com indiferença e alienação. Durante as crises, nada me interessa. Os acontecimentos dizem respeito a outrem, não encontram eco em mim. Falta-me vontade para tudo, desde levantar pela manhã até decidir se vou tomar banho ou não. Meus pensamentos vagueiam sem destino. Não sinto desejo de me comunicar com ninguém. Na boca, um gosto ruim. No corpo, uma sensação difusa de intoxicação, como se tivesse bebido ou comido demais. Emocionalmente, só um ir e vir doentio de sentimentos e pensamentos.

Torturante é querer escapar e não saber como. É energia física, mental e espiritual estagnada. Não há raiva nem revolta nem indignação. Apenas tristeza flácida, filha dileta da impotência e do cansaço. Sobram tédio, indisposição e má vontade. Falta fio terra, portanto, não há descarga.

Z-Unknown 2Quando eu me tratava com a medicina antroposófica, bastava ligar para o médico e dizer: “Estou no limbo”. Ele sabia decodificar minha queixa e dar o tratamento. “O fígado é o órgão da vontade”, explicava, “É preciso eliminar as toxinas acumuladas e dar tempo para a regeneração. Fígado sobrecarregado acaba interferindo no funcionamento da vesícula, a bile se acumula e daí advém a melancolia”. Fazia sentido e, na prática, funcionava.

Agora que não disponho mais daquelas sábias orientações, assumo sozinha o papel de detetive. Onde foi que errei a mão, exagerei e acabei sobrecarregando o fígado? Sei que não me empanturrei. Não bebo. Será que abusei do fumo? Ou, quem sabe, seria acúmulo de emoções tóxicas?

Z-Unknown 3De repente, faz-se luz: é isso, sofri uma indigestão política. Se antes já era duro poupar ao fígado explosões emocionais, imagine os danos que lhe causei ao degustar tanto veneno político. Relembro as longas horas acompanhando as votações no STF e no Congresso, as notícias eletrizantes sobre o mais recente escândalo de corrupção, as imagens acachapantes dos movimentos de rua, as manifestações de ódio nas redes sociais, a angustiante espera pelo desenlace. Depois, a vergonha de ver minha pátria transformada em mera republiqueta de bananas, a sensação surreal de estar me defendendo de transgressões que não pratiquei ou de estar defendendo o indefensável.

Aos poucos, as peças do quebra-cabeça vão se encaixando. É claro, eu estava viciada na adrenalina do desejo de demonstrar intelecto superior e análise equilibrada, mas acabei saturada. Daí o distanciamento afetivo compulsório, a obnubilação mental, a congestão psíquica.

Z-Unknown 4A revelação finalmente faz mover alguma coisa lá dentro. A dificuldade de exprimir minha provação acaba por me lembrar de outra perda: o afastamento do meu anjo. Sem a ajuda dele, titubeio e sou forçada a reescrever cada pensamento. Em meio ao cipoal de becos sem saída em que me enfio, percebo que a ausência dele pode até ser benção disfarçada. Talvez tenha sido apenas estratégia para me animar a dar o primeiro passo.

Ainda estou em processo de regeneração, ainda caminho em terreno pantanoso. De qualquer maneira, sinto que a chuva, o friozinho e os tons pastel da natureza podem me ajudar a concluir esta passagem pelo sótão de minha própria inutilidade. Vou me enrodilhar como gato e aprender a espantar os cães que ousarem ladrar enquanto a caravana passa.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Monsieur Rromerrô Jucá

José Horta Manzano

Em sua estreia nas ondas da radiodifusão estrangeira, o (até ontem) ministro do Planejamento do Brasil fez entrada de vedete internacional. Logo de manhãzinha, Monsieur Rromerrô Jucá foi apresentado ao público francês. Enquanto distraídos ouvintes mastigavam um croissant com dois goles de café, locutores tentaram contar, em duas linhas, a lógica e as peripécias da Opération Lavage Rapide, como é conhecida a Lava a Jato por aqui. Duvido que alguém tenha prestado grande atenção.

Foi dito que o referido monsieur tinha sido destituído. Dificilmente alguém terá entendido por quê. Para ouvidos desatentos, seria como se tivessem informado que um certo senhor Korruptchenko tinha sido flagrado ao cometer algum malfeito na longínqua Ucrânia. Que é que eu tenho com isso?

Expulsao 1De uma coisa, tenho certeza: notícias como essa têm o mérito de reforçar o clichê persistente que mostra nosso país como turbulento, politicamente instável, esburacado pela corrupção, dividido entre duas categorias de cidadãos ‒ uma pequena camada de milionários que flutua sobre um oceano de miseráveis. É triste, mas é assim.

Pouco afeita a eufemismos em voga no Brasil, a mídia europeia diz claro que Monsieur Jucá foi destituído exatamente como Madame Rousseff. Por aqui, não tem essa história de «afastado». Ou é ou deixa de ser. Não dá pra ficar no meio.

Bom, falando agora entre nós, vamos pôr o episódio Jucá na conta dos erros de infância do novo governo. Fez bem o presidente em mandá-lo passear. Pode ser que sua ausência enfraqueça a articulação política, mas sua presença daria a impressão de que o governo novo e o velho são farinha do mesmo saco.

Vamos guardar, pelo menos por enquanto, a esperança de que a nova equipe não seja tão mambembe quanto a anterior.

Bolinha de papel

José Horta Manzano

Bola papel 1Dia 26 out° 2014, assim que voltei da secção eleitoral onde voto, em Genebra, postei um artigo. Quis dar vazão à indignação que tinha sentido ao ser abordado, à porta do local de voto, por um bando de militantes em pleno exercício do que chamamos boca de urna, prática proibida no Brasil.

Pra ser honesto, não é que o fato me tenha perturbado. O que me enfureceu foi o modus operandi dos atores. Explico. Fazer proselitismo, tentar convencer o próximo de que nossa maneira de ver o mundo é melhor que a dos outros é natural e aceitável. Faz parte da democracia.

Sinceramente, não acredito que algum eleitor mude seu voto por ter recebido um santinho na entrada da cabine. Não me oponho, em princípio, ao exercício de boca de urna. O que me enfurece é ver proselitismo financiado pelo dinheiro do contribuinte.

Jornal 3Foi o que aconteceu em Genebra. O bando de militantes ‒ todos devidamente paramentados de vermelho e enrolados em bandeiras estreladas ‒ distribuíam santinhos de dona Dilma. Bastava olhar rapidamente os manifestantes pra entender que eram gente simples, sem meios de encomendar e pagar do próprio bolso aquela montanha de material de propaganda.

A conclusão era evidente: eram mercenários a soldo do partido. De lá pra cá, ficamos sabendo dos bilhões que têm sido sistematicamente roubados nos últimos anos. Por simples dedução, conclui-se que aquelas bandeiras tinham sido fabricadas e transportadas à custa de nossos impostos. Sem contar diárias, alimentação e eventuais passagens aéreas dos companheiros. Dá muita raiva.

Bola papel 2Leio hoje que, em sua primeira viagem internacional, o novo chanceler José Serra dirigiu-se à Argentina, parceiro importante do Brasil. À entrada da embaixada do Brasil, três dezenas de militantes esperavam por ele. Mandaram-lhe uma chuva de… bolinhas de papel. A notícia não informa se os que protestavam estavam paramentados com bandeira e bonezinho vermelhos.

Fica a desagradável desconfiança de que tenham sido teleguiados diretamente de Brasília por partidários da presidente afastada. Faz parte do jogo, que fazer? Sintomático é constatar que, à falta de argumentos, resta à militância agredir desafetos com bolinhas de papel.

Interligne 18fNota final
Eram bolinhas confeccionadas com páginas da edição espanhola do prestigioso jornal Le Monde Diplomatique. Em matéria de santinho, não resta dúvida, o nível dos protestos se sofisticou.

Escapamos de boa

José Horta Manzano

Não sei se algum de meus leitores terá tido paciência para ler as 10 páginas do documento alinhavado pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, reunido dia 17 de maio em Brasília.

O papel traz algumas particularidades. Dando mostra de que não acredita no retorno ao poder da presidente afastada, o diretório já marca, para o mês de novembro, encontro extraordinário para discussão do tema «Os desafios partidários para o próximo período», que pode ser tomado como previsão de derrota.

PT resolução 1Como seria de esperar, o Partido do Trabalhadores mostra estar de péssimo humor. Mesmo sem saber direito a quem atribuir a culpa, prova ser mau perdedor. Afinal, quem é que gosta de perder?

O documento retoma a desgastada e empoeirada retórica de antigos tempos. O texto vem coalhado de expressões tais como «velhas oligarquias», «reacionários», «forças conservadoras».

Interligne 18b

Uma leitura mais atenta revela o estado de espírito:

Nós & eles
A palavra «esquerda» é mencionada 7 vezes contra apenas 3 menções para a «direita».

Traição
«Golpe» ou «golpista» é o termo mais saliente. Aparece nada menos que 17 vezes em 10 páginas, perto de 2 vezes por página. É o cavalo de batalha do partido na atualidade. Resumo da ópera: quem não for da nossa opinião é golpista ou traidor. O raciocínio da companheirada é binário. Se não for sim, só pode ser não. No meio, não há nada.

Reação
A reação mais evocada pelo documento é o apelo à «luta» (7 aparições) e ao que resta de «popular» (14 vezes) nestes tempos de smartphone para todos.

Dilma e Lula 4Ídolos
Deveras interessante é o fato de «Dilma» e «presidenta» aparecerem 19 vezes, enquanto «Lula» e «ex-presidente» são mencionados apenas 7 vezes. Nosso guia mostra estar sendo relegado a segundo plano até dentro do próprio partido. Em número de menções, empata até com «Temer» e «ilegítimo».

Corrupção
A palavra «corrupção» aparece uma única vez. É no pedaço em que os dirigentes do partido se queixam de a Operação Lava a Jato se ter focalizado “seletivamente” sobre eles. O assunto que predomina há dois anos não merece mais do que essa menção “en passant”.

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Aparelhamento fracassado
O mais inquietante, no entanto, vem no parágrafo que reproduzo logo abaixo. Em poucas linhas, o partido mostra-se arrependido de não ter alcançado total aparelhamento das Forças Armadas, do Itamaraty e da mídia.

Lenin 1«Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação.»

Como se vê, o aparelhamento podia ter sido ainda mais abrangente. Cruz-credo! Escapamos de boa.

A realidade do rombo

José Horta Manzano

Você sabia?

Dinheiro voadorNão tenho perfil no feicibúqui, mas… muitos amigos meus têm. São, como se dizia antigamente, prafrentex. Parece incrível, né, ter excelentes amigos que, além de frente, têm também perfil!

De uma amiga e fiel leitora, recebi um texto, que lhe chegou pela rede social. Vem assinado por Erick Bretas. Achei bastante didático. Discorre sobre o rombo de 170 bilhões que acaba de ser encontrado nas contas do finado governo.

Dá um ar de realidade a números que, de costume, a gente vê no papel sem se dar conta do que representam. Reproduzo o escrito aqui abaixo.

Interligne 37k

«Cento e setenta bilhões de reais é número inimaginável para a maior parte dos brasileiros. Pergunte a seu José ou a dona Maria a diferença entre cento e setenta MILHÕES e cento e setenta BILHÕES. Dificilmente saberão explicar.

Pois bem, com a primeira cifra, compraríamos algumas centenas de mamógrafos que, distribuídos pelos grotões do Brasil, dariam diagnóstico precoce do câncer de mama. Na segunda, cabe todo o orçamento da Saúde Pública e tudo o que tem de ser feito para prevenir e tratar as doenças de todos os brasileiros em um ano.

A herança de Dilma Rousseff é uma tragédia de tal ordem que os números precisam de algum termo de comparação para fazer sentido.

Os 11 milhões de desempregados compõem um contingente maior que toda a população da Bélgica. As 580 mil empresas fechadas, só em 2015, equivalem a todas as empresas de Portugal e da Irlanda juntas.

Essa justaposição de informações compõe cenário arrasador, cujos efeitos imediatos são um aumento exponencial do número de pessoas abaixo da linha da pobreza extrema. Pior do que isso, só uma guerra.»

Frase do dia — 301

«Uma das maneiras mais seguras de perder tempo, daqui para a frente, será prestar atenção ao que Dilma vai dizer enquanto sua situação legal não ficar tecnicamente definida.»

José Roberto Guzzo, jornalista, em artigo publicado na revista Exame desta semana.

Bunker de resistência

José Horta Manzano

O Artigo 92 da Constituição suíça trata dos serviços postais e de telecomunicação. Determina que a Confederação garanta existência e funcionamento de serviço de correios e telecomunicações, em todas as regiões do país, a preços razoáveis.

A lei suíça ‒ a começar pela Constituição ‒ vale-se frequentemente do conceito de «razoabilidade». «Prazo razoável», «valor razoável», «volume razoável» são expressões recorrentes em leis e regulamentos. Não se tem notícia de contestação quanto à abrangência do conceito. Razoável é tudo aquilo que for… razoável, ora! O bom senso cuida da questão.

Constituição 4Vasculhei a Constituição brasileira: o conceito de razoabilidade está ausente. Não conheço todas as leis do país ‒ será que alguém conhece? Assim mesmo, é lícito imaginar que não se costuma deixar a cada um a liberdade de definir o que é razoável e o que não é. Prazos, valores e volumes costumam ser bem especificados, tim-tim por tim-tim. Se assim não for, é briga programada.

O rito da destituição do presidente da República é impreciso. A Constituição estipula seu afastamento preventivo, por até 180 dias, à espera de que o Senado defina seu destino. A Lei Maior, no entanto, não desce a detalhes nem diz como deve decorrer esse período de afastamento. A lei complementar, velha de 65 anos, é muda sobre pontos importantes.

É aí que deveria entrar em cena o conceito de razoabilidade. No entanto, tendo sido tradicionalmente infantilizado, nosso povo se mostra incapaz de distinguir, sozinho, entre a legitimidade e a impertinência de certos atos da presidente ora afastada. Na ausência de lei detalhada, o jeitinho malandro entra em ação.

Neste momento, nossa presidente, fisicamente apartada do Planalto, age como bem entende. Vida privada é problema dela, sobre isso não se discute. Por seu lado, ação política, ainda que provinda de presidente afastada, importa à nação. Em nova afronta a uma democracia cujas bases já têm sido tão atacadas nos últimos 13 anos, dona Dilma tem ousado dar entrevistas a jornalistas estrangeiros, nas quais se apresenta como vítima de «golpe de Estado».

Entrevista de Dilma Rousseff à Rádio Televisão Russa Para assistir, clique sobre a imagem

Entrevista de Dilma Rousseff à Rádio Televisão Russa
Para assistir, clique sobre a imagem

O acinte às mais altas instituições brasileiras é insuportável. Mais grave é estar sendo perpetrado pela chefe do Executivo, ainda que esteja de molho. Protegida por um «bunker de resistência» custeado por todos nós, essa truculência contra o Estado brasileiro é intolerável.

Não há lei sobre a matéria? Que se legifere! Não estão fixados limites? Que sejam fixados! Nenhuma lei pode retroagir? Que a regulamentação passe a valer no dia de sua promulgação. O essencial é que seja rapidamente delimitado, nos conformes, o que um presidente afastado pode e o que não pode fazer.

Presidente suspenso perde o direito, enquanto durar a suspensão, de exprimir opiniões políticas em público ‒ essa é minha maneira de ver. Do jeito que está, virou bagunça. A inação do Congresso é incitação para a piora do cenário.

Interligne 18c

Registro complementar
Estamos perigosamente escorregando para um estado de anomia, de ausência de leis e de regras. Periga desembocar na desorganização e na anarquia.

L’arroseur arrosé

José Horta Manzano

«L’arroseur arrosé» é expressão francesa difícil de traduzir em duas palavras. O verbo arroser, derivado do termo usado na Roma antiga para designar o orvalho, significa regar, irrigar, aguar. Seu particípio passado é arrosé. Portanto, ao pé da letra, a tradução fica: «o regador regado». Cá entre nós, soa pra lá de esquisito. Melhor transpor utilizando um ditado equivalente: o feitiço acaba se virando contra o feiticeiro. Fica mais claro.

L'arroseur arrosé, 1895

L’arroseur arrosé, 1895

Embora seja antiga, a expressão se popularizou depois de os irmãos Lumière projetarem, em fins de 1895, um curtíssima metragem (45 segundos) mostrando justamente um jardineiro que acaba aspergido pela água da própria mangueira. De lá pra cá, toda vez que a ação de alguém se volta contra ele mesmo, costuma-se comentar: taí um «arroseur arrosé».

Ao ler uma chamada do Estadão, a imagem me veio à lembrança. O artigo dá bronca no senhor Eduardo Cunha pelos erros de português cometidos diante do Conselho de Ética da Câmara. Parece que o parlamentar usou e abusou de formas como «houveram» e «haviam».

Como sabem meus distintos e cultos leitores, quando usado no sentido de existir, o verbo haver nunca vai para o plural. Assim como ninguém dirá «hão propinas», não se deve dizer «haviam propinas» nem «haverão propinas». Em casos assim, o singular é obrigatório.

O chato é que o articulista ‒ ou talvez o estagiário que arremata as matérias ‒ escorregou feio na hora de botar título. Escreveu: «Lesa-idioma». Errou.

É verdade que a voz «lesa» é quase sempre utilizada junto a palavras femininas. Volta e meia, ouve-se falar em «crime de lesa-pátria», «de lesa-honra» ou «de lesa-majestade». Vai daí, a gente acaba acreditando que lesa é elemento fixo, um Bombril pra todas as ocasiões. Não é assim.

Chamada do Estadão, 19 maio 2016

Chamada do Estadão, 19 maio 2016

Lesa é adjetivo, feminino de leso, que é sinônimo de lesado. Descendem do verbo latino lædere (particípio passado læsum), que a maioria dos linguistas aproxima da raiz delere (ferir, ofender, matar, causar dano) ‒ a mesma que desembocou em indelével e no verbo deletar, tão em moda hoje em dia.

Sendo adjetivo, leso concorda com o substantivo em gênero e número. O julgamento ao qual senhor Cunha está sendo submetido pode terminar em condenação ou em absolução, a depender dos juízes. No entanto, quem quiser evitar um puxão de orelha deve evitar pronunciar «lesa-idioma», um estrupício. O título da chamada do jornal foi infeliz.

Diga sempre «leso-idioma», «leso-direito», «lesos-preceitos», «lesas-leis»«lesos-regulamentos». Sem medo de lesar ninguém.

Aposentar-se aos 65

José Horta Manzano

Antes da Revolução Industrial, a noção de emprego era menos clara que hoje. O sustento de cada um vinha principalmente de rendas, de favores, de comércio, de escambo. Na falta de indústria, poucos eram assalariados. Em resumo, cada um cuidava de si.

O grosso da população vivia em função da agricultura familiar, garantia de sobrevivência. Trabalhava-se em família. Algum excesso de produção era trocado por sal, óleo, têxteis e outras mercadorias não produzidas em casa. Velhos, que já não podiam trabalhar, eram amparados e sustentados pela família. Assim funcionava o mundo.

O desenvolvimento industrial e a implantação das ferrovias mudou o enredo. As cidades incharam, a noção de emprego começou a se delinear. Longe do amparo da família, trabalhadores passaram a enfrentar dificuldades quando a velhice chegava. A miséria se alastrava.

Trabalho 4Timidamente, soluções começaram a ser tentadas. A virada do século 19 para o século 20 assistiu à criação de caixas de pensão setoriais. Parte dos trabalhadores passou a contar com amparo para o fim da vida. O sistema levou algumas décadas para se generalizar.

Na Suíça, por exemplo, a normatização do sistema universal de aposentadoria só foi adotado em 1948. Já sua primeira versão fixava em 65 anos a idade mínima para recebimento do benefício. De lá para cá, mudanças sociais impuseram mais de dez grandes revisões ao sistema. O montante da renda foi paulatinamente adaptado à evolução do custo de vida.

Até vinte anos atrás, a idade mínima de aposentadoria era de 65 anos para homens e 62 para mulheres. Obedecendo à verdade estatística de que mulheres costumam ter vida mais longa que homens, sucessivas revisões do sistema foram alongando o tempo de trabalho a ser cumprido por pessoas do sexo feminino.

Atualmente, homens continuam a se aposentar aos 65 anos, enquanto mulheres só podem fazê-lo ao completar 64. Dentro de muito poucos anos, o limite de 65 anos será imposto a todos. E já se estuda seriamente a necessidade de elevar esse mínimo para 67 anos.

Ao dar-se conta de que a duração da vida se alonga no Brasil também, o novo governo, menos populista que o anterior, cogita reformular o sistema em vigor. A ideia é estabelecer que o cidadão atinja a idade de 65 anos para, só então, poder requerer renda de velhice.

Sindicatos, em estrito cumprimento de seu papel, se insurgem contra a medida. Argumentam que novas regras só podem valer para jovens que ingressem no mercado de trabalho a partir de agora. Embora a alegação tenha seu fundamento, há que levar em conta outros fatores.

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

O sistema brasileiro de aposentadoria está em estado pré-falimentar. O rombo se alarga a cada ano. Se for aplicado o conceito de direito adquirido, como querem alguns, a modificação da idade mínima só poderá entrar em vigor daqui a quase meio século. As finanças vão estourar antes disso.

Dado que o Brasil ‒ confiando que a impressionante taxa de natalidade dos anos 60 e 70 fosse durar para sempre ‒ nunca se preocupou em regulamentar a questão, chegamos ao momento atual com um passivo preocupante. Se não é correto atrasar, da noite pro dia, a idade da aposentadoria para 65 anos, uma solução escalonada tem de ser encontrada. E rápido.

Que se estenda o período transitório por alguns anos. Contudo, não é razoável adiar para o ano 2060 a fixação da idade mínima de 65 anos. O sistema vai quebrar antes disso, prejudicando a todos ‒ ativos e inativos.

Frase do dia — 300

«Lulistas & caterva se reuniram por dois dias para uma “autocrítica” que impressiona pelo caradurismo. Em vez de “roubamos, deixamos roubar e ainda fracassamos na gestão”, escreveram nas entrelinhas algo como “roubamos e fracassamos, mas a culpa é dos outros”.»

Cláudio Humberto, bem informado jornalista, no Diário do Poder, 18 maio 2016.

Passo maior que a perna

José Horta Manzano

De criança, a gente costumava cantar:

Passa, passa três “vez”
O último que ficar
Tem mulher e filhos
Que não pode sustentar

Ah, essa sabedoria popular é… sabida! Os antigos já entendiam que só deve formar família quem tiver condições de a sustentar. Quem não tem competência não se estabelece, como diz o outro.

A ignorância e a ingenuidade de nosso guia causaram estragos profundos. Sua megalomania, à qual vassalos submissos diziam amém, atingiu em cheio a imagem do Brasil no exterior. A olhos estrangeiros, nosso país se apequenou.

O Lula e a sucessora mandaram criar 17 (dezessete!) embaixadas. Estão todas situadas em países pequenos, com os quais temos discretas relações políticas e comerciais. Só nas Antilhas e no Caribe ‒ sem contar estados maiores, como Cuba, República Dominicana e Haiti ‒ temos dez embaixadas. Estão em países que a gente não conhece nem de nome: Nassau, Antigua & Barbuda, St-Kitts e Nevis, Santa Lucia, Barbados, Granada, Dominica e por aí vai.

Ciranda 1Até na Coreia do Norte, o Lula abriu embaixada. Na época, havia 6 brasileiros no país, 3 dos quais formavam a família do embaixador. Os outros três eram funcionários da representação. Não se tem notícia de que a “colônia” tenha aumentado.

Meus distintos leitores hão de ter ficado sabendo, estes últimos meses, de vexames dados por numerosas representações brasileiras no exterior. Algumas não tinham recursos nem para aluguel, conta de telefone, salário de funcionário, despesas do dia a dia. Uma humilhação.

A decisão de instalar uma fileira de representações prendia-se à falsa premissa de que a quantidade de bandeiras nacionais içadas no exterior dava prova cabal de que o Brasil se havia tornado país importante. Uma pirotecnia. Um rojão que deu chabu.

Embaixada do Brasil em Bridgetown, Barbados

Embaixada do Brasil em Bridgetown, Barbados

Sob nova direção, o Ministério das Relações Exteriores acaba de encomendar estudo da relação entre os custos e os benefícios dessa megalomania. É provável que embaixadas ociosas sejam extintas.

Os caminhos para demonstrar a força de um país são outros, mais árduos. Experiências calcadas no amadorismo acabam custando caro aos cofres públicos ‒ que, ao fim e ao cabo, são alimentados pelos impostos de todos nós.