Resenha – 4

by Pedro Silva, desenhista português

José Horta Manzano

Descartável
Doutor Anderson Torres, que foi ministro da Justiça aos tempos de Bolsonaro, foi colhido pela PF ao desembarcar de voo que o trazia de volta de suas ‘férias’ em Orlando. Foi então conduzido a um destacamento da Polícia Militar de Brasília onde está preso há três semanas.

Ontem, o doutor deu depoimento. Indagado sobre a minuta de decreto golpista encontrada entre seus guardados, declarou que considera a dita minuta “totalmente descartável” e, mais que isso “sem viabilidade jurídica”.

O doutor não explicou o que é que um papel “totalmente descartável” fazia entre os documentos conservados em sua residência. Se era descartável, deveria ter sido descartado. Por que não o foi?

Ao declarar que o decreto golpista é “sem viabilidade jurídica”, o doutor chove no molhado. Golpe de Estado significa exatamente a quebra de ordem jurídica. Dizer que ele é “sem viabilidade jurídica” é uma evidência, um truísmo.

Em matéria de esclarecimento, o depoimento foi de soma zero.

Do porão
Assustado com as múltiplas tentativas de golpe de Estado que permearam os últimos meses da gestão bolsonárica, doutor Gilmar Mendes (STF) declarou que “a gente estava sendo governado por uma gente do porão”.

Se qualquer um de nós, cidadãos comuns, fizéssemos esse comentário, o mundo não viria abaixo. Mas quando Gilmar Mendes, conhecido como “o ministro que mais solta bandido”, faz a mesma observação, vale o dobro. Fica patente que essa gente é do porão mesmo.

Italiano
Bolsonaro disse que é italiano e que, se quiser tirar os documentos, basta solicitá-los, que a burocracia não será pesada. Tem razão o ex-presidente. O que ele não disse, talvez por não saber, é que a Itália não é o porto mais seguro para fugitivos da lei. Nenhuma lei do país impede a extradição de nacionais.

Já tivemos um caso famoso, o de Henrique Pizzolato. Binacional, o condenado na Lava a Jato se homiziou na Itália. O governo brasileiro solicitou extradição e, depois de uma batalha judicial, a Itália acabou entregando Pizzolato à PF, que o levou direto de Roma para a Papuda.

Portanto, a nacionalidade italiana pode ser útil para cidadãos brasileiros comuns. Para um Bolsonaro condenado, não é destino recomendável.

Enquanto isso
Inconformado ao ver que uma das mais importantes instituições da República escapa ao seu controle, Lula dá sinais de querer “rever” a autonomia do Banco Central. Para não chacoalhar o mercado, diz que a ideia só será posta em prática após o término do mandato do atual presidente do banco.

Lula não tem jeito. Com os pés cravados nos anos 1970, não consegue (ou não quer) entender que a absoluta independência do banco emissor é ponto importante no sistema de pesos e contrapesos de uma democracia vigorosa. É assim que funciona em todos os países democráticos.

Doutora em Ginecologia
Uma cirurgiã-ginecologista francesa, que oficia no hospital de Bordeaux (sul da França), gosta de cantar. Já na sala de operações, antes de iniciar o procedimento cirúrgico, canta para tranquilizar a paciente.

Embalados por sua bela voz, os “gospels” têm feito sucesso desde que foram publicados nas redes. Veja aqui.

Fugir para a Arábia?

José Horta Manzano

Todo o mundo já sabe, mas não custa repetir para que fique bem claro: o maior pavor do capitão é a cadeia. Por certo, essa não é a preocupação maior nem do distinto leitor nem deste escriba. Mas o capitão arrasta um passado complicado. Ele deve conhecer os motivos pra tanto medo.

Em diversas ocasiões, ele já bradou que ninguém jamais o tiraria do palácio e que nunca iria preso. A contradição da primeira parte de sua profecia já está aí: vai sair do palácio sim, senhor. Falta a segunda parte. Minha avó dizia: “Quem não deve, não teme”. Por que será que ele teme – e treme?

As especulações correm soltas sobre uma eventual fuga de Bolsonaro para o exterior. Não será simples. Se decidir seguir esse caminho em busca de asilo, terá de escolher um país com o qual o Brasil não mantém tratado de extradição.

Uma fuga para um país governado por dirigente autoritário de extrema-direita pode ser uma opção. A Hungria ou a Polônia, por exemplo. Mas… e se o governo de lá mudar de cor política amanhã e anular o asilo, como é que fica? Bora fugir de novo de mala e cuia?

Reinos, sultanatos e emirados do Oriente Médio são outra opção. Por lá, o risco de mudança de regime é quase inexistente. Mas… não deve ser fácil ter de passar o resto da vida numa bolha de ar condicionado, com samambaias artificiais, rodeado de deserto por todos os lados, com temperatura externa próxima de 50 graus. Tem quem aguente: Juan Carlos, que foi rei da Espanha, envolveu-se há dois anos num escândalo de corrupção e refugiou-se no emirado de Abu Dabi. Está lá até hoje.

O site Metrópoles informa que os filhos n°01 e n°03 do presidente estiveram na embaixada da Itália em Brasília terça-feira passada para tentar apressar o processo de reconhecimento da cidadania italiana para o clã. Entrevistado, o filho mais velho disse que deram início ao processo em 2019. Não explicou a razão da súbita pressa em ver o fim do túnel.

É permitido especular que, longe de cogitar uma aposentadoria na gelada Hungria ou no escaldante Oriente Médio, Bolsonaro esteja de olho na obtenção do passaporte italiano para dar o fora daqui. Num primeiro momento, até que parece boa ideia, mas o porto não é tão seguro como ele está imaginando.

Aconteceu não faz dez anos. Nos tempos em que a Lava a Jato comia feio, um senhor chamado Henrique Pizzolato, diretor de marketing do Banco do Brasil, encontrava-se em situação semelhante à do capitão hoje: era alvo da justiça brasileira e possuía dupla nacionalidade – italiana e brasileira. Às vésperas de ser preso, fugiu para a Itália.

Despistou a PF, saiu em direção à Argentina e de lá tomou avião para a Itália. Imaginou-se para sempre a salvo. Estava enganado. Quando souberam de seu paradeiro, as autoridades judiciárias de Brasília requereram sua extradição. Pizzolato tinha confundido a lei brasileira com a lei italiana. Imaginou que, como o Brasil, a Itália não extraditasse seus nacionais. Não é bem assim que funciona.

A lei italiana não impede a extradição de cidadãos do país. Com base no Acordo de Extradição firmado entre a Itália e o Brasil em 1989, cada caso será estudado individualmente. O fujão permaneceu dois anos na Península enquanto a batalha judicial corria solta. Num primeiro momento, sua extradição foi negada pela justiça italiana. O Brasil entrou com recurso, o caso foi para Roma, e a Corte de Apelação finalmente concedeu a extradição. Com o rabo entre as pernas, Pizzolato foi trazido pela PF a Brasília. De jatinho. Do aeroporto, foi direto para a Papuda purgar sua pena.

Se você, distinto leitor, for íntimo do clã do (ainda) presidente, procure fazer chegar este recado à família: “Lembrem-se do Pizzolato!”.

Se fugir já é uma vergonha, imagine só o que deve ser fugir, ser apanhado e trazido de volta pela PF. Vexame supremo! O capitão não vai querer arriscar. Ou vai?

Na ilustração, o avião que trouxe Henrique Pizzolato de volta para o Brasil.

Foi um rio que passou em nossa vida

José Horta Manzano

Discursos de Bolsonaro nunca foram sublimes. Do mato (queimado) não sai coelho mesmo. O pronunciamento de 1° de novembro talvez tenha sido o melhor de toda a carreira dele. Pronunciado no Dia de Todos os Santos, o discurso fez jus às bênçãos de toda a santidade celeste.

Depois da fala, muita gente passou 24 horas avaliando se, afinal, ele tinha ou não concedido a derrota. “Veja bem” – argumentaram uns – “me parece que esta passagem aqui é reconhecimento implícito disto ou daquilo”. “Pois eu já acho que aquela frase ali parece indicar que ele aceitou a derrota” – retrucaram outros.

Argumentar é bom, alimenta o espírito. Mas, no caso do capitão, me parece perda de tempo. Não vamos esquecer o principal: o resultado da eleição não depende da aceitação por parte do candidato derrotado. Que o lanterninha reconheça ou deixe de reconhecer que perdeu é irrelevante.

As normas de civilidade e cortesia recomendam que o perdedor reconheça publicamente a derrota e deseje boa sorte ao vencedor. Mas isso é apenas norma de civilidade, conceito que Bolsonaro desconhece. Ninguém pode dar o que não tem.

Eu disse que esse talvez tenha sido o melhor discurso da carreira do capitão. E explico por quê.

  • Ele não soltou palavrão. Nem unzinho. Vê-se que o pronunciamento veio abençoado por anjos e arcanjos.
  • O discurso foi breve – um afago na sensibilidade do distinto público.
  • Curiosamente, ele não apontou nenhum culpado pela derrota. É estranho para quem sempre se isentou de toda responsabilidade lançando sistematicamente a culpa em terceiros.
  • Contrariando seus hábitos, ele não atacou nenhuma instituição da República. Nem mesmo o STF, seu alvo preferido. Não lançou flechada sequer em direção ao ministro Alexandre de Morais, seu bicho-papão.
  • A defesa de seu legado coube em dez palavras. Não houve menção às vacinas, às armas, à Amazônia e suas árvores que não queimam, aos chineses malvados, à esposa de Monsieur Macron, à Venezuela, à mídia golpista, à Globolixo, ao “meu” Exército. Tampouco falou da cloroquina.

A grande vitória do Brasil decente (e a grande derrota de um presidente indecente) ficou patente no fato de ele não ter atacado as urnas eletrônicas. Não fez sequer menção à sala secreta, às teclas coladas, aos ataques de piratas informáticos, aos mesários que votam em lugar de eleitores ausentes.

Custou, mas veio o primeiro discurso pacificado de Bolsonaro. Tirando rápida menção aos “métodos da esquerda”, afirmação um tanto deslocada, ninguém foi ofendido, nem atacado, nem humilhado, nem provocado, nem escarnecido. Tivessem todos os seus discursos sido nesse mesmo tom, mui provavelmente ele teria sido reeleito.

Dentro de pouco tempo, os bloqueios rodoviários promovidos por desocupados enrolados em bandeiras vão se encerrar. A transição, conduzida por um Lula conciliador e um Alckmin experiente, vai se desenvolver em ambiente cordial.

A partir de agora, o grande objetivo do capitão é conseguir algum tipo de salvo-conduto para si e para a família, uma espécie de habeas corpus preventivo, que lhes permita escapar à cadeia. Dos processos, não fugirão; mas vão tentar escapar do camburão e da Papuda.

Se vão conseguir, ninguém sabe. Pode até ser que a Justiça deixe o capitão sair ileso, que é pra evitar transformá-lo num herói injustiçado – mas cacifado para voltar com mais força no futuro.

Quem viver, verá.

Tuíte – 21

José Horta Manzano
O Google não mente?

Pesquisas no Google valem o que valem. Não há garantia alguma de resultado acurado. Assim mesmo, ainda que não se possa jurar por elas, sempre dão uma indicação geral.

Acabo de fazer uma experiência caseira. Associei o termo “corrupto” ao nome dos presidentes do Brasil dos últimos 25 anos e chequei no Google quantas menções aparecem. O resultado foi um tanto surpreendente. Eu não teria apostado que aparecessem nesta ordem:

 

Dilma corrupta     :    280’000 menções

FHC corrupto       :    622’000 menções

Temer corrupto     :  1’460’000 menções

Lula corrupto      :  1’880’000 menções

Bolsonaro corrupto : 12’000’000 menções

Interessante, não é? O mais mencionado, vencedor por ampla margem, é justamente o capitão.

O nome de Bolsonaro associado à palavra “corrupto” aparece 6 vezes mais que o nome do Lula nas mesmas condições. E olhe que Lula e Temer passaram pela casa prisão, fato que aumenta a probabilidade de serem vistos como corruptos.

Bolsonaro (ainda) não passou pela Papuda. Talvez um dia. O mundo dá voltas.

O habeas corpus e o que vem depois

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Fazia meses que eu não dava uma prosinha com meu amigo Sigismeno. Estava até com saudade. Faz dois ou três dias, dei de cara com ele. Como tínhamos um tempinho disponível, fomos tomar um café pra pôr a conversa em dia.

‒ Então, Sigismeno, você assistiu ao julgamento do pedido de habeas corpus do Lula semana passada?

‒ Olhe, não assisti inteirinho porque estava muito atarefado. Mas dei um replay, mais tarde, nos lances principais.

‒ Fiquei pasmo com o resultado. Pasmo e decepcionado. E você?

‒ Decepcionado é pouco. A decisão das excelências foi de arrasar!

‒ Enfim, que é que se há de fazer? De toda maneira, Sigismeno, que o Lula vá pra cadeia ou que fique livre e solto, nossa vida não vai mudar. A minha, no fundo, no fundo, vai continuar igualzinha.

‒ Acho que você está sendo um bocado egoísta. Não convém agir como se o mundo girasse em torno de você, que ele é bem mais vasto.

‒ Egoísta eu, Sigismeno? Como assim? Cada um sabe onde lhe aperta o calo, ora essa!

‒ O salvo-conduto provisório dado ao Lula, se confirmado dia 4 de abril, vai abrir as porteiras da bandidagem de alto coturno. Uma torrente de pedidos de habeas corpus preventivos vai jorrar. E o STF se verá forçado a conceder o mesmo benefício a todos os corruptos. A partir daí, nenhum corrupto mais será preso. Vão todos recorrer em liberdade até que a sentença transite em julgado, o que pode levar décadas.

‒ Ora, Sigismeno, o que é que isso muda na minha vida? Os corruptos estão lá, sempre estiveram e é certeza que sempre estarão. Não há como combater essa praga. É mais fácil vender geladeira a esquimó do que acabar com a corrupção no Brasil.

‒ Não tenho certeza de estar de acordo com você. Corrupção é crime tanto quanto homicídio e latrocínio. Não pode ser encarado com leviandade. Recuso essa tese de que é impossível combatê-lo.

‒ E como é que se combate corrupção, Sigismeno de Deus?

‒ Pra começar, mandando o Lula pra cadeia. Esse é o ponto de partida. Sem isso, não vamos sair do lugar.

‒ Ok. Se o Lula for pra trás das grades, o que é que muda no panorama?

‒ Duas coisas pra lá de importantes. A primeira é que, atrás dele, uma extensa fila de gente fina vai ser hospedada na Papuda ou em Curitiba. A segunda é o medo que essas prisões vão gerar. Como todo o mundo sabe, o medo da punição é o principal fator inibidor de “malfeitos”. Quando você sabe que tem 90% de risco de ser flagrado e punido, você pensa dez vezes antes de cometer o ilícito. E acaba desistindo.

‒ É, acho que você tem razão, Sigismeno. Se tiverem quase certeza de que a «coisa» vai acabar mal, os políticos vão acabar desistindo de cometer a «coisa».

‒ E as consequências vão mais longe.

‒ Mais longe, Sigismeno? Em que sentido?

‒ O mundo não acaba amanhã. Depois de nós, virão outros, filhos, netos, descendentes. Eles vão receber o que estamos construindo hoje. Em consideração a eles ‒ que talvez ostentem sobrenome herdado de você mesmo ‒ é imperativo fazermos o máximo pra legar um Brasil melhor, mais limpo. Se, pra nós, não muda muito que o Lula vá preso ou não, pra os que virão, muda muito. Não temos o direito de nos acomodar, que seria desonesto.

‒ Tem razão, Sigismeno. Bom agora eu vou indo, que já está ficando tarde.

‒ Até a próxima!

‒ Até, Sigismeno!

Trânsito em julgado

José Horta Manzano

Quando sancionou a lei dita “da ficha limpa”, o Lula, então presidente da República, não imaginava que o feitiço um dia se viraria contra o feiticeiro. Ah, se arrependimento matasse…

O mesmo se pode dizer do STF, quando determinou que condenados por tribunal colegiado de segunda instância podem ser despachados à prisão. Não imaginavam que a decisão pudesse alcançar tanto político ladrão.

Seja como for, vale o escrito. Assinou, assinado está. O jamegão sapecado pelo demiurgo e a decisão do STF confortaram os brasileiros de bem. Ambos os dispositivos têm-se mostrado preciosos para abolir a sensação de impunidade que costumava vigorar entre criminosos de colarinho branco.

Boa parte dos atuais inquilinos da carceragem de Curitiba e da Papuda só estão lá em virtude da decisão do tribunal maior. Não fosse isso, muita gente fina ‒ Eduardo Cunha, Sergio Cabral & outros de jaez equivalente ‒ ainda estaria por aí, soltinha, a vampirizar a seiva do país e o fruto do trabalho dos conterrâneos honestos.

Faz tempo que, acossado pela interpretação do STF, o esperto ex-presidente gasta fortunas para escapar do cárcere. Até um antigo membro do STF, um doutor de nome Sepúlveda, foi ressuscitado para encorpar seu batalhão de defensores. (Aliás, perguntar não ofende: de onde virá a dinheirama pra pagar esse mundaréu de advogados?)

O nó da questão está na interpretação que se dá ao Inciso n° 57 do Artigo n° 5 da Constituição. Está lá escrito que «ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória». O texto é cristalino. É proibido dizer que um réu é culpado até que se esgotem todos os recursos e apelações. Somente quando não houver mais para quem apelar é que o indivíduo será definitivamente considerado culpado.

Contra lei clara, não há argumento que se mantenha em pé. Portanto, nosso guia, assim como cúmplices e companheiros de aventura, ainda goza da presunção de inocência. Só se podem considerar culpados os que já tiverem esgotado o estoque de chicanas.

Acontece que tem um porém. A Constituição não reserva a prisão unicamente para culpados confirmados. Nenhum artigo da carta magna proíbe que presumidos culpados sejam encarcerados. Se assim não fosse, não haveria o instituto da prisão temporária, muito menos o da prisão preventiva.

Cadeias estão cheias de gente que ainda não passou nem por julgamento de primeira instância. Um punhado de motivos pode levar um indivíduo a ser preso antes da condenação definitiva. Um deles ‒ talvez o mais importante ‒ é justamente o risco à ordem pública que o cidadão possa representar.

Esse argumento cai como luva no caso de nosso pranteado ex-presidente. Todo réu,  mesmo condenado em duas instâncias, ainda goza da presunção de inocência. Por seu lado, o corolário é válido: esse mesmo réu padece também da presunção de culpabilidade.

Nosso guia, que se encontra exatamente nessa situação, insiste na tentativa de agitar as massas ao atacar magistrados, enxovalhar a Justiça, acusar juízes de o perseguirem, açular brigadas amestradas (e remuneradas) de baderneiros, provocar comoção nacional. O que mais precisa pra caracterizar risco de perturbação da ordem pública?

As coisas estão mudando

José Horta Manzano

Em muitos filmes policiais dos últimos cinquenta anos, quando a perseguição apertava e obrigava o criminoso a fugir pra bem longe, o Brasil era opção natural. De cada dois foragidos, um escolhia estabelecer-se em nosso país. E a imagem correspondia à realidade. Só não vinham todos por falta de dinheiro para a passagem.

O clichê persistente pintava o Brasil como terra paradisíaca e acolhedora, de vida mansa, sol, praias, palmeiras, com gente sorridente e despreocupada que passava o tempo dançando pelas ruas. Fugitivo que se prezasse não escolheria outro destino. Quem é que havia de preferir a Sibéria?

Terminada a hecatombe da Segunda Guerra, criminosos nazistas se refugiaram clandestinamente em nosso país. Não saberemos nunca quantos terão vindo, que não há estatísticas. O carrasco Josef Mengele, um dos mais tristemente famosos, terminou seus dias numa praia do litoral paulista em 1979.

Ficou famoso o caso do assaltante inglês Ronnie Biggs, célebre por ter desvalijado um trem pagador em 1963 na Escócia. Homiziado no Rio de Janeiro, o homem valeu-se da lei vigente à época, que vedava extradição de quem tivesse filho brasileiro, como era seu caso. Viveu tranquilo até que, já idoso, decidiu voltar ao país natal para entregar-se às autoridades.

À semelhança do mafioso Tommaso Buscetta, que aqui se encafuou nos anos 70, diversos bandoleiros escolheram o Brasil. Além dos casos que se tornaram públicos, deve ter havido inúmeros outros que passaram em branco. Mais recentemente, como todos sabem, abrimos os braços para um certo Cesare Battisti, italiano condenado à prisão perpétua por envolvimento em quatro homicídios.

No entanto… as coisas estão mudando. A Operação Lava a Jato tem incentivado a atenuar a impunidade. Sua influência começa a se alastrar para setores da criminalidade não necessariamente ligados a malversações de dinheiro público.

Rapidamente, o Brasil começa a sair da rota de bandidos estrangeiros. Sinal de que os tempos mudaram é a revoada de bandidos genuinamente nacionais que buscam terras mais acolhedoras além-fronteiras.

Henrique Pizzolato abriu o bloco. Esteve entre os primeiros a sentir que os ventos estavam mudando de quadrante. Apesar de ter orquestrado fuga rocambolesca, não deu sorte: além de experimentar o conforto dos cárceres italianos, acabou despachado para a Papuda.

Depois de anunciar que não acataria a decisão dos tribunais brasileiros ‒ numa clara indicação de que pretendia subtrair-se à punição no Brasil ‒, o Lula teve a desagradável surpresa de ver-se impedido de deixar o território. Retiraram-lhe o passaporte.

Um operador financeiro da Lava a Jato fugiu do país e chegou a requerer (e obter) a cidadania portuguesa. Pensava escapar assim à Justiça. Deu-se mal. Está sendo extraditado e devolvido à pátria.

O mais recente caso saiu ontem nos jornais. O passaporte daquele cidadão que atropelou uma vintena de pessoas no calçadão de Copacabana acaba de ser apreendido por suspeita de que o indivíduo tencionasse fugir do país.

A Lava a Jato ainda não terminou e seu balanço final ainda não foi analisado. O futuro certamente há de mostrar que ela deu início ao desmonte da imagem de permissividade que aureolava nosso país. É excelente notícia.

Beco sem saída

José Horta Manzano

É bem provável que, no segundo turno das eleições de 2014, o distinto leitor tenha dado seu voto a doutor Aécio Neves. Eu também fiz questão de me abalar num trajeto de oitenta quilômetros, até o consulado brasileiro mais próximo, para fazer o mesmo. Como eu, o leitor também há de ter ficado decepcionado e desesperançado quando a apuração confirmou que o Brasil teria de sofrer mais quatro anos de lulopetismo.

Ainda não se falava em rapina naquela época. O mensalão parecia ter sido um episódio em si, fato isolado, com começo, meio e fim. Ingênuos, os eleitores imaginaram que o encerramento da Ação n° 470, ao mandar pra trás das grades meia dúzia de ladrões, punha ponto final na novela. Doutor Joaquim Barbosa, autor de façanha nunca dantes sonhada, chegou ao auge da popularidade e despontava como ícone nacional. Para surpresa da galeria, pendurou as chuteiras.

De repente, por capricho do destino, uma investigação de aparência banal envolvendo um doleiro pousa na escrivaninha de um desconhecido juiz de Curitiba. Na época, ninguém se deu conta, mas estava aberta a caixa de Pandora. O juiz era obstinado e, ao puxar o fio da meada, viu que o novelo era bem mais recheado do que parecia.

A continuação, todos conhecem. Entre depoimentos, prisões, fugas, delações e confissões, ficamos sabendo que estávamos sendo governados por um bando de criminosos. O Brasil indignado exerceu tal pressão sobre o parlamento, que a destituição da senhora Rousseff se tornou inevitável.

by Renato Andrade Vieira (1964-), desenhista paulista

Com a doutora fora de cena, muitos imaginaram que o pior tinha passado. Os negócios da República passariam a ser dirigidos por homens probos e o país voltaria aos eixos. Quanto engano! A caixa de Pandora era bem mais profunda do que parecia e, uma vez aberta, os males continuavam a transbordar.

Faz quinze dias, explode a enésima bomba: a irmã de doutor Aécio é presa. E o irmão senador só não lhe faz companhia no xilindró por gozar de imunidade parlamentar. A cada dia que passa, indícios e provas de corrupção grossa vão-se acumulando contra o doutor. Que termine em Curitiba, na Papuda ou passeando em Nova York, pouco importa: sua imagem de homem virtuoso se desfez e seu futuro político desmoronou.

Em 2014, não tínhamos como saber, mas agora percebemos que decidir entre doutora Dilma e doutor Aécio era como escolher «entre la peste et le choléra», como dizem os franceses. Ou entre a aids e o câncer, podemos adaptar. Era um verdadeiro dilema(*). Pensando bem, talvez tenha até sido bom que a doutora tenha ganhado a eleição. Tivesse perdido, é possível que a podridão que corrói o Estado brasileiro nunca tivesse vindo à tona.

A pergunta agora é: já chegamos ao fundo do poço ou será que ainda falta muito? Vamos aproveitar a deixa pra fazer uma pergunta secundária: será que, depois de amainado o furacão, viveremos num Brasil melhor?

(*) O conceito de dilema é velho conhecido de quem se interessa por filosofia. Em linguagem corrente, utiliza-se o termo quando se tem de escolher entre duas opções insatisfatórias. Em português caseiro, equivale a dizer que “se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come”.

Marcaram bobeira

José Horta Manzano

Não conheço Eduardo Cunha nem a digníssima esposa. Nossos caminhos nunca se cruzaram. As informações que tenho sobre o casal ‒ nem sempre elogiosas, diga-se ‒ vêm da mídia. Tenho, assim mesmo, sérias dúvidas sobre a esperteza e a inteligência atribuídas a senhor Cunha.

Os erros monumentais cometidos pelo casal dão mostra estonteante de que falta, aos dois, traquejo internacional. Não estão acostumados a transitar pelo mundo dos ricos tradicionais. Essa falta de vivência levou senhor Cunha a crer que seus trambiques não seriam jamais descobertos. E, se desvendados fossem, que a situação se resolveria em torno de uma pizza, fácil, fácil.

Lista (parcial) dos gastos da esposa e da filha de Senhor Cunha

Lista (parcial) dos gastos da esposa e da filha de Senhor Cunha

No entanto, o cerco em torno do casal serelepe tem-se apertado, e a pizzaria parece estar fechada para reforma. Estes últimos dias, a ação do juiz mais adorado e mais detestado do Brasil, dependendo de que lado da cerca se encontre o observador, desaguou na acusação formal de senhora Cruz, a esposa. Na impossibilidade (momentânea) de pegar o tubarão, a Justiça optou por apanhar o lambari. A gastadora compulsiva tornou-se ré de processo criminal.

by Ivan Cabral, desenhista potiguar

by Ivan Cabral, desenhista potiguar

Ah, como é fácil fazer compras com dinheiro alheio… A lista (parcial) de gastos, publicada pela imprensa, é impressionante. A autodeclarada «dona de casa» e sua filha frequentaram os pontos preferidos pelos novos-ricos. Prada, Balenciaga, Louis Vuitton, Chanel, Ermenegildo Zegna, Yves Saint Laurent, Louboutin, Burberry, Christian Dior ‒ não deixaram de rezar em nenhum dos templos obrigatórios para quem enricou de repente.

Tivesse a compradora pagado suas despesas com dinheiro vivo, ninguém teria jamais descoberto. Preferiu utilizar cartão de crédito, que parece mais cômodo. No entanto, a falta de traquejo típica de quem cresceu longe da riqueza falou mais alto: para pagar a conta da operadora de cartão, a moça escolheu o banco errado.

Fatura mensal do cartão Visa de senhora Cruz a/c Banco Julius Baer para pagamento

Fatura mensal do cartão Visa de senhora Cruz
a/c Banco Julius Baer para pagamento

Imaginando que todo banco é igual, os Cunhas encarregaram o Banco Julius Baer, de Genebra, de cuidar dos pagamentos. Acontece que esse é banco privado, diferente dos estabelecimentos comerciais com que madame está acostumada a lidar. Banco privado não tem guichê, não tem agência aberta ao público, não recebe conta de luz, não empresta dinheiro a ninguém. São especializados em gerir fortuna de aplicadores que não querem passar a vida acompanhando o comportamento da bolsa.

Dinheiro voadorIgnorando essa peculiaridade, madame pediu ao banco que pagasse suas contas do dia a dia ‒ atitude anômala e inabitual. Isso acendeu a luzinha vermelha. Já faz anos que a Suíça deixou de ser paraíso fiscal e porto seguro para fortunas de origem duvidosa. O casal não sabia disso.

Deu no que deu. De pouco valeram os trusts e as empresas de fachada criadas pelos dois em ilhas caribenhas. O gato se escondeu, mas esqueceu o rabo fora. Em estreita colaboração com a justiça, o banco suíço forneceu tudo o que as autoridades pediram: junto com extratos de conta, veio o detalhe das surpreendentes despesas. Coisa de deixar boquiaberto. Documentos mostram que a «dona de casa» torrou um milhão de dólares em artigos de altíssmo luxo ‒ e de preço elevadíssimo.

Pronto, madame já foi apanhada pela engrenagem. O caminho que separa Monsieur Cunha de Curitiba (ou da Papuda, dependendo dos caprichos do destino) encurta-se a cada dia.

Sem escala

José Horta Manzano

Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro eram para ser a cereja em cima do bolo, a consagração do Estado Novo reencarnado. Deviam cobrir de louros a cabeça de nosso guia genial simbolizando o ápice de sua estupenda carreira. Deviam gravar, no mármore do panteão nacional, a memória imorredoura do admirável líder-mor.

Mas a vida é cruel. O Mensalão, o Petrolão, a Lava a Jato, o vexame dos 7 x 1, as delações, as condenações, o espectro da Papuda, a catástrofe econômica, a inflação paralisante, a fuga de cérebros, a humilhação imposta por agências de notação, a aproximação de Cuba com os EUA, a desaceleração da China contribuíram para o desmoronamento do projeto.

Televisão Suíça ‒ captura de tela

Televisão Suíça ‒ captura de tela

As Olimpíadas passaram a segundo plano. A cereja que devia enfeitar o bolo está podre. O golpe de graça está sendo assestado pelo vírus Zika. Em todas as línguas, o mundo está sendo alertado para o perigo. A mídia internacional desaconselha fortemente toda visita à América do Sul, em especial ao Brasil. A advertência é imperativa para grávidas.

No Brasil, há quem pressinta que estamos em meio a uma década perdida. Guardando as devidas proporções, a situação atual chega a evocar um panorama que não se observava havia mais de um século.

Televisão Suíça ‒ captura de tela

Televisão Suíça ‒ captura de tela

Na virada do século XIX para o século XX, o Rio de Janeiro era uma cidade suja, infestada de focos de doenças tropicais ‒ malária e febre amarela principalmente. Antes do saneamento orquestrado por Oswaldo Cruz e apoiado pelo presidente Rodrigues Alves, europeus evitavam visitar a cidade.

Revolta da Vacina, 1904

Revolta da Vacina, 1904

Companhias italianas de navegação tranquilizavam os passageiros ‒ imigrantes que se dirigiam à Argentina ‒ garantindo que a viagem seria direta, «senza scalo a Rio de Janeiro», sem escala no Rio.

Mais cedo ou mais tarde, a epidemia de febre zika há de ser refreada. A endemia de violência e criminalidade, infelizmente, ainda vai afugentar visitantes por algum tempo.

Alguns alertas:
Televisão Pública, Suíça
Sydney Morning Herald, Austrália
La Repubblica, Itália
Portal Yle, Suécia

Ponte dos espiões

José Horta Manzano

Ponte 2Pense num filme de espionagem, daqueles que se passam na época da Guerra Fria. Numa manhã fria e brumosa, um espião americano, desmascarado em Moscou, ensaia os primeiros passos da travessia duma ponte sobre rio fronteiriço entre as duas Alemanhas. No mesmo momento, um espião soviético, capturado meses antes em Washington, faz o mesmo gesto em sentido contrário.

Avançam lentamente. Os caminhos se cruzam bem no meio da ponte. Sem se olhar nos olhos, cada qual continua reto até a margem oposta. «Pronto, elas por elas. Estamos quites» – suspiram aliviados os policiais e agentes que, armados até os dentes, tinham permanecido de cada lado da fronteira. Tudo correu bem. É o capítulo final de uma longa tratativa que se desenrolou nos bastidores, longe de toda publicidade.

Se o distinto leitor imagina que cenas como essa fazem parte de um passado poeirento e enterrado para sempre, convido-o a reconsiderar a questão. A imprensa italiana em peso afirma hoje que, sem a dramaticidade cinematográfica da travessia da ponte, nova troca de prisioneiros acaba de ocorrer.

Aeronave que transportou Pizzolato de SP a Brasília 23 out° 2015

Aeronave que transportou Pizzolato de SP a Brasília
23 out° 2015

A verdadeira história da extradição do mensaleiro Pizzolato, que acaba de chegar a Brasília para uma temporada na Papuda, é menos charmosa e bem menos jurídica do que se possa imaginar. Nosso mensaleiro interpreta o papel de um dos prisioneiros que atravessam a ponte. E quem é o outro?

Segundo a imprensa italiana, que deve ter seus fundamentos para afirmá-lo, a outra moeda da negociação chama-se Pasquale Scotti. É antigo membro da camorra (máfia napolitana), condenado à prisão perpétua por mais de 20 homicídios. Gente fina, como se vê. O bom moço estava no Brasil havia mais de 30 anos. Sob identidade falsa, vivia no Recife.

Ponte 1Foi capturado pela Polícia Federal em maio. Informada pela Interpol, a Itália logo pediu extradição do cidadão. O que se segue não foi publicado, mas pode ser imaginado. Autoridades italianas e brasileiras concluíram acordo na base do «eu te mando este, você me devolve aquele».

De fato, o STF autorizou a extradição de signor Scotti no dia 20 de outubro. Dois dias depois, a Itália entregou signor Pizzolato a agentes da PF brasileira. Baita coincidência, né não? Parece que a imprensa italiana sabe do que está falando.

Os detalhes da troca de prisioneiros estão na Agência Brasil (em português) e no jornal turinês La Repubblica (em italiano).

Diretor de marketing do bando

José Horta Manzano

Lapsus calămi

Lapsus calămi é locução latina usada para designar erro que escapa, por inadvertência, a quem escreve. Há quem considere esse tipo de tropeço um revelador do que o escriba tinha realmente em mente.

Pra explicar a escorregadela aqui abaixo, nem é preciso chamar Freud.

Trecho de reportagem do Estadão, 6 out° 2015

Trecho de reportagem do Estadão, 6 out° 2015

Dose dupla

José Horta Manzano

Tem certas notícias que, embora capazes de indignar qualquer cidadão em tempos normais, passam despercebidas na cachoeira de escândalos atuais. Parecem fatos menores. Não são.

Meus atentos leitores devem-se lembrar de signor Pizzolato, aquele membro da gangue do Mensalão que, na iminência de ser despachado à Papuda, muniu-se de documento de familiar morto e, sob identidade usurpada, escapou para a Itália.

Prisioneiro 2O sentimento de invulnerabilidade que a dupla cidadania lhe propiciava, no entanto, murchou. Não demorou muito, foi preso pela polícia daquele país. Faz anos que signor Pizzolato trava batalha contra sua extradição para o Brasil. Enquanto isso, continua preso. Se se tivesse entregado à Polícia Federal brasileira, já estaria livre da silva, constrangido apenas por uma imperceptível tornozeleira.

Apesar disso, continua lutando contra a extradição, Por algum motivo será. Não sou especialista em briga de bandidos nem em código de honra de marginais. Assim mesmo, desconfio que o temor de signor Pizzolato não seja exatamente o de ser mandado para o xadrez. Afinal, já faz tempo que ele vive atrás das grades. O medo há de ser outro. Melhor não entrar nesse terreno.

Pizzolato 6 camburaoSeja como for, o episódio tem rendido muita humilhação para o Brasil. Quando o Lula decidiu negar à Itália a devolução de signor Cesare Battisti – terrorista condenado por envolvimento em quatro assassinatos –, usou o pretexto de o extraditando não ser homicida comum, mas criminoso político. Não enxergo diferença, mas parece que o Lula enxergou.

Prison 5Já a Itália, antes de devolver signor Pizzolato, mandou vistoriar prisões brasileiras. Deixou claro que não acredita na boa-fé das autoridades federais, segundo as quais o cidadão será abrigado em estabelecimento penitenciário de padrão Fifa.

O portal d’O Globo informa que o governo italiano despachou representante para inspecionar, in loco e pessoalmente, as instalações onde Pizzolato ficará hospedado.

Isso significa duas coisas. Primeiro, que consideram o Brasil como país de segunda ordem, onde prisões ainda mantêm padrões medievais. Segundo, que não têm confiança nas garantias oferecidas por nossas autoridades – preferem mandar alguém de confiança conferir. É vexame em dose dupla.

Atenção ao Zé

Cláudio Humberto (*)

by Renato L. C. Aroeira desenhista carioca

by Renato L. C. Aroeira
desenhista carioca

Após haver abandonado José Dirceu nos tempos do julgamento do mensalão e não se ter mais preocupado com ele desde então, o ex-presidente Lula recomendou à cúpula do PT, esta semana, “dar atenção ao Zé”, seu antigo ministro da Casa Civil. Ele teme que Dirceu feche acordo de delação premiada para não voltar à cadeia.

Até lulistas “religiosos” concordam: eventual delação de Dirceu pode levar Lula a conhecer o significado de um longo período na Papuda.

(*) Cláudio Humberto, bem informado jornalista, publica coluna diária no Diário do Poder.

Estratégia arriscada

José Horta Manzano

Pizzolato, o integrante da gangue do mensalão que fugiu para a Itália, continua na ordem do dia. Não tanto pelo que diz, mas pelo que dizem sobre ele.

Assalto 4O ex-diretor do Banco do Brasil é um moderno Ronald Biggs sem a sorte do renomado predecessor. Para quem se esqueceu, o inglês Biggs participou do «Great Train Robbery of 1963», assalto a um trem repleto de dinheiro. Foi preso, escapou da cadeia, deu volta ao mundo e acabou pousando sua trouxa no Brasil. Fez filho, casou-se, viveu no Rio de Janeiro 40 anos sem ser incomodado. O dinheiro, fruto do assalto, nunca foi encontrado.

Pois o antigo sindicalista Pizzolato – aquele que chegou, sabe-se lá como, à alta cúpula do Banco do Brasil – não foi tão sortudo. Fez o papelão de fugir e abandonar às feras os cúmplices, ato pra lá de malvisto no submundo do crime. Os traídos não se esquecerão.

Apanhado, o fugitivo cumpriu quase um ano de prisão fechada na Itália. Se se tivesse entregado à PF brasileira, não teria permanecido preso por mais tempo que isso. Já estaria, hoje, solto e senhor de seus passos.

A desastrada fuga espichou seu tormento. O homem está agora diante de um dilema. Se for extraditado, irá direto para a Papuda, onde periga apodrecer por bom tempo. Assim como virou as costas aos comparsas, por eles há de ser abandonado. Se, no entanto, Roma resolver guardá-lo, não será muito melhor: como Cacciola, ficará inscrito na lista da Interpol. Não poderá pôr os pés fora da Itália, sob risco de ser apanhado e despachado para Brasília. Tão cedo não usufruirá as delícias do clima da Costa del Sol, pros lados de Málaga (Espanha), onde adquiriu três apartamentos em condomínio de alto luxo.

Assalto 3Leio hoje na Folha que a estratégia dos advogados que defendem os interesses do Estado brasileiro será de acusar signor Pizzolato de ser «italiano por conveniência». Dirão que o extraditando «só se lembrou da cidadania italiana na hora da necessidade». É estratégia arriscada que mostra pouca familiaridade com a visão europeia do tema da nacionalidade.

Italia PisaOlhos italianos enxergam a situação por outro prisma. Veem signor Pizzolato como um italiano que recebeu de graça a nacionalidade brasileira pelo simples fato de ter nascido em solo tupiniquim. O Brasil é, de fato, um dos raros países que concedem automaticamente a cidadania aos que vêm à luz em seu território. No conceito peninsular, signor Pizzolato nasceu italiano, continua italiano e italiano sempre será. Punto e basta.

Não sei quem terá sugerido a estratégia, mas ela é mais que ousada – é temerária. Periga ferir sensibilidades. A meu ver, diminui as chances de o Estado brasileiro conseguir obter a extradição do condenado.

Pensando bem… talvez seja exatamente esse o objetivo, cáspite! Um Pizzolato longe do Brasil não poderá ser preso, nem interrogado, nem convocado. Jamais poderá – sai, demônio! – fazer delação premiada. Repatriado, periga lançar lenha à fogueira. Melhor que por lá fique, não é companheiros?

La legge è uguale per tutti

José Horta Manzano

As aventuras de Signor Pizzolato renderiam um bom romance de suspense com toques de surrealismo. Quem sabe até, um dia, as peripécias serão levadas à tela.

Tribunal 5Que é esse senhor? Ora, falo daquele mensaleiro que, usurpando a identidade de um parente já falecido, fugiu para a Itália para escapar à punição. Imaginando-se mais esperto que o resto da gangue, virou as costas para os demais, desertou na calada e se foi para o que imaginava fosse porto seguro.

Deu-se mal. Caçado, foi encontrado e encarcerado. Trancaram-no em regime fechado mais tempo que os comparsas instalados na Papuda. Durante esse tempo, comeu menos feijão, mas macarrão não lhe há de ter faltado.

Num primeiro momento, a justiça italiana negou a extradição solicitada pelo Brasil, em decisão que desagradou a promotoria e o governo brasileiro. Entraram ambos com recurso, que acaba de ser julgado. A corte suprema de Roma, em decisão definitiva, cassou a decisão das instâncias inferiores. Estatuiu que o réu é passível de extradição.

Tribunal 6Exatamente como no Brasil, o decreto de reexpedição do condenado tem de ser assinado pelo chefe do governo – que pode, em teoria, graciar o extraditando. Pessoalmente, acredito que signor Matteo Renzi, o primeiro-ministro, não se oporá à decisão do tribunal maior.

A parte surrealista vem embutida no relato do embate entre a promotoria e os defensores do réu. Pizzolato alegou que escapara do Brasil para «salvar a vida». Sabemos todos que seus parceiros não só foram bem tratados na prisão, como também transformaram o cárcere em sala de visitas e em balcão de negócios.

Justiça 5Para reforçar o irrealismo, numa confissão espontânea da injustiça social que impera no País, as autoridades brasileiras garantiram que o condenado «receberá tratamento melhor que os demais presos».

Tem mais. Diante dos juízes da corte de Roma, os advogados contratados pelo Brasil afirmaram que, como os companheiros condenados no mensalão, Pizzolato «fará parte de uma categoria de presos aos quais está assegurado o total respeito da lei e de seu conforto».

A conclusão se impõe: no Brasil, nem todos os presos têm direito ao respeito nem acesso a condições de conforto. A estratificação socioeconômica não se extingue à porta da penitenciária.

Interligne 18bPS1:
Todo tribunal italiano assegura, em letras garrafais afixadas à vista de todos, que «La legge è uguale per tutti» – a lei é igual para todos.

PS2:
Recomendo aos distintos leitores dar uma espiada em meu artigo Vamos jogar golfe? É boca livre. Foi postado um ano atrás e trata das peripécias de signor Pizzolato.

Uma paisagem diferente

Carlos Chagas (*)

Voltaire tinha acabado de chegar a Paris. Jovem voluntarista, ao saber que o regente, Philippe d’Orléans, por medida de economia, decidira vender metade da real cavalaria, escreveu que, em vez de se desfazer dos cavalos, o soberano deveria livrar-se dos asnos que gravitavam ao redor do trono.

Passeando no Bois de Boulogne, o regente deparou-se com Voltaire e ofereceu-lhe uma paisagem por ele desconhecida: uma cela na Bastilha, com vista para a capital francesa.

Cisnes no lago do Bois de Boulogne by Auguste Grass-Mick (1873-1963), artista francês

Cisnes no lago do Bois de Boulogne
by Auguste Grass-Mick (1873-1963), artista francês

Depois de alguns meses, arrependido, Philippe mandou soltar o prisioneiro e ainda lhe outorgou uma pensão mensal. O irreverente crítico agradeceu, em carta, acentuando a satisfação pelo fato de o governo provê-lo de alimentação. Mas abria mão da hospedagem…

Não se deve interpretar os julgamentos pelo que eles não são. Os mensaleiros vêm sendo dispensados da hospedagem a eles oferecida e da inusitada vista de Brasília pelas janelas da Papuda. Parecem felizes por cuidar da própria alimentação…

Carlos Chagas é advogado, jornalista e radialista. O texto é excerto de artigo publicado no Diario do Poder, 2 jan° 2015.

Quem vai ganhar?

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Como todos os brasileiros, Sigismeno anda empolgado com a eleição para a presidência da Republica. Até quinze dias atrás, nem tocava no assunto. Achava modorrento, maçante, aborrecido, um jogo de cartas marcadas.

Ainda ontem nos encontramos. Depois de falar do sol e da chuva, ele abriu um largo sorriso ― acho até que chegou a dar uma piscadela ― e veio direto: «Você viu as eleições?».

«Claro que vi, Sigismeno. Quis o destino que um dos pretendentes ao trono tenha desaparecido naquele avião espatifado. Que coisa trágica, não?»

urna 4«Pois é, e foi acontecer justamente com o mais jovem dos candidatos que tinham alguma chance. Não há que dizer, era a hora dele. Mas deixe estar, que há males que vêm pra bem.»

«É, tem razão. A desgraça serviu pra sacudir o processo. Dona Marina, que andava meio apagada no incômodo lugar de vice, desabrochou.»

«Desabrochou?» ― bradou Sigismeno ― «explodiu, isso sim!».

«Andam até dizendo que ela tem chance de chegar ao segundo turno. O que é que você acha, Sigismeno?»

«Pois não só vai chegar ao segundo turno, como vai ganhar a eleição. Pode se preparar. Nossa próxima presidente já está ungida pelo destino, acredite.»

«E como é que você pode ter tanta certeza, Sigismeno?»

«É cristalino como água de fonte. Mas vamos começar pelo começo. O que valia para os anos 50 já não vale mais hoje. Tem muito político por aí achando que a maioria do povo brasileiro é constituída de broncos, desdentados, analfabetos, perfeitos ignorantes. Já não é assim.»

Eleição 1«As coisas têm mudado um bocado, é verdade.»

«As mudanças se aceleraram estes últimos anos. Se a eleição que ocorreu em 2002 fosse hoje, não tenho nem certeza de que ganharia o Lula. O povo anda meio vacinado contra líderes messiânicos.»

«Você acha, Sigismeno? Pois essa ascensão de dona Marina Silva, a evangélica, não deixa evidente que o povo ainda espera seu messias?»

«De jeito nenhum. A fé neopentecostal está longe de deriva messiânica. Essas novas seitas pregam a redenção pela transformação pessoal, pelo esforço individual, pela persistência no caminho da virtude. A base é: “faz a tua parte, que Eu te ajudarei”.»

«Mas, nesse caso, o que é que explica a explosão de dona Marina, como você mesmo disse, Sigismeno?»

«É simples. O povo brasileiro, que deixou de ser bronco e desdentado, sabe que a coisa anda podre lá no andar de cima. Todos ouviram falar em mensalão, corrupção, dinheiro na cueca, presídio da Papuda, fuga para o exterior, cãezinhos passeando de helicóptero, bifurcação de rios de mentirinha, desvio de bilhões da Petrobrás e outros bichos. Ou não?»

«É verdade, Sigismeno. Não precisa ser cientista político pra perceber que a turma da primeira classe anda exagerando.»

«Pois é, de cada três eleitores, dois gostariam de substituir os mandatários. Só que… só que muitos deles, antigos eleitores dos que ora nos governam, hesitavam em dar seu voto a esse outro jovem, o Aécio. Sentiam como se estivessem cometendo traição.»

«E agora mudou, Sigismeno?»

«Com a entrada de Marina no páreo, sim. Os desencantados, que vacilavam em dar voto ao moço de Minas, se jogaram em cima da acriana. Não por messianismo nem por programa de governo. Aliás, pouco importa quais sejam as metas de governo dela. O povo sente que, se lhe confiar o mandato, vai conseguir dois objetivos: varrer a bandalheira e entregar o poder a alguém que vem do andar de baixo, que venceu por seu próprio esforço e não por Q.I.»

Urna 2«Não deixa de fazer sentido o que você diz, Sigismeno. E… você tem uma previsão do resultado da votação?»

«Olhe, certeza ninguém tem. Mas eu apostaria num primeiro turno com 45% para dona Marina, 35% para dona Dilma, 15% para o moço de Minas e umas migalhinhas para os paraquedistas.»

«Só 35% para a presidente atual, Sigismeno?»

«Ela atingiu o teto do núcleo duro do eleitorado petista. Daí, não passa.»

«E o segundo turno, como é que fica?»

«Marina leva com um placar em torno dos 60%. Se não houver manipulação dessas urnas eletrônicas. Como você sabe, para mim, elas são pra lá de suspeitas. Todo cuidado é pouco.»

«Olhe, Sigismeno» ― disse eu ― «vou botar no blogue». «Mas que fique bem claro: é o seu palpite, não necessariamente o meu.»

Promessa cumprida.

Mau negócio

José Horta Manzano

E o Pizzolato, hein? Alguém se lembra dele? É aquele condenado no processo do Mensalão que, julgando-se mais esperto que os outros, escapou do país com passaporte forjado ― emitido em nome de um parente morto havia décadas.

Sentenciado a quase treze anos no xilindró, valeu-se da dupla cidadania ítalo-brasileira e correu para a pátria-mãe. Por certo, imaginou ser acolhido de braços abertos, como bom filho que a casa torna.

Prisioneiro 3Enganou-se. Apanhado pela polícia peninsular, está encarcerado em regime fechado há quase seis meses, longe de parentes e amigos, sem perspectiva de sair tão já. Protocolarmente, o governo brasileiro requereu sua extradição, mas não se tem notícia de que haja profundo empenho em trazê-lo de volta tão cedo.

Na verdade, a presença em território nacional de um provável detentor de detalhes incômodos poderia ser embaraçosa para antigos companheiros. No Brasil, como se sabe, todos dão entrevista, desde presidente e juíz até traficante, arruaceiro e prisioneiro. Já pensou se o homem, ressentido, dá com a língua nos dentes e revela tenebrosas transações? Quanto mais tarde voltar, melhor.

O cidadão binacional fez mau negócio. Enquanto seus companheiros de infortúnio já tiveram suas multas quitadas e estão a caminho da liberdade, signor Pizzolato ainda pode bem amargar longos meses de cadeia italiana. Anos até. E sem os privilégios da Papuda.

Interligne 18b

Obs: Artigo da Folha de São Paulo deste 31 de julho informa que ― será coincidência? ― os petistas condenados no Mensalão foram os primeiros a quitar sua dívida para com a Fazenda Nacional. Já o fugitivo ausente do território ainda carrega o peso da multa estipulada no ato condenatório.