Lamento, mas…

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Leio no dicionário em relação ao significado do emprego de “mas” em uma frase: conjunção coordenativa, que liga orações com as mesmas propriedades sintáticas, introduzindo frase que denota basicamente oposição ou restrição ao que foi dito”.

Desde a icônica frase de Mário Amato, então presidente da FIESP, referindo-se a Dorothea Werneck, então ministra da Indústria e do Comércio, “Ela é inteligente, apesar de ser mulher”, nunca mais tinha atentado para o sentido de correção de rumo do pensamento embutido no emprego de uma simples locução conjuntiva. Só com a ascensão ao trono de Jair Messias Bolsonaro e, em especial, após a eclosão da pandemia de coronavírus, voltei a prestar atenção às intenções ocultas contidas num pronunciamento de autoridade.

Impressionantemente, o presidente da República parece jamais ter-se dado conta da gravidade de seus constantes lapsos linguísticos. Nunca percebeu que seu pretenso compadecimento pelo sofrimento de seu povo ia somente até a página 2 (isto é, o capítulo de apoio à sua reeleição), jamais mostrou ser capaz de colocar um ponto final na frase lamurienta que lhe foi evidentemente impingida por conselheiros e estrategistas políticos. Jamais permitiu que suas alegadas condolências se fizessem acompanhar e se traduzissem num rosto crispado pela dor, num corpo alquebrado pelo peso da responsabilidade ou num gesto fraterno de estender a mão a quem precisasse, anunciando alguma medida urgente de amparo às comunidades mais atingidas.

Precisou sempre colocar um “mas” imediatamente após a expressão de seu suposto lamento, para introduzir uma frase aviltante qualquer que comunicasse o verdadeiro significado de altaneira indiferença contida em suas palavras. Como um moleque que diz de forma inconsequente: “Foi mal, pessoal, mas é o que temos para hoje” ou “Deu ruim, mas e daí?”. Sentiu sempre a compulsão de manifestar oposição ferrenha à lógica científica da quase totalidade das cabeças pensantes no Brasil e no mundo, duvidar da legitimidade dos procedimentos recomendados por tantos órgãos nacionais e internacionais de saúde. Sonhou sempre secretamente ser aclamado como o único chefe de Estado em todo o mundo capaz de apontar outra solução – mais rápida, barata e menos trabalhosa – para equilibrar os desafios econômicos e sanitários, mesmo que para isso tivesse de caminhar sobre uma montanha de cadáveres e se tornasse alvo do ridículo internacional.

Nunca se envergonhou de demonstrar publicamente que não está nem um pouco alinhado emocionalmente com o sofrimento da população carente, dos trabalhadores, dos idosos – e, mais recentemente, com a aflição de pais e mestres em vacinar o mais rápido possível as crianças. Em todas as ocasiões em que foi instado a expressar oficialmente constrangimento diante da ausência de políticas públicas para combater o desemprego e a fome, ele optou por relativizar a importância de tanto infortúnio e se isentar de qualquer forma de responsabilidade. Preferiu colocar a economia à frente da vida de sua gente, contrastar sarcasticamente sua suposta coragem de militar destemido à mariquice da sociedade civil, sugerir hipocritamente que estava impedido de agir por determinação do Judiciário e denunciar a “ditadura” de todos aqueles que adotaram procedimentos de prevenção e isolamento.

Seu insolente “Sou Messias, mas não faço milagres” vai passar para a história universal como a demonstração mais cabal de insensibilidade social e falta de empatia das piores lideranças populistas. Tão criminosamente pervertida quanto o lema nazista de “O trabalho liberta” afixado no portão dos campos de concentração, sua mensagem de Natal revelou-se mais um exercício nauseante de mitomania:

“Estamos finalizando mais um ano. Um ano de muitas dificuldades. Contudo, não nos faltaram seriedade, dedicação e espírito fraterno no planejamento e na construção de políticas públicas em prol de todas as famílias”.

Ao criar o conceito de atos falhos, o sábio judeu Sigmund Freud destacou que eles representam uma solução de compromisso entre o impulso individual desviante e as normas sociais, trazendo à tona “sem querer” um desejo inconsciente que havia sido reprimido – ou seja, ilustrando sempre um ‘sem querer, querendo’. Campeão mundial de atos falhos e medalhista olímpico de ouro na categoria arremesso de responsabilidade à distância, com mais essa demonstração de alienação da dramática realidade brasileira, Bolsonaro deixou escapar pela enésima vez que seu eternamente repetido amor à pátria, a Deus, à família e à liberdade serve apenas ao propósito de reafirmar seu compromisso com a mentira, a desfaçatez, o ilusionismo e o autoelogio.

A nós, cidadãos conscientes, só resta retrucar em uníssono ao excelso mandatário nas próximas eleições: “Lamento, capitão, mas desta vez vou de comunista de novo”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O Brasil está sendo atacado

Acabo de ler um artigo que o jornalista Pedro Doria postou em seu blogue alojado no jornal O Globo. É muito interessante. Fala sobre os ataques de piratas informáticos que o Brasil vem sofrendo atualmente. Quem quiser ler o pdf, que clique aqui. (Não tenha receio – já está incluído no preço.)

Boas Festas – 1

Luleå, norte da Suécia
às margens do Mar Báltico congelado

José Horta Manzano

Meus caros leitores – uns mais antigos, outros mais recentes – são todos gente fina. A vocês, que me acompanharam ao longo deste ano complicado, deixo aqui meu agradecimento pela fidelidade. Cada visitinha é pra lá de bem-vinda e me traz muita alegria.

Desejo a todos um Natal alegre e um ano novo com saúde e alegria crescentes. E com pandemia e ameaças presidenciais minguantes, naturalmente.

Boas Festas e excelente 2022 a todos!

Vai ganhar

José Horta Manzano

O déficit de inteligência que aflige Nosso Guia é amplamente compensado pelo excesso de matreirice. Esse seu instinto ardiloso, calculador e populista aflora, dia sim, outro também.

Ontem esteve em São Paulo de visita a catadores. Deixar-se fotografar, ostensivamente, ao lado de gente humilde em período natalino é recurso pra lá de manjado. Sessenta anos atrás, os velhos Adhemar e Jânio já eram mestres nessa jogada. Esta é uma época do ano em que os corações amolecem. Ao ver um Lula velhinho, cabelo desgrenhado, rodeado de pobres, derretem de vez.

Agora tenho o dever de informar ao distinto leitor (e eleitor) paulista que a governança de seu estado está alfinetada no quadro de apostas, no estilo “quem ganhar, leva tudo”.

Descontraído no meio dos catadores, o Lula cometeu um de seus ocasionais sincericídios. Resumiu numa frase o modo como enxerga as eleições. Para ele, aquele que for eleito governador de São Paulo não receberá a pesada e complicada incumbência de dirigir o estado mais importante da Federação. Não. Ele “vai ganhar” o governo. Vai ganhar!

Vai governar. Vai dirigir. Vai conduzir. Vai administrar. Vai comandar. Vai chefiar. Vai liderar. Vai pilotar. Vai guiar. Vai encabeçar. Vai gerir. Vai gerenciar. Vai tutelar. Vai orientar. Vai manobrar. Qualquer desses verbos daria conta. Mas… “vai ganhar”? O lulopetismo continua enxergando a política como uma mesa de carteado. “Ganhar o governo” equivale a ganhar um prêmio.

Mais uma vez, Nosso Guia mostra que, na sua visão de mundo, o importante mesmo é “ganhar o governo”. Em seguida, a gente já sabe o que vai acontecer. Nos anos em que dominaram o poder federal, ele e seus comandados já deram a receita de como sugar o dinheiro do povo em proveito próprio. Deitando e rolando.

Que São Benedito nos proteja!

A pressa é inimiga da perfeição?

Myrthes Suplicy Vieira (*)


A pressa é inimiga da perfeição?


Depende. Se você for um burocrata distraído e, principalmente se trabalha com números, é muito provável que a pressa seja mesmo inimiga da perfeição. Com quase toda certeza, se você for um neurocirurgião de ponta operando um AVC hemorrágico posicionado numa região cerebral muito delicada ou inacessível, sua necessária atenção aos mínimos detalhes pode também ser comprometida pela sensação de urgência. Por outro lado, se você for um socorrista do SAMU atendendo a um acidente de trânsito grave com muitas vítimas, piloto de helicóptero da PM, motorista de ambulância ou bombeiro atendendo a um incêndio em um asilo de idosos ou na UTI neonatal de um grande hospital, a pressa pode muito bem ser entendida como um estímulo à perfeição.

O desafio é sempre, em todos os casos, equilibrar a entrega do trabalho dentro do menor prazo possível e com o maior padrão de excelência/qualidade disponível. A isso se dá o nome de competência e, para atingi-la, é preciso contar com uma equipe multidisciplinar altamente capacitada para acompanhar cada etapa do processo e comunicar rapidamente aos demais envolvidos a necessidade de providências extraordinárias.

Doutor Queiroga não entendeu bem, no início, onde o presidente queria chegar ao pedir que ele impedisse – ou, em caso de insucesso por falta de argumentos técnico-científicos convincentes, que atrasasse ao máximo – a vacinação infantil. Mas anuiu mesmo assim. Depois que lhe explicaram que seu chefe ainda oferecia muita resistência ao projeto e estava inseguro quanto à ocorrência de eventuais efeitos colaterais graves nesse público que poderiam cair nas suas costas, ele finalmente vislumbrou uma solução: discutir o tema com todos os órgãos intermediários de controle e com a sociedade civil organizada, antes da tomada final de posição do Ministério da Saúde. Não contava, porém, com a agilidade dos técnicos da Anvisa para aprovar por unanimidade a vacinação para esse segmento etário e o beneplácito de um sem-número de associações de pediatria, imunologia e infectologia.

No afã de mostrar serviço e agradar à chefia, sem comprometer sua permanência no cargo, ele no entanto acabou trocando as bolas: entendeu que sua missão era a de entregar a pior qualidade possível (no sentido da urgência do pedido de compra de novas doses e da logística de distribuição aos estados) dentro do prazo mais dilatado autorizado pelo STF. E foi isso o que ele fez, com total denodo. Contrariando todas as expectativas até mesmo de pais e mestres, ele imaginou ter feito um pronunciamento médico respeitável, durante o qual tentou disfarçar seu servilismo acrítico e sua incompetência atrás da alegação cor-de-rosa de que está comprometido com a segurança dos pequeninos brasileiros. Seria comovente se não fosse pela inevitável comparação com o desempenho tétrico de seu antecessor.

Um antigo colega consultor de empresas desenvolveu um conceito revolucionário para explicar às chefias as causas de frequentes erros em áreas sensíveis da organização capitaneadas por um gestor imaturo, autoritário ou inexperiente, que me encanta desde sempre: o da Síndrome da Anuência Precoce. Sabe aquele garoto assustado, acostumado a ser maltratado por um pai arrogante, perfeccionista e ditatorial, que não consegue ouvir até o fim a mais nova exigência de cumprimento de uma tarefa que lhe é apresentada aos berros? Então, dada sua enorme ansiedade e medo de falhar, a criança não consegue interromper a fala do pai para pedir esclarecimentos adicionais, contra-argumentar com dados realísticos ou tentar negociar um prazo mais elástico. Atira-se de cabeça na tarefa e, afundado na angústia da provável surra que vai levar se não obedecer aos conformes do combinado, não se organiza, atropela as fases do processo, ignora a necessidade de revisão da eficácia dos procedimentos adotados em cada passo e descuida do acabamento, terminando por falhar miseravelmente outra vez. À culpa vem se somar a crença de que é burro, desajeitado e não talhado para se destacar no mundo profissional. Pronto, está criado mais um jovem neurótico, especializado na arte de responsabilizar as contingências de sua vida, botar a culpa em terceiros e se alienar de toda e qualquer iniciativa no futuro.

Mesmo um observador não-treinado pode afirmar com toda a segurança que o fenômeno atinge pesadamente todos os integrantes do ministério bolsonarista. Da educação e cultura (inserida curiosamente, para vergonha nossa diante dos espantados olhares de estrangeiros, na estrutura do ministério do turismo), passando pelo Itamaraty e pelas Forças Armadas, até os criativos ministérios da economia e do meio-ambiente (que não se cansam de apresentar em fóruns internacionais um Brasil que desconhecemos integralmente), não há um só dia em que não sejamos convidados a interpretar as estatísticas nacionais sob o prisma de Alice no País das Maravilhas, elaboradas por orgulhosos portadores crônicos da Síndrome de Anuência Precoce.

Mas não se preocupe, prezado concidadão. Tudo isso deve acabar em breve. Deve ser apenas um efeito colateral indesejado da prevalência de militares em cargos civis de grande especialização técnica. E, para um militar, contrariar a voz de comando é uma insensatez inaceitável. Quem diria que um ex-capitão reformado por indisciplina agregaria tanto poder e influência para fazer calar generais e humilhar em público os mais prestigiados cientistas e instituições nacionais?

Que falta faz um estadista! Cuidado redobrado com quem você vai eleger no ano que vem.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Vacina para crianças

José Horta Manzano

Para futuros turistas que se preparam pra visitar determinados países ou regiões, recomenda-se tomar (ou exige-se que tomem) vacina contra doenças como tifo, febre amarela, raiva, hepatite A, poliomielite.

Para crianças, independentemente de qualquer viagem turística, a vacinação é obrigatória ou recomendada para proteger contra bom número de doenças: difteria, tétano, coqueluche, varíola, polio, hepatite B, pneumococos, sarampo, caxumba, rubéola.

Como se sabe, a vacinação dos pequerruchos é coisa corriqueira, sabida e aceita por todos. Não há mãe que deixe de levar seu filho ao médico ou ao posto de saúde pra ser imunizado.

Os mais antigos se lembram de um tempo em que essa proteção simplesmente não existia. Dá impressão de que vivemos hoje num mundo abençoado. Há quem diga que não passa de impressão. Mas essa é uma outra discussão.

Fico abismado – e meus leitores habituais sabem disso – com essa gente que recusa a vacina anticovid. Na Europa, espantosamente, são muitos. É verdade que, no Brasil, são poucos. Felizmente.

Fico boquiaberto com certos cidadãos de miolo mole, em geral apoiadores do capitão, que combatem a liberação da vacina anticovid para crianças. Como é que pode? Levam o filho para tomar vacina contra difteria, tétano, coqueluche, varíola, polio, hepatite B, pneumococos, sarampo, caxumba, rubéola, mas, na hora da vacina contra a maior pandemia que castigou a Terra nos últimos séculos, se afinam. Expõem os próprios filhos – e o resto da família – só pra obedecer à mente doentia do capitão. Não pode ser gente normal.

E tem mais. Não se está impondo nenhuma obrigação de vacinar crianças. O que se propõe é a autorização de vacinar. Ao fim e ao cabo, só vacinará seu filho quem quiser.

Vamos ver como está a situação além-fronteiras. Dia 25 de novembro, a Agência do Medicamento Europeia (que corresponde a nossa Anvisa) autorizou a vacina para crianças na faixa de 5 a 11 anos. Desde então, a Dinamarca e a Áustria já organizaram a campanha de vacina para os pequeninos. Na Alemanha, que é um país federal, como o Brasil, Berlim e a Baviera (Munique) já entraram para o time.

A Hungria – dirigida por Viktor Orbán, colega extremo-direitista de Bolsonaro – vai lançar sua campanha para a vacinação dos 5-11 anos quarta-feira. Na Grécia, os pais de 20 mil pequerruchos já inscreveram os rebentos para a picada, que também começa a partir de quarta-feira.

A Espanha, que está na categoria dos bons alunos no quesito vacinação, também já abriu sua campanha para vacinar os 5-11 anos. Portugal já planificou a imunização dos pequenos: começa esta semana e vai até 13 de março, os de 11 anos primeiro, e pouco a pouco baixando até chegar aos de 5 anos.

A Itália, a Lituânia, a Letônia, a Estônia, a Polônia (dirigida por colegas de Bolsonaro), a Eslováquia, a Tchéquia e a Suíça vão dar partida na campanha de vacinação infantil contra a covid estes próximos dias.

Enquanto isso, no Brasil… nosso respeitado capitão subiu a serra quando ficou sabendo que a Anvisa tinha conferido à criançada o direito de também ser imunizada contra a pandemia. Prometeu publicar, para execração pública, o nome dos diretores e funcionários que autorizaram “essa barbaridade”. O ministro da Saúde Pública, um sabujo interesseiro, repetiu como papagaio o discurso do presidente.

Destoando da covardia que os propósitos absurdos e cruéis de Bolsonaro costumam suscitar, a Anvisa soltou uma nota dura, indignada, inflexível.

Ai, que saudades do tempo em que nossos governantes se empenhavam em amparar os brasileiros, não em os assassinar.

O colete do capitão

O funk do capitão

José Horta Manzano

Em época de bonança e vacas gordas, já é raro ver foto de chefes de Estado em trajes de banho ou de praia. As imagens de Putin, Biden, Macron, Xi Jinping ou Boris Johnson usando roupa de beira-mar são extremamente raras, quase inexistentes.

Quando – pior ainda – o país atravessa uma crise com 620 mil mortos pela pandemia, inflação descontrolada, famílias emigrando às pressas e violência comendo solta, nenhum dirigente civilizado ousaria deixar-se fotografar com pose feliz e descontraída.

Nenhum dirigente? Há uma exceção à regra e, para azar nosso, ela nos diz respeito. Trata-se de nosso presidente, fotografado dois dias atrás dançando funk numa lancha no mar paulista. Proibido, não é: é indecente.

Repare bem na foto, distinto leitor. Verá o capitão valentão rodeado por umas 4 ou 5 pessoas. Diga-me agora qual é a diferença principal entre Bolsonaro e os que o rodeiam?

Exatamente: ele é o único a vestir um colete salva-vidas. O bicho é laranjão, bem visível, vestido displicentemente por cima da camisa, como se  ele estivesse se preparando pra sair à noite no sereno.

Neste ponto, é bom lembrar: o homem que, talvez por não saber nadar, se protege usando o apetrecho é exatamente o mesmo que tratou os brasileiros de ‘maricas’ porque estavam se vacinando pra se proteger contra a covid. Corajoso, eu?

Nota
A imagem não é nítida. Talvez o colete laranjão esconda um dispositivo à prova de balas. Se assim for, continua valendo o que acabo de dizer. Onde está a coragem do valentão que exortou seus conterrâneos a enfrentarem perigo de peito aberto? Era ‘cascata’?

Boric e o avião presidencial

Acabo de falar com Gabriel Boric e dei-lhe os parabéns por seu grande triunfo. A partir de hoje é presidente eleito do Chile e merece nosso inteiro respeito e cooperação construtiva. O Chile, sempre em primeiro lugar.

 

José Horta Manzano

O segundo turno da eleição presidencial chilena, que se desenrolou domingo 19, foi um prenúncio do que, se a sorte nos abandonar de vez, poderá ser o segundo turno da brasileira: uma briga de foice entre esquerda radical e extrema direita, um coquetel de dar suor frio.

O radical de esquerda, que acabou eleito por franca margem (56% contra 44%), será o presidente mais jovem que o país já conheceu: tem 35 anos. Para presidente de uma república, francamente, é bem jovem. Fosse no Brasil, passaria raspando pelas regras constitucionais. Para exercer a presidência, uma das (poucas) exigências entre nós é exatamente a idade mínima de 35 aninhos.

O extremo-direitista, pelo que fiquei sabendo, é filho de imigrantes vindos da Alemanha. Seu pai foi oficial do exército alemão, veterano da Segunda Guerra. Era inscrito no Partido Nacional Socialista (=nazista). Isso não quer dizer muita coisa, visto que a adesão ao partido dominante era praticamente obrigatória naquele tempo; quem não se inscrevesse não conseguia promoção nenhuma, além de ficar malvisto pelos superiores. Mas há que ter sempre em mente que ninguém pode ser responsabilizado por eventuais erros ou ‘malfeitos’ cometidos por antepassados.

O novo presidente se chama Gabriel Boric Font. O sobrenome Boric (que, no original, se escreve Borić, com acento agudo no “c” e se pronuncia Boritch) é de origem croata. Font, o sobrenome materno, é catalão. Os antepassados paternos deixaram a terra natal 135 anos atrás, quando a região de nascimento fazia parte do Império Austro-Húngaro. Emigraram atraídos pela notícia da descoberta de ouro no sul do Chile.

Assim que a apuração dos votos deixou evidente que o vencedor era o candidato de extrema-esquerda Boric, o candidato derrotado, o extremo-direitista Kast, felicitou o vitorioso por telefone e ainda tuitou uma mensagem para deixar tudo bem claro. Com elegância, mostrou não ter sido contaminado pela atitude de negação da realidade à la Trump. Felizmente, nem todos os da extrema-direita têm aquele jeito escrachado. Até o momento em que escrevo, nosso capitão, alheio aos usos civilizados, não cumprimentou o vencedor. Vamos ver como vai se comportar em outubro que vem, quando entrar para o clube dos perdedores.

Algum tempo atrás, Señor Boric, o presidente recém-eleito, tinha feito uma viagem sentimental à Croácia para se encontrar com primos distantes. Na ocasião, tinha sido apresentado a uma certa Zdenka Borić, sua prima em terceiro grau. Em tom de brincadeira, o chileno, que já militava então na política, disse que, se um dia se tornasse presidente da República, mandaria um avião presidencial buscá-la para conhecer o Chile.

Publicado o resultado da eleição chilena, a mídia croata ficou assanhada com a notícia. Não é todo dia que um filho da nação se torna presidente de um país estrangeiro. Foram ao lugarejo de origem, procuraram pelo sobrenome e encontraram a prima que señor Borić havia visitado anos antes. Entrevistada pelo jornal Vecernij (A Tarde), a mulher contou a história. E logo partiu para a cobrança. Com ar sério, emendou que agora vai ficar à espera do avião presidencial. Vamos ver se chega.

Moral da história
Pense duas vezes antes de prometer mandar buscar alguém com o avião presidencial. Lembre-se que ganhar a eleição está ao alcance de qualquer um! Não precisa ser culto, nem inteligente, nem batalhador. Temos um exemplo vivo atualmente no Planalto.

Golpe 2: A opção pelo engano

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Minha “filha” voltou a ligar ontem à noite, pedindo ajuda, depois de tanto tempo. Já tinham se passado vários meses desde sua última investida malsucedida e eu apostava que ela havia aprendido uma lição definitiva: nunca subestime a inteligência da pessoa a quem você pretende enganar, principalmente se ela for bem mais vivida do que você.

Para quem não acompanhou minha desdita quando da primeira tentativa de golpe, relembro: mesmo tendo adivinhado desde o primeiro minuto que se tratava de uma tentativa de extorsão, quando ouvi o apelo choroso de ajuda, algo se mexeu dentro de mim e senti pela primeira vez a necessidade de oferecer escuta terapêutica a uma golpista. Aquela jovem me soava tão convincentemente desorientada que me deixei sensibilizar e optei por permanecer em silêncio, sem recorrer a um discurso moralista igualmente batido, ao longo de todo o telefonema. Funcionou, é verdade, ela desligou sem saber como prosseguir, mas me deixou pensativa quanto ao meu papel na sociedade para proporcionar uma efetiva orientação psicológica aos jovens neste nosso desatinado mundo líquido contemporâneo.

Desta vez, mal ouviu meu alô, ela já emendou aos prantos: “Mãe, me ajuda!”. Respirei fundo e perguntei, como quem não se dá conta do que está acontecendo: “Quem está falando?”. Ela repetiu sem pudor a velha cantilena: “Sou eu, mãe, me ajuda por favor!”. Num ímpeto, misto de surpresa pela ousadia da moça em repetir um golpe tão manjado e de tristeza por a quadrilha ser tão desorganizada, a ponto de não riscar o número dos telefones que “deram ruim”, respondi: “De novo, minha filha???”

Ela desligou instantaneamente. Voltei aos meus afazeres, satisfeita por ter interrompido já no nascedouro mais uma tentativa burra de chantagem, mas de novo não pude deixar de mergulhar em pensamentos sombrios a respeito das dificuldades de maternagem num mundo pandêmico. Meu cérebro voltou a se questionar sem parar: O que leva uma pessoa a optar por ganhar a vida aplicando golpes? Mãe (ou pais) afetivamente ausente na vida real, falta de escola, de um guru espiritual ou de aconselhamento psicológico? Baixa autoestima ou inaceitável falha de caráter? Preguiça mental ou prazer psicopático com o sofrimento alheio? Que homens presos, já sem qualquer esperança de reinserção produtiva na sociedade, recorram a esse expediente talvez seja mais fácil de compreender, mas uma mulher aceitar utilizar seu talento dramático para denunciar e/ou se aproveitar da desigualdade de oportunidades?

Perto dos escândalos políticos que nos acabrunham todos os dias, refleti, isso não é nada. Que direito tenho eu de julgar o ânimo trambiqueiro de mulheres que nem conheço? Que sei eu da vida que essa moça leva? Se ela fosse presa, não seria dispensada de punição pelo juiz sob a alegação de furto famélico? Que tipo de sermão moralizante poderia eu articular se a falta de consciência ética e a insensibilidade social campeiam sem controle entre nós e vêm de cima? Que sei eu de tão fundamental sobre a maternidade (que nunca quis experimentar) para orientar e pretender compensar o desencanto com a vida no coração dessa moça? Aos poucos, o cansaço intelectual bateu e a programação rame-rame da tevê de sábado à noite conseguiu sobrepujar minhas apreensões. Distraí-me e esqueci o assunto.

Por volta da meia noite, o telefone toca de novo. Dessa vez, meu coração pulou no peito, angustiado. Quem será que me liga a essa hora? Só pode ter acontecido algo de ruim com alguém da minha família. Saio correndo para atender. Lá vem de novo a vozinha pretensamente desesperada da minha hipotética filha: “Mãe, preciso da sua ajuda mesmo, mãe… Teve um assalto de novo na minha casa…”

De início, fiquei agradavelmente surpresa por ela ter acrescentado um elemento novo à entediante trama. Dessa vez ela alegava não haver sido pega de surpresa na rua, os marginais que a atacaram haviam invadido sua casa. Que bom, pensei, ela deve ter ouvido meu conselho silencioso de inaugurar uma nova franquia de bandidagem. Mas o entusiasmo durou pouco. Ela mais uma vez não soube como prosseguir diante do meu silêncio. O rancor começou a crescer no meu peito.

O que me incomodava nem era tanto o susto naquela hora incômoda. Era a falta de inteligência e de sagacidade da moça. Para sobreviver na malandragem, pensava eu pela enésima vez, é preciso ter flexibilidade e agilidade mental, prever e se adiantar a uma eventual reação inusitada da vítima, deixar no ar outras deixas que reforcem a credibilidade quanto ao próprio desamparo. E a pessoa que me abordava pela segunda vez no mesmo dia demonstrava não ter avançado um milímetro sequer na direção por mim pretendida. Irritada, usei da voz mais doce que consegui arranjar e disse: “Lamento, filha…Faz o seguinte, meu amor. Da próxima vez que você me ligar, tente inventar novos argumentos. Que falta de criatividade, meu bem! Você não está honrando a tradição da família! Entenda, pela última vez, que eu não tenho filhas….”

Foi o que bastou. Mais uma vez, ela bateu o telefone na minha cara, assustada. Posso apostar que mais alguns meses vão se passar antes que ela ligue de novo. E, se Deus quiser, minha pressuposta herdeira vai então saber fazer jus ao perfil de feminilidade intelectualmente sedutora que eu sempre cultuei. Espero que ela me surpreenda com um discurso parecido com: “Minha senhora, desculpe estar ligando a essa hora. Isto não é um golpe, estou realmente precisando de ajuda. Liguei para a senhora antes de falar com a polícia porque uma amiga comum me garantiu que eu poderia contar com seu bom senso e expertise profissional…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Lições de um profissional

Carlos Brickmann (*)

Bolsonaro e Moro fazem o mesmo tipo de campanha: ambos falam para seus eleitores cativos. Os discursos de Bolsonaro são perfeitos para agradar os bolsomínions: ele continua combatendo vacinas e o uso de máscaras, e defendendo as cloroquinas da vida.

Os de Moro são ótimos para os lavajatistas convencidos de que ele extirpará o maior problema do Brasil, a corrupção. Como explicar que entrou num governo que estava preocupado apenas em salvar a família do chefe? Nenhum dos dois fala em fome, salário e emprego.

Enquanto isso, Lula vai conquistando espaços. Vai para o exterior e é bem recebido, enquanto Bolsonaro enfrenta resistências; diz-se de esquerda sabendo que boa parte dos dirigentes da União Europeia se filia a partidos esquerdistas, mas sem se dar ao trabalho de explicar que a esquerda em nosso continente nada tem a ver com socialistas, trabalhistas e social-democratas da Europa, mas está bem mais próxima de organizações criminosas como a Mafia e a ‘Ndrangheta. Também não perde tempo falando mal da aparência das esposas dos dirigentes europeus. Apresenta-se como o reformista que vai lutar contra a fome. Amazônia? Isso é problema para Bolsonaro explicar.

E, no Brasil, sabendo que a esquerda é monopólio seu, convida Alckmin para vice. Se aceita ou não, tudo bem: ele tentou. E avança numa região que seria de Moro, a de centro-direita. Este colunista nunca votou nem votará em Lula. Mas é um prazer assistir à atuação de um profissional entre amadores.

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

O legado de Bolsonaro

É crescente a demanda de produtos que respeitam a floresta tropical

 

José Horta Manzano

Por certo, Bolsonaro não é o único responsável pela destruição da floresta amazônica brasileira. Desde que o primeiro índio cortou o primeiro cipó, instalou-se a convivência, nem sempre fácil, entre os humanos e a mata.

Até meio século atrás, no entanto, essa coabitação tinha sido pacífica e não-destrutiva. Até os anos 1970, o Brasil tinha outras brenhas a explorar e outros troncos a abater. Foi sob a ditadura que os estrategistas militares, então empoleirados no poder, se deram conta de que havia largos horizontes a explorar na porção norte do país.

A função primeira das Forças Armadas é a defesa do território. Nos gabinetes de Brasília, os responsáveis pela defesa das fronteiras se deram conta de que uma imensa Amazônia desabitada era um ponto frágil na proteção do país. Essa constatação está na raiz de medidas de impulso à colonização, como a construção de estradas (cf. Transamazônica) e da criação da Zona Franca de Manaus.

Nas décadas seguintes, o povoamento da região foi incentivado, o que provocou afluxo de populações provenientes de outras partes do país. Com a redemocratização, o objetivo modificou-se: em vez de defesa do território, a palavra de ordem passou a ser a exploração das riquezas. Pra explorar, é preciso antes desmatar. Daí o prosseguimento do festival de deflorestação a que assistimos há tempos.

O século 21 trouxe ventos novos, que sublinham a importância da manutenção da floresta, componente essencial da regulação do clima no sul do país e no mundo. Começaram a ser feitos levantamentos sobre o avanço do desmate. Aos poucos, a preocupação com a conservação de nosso patrimônio florestal foi ganhando adeptos entre os habitantes.

O problema é que essa consciência ecológica não chegou ao capitão que senta atualmente no trono do Planalto. Se ele fosse apenas indiferente e inoperante com relação à proteção da Amazônia brasileira, o problema não seria tão grave: quando ninguém atrapalha, as coisas acabam se ajeitando. O drama é que o presidente tem se mostrado cúmplice ativo – e até incentivador – do avanço criminoso da destruição de nossa cobertura vegetal.

Dentro de um ano, Bolsonaro, se não for escorraçado antes, estará longe do poder. É, ele se vai, mas o Brasil fica. E o panorama não se apresenta cor-de-rosa. Com sua ostensiva hostilidade a uma abordagem racional e ecológica da floresta, nos conformes com o figurino de nossa época, ele acabou chamando a atenção do planeta. Como consequência de suas palavras e gestos, o mundo acordou para os maus tratos que o Brasil dedica à parte que lhe cabe da maior floresta úmida do globo.

Na semana que se encerra, ficamos sabendo que seis grandes grupos varejistas europeus, entre os quais o Sainsbury’s (segunda rede britânica de hipermercados) e o ramo belga do gigante Carrefour (maior grupo europeu de hipermercados), começaram a restringir a compra de carne bovina brasileira. Essa medida, diretamente ligada ao desmatamento e à destruição dos biomas no Brasil, tende a aumentar com o tempo e com a pressão dos clientes. Essa meia dúzia de redes representam só um começo; o resto virá atrás.

O sucessor de Bolsonaro, seja ele quem for, tem muito trabalho pela frente. Vai ter de convencer os europeus, rapidamente, de que a deflorestação está sendo contida. Mas tem uma coisa: belas palavras não vão resolver. O território nacional está sendo vigiado por satélites que não deixam ninguém mentir. Que ninguém acredite que os grupos de hipermercados fazem essas restrições por virtude. A questão é comercial, uma exigência da clientela.