José Horta Manzano
Dei de cara com Sigismeno hoje, logo de manhã. Nem bom-dia me deu. Foi direto ao ponto.
«Que bela fuite orchestrée, hein?»
«Fuite orchestrée, Sigismeno? Você agora deu pra falar francês?»
«Ora, você sabe muito bem o que é isso. É um vazamento arquitetado e controlado, uma variante da conhecida arte de entregar os anéis para salvar os dedos.»
«De que vazamento você está falando, Sigismeno?» ― provoquei.
«Sabe que você às vezes me irrita? O Brasil inteiro não fala de outra coisa, e lá vem você dando uma de ingênuo. Estou falando do vazamento de segredos sobre as traquinagens de que a nossa Petrobrás tem sido vítima. E não foi vazamento de petróleo, não…»
«Ah, aquele caso do prisioneiro que resolveu dedurar metade dos políticos brasileiros pra escapar da seringa?»
«Esse mesmo. Coisa de bandido de segunda classe, já se vê.»
«De segunda? Alguém que tramou tanta negociata? Por que você diz isso?»
«De segunda, sim, senhor. Bandido que se preza não sai por aí delatando comparsa. Entre delinquentes de verdade, malfeitor que denuncia cúmplice não costuma continuar vivo muito tempo. A bandidagem tem seu código de honra, sabia? Pode parecer estranho para nós, mas costuma ser mais respeitado que a maltratada Constituição desta nossa República.»
«Mas a história da fuite orchestrée, Sigismeno, que é que você quis dizer com isso?»
«Pois é o seguinte. Os do andar de cima, quase todos envolvidos nessa trambicagem, levaram susto e tomaram medo pânico quando o político encarcerado se propôs a soltar a língua.»
«É compreensível, Sigismeno. Quem não deve não teme. Já esse pessoal…»
«Pois é. Quando o homem começou a abrir o bico, os comparsas devem ter criado um COC, quero dizer, um Centro de Operação de Crise. Precisava decidir que caminho seguir pra salvar o que ainda pudesse ser salvo.»
«É, Sigismeno, faz sentido. Como são muita gente, convém tomar atitude concertada pra evitar sair cada um correndo pra um lado diferente.»
«Essa gente, sabe como é, passa por cima de regras, instituições, rituais. Não devem ter tido dificuldade pra ter acesso à transcrição da confissão já feita pelo prisioneiro. Deram-se logo conta de que era veneno puro. Pior: mais cedo ou mais tarde, ia chegar ao conhecimento do público. Alguma atitude tinha de ser tomada pra diminuir o impacto.»
«Impacto, impacto… Ô, Sigismeno, como é que se amortece impacto dessa magnitude, homem?»
«Escolhendo o momento mais propício, meu caro. Analise comigo. Estamos a um mês das eleições. Se deixassem o processo seguir seu caminho, era bem capaz de as revelações aparecerem na reta final, uma semana antes do dia de votar. Já imaginou a catástrofe?»
«É, seria demolidor.»
«Pois então. Foi por isso que organizaram essa fuite orchestrée, esse vazamento planejado. Já que tinha de vir à luz, que viesse imediatamente. Pelo menos, sobrava tempo pra apagar o incêndio e acalmar ânimos antes do dia do voto, entende?»
«Mas não teria sido melhor abafar os ‘malfeitos’?»

by Cláudio Spritzer, desenhista gaúcho
«Não ia dar. O assalto é colossal. Tem muita gente sabendo. A meu ver, tomaram a atitude adequada. Rasgaram e drenaram o furúnculo antes que a infecção se alastrasse. Foi coisa feita no capricho.»
«Assim mesmo, Sigismeno, não vão evitar que o monumental roubo respingue negativamente na reeleição da atual presidente.»
«Vai respingar, não resta dúvida. Mas os danos serão menores do que se a revelação tivesse ocorrido nas vésperas do pleito. Para você e para mim, roubo é roubo. Não são algumas semanas ou alguns meses que vão nos fazer mudar de ideia. Mas a massa dos votantes é mais volúvel, funciona de outro modo.»
«Nossa, Sigismeno, então você acha que nem uma rapina de bilhões ― do nosso dinheiro! ― vai alterar a percepção que o povo brasileiro tem do andar de cima?»
«Pode até contribuir, mas não vai convencer todo o mundo. Ao contrário, muitos sentem inveja dos que estão se lambuzando com dinheiro alheio.»
«Seja como for, os repórteres que descobriram o cambalacho fizeram bom jornalismo, você não acha, Sigismeno?»
«Sem dúvida. Mas foram, digamos assim, ‘ajudados’…»
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