Rua com nome de mulher

José Horta Manzano

Os que me acompanham sabem que sou radicalmente contrário a todo sistema de quotas. Embora entenda as boas intenções dos que são favoráveis a esse método, acredito que ele é contraproducente. Em vez de oferecer oportunidades iguais, a implantação de quotas acaba por sacramentar desigualdade.

As «reservas de mercado» garantidas a membros deste ou daquele grupo social instituem privilégios que são, no fundo, a exata negação do objetivo perseguido. Decretar que uma porcentagem de determinado grupo social, étnico, racial ou religioso passe à frente dos demais é uma aberração, um contrassenso. Não é possível impulsionar ascensão social por intermédio de um atalho. Cotas são solução simplista para um problema bem mais profundo. É como se o médico administrasse analgésico sem se preocupar com a origem da dor. A foto sai bonita mas dissimula a origem do mal.

Contra certas fatalidades não se pode lutar. Quando a velhice, a doença ou desastres atingem o cidadão e lhe diminuem a capacidade de acertar o passo com os demais, é natural que se lhe facilite a existência. Ceder assento no ônibus a anciãos ou a gestantes, permitir que indivíduos fisicamente diminuídos sejam atendidos com prioridade, proporcionar escolaridade especial a incapacitados físicos ou mentais são práticas meritórias, que devem ser incentivadas.

Reservar quotas em virtude de raça (se é que «raça» tenha algum significado num país colorido como o nosso), de sexo ou de origem pode parecer demonstração de bondade. O quadro é enganoso. A meu ver, agir assim é tapar o sol com peneira. A origem do mal é bem anterior e é lá que deve ser atacada.

Se jovens negros, pardos, vermelhos ou azuis precisam de um jeitinho especial para ter acesso a estudo superior, por exemplo, garantir-lhes um lugar por decreto deixa a amarga impressão de serem menos inteligentes que os demais, o que é insultante e está longe de ser verdadeiro. Como fazer então? O caminho é um só: tratar o mal pela raiz. Investimento pesado em Instrução Pública é o nome do jogo.

Em países adiantados da Europa, não viria à cabeça de ninguém escolarizar os filhos fora da escola pública. Todos recebem a mesma formação. Com o passar dos anos, a seleção se faz naturalmente. Uma pequena parte se encaminhará a estudos superiores, enquanto a maioria se dispersará numa miríade de profissões, conforme o gosto de cada um.

Quando um jovem se interessa em prosseguir estudos aprofundados mas provém de família modesta e sem condições de lhe garantir o sustento, candidata-se a uma bolsa. Se for considerado capaz, o Estado investirá em sua formação.

Faz três meses, no Dia da Mulher, vereadores paulistanos se comprometeram a equilibrar, entre os dois sexos, a quantidade de homenagens da Câmara a pessoas de destaque na história do município. Uma pesquisa indica que 84% dos logradouros levam nome de homens.

E daí? ‒ pergunto eu. «Equilibrar», nesse caso, não faz o menor sentido. Dos 37 presidentes que o Brasil já teve, 36 foram homens. Como fazer pra «equilibrar»? Contando os efetivos, os temporários, os interventores e os suplentes, o município de São Paulo já teve mais de 50 prefeitos, entre os quais apenas duas mulheres. Como fazer pra «equilibrar»?

O pronunciamento dos vereadores é um disparate feito para impressionar a galeria. Melhor mesmo seria evitar dar nome de gente a logradouros, uma impressionante falta de imaginação. Que se dê nome de planta, de árvore, de bicho, de país, de poesia, de episódio histórico, de rio, de estrela, de livro, de objeto. Há um mundo a explorar.

Frase do dia — 334

«Se quiser garantir o futuro do seu filho, mande-o para a advocacia. Com as denúncias expondo um corrupto por minuto, nunca no Brasil os serviços dos advogados foram tão disputados.

Claro, nem todos terão o desafio de defender os indefensáveis ‒ Temer, Lula, Dilma, Aécio, Cunha, Cabral (alguns deles contratam até 20 defensores) ‒, mas sempre lhes sobrará um Renan, uma Gleisi, um Palocci, também suculentos.»

Ruy Castro (1948-), escritor, biógrafo, jornalista e colunista.

O poder das analogias

Myrthes Suplicy Vieira (*)

A primeira vez que me dei conta da profunda sabedoria contida numa analogia ela veio envolta na saborosa e rústica forma de falar nordestina. Eu estava em Recife, coordenando um treinamento para a equipe de vendas da região. Fizemos uma pausa no meio da tarde para um café. Eu conversava com um dos participantes, que parecia empolgado com as propostas introduzidas na parte da manhã.

Ele mastigava descontraidamente uma bolacha cream-cracker enquanto me ouvia tecer considerações sobre o que viria a seguir. De repente, notei que ele fazia caretas de desagrado e, intrigada, perguntei o que o estava incomodando. Com um meio sorriso nos lábios, ele respondeu: “Não tem nada a ver com o treinamento, não. É esta bolacha… isto aqui é como dançar com irmã.” Sem entender aonde ele queria chegar, voltei a questionar: “Como assim?”. Ele retrucou de pronto, com um ar entre sério e safado: “Não tem gosto de nada!”

O poder de uma analogia reside exatamente no fato de que, ao se estabelecer uma conexão inesperada entre duas experiências díspares, vem à tona um traço fundamental do caráter de um produto/marca, de uma situação ou de uma pessoa, capaz de distingui-los de forma criativa de outros do mesmo segmento.

A pesquisa de mercado e a comunicação publicitária valem-se seguidamente desse recurso, já que não é preciso fazer nenhum esforço consciente para apreender qual é o benefício único do produto/marca que está sendo apresentado. Ao contrário, ele surge como uma espécie de revelação de algo que já se sabia, mas que ainda não havia sido colocado em palavras por ninguém. Graças a isso, o traço de união revelado adquire quase imediatamente o sentido de “verdade” para todos aqueles que partilham da mesma opinião.

Muitos devem se lembrar, por exemplo, de uma propaganda que já completou mais de vinte anos, cuja assinatura é usada até hoje como mote para fazer referência ao padrão de qualidade de alguma coisa, seja um produto/marca, situação ou pessoa: “Não é nenhuma Brastemp…”

Cansada do clima de mal-estar político e sem ver solução de curto prazo para pôr fim à agonia ética em que patinamos todos, resolvi me encher de coragem e propor aos que me leem um jogo de analogias. Para tornar o jogo mais palatável, não serão utilizados nomes de possíveis candidatos, filiações partidárias ou orientações ideológicas. Também não será levado em consideração o sistema de governo que cada um considera o mais adequado para o futuro.

O jogo é o seguinte: Imagine que a saída para boa parte dos males do país está nas mãos de uma única pessoa. Estabeleça agora uma analogia entre esse personagem e cada uma das categorias abaixo. Quando terminar, revise sua lista e identifique os motivos que o levaram a associar uma coisa à outra.

Se essa pessoa fosse:

   •  Um animal

   •  Uma ferramenta (manual ou aplicativo eletrônico)

   •  Uma música (ou gênero musical)

   •  Uma comida

Se lhe ocorrer alguma outra categoria que lhe pareça mais significativa para ressaltar a personalidade dessa espécie de “salvador da pátria” [no sentido de alguém capaz de abrir novos caminhos], não hesite em utilizá-la também. Mas atenção: o jogo tem de ser divertido e espontâneo. Registre sempre a primeira ideia que lhe passar pela cabeça, evitando o máximo que puder a autocensura, ou seja: não se importe se a ideia lhe parecer ridícula, sem sentido ou exagerada. Lembre-se sempre que não há respostas certas ou erradas.

Caso sejamos bem-sucedidos e consigamos reunir sugestões inovadoras e bem-humoradas, comprometo-me desde já a analisar os resultados e elaborar um resumo das principais características do futuro da nação com que sonhamos.

Agradeço de antemão a todos que se deixarem sensibilizar com minha proposta.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Florão da América

José Horta Manzano

Querem uma prova de como a gente sai formatado da escola? Aprendemos todos que, em 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. E aprendemos também que oito anos antes, em 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo tinha descoberto a América.

Fatos excludentes não podem coexistir. Se um for verdadeiro, o outro não o será. Se a América já tinha sido ‘descoberta’, o Brasil não podia usufruir de descobertazinha particular, só pra ele. A não ser que não faça parte da América. E vice-versa. Se o Brasil foi realmente descoberto em 1500, a descoberta do genovês Colombo se restringiu à Ilha Hispaniola, que abriga hoje o Haiti e a República Dominicana. Portanto, não se lhe deve atribuir o achamento da América.

Não me recordo que alguém tenha apontado essa flagrante incongruência nas aulas de História de então. Foi só alguns anos depois que a contradição me pareceu evidente. Já era tarde demais pra questionar a professora. Ignoro se a perspicácia dos estudantes de hoje é mais aguda.

Na segunda série do antigo ginásio ‒ que mudou de nome e hoje corresponde ao sexto ano de estudo ‒ o ensino da História era dividido em duas matérias, lecionadas por professores diferentes. Um dava História Geral enquanto outro ensinava História da América. Nas aulas de um, dava-se uma perpassada na história da civilização europeia e médio-oriental, dos Sumérios à Revolução Francesa. Nas do outro, adquiria-se uma visão geral do Novo Mundo, que começava com os ameríndios, passava por Colombo, pelos peregrinos do Mayflower, mencionava as façanhas de Bolívar e de San Martín, mostrava pinceladas da Guerra de Secessão e chegava até a independência de Cuba, última colônia ibérica na América.

Naquela época, enxergávamos a América como um todo do qual o Brasil fazia parte. Aliás, está aí nosso hino que eleva o país ao pedestal de «florão da América»(*). De uns decênios pra cá, a noção tem-se esvaído. Embora não tenha sido o iniciador dessa tendência, o lulopetismo deu-lhe boa acelerada. Em virtude de virtual amputação, a América desmembrou-se entre América Latina e as antigas colônias britânicas do norte. Antigas possessões francesas e holandesas ficaram no meio do caminho, sem estatuto definido.

Ficou esquisito. De um lado, temos hoje a América Latina, formada essencialmente pelas terras colonizadas pelos ibéricos. De outro, a América (tout court, sem adjetivo), formada pelas ex-colônias inglesas. A gente fica sem entender por que isso foi feito. Será por ideologia? Mas… de que ideologia estamos tratando? Será por rejeição da língua inglesa? Mas… se é a primeira língua que todo latino-americano anseia aprender. Será por afinidade? Mas… por que o Brasil estaria mais afinado com Honduras e com a República Dominicana do que com os EUA ou com o Canadá?

Um doce pra quem apontar a razão dessa bizarrice.

(*) No sentido próprio, florão é o ornamento em forma de flor que se destaca na fachada de catedrais góticas. O termo é mais usado em sentido figurado ‒ como em nosso hino ‒ com o significado de joia, coisa preciosa. Portanto, florão da América = joia da América.

Esses genros que atravancam

José Horta Manzano

Desde que foi eleito, Mr. Trump coleciona apuros. Estes dias, apareceu mais um. Parece mais sério que os de costume. Não tenho certeza de que o presidente maroto conseguirá resolvê-lo com um muxoxo e dois tuítes.

Mr. Trump tem um genro. Como tantos já fizeram, nomeou o rapaz para o cargo de «assessor especial». Até aí, nada de inusitado. O chato é que o moço andou tecendo liames um tanto suspeitos com altas autoridades russas. As relações promíscuas têm provocado rebuliço na mídia investigativa do país. Seria irônico se o presidente fosse abalado não pelas provocações que faz mas pelas estrepolias do genro.

Isso me lembrou o que aconteceu na Terceira República francesa, no fim do século 19. Fazia já oito anos que o presidente era Jules Grévy. Estava no segundo mandato quando estourou o escândalo que o derrubaria. O presidente tinha um genro. O moço era deputado. Embora não fosse «assessor especial», mantinha, por laços familiares, proximidade com o mandatário-mor.

Aproveitando-se das boas relações, o genro montou um esquema de venda de condecorações, honrarias pra lá de cobiçadas. Com a ajuda de cúmplices, entre os quais um general, propunha ao presidente ‒ que não desconfiava de nada ‒ a outorga de medalhas de honra, principalmente a Légion d’honneur, distinção ambicionada por muita gente. O preço variava conforme as posses do pretendente, podendo chegar a cem mil francos, valor considerável para a época.

Milhares de condecorações foram atribuídas por intercessão do genro. O detalhe picante é que as tratativas eram geralmente levadas a cabo em bordéis de luxo frequentados por homens da alta burguesia. Por sinal, o escândalo estourou justamente em consequência da delação de uma antiga profissional do sexo.

O sucedido foi amplamente repercutido pela imprensa. O presidente tornou-se o alvo preferido da imprensa satírica. O assunto dominou as conversas de salão. O caso assumiu proporções tais que o presidente não teve outra saída senão renunciar ao cargo.

by Emmanuel “Caran d’Ache” Poiré (1858-1909), caricaturista francês

O genro, verdadeiro autor da falcatrua, foi acusado e condenado por prevaricação. Entrou com recurso contestando a acusação. De fato, prevaricação é nome que se dá a crime cometido por funcionário público. Deputado eleito pelo povo não é funcionário. Portanto, o rapaz não podia ser condenado por prevaricação, um crime que não tinha cometido. Por esse vício de forma, conseguiu anulação do processo. Reelegeu-se para a legislatura seguinte e voltou ao Congresso enquanto o sogro caía no ostracismo.

Na trilha desse ocorrido, foi introduzida na legislação francesa nova modalidade de crime: o tráfico de influência, noção até então ausente do arcabouço legal. O artigo 332 do Código Penal brasileiro inclui o tráfico de influência entre os crimes punidos com pena de prisão, o que não impede que seja amplamente praticado. Inclusive por gente que já ocupou função pra lá de elevada, se é que me entendem.

Hora de desenguiçar

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 maio 2017.

Há momentos em que um articulista se sente desamparado. Como o distinto leitor há de imaginar, artigos são escritos com antecedência. Entre a escrita e a publicação, podem correr três, quatro, cinco dias. Em tempos normais, a defasagem passa despercebida. Já no instante atual, a coisa anda mais complicada. Jornal impresso durante a noite já chega às bancas desatualizado. Comentário político ou econômico feito de manhã já perdeu a validade à tarde. Antigamente tudo era melhor? Conforme a gente envelhece, tende a achar que sim. Mas a honestidade nos força a reconhecer que o diagnóstico é mambembe. Vem poluído pela saudade da juventude perdida, fator que distorce o julgamento.

No momento em que escrevo, nosso presidente ainda é doutor Temer, sempre firme no trono. O STF e seus onze ministros ainda estão de pé, o regime republicano presidencialista bicameral ainda vigora e os generais parecem tranquilos na caserna. No entanto, ninguém é capaz de garantir que, quando o leitor abrir o jornal, a situação ainda seja a mesma. O turbilhão de escândalos que tem assolado o país não respeita semana inglesa. Revelações escabrosas surgem da segunda ao domingo, sem trégua, de manhã, de tarde, de noite e de madrugada. Daqui a alguns dias, mais algum governador, deputado ou senador pode ter sido encarcerado. Ou não. Francamente, antigamente era melhor. Se não melhor, menos frenético.

As travessuras do andar de cima neste começo de século 21 foram tão ousadas que esticaram a corda de nossas instituições. E de nossa paciência também. Nosso exuberante arsenal legal não consegue abarcar as façanhas e artimanhas que se desvendam a cada instante. Chegamos ao ponto em que remendos e michelins não dão mais conta de desenguiçar o país. Está mais que na hora de repensar a estrutura do Estado. Se não tiver sido feito antes, será ajuizado que o presidente eleito em 2018 inclua na pauta a convocação de assembleia constituinte.

Nossas mazelas são incontáveis, mas uma sobressai: a desigualdade entre cidadãos. Distribuir bolsas a determinados grupos de população enquanto, na outra ponta, uma quadrilha se locupleta com o dinheiro dos contribuintes é pura hipocrisia. Não faz senão alargar o fosso social enquanto martela na tecla do «nós contra eles». Por que não tomar exemplo além-fronteiras? Se, até hoje, não conseguimos resolver certas enfermidades crônicas, vale a pena dar uma espiada em soluções estrangeiras.

Faz poucas semanas, Monsieur Macron foi eleito presidente da França. Com 66% dos votos, saliente-se. O moço é novato em cargos eletivos. Seu inexistente passado político, longe de significar um estorvo, dá-lhe a considerável vantagem de não guardar esqueletos no armário. Durante a campanha eleitoral, os adversários esmiuçaram a vida do candidato sem encontrar nada que o desabonasse. O novo presidente, de quem pouca gente tinha ouvido falar até um ano atrás, chega descompromissado. Não consta que tenha recebido «doações» nem que se tenha empenhado junto a grupos econômicos.

Demorou para escolher o ministério para ter certeza de não nomear gente enrolada com a justiça. Até atestado de antecedentes foi exigido de cada um. Já declarou que a primeira-dama, que nunca passou de simples moradora informal do palácio presidencial, terá um estatuto, uma função, um orçamento, mas não receberá salário. Caiu bem. Cortou pela metade o número de ministérios. Dos 39 existentes, sobraram 18. Caiu melhor ainda. Para eliminar o profissionalismo na política, mostra-se favorável ao limite máximo de dois mandatos consecutivos. A regra valerá tanto para parlamentares quanto para ele mesmo. Nomeação de parentes deverá ser banida. Velhas figurinhas carimbadas da política francesa não aplaudiram mas, entre os cidadãos comuns, caiu superbem.

No Brasil, as coisas são um pouco mais complicadas. Não se mudam costumes arraigados sem que se alevante grita indignada. Para passar o país a limpo, resta a convocação de assembleia constituinte. É condição sine qua non que uma parte dos membros seja eleita pelo povo enquanto outra parte será formada por intelectuais, juristas, historiadores, sociólogos, geógrafos, figurões das ciências, das artes e da sociedade. Para coroar o todo, podemos esperar que o próximo presidente seja político novo, bem-intencionado e sem folha corrida. Que tal? Não custa sonhar.

No nome da cunhada

José Horta Manzano

Uma vez comprei um apartamento no Brasil. Comprar é modo de dizer. Dei pequena entrada e assumi dívida junto ao BNH, o Banco Nacional da Habitação, instituição extinta já faz mais de trinta anos. Na verdade, tornei-me inquilino do banco. Dois ou três anos depois da aquisição, vendi o apê e passei a morar de aluguel. Sem mágoas.

Minha experiência em transações imobiliárias no Brasil é, portanto, limitada e seguramente defasada. De lá pra cá, todos os cidadãos ganharam CPF e o mundo se interligou. Escrituras que se faziam lentamente à mão são hoje executadas por computador em fração de segundo.

Mas esse avanço na modernidade parece ter sido assimétrico. Enquanto redes sociais espalham qualquer notícia em instantes, certas informações continuam sendo processadas como no século 19, pelo menos no Brasil. Transações imobiliárias, por exemplo.

Na Europa ‒ pelo menos nos países do centro e do norte ‒ não viria à cabeça de ninguém passar uma escritura por valor diferente do montante real da transação. Se pagou cem mil, registra por cem mil. Se pagou um milhão, registra por um milhão. Quem trapacear e for apanhado vai parar na cadeia.

E como é que se faz a transação? O comprador não paga diretamente ao vendedor. É obrigatório passar pelo notário, profissional cuja função é intermediar o negócio e se encarregar de toda a burocracia. O comprador deposita o valor da entrada na conta do notário. Por sua vez, o banco financiador deposita o restante do valor do imóvel na mesma conta.

No dia da assinatura, vendedor e comprador se encontram no escritório do notário que, nesta altura, já terá recebido a totalidade dos fundos. Assinada a papelada, o vendedor recebe um cheque do notário com o valor total do bem vendido. O notário, por sua vez, vai-se encarregar do recolhimento dos impostos e de inscrever a transação junto ao registro de imóveis.

No Brasil, esse detalhe da modernidade ainda não foi adotado. Pelo que se tem visto, os que fazem as leis não querem saber de reforçar o controle sobre compra e venda de imóveis. São os primeiros interessados em deixar tudo como está.

Assim mesmo, ainda que o valor registrado seja inferior ao real, fico me perguntando como fazem os grandes corruptos para lavar, no mercado imobiliário, o dinheiro indevidamente recebido. Volta e meia, ouve-se que fulano tinha posto os bens no nome da cunhada, do motorista, do filho, do primo torto. Como assim?

A Receita Federal, que tem o controle dos dinheiros de cada cidadão, dispõe de meios suficientes para cruzar dados e constatar que o primo torto não tem condições financeiras para ser proprietário de imóvel nenhum. Como é que deixam passar? Como é possível que um indivíduo cujo patrimônio cresce da noite para o dia não seja chamado a dar explicações? Para mim, é um mistério. Se alguém souber, suas luzes serão bem-vindas.

Força do hábito

José Horta Manzano

O estagiário, que há de ter crescido com celular no bolso e computador diante dos olhos, escorregou na hora de dar título à chamada.

Configuram-se (e desconfiguram-se) celulares e computadores. PEC (proposta de emenda constitucional) não é telefone nem aplicativo.

Chamada Estadão, 25 maio 2017

Para descrever manobra parlamentar que, com boas ou más intenções, adultera uma PEC, usa-se o verbo DESFIGURAR.

Então, ficamos combinados. Quem elimina todos os aplicativos DESCONFIGURA o telefone. Quem elimina ou modifica artigos de uma PEC ou acrescenta “jabutis” a ela DESFIGURA a proposta.

E o deserto se povoou

José Horta Manzano

«Não tenhamos dúvida de que o maior perigo de Brasília, situada em zona despovoada, será a ausência de opinião pública como elemento de orientação dos governantes. Sem vigilância, ou apenas vigiados de longe, governantes e legisladores vão pensar de preferência em si mesmos, nos seus bons negócios, em tirar rapidamente o máximo de vantagens em seu exílio no deserto.»

Austregésilo de Athayde (1898-1994), escritor e jornalista pernambucano.

A frase premonitória foi publicada num jornal carioca em janeiro de 1957. Nascido no longínquo século 19, o acadêmico sabia das coisas. Naquela segunda metade da década de 1950, o Brasil estava em efervescência. Com a morte de Getúlio e a ascensão ‒ pelo voto ‒ de Juscelino Kubitschek, o caminho da democracia e do progresso parecia aberto. O país olhava pra frente e uma vida melhor parecia ao alcance de todos.

A construção de Brasília tinha sido decidida. Os primeiros candangos respiravam nuvens de poeira vermelha no inóspito Planalto Central. Poucos pressentiram, como o acadêmico pernambucano, que o afastamento do centro do poder acabaria abrindo um fosso entre governantes e governados. Poucos ligaram uma coisa à outra. «De toda maneira» ‒ imaginava-se ‒ «o Rio de Janeiro vai estar a uma hora de viagem da nova capital. É pouca coisa.»

De fato, é pouca coisa para quem viaja. Mas é distância suficiente para a cúpula do poder se afastar do quotidiano e da vida real. Dito e feito. Durante meio século, enquanto Brasília se espalhava além do Plano Piloto e crescia desordenadamente, o Brasil real continuava longe do poder. O pessoal do andar de cima, dispensado de dar satisfações, deitou e rolou. Como previra Athayde, os que lá estavam pensaram «de preferência em si mesmos, nos seus bons negócios, em tirar rapidamente o máximo de vantagens».

Não há mal que sempre dure. Diante das imagens violentas e chocantes tomadas ontem na capital federal, o Brasil se horrorizou. Mas nem tudo é tão negativo. Embora estejamos perplexos com a cinquentena de manifestantes feridos, que nos fazem lembrar do desastre venezuelano, temos de reconhecer que algo mudou.

A zona «despovoada e desprovida de opinião pública» perdeu-se na poeira vermelha do passado. Parlamentares, ministros e todos os figurões que se refestelevam tranquilos nos ermos da Novacap até há poucos anos perderam definitivamente o sossego. Foram alcançados pelo Brasil. Ao pôr os pés fora de sua mansão à beira do lago, encontram gente que os reconhece, que os aplaude ou, o mais das vezes, que os hostiliza.

Pouco importa o mérito da questão, pouco importa se doutor Temer deve ficar ou sair. Que ele continue mais alguns dias, semanas ou meses, tanto faz. O ponto é outro. A boa notícia é que Brasília deixou de ser refúgio tranquilo e afastado do populacho. Os políticos não vivem mais debaixo de uma redoma. Brasília provou que entrou para o circuito de capitais onde o coração do Brasil palpita. O deserto se povoou.

Se fôssemos espertos

Ruy Castro (*)

Comecei a suspeitar de algo errado com a educação no Brasil quando uma de minhas filhas, matriculada num colégio “experimental” do Rio em fins dos anos 70, chegou aos oito anos sem ser alfabetizada. Em troca, subia e descia de árvores com uma destreza de Jane do Tarzan. Seu colégio dava grande importância a essa disciplina e, não por acaso, o pátio parecia uma miniatura da Mata Atlântica.

Desde então, nosso sistema de ensino vem procurando novas fórmulas com as quais preparar os garotos. Uma delas propôs – e conseguiu – extinguir do currículo o Latim, talvez por ele não figurar entre as línguas oficiais da Disney World. Outra postulou o desaparecimento da Geografia, sob a alegação de que era inútil saber, digamos, os afluentes do rio Amazonas – para que decorar a resposta a uma pergunta que jamais lhes seria feita?

Mas isso foi então. Nos últimos 15 anos, voltamos aos conteúdos, só que para tentar inverter o polo da história – diminuindo a presença do opressor europeu e enfatizando a dos nossos indígenas e africanos. Com isso, menos Estácio de Sá e D. Pedro I, por exemplo, e mais Zumbi dos Palmares e o cacique Arariboia. Muito justo – mas o que faremos com o Aleijadinho, Chiquinha Gonzaga, Machado de Assis, Lima Barreto, Di Cavalcanti, Mario de Andrade, Elizeth Cardoso, Ademir da Guia, Taís Araújo e a torcida do Flamengo, todos com algum branco descascado na composição?

Enquanto no Brasil discutimos ideologia, Portugal há anos começou a privilegiar o ensino de Português e Matemática em suas escolas. Sem ler ou escrever direito, ninguém chegará à História e à Filosofia. E sem uma forte base Matemática, ninguém dará para a saída no mundo cibernético. Os portugueses começam a colher os frutos dessa política.

Se fôssemos espertos, já os estaríamos copiando.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Corrupção até debaixo d’água

José Horta Manzano

A Justiça francesa é menos tagarela que a brasileira. Mais prudente e menos dada a estrelismo, costuma trabalhar na surdina. Assim mesmo, vez por outra, alguma informação escapa e chega à mídia.

Em 20 de maio, o diário Le Parisien contou que o Parquet national financier (setor do Judiciário francês especializado em crimes financeiros) está, desde outubro do ano passado, investigando as condições que levaram à conclusão do compromisso de venda de cinco submarinos ao Brasil. O contrato de 6,7 bilhões de euros ‒ montante «faraônico» segundo o jornal ‒ foi acertado em 2009 entre o Lula e Monsieur Sarkozy, então presidente da França. Inclui até um submarino a propulsão nuclear.

Submarino francês de classe Scorpène

O inquérito aberto pela Justiça francesa investiga atos de «corrupção de agentes estrangeiros». Procura-se descobrir se propinas não teriam sido pagas para conseguir que o Brasil assinasse o contrato.

Na semana de 15 de maio, Madame Eliane Houlette, procuradora da justiça financeira da França, esteve de visita ao Brasil, acompanhada de sua equipe, para trocar ideias e informações com seus colegas nacionais. Por enquanto, nenhuma informação sobre o conteúdo das conversações veio a público.

Sabe-se que o Parquet national financier investiga também corrupção que poderia ter manchado a atribuição dos Jogos Olímpicos de 2016 ao Rio de Janeiro. O Japão, que era igualmente candidato a sediar as Olimpíadas, denunciou a França por ter agido como lobista da candidatura carioca. É que, por inacreditável acaso, os JOs foram atribuídos ao Brasil no momento em que era firmado o contrato de venda dos submarinos. Coincidência assombrosa, não é?

Os procuradores franceses desconfiam de escabrosas conexões entre os dois fatos. Quanto a nós, escaldados pela Lava a Jato, vamos além da desconfiança: já estamos na quase-certeza. No Brasil, em matéria de corrupção, não precisa cavoucar muito fundo pra encontrar.

Nós, os touros e as rãs

Dad Squarisi (*)

Que país é este? Ninguém sabe com certeza. O andar de cima está em apuros. Presidente, senadores, deputados, empresários & cia. sem fim estão afundados num mar de corrupção. Alguém escapa? A impressão que se tem é que entrou em cartaz velha história cuja ideia central pode ser esta: «Se procurar, acha». Ou talvez esta: «Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come».

Alguns acham bom. Comemoram. Com os olhos no próprio umbigo, pensam não ter nada a perder. Outros se preocupam. Pensam no futuro de filhos e netos. Lembram, a propósito, a fábula Os touros e as rãs. Conhece?

A fábula
Dois touros vizinhos se desentenderam. Um xingou o outro, xingou a mãe do outro, xingou a vó do outro. Resultado: sem diálogo, ambos partiram pra luta. Patas e chifres entraram em ação. Foi um deus nos acuda.

Uma rã velha e sabida que vivia por perto olhava a briga com preocupação. Rãzinhas, ao contrário, se divertiam com a briga dos titãs. Ora torciam pra um. Ora pra outro. Uma delas percebeu o pânico da rãzona. Curiosa, perguntou:

‒ O que houve? Por que você está triste?

Eis a resposta:

‒ O touro que perder a luta será expulso do pasto. Virá pra cá. Nós vamos pagar a conta de uma luta que não é nossa.

Não deu outra. O derrotado foi para o brejo. Todos os dias dava uma voltinha pelas redondezas. Na caminhada, esmagava montões de rãzinhas com as patas.

A moral da história tem a ver com a realidade verde-amarela. Quando os poderosos brigam, os mais fracos pagam o pato. Quem? Eu, tu, ele.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. Edita o Blog da Dad.

Perguntar não ofende ‒ 4

José Horta Manzano

O mais recente escândalo que sacode o país, protagonizado por doutor Temer e um senhor de sobrenome pio(*) e nome simplório, tem dado que falar. Cai o presidente? Renuncia? Permanece? É apeado?

Enquanto todas as atenções se voltam para a tormenta que desaba sobre o presidente em exercício, o bilionário de nome esquisito passa dias tranquilos passeando em Nova York.

Foto: Adriana Spaca

Especialistas estão periciando a gravação que serviu de salvo-conduto ao moço de nome bizarro e lhe valeu permanecer em liberdade apesar de ter subornado centenas de parlamentares.

Agora vem a pergunta. Caso venha a ser comprovado que o corruptor manipulou e falseou a gravação, como fica o acordo de leniência? O favorecido continuará leve, livre e solto apesar da trapaça? A Justiça não reagirá ao engodo, anulando imediatamente o acordo e expedindo ordem de prisão contra o defraudador?

Nos EUA, com ordem de captura expedida pela Interpol, o moço não irá muito longe. Por mim, podem até julgá-lo e encarcerá-lo por lá mesmo. Já temos meliantes suficientes em território nacional.

(*) Batista e seus correlatos (batismo, batizar e outros) descendem da raiz grega baptízein (= báptein), que significa imergir, mergulhar. O termo foi escolhido para designar os que se submetiam à cerimônia de batismo por imersão total na água, prática adotada em determinadas religiões.

Hermenêutica

Myrthes Suplicy Vieira (*)

É comovente, enternecedor mesmo, o esforço que nossos dirigentes fazem para que seus pronunciamentos, em especial quando feitos em momentos de grave crise institucional, sejam perfeitamente compreendidos pela população ignara. Sabem eles que, desacostumado aos matizes semânticos do linguajar culto que, por força da dignidade do cargo, seus líderes são obrigados a utilizar, o brasileiro comum pode não captar o cerne de raciocínios tão complexos.

Compreendo agora por qual razão alguns deputados federais pelejaram tanto na calada da noite para incluir, no projeto de lei que regulamenta o abuso de autoridade, os excessos na interpretação da lei por parte de procuradores e ministros da Suprema Corte.

Não bastasse ter sido a senhora ex-presidente forçada a convocar uma coletiva de imprensa para esclarecer em definitivo que a nomeação de outro famoso ex-presidente para a Casa Civil nunca teve por objetivo blindá-lo contra possível prisão, como opositores golpistas maldosos insistiam em apregoar, acabamos de ser brindados com nova aula magna de interpretação de textos por nosso estimado presidente em exercício.

Jurista que é, não escapa à atenção de nossa autoridade executiva máxima a importância e o valor da hermenêutica. Segundo reza o dicionário Michaelis, hermenêutica é:

•   Conjunto de preceitos e/ou técnicas para a interpretação de textos religiosos e filosóficos, especialmente dos textos sagrados;

•   Conjunto de elementos para a interpretação dos signos linguísticos (no sentido da semiologia);

•   Conjunto de princípios para a interpretação do texto legal (no sentido jurídico);

•   Interpretação do sentido das palavras.

Grifo a última acepção, já que foi apoiado nela que nosso ilibado jurisconsulto erigiu seu raciocínio no pronunciamento que fez neste sábado à tarde. Como lembrou com pertinência ele, sua anuência (“tem que manter isso, viu?“) não estava vinculada ao pagamento de quaisquer quantias para garantir o silêncio de um ex-deputado, como matreiramente o delator quis fazer crer, mas simplesmente ao argumento de manutenção de uma relação de cordialidade (“eu estava de boa com o Eduardo”).

Comentava-se à boca pequena que, antes do primeiro pronunciamento, sua excelência pretendia alegar que só havia dado seu aval à operação de liquidação das “dívidas” com o ex-presidente da Câmara por tê-la interpretado como um “gesto humanitário” de um empresário para socorrer uma família em apuros financeiros, uma vez que todos os seus bens haviam sido bloqueados pela justiça.

Não há de ter faltado aconselhamento jurídico e político para que ele desistisse de se valer desse recurso retórico. Deve estar ainda viva na memória de vários cidadãos que um ex-senador e ex-ministro do governo anterior já havia utilizado esse argumento em outro processo por compra do silêncio de um investigado na Operação Lava a Jato, com resultados para lá de devastadores tanto para o partido quanto para o governo. Optou-se, portanto, por deixar implícito que tudo não passou de uma edição ardilosa do áudio para gerar suspeitas quanto à honorabilidade do presidente e, dessa forma, dificultar a votação das reformas que vão reconduzir a economia do país a seus trilhos.

Referindo-se a outro trecho – um tanto mais delicado e gerador de muita controvérsia ‒ da conversa gravada, em que se limitou a comentar “ótimo” depois de ouvir o empresário delator afirmar estar “segurando” dois juízes e obtendo informações privilegiadas de um procurador da República, nosso líder nos contemplou com um exercício de hermenêutica ainda mais brilhantemente avassalador: “Não reagi”, disse ele, “porque não acreditei no que ele dizia. Ele é um falastrão…”

Quanto destemor e quanta maestria no manejo das palavras, meu Deus! Como acreditar que um homem culto e instruído tenha se utilizado de linguajar “chulo” durante uma conversa não-republicana? Como duvidar de seu anseio de servir à pátria, mesmo que, para isso, seja preciso enfrentar calúnias e contínuas ciladas armadas por inimigos políticos?

Sinto-me duplamente envergonhada, senhor presidente. Por não ter o seu talento para a hermenêutica e por ter, ainda que por poucos minutos, duvidado de suas reais intenções. Aceite, por favor, meu pedido constrangido de perdão. Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil!

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Discurso falsificado

José Horta Manzano

Em visita aos Estados Unidos, Sir Winston Churchill pronunciou um discurso no qual cunhou uma expressão que definiria a divisão político-militar do planeta pelos quarenta anos seguintes. A fala pronunciada em 5 de março de 1946 no Westminster College (Fulton, Missouri) entraria para a história como «The Iron Curtain Speech» ‒ o Discurso da Cortina de Ferro.

“From Stettin in the Baltic to Trieste in the Adriatic an “iron curtain” has descended across the continent.” ‒ de Stettin, no Mar Báltico a Trieste, no Mar Adriático, uma cortina de ferro baixou sobre o continente. Tinha razão o velho inglês. A divisão marcou o destino dos países que ficaram de cada lado. Enquanto os ‘do lado de cá’, abertos e livres, progrediam, os ‘do lado de lá’ empacaram. Dizia-se jocosamente que, na Europa Oriental daqueles tempos, tudo era proibido, até mesmo o que era permitido.

Cardeal Mindszenty

Países como a Polônia e a Hungria, que ousaram, ainda que timidamente, afrontar a dominação absoluta de Moscou, pagaram caro pelo destemor. Na Polônia, povoada de católicos fervorosos, a religião foi reprimida e o cardeal Wyszyński, primaz do país, encarcerado por três anos. Procissões e manifestações religiosas foram proibidas. O povo não baixou a cabeça. Desafiou o regime que, com o passar dos anos, cedeu passo a passo até cair definitivamente em 1990.

Na Hungria, o porta-bandeira foi o cardeal József Mindszenty. Batalhador desde a juventude, já tinha sido encarcerado por rebeldia aos vinte e poucos anos. Em 1944, em plena vigência do regime fascista, repeteco: o homem foi forçado a nova passagem pela prisão.

Terminada a guerra, instalou-se o regime comunista com sua proverbial aversão a toda prática religiosa. Em 1948, o cardeal Mindszenty, acusado de traição e desrespeito às leis do novo regime, foi condenado à prisão perpétua. Permaneceu atrás das grades até ser libertado por ocasião da insurreição de 1956, aquela que trouxe esperança ao país até ser esmagada pelo exército vermelho.

Durante esse breve período de liberdade, o prelado se dirigiu à rádio estatal para pronunciar discurso favorável à revolta popular. Como a revolução acabou dando com os burros n’água, o regime comunista se manteve firme. As autoridades puseram-se então à cata do cardeal para levá-lo de volta à cadeia. Por um fio, o eclesiástico conseguiu escapar. Refugiou-se na embaixada dos EUA em Budapeste.

Permaneceu 15 anos trancafiado no edifício. Durante esse período, as autoridades comunistas publicaram uma versão falsificada do áudio do discurso de 1956 ‒ uma falsificação assaz grosseira, cheia de cortes, mas suficiente para impressionar as massas. Um compromisso só foi alcançado em 1971, quando o prelado foi autorizado a deixar o país para exilar-se em Viena, onde viveu o resto de seus dias sem poder retornar à terra natal.

O recente escândalo de falsificação de gravação de conversa entre o presidente da República brasileira e poderoso empresário me fez lembrar o episódio húngaro. Quem diria que, sessenta anos depois, o mesmos procedimentos ainda seriam utilizados. Apesar da evolução das técnicas de gravação, o estratagema de adulterar declarações continua na ordem do dia.

Felizmente, a mentira, ontem como hoje, tem perna curta. Mais dia, menos dia, todo trambique acaba desmascarado. O lado negativo é que, apesar da descoberta da fraude, a mensagem fica desconexa. Ninguém é capaz de distinguir entre o que foi realmente dito e o que foi editado.

Da inutilidade do vice

José Horta Manzano

Das trevas nasce a luz, taí uma evidência. A crise monstruosa que assola o Brasil dá margem a análises contraditórias. Pessimistas podem observar os acontecimentos, espernear, reclamar, acusar e, no final, contentar-se com um remendo aqui, uma medida urgente ali, um «deixa pra lá» e pronto. As labaredas se apagarão, mas as brasas continuarão ardendo por debaixo das cinzas para reavivar-se amanhã, mais fortes ainda. E toda a balbúrdia tomará conta do país exatamente como antes.

É difícil ser otimista neste momento, mas a única saída que nos resta é manter a cabeça fria. A hora é excelente para fazer das tripas coração e forçar mudança radical. Para começar, há que identificar os culpados. Será o presidente? Serão os parlamentares? Quem sabe os empresários? Sim e não, distinto leitor. Se são culpados, é porque o sistema lhes abriu as brechas. É difícil arrombar porta blindada, mas portinhola de madeira compensada não é obstáculo. Nosso sistema político favorece a promiscuidade e incentiva a corrupção.

Que o presidente atualmente em exercício permaneça no cargo, renuncie ou seja destituído pouco adiantará. O sistema e suas práticas perversas continuarão. É chegada a hora de reformular o funcionamento da máquina administrativa nacional. Não vejo saída fora de uma nova Constituição, que venha pôr ordem na impressionante algazarra que se instalou na administração pública.

Há muita coisa a mudar. Para enumerá-las todas, seria preciso um tratado de numerosos tomos. Nem eu nem ninguém é especialista em todas as áreas. Assim mesmo, há distorções evidentes, que saltam aos olhos até do observador menos informado. Por exemplo, questiono a existência dos vices ‒ vice-presidente, vice-governador, vice-prefeito, suplente de parlamentar. Torna-se cada dia mais clara a inutilidade e até a nocividade desse tipo de cargo, que põe gente numa sinistra fila de espera. Como resolver? É simples. Determina-se que, no desaparecimento do titular ‒ que seja por morte, renúncia ou destituição ‒, se convoquem novas eleições. Onde está o grande problema?

Do jeito que está, o vice-presidente carece de legitimidade, justamente por ter sido eleito como um apenso do presidente, em campanha conjunta. No fundo, são duas cabeças de um mesmo corpo. Derrubada uma cabeça, a outra deveria ter sido decepada junto, o que teria evitado muito dissabor. Estamos dando maior importância aos quatro anos de mandato, como se essa fosse uma cadência incontornável, do que à administração do Estado. «Completar o mandato» é conceito absurdo. Ninguém pode “completar” mandato iniciado por outro. Fica a desagradável impressão de que governante só está ali pra cumprir tabela.

Ainda que não se convoque assembleia constituinte, é urgente que a figura do vice desapareça. Uma PEC pode resolver o problema. Se não tivéssemos tido vice-presidente quando doutora Dilma foi destronada, três meses depois teríamos eleito novo presidente, legitimado por voto popular, com um mandato de quatro anos pela frente. Pode até ser que se tornasse um péssimo presidente mas, pelo menos, teria o respaldo do eleitorado.

Vê-se hoje que a subida de doutor Temer ao posto máximo não foi boa solução. Mas nada está perdido, irmãos! Nada é eterno. Leis são feitas pra serem mudadas.

Robespierre

José Horta Manzano

Como eu, o distinto leitor deve estar desorientado. Conseguimos nos livrar de um Lula, de uma Dilma, de um Aécio, de uma Marina e… fomos tropeçar num Temer. Ai, Jesus! No final desta novela, quem é que vai sobrar? Possivelmente nenhum dos políticos atuais.

Maximilien de Robespierre

Que fazer então? Pelo momento, não há outro caminho senão pressionar senhor Temer a renunciar e, em seguida, obedecer ao que manda a Constituição. Num prazo de trinta dias, um presidente será eleito pelo Congresso para um mandato tampão que durará até fim do ano que vem. O eleito não precisa necessariamente ser um parlamentar. Basta ser brasileiro nato, ter mais de 35 anos e estar no gozo de seus direitos políticos.

Com a casa tão trincada e rachaduras tão profundas, melhor será demolir e reconstruir. É chegada a hora de convocar assembleia constituinte cujos membros, a meu ver, deverão ser parcialmente eleitos pelo povo e parcialmente compostos de gente fina (ainda há!) como juristas, intelectuais, figurões do mundo das ciências e das artes, historiadores, geógrafos, sociólogos. Entre outros.

Quem sabe, passada a tempestade, julgados e afastados todos os culpados, o terreno estará carpido e limpo para permitir ao Brasil recomeçar sobre bases mais civilizadas.

Na França do fim do século 18, uma revolução veio fazer o serviço. Abusou de meios violentos e mandou meio mundo pra guilhotina. Espero que não tenhamos de ressuscitar Robespierre(*) para repor o Brasil nos trilhos.

(*) Maximilien de Robespierre (1758-1794) foi advogado e homem político francês. Durante o período tumultuado que se sucedeu à Revolução Francesa, atuou como deputado da Assembleia Constituinte. Agitado e atuante, é responsável por ter enviado quantidade de cidadãos à guilhotina. Por ironia do destino, acabou guilhotinado.

La queue d’une poire ‒ 2

José Horta Manzano

«Il ne se prend pas pour la queue d‘une poire» – ele não se considera o cabinho de uma pera. É o que costumam dizer, jocosamente, os franceses diante de uma pessoa que acredita ter mais importância do que realmente tem. «Ele se acha», expressão da moda, dá o mesmo recado.

A última façanha de nosso guia é relatada em reportagem do Estadão. O figurão caído, em nova demonstração de que se considera acima dos demais mortais, volta a acionar o Comitê de Direitos Humanos da ONU. Yes, o ex-presidente tem uma «equipe legal no exterior».

Mr. Geoffrey Robertson, chefe do batalhão de criminalistas, deve convocar coletiva de imprensa internacional em Genebra esta semana. Pela enésima vez, pretendem denunciar a «perseguição contra o Lula».

É curioso. Não ocorreu ao Lula acionar a ONU quando velhos companheiros de caminhada ‒ penso em José Dirceu, Genoino, Vaccari, Palocci ‒ se encontraram em dificuldade com a justiça nacional. O privilégio de apelar para instâncias superiores é exclusivo do chefe. Edificante.

O personagem se considera o centro do universo. Seja como for, a gesticulação terá efeito nulo sobre o destino do ex-presidente. Primeiro, porque nenhuma decisão da ONU deverá ser tomada antes de uns dois anos. Segundo, porque as Nações Unidas são uma organização internacional, não supranacional. A legislação brasileira é soberana, portanto imune a injunções vindas de fora. O Comitê de Direitos Humanos não pode ir além de vaga recomendação.

Como se sabe, todo corrupto, quando apanhado, se diz perseguido político. O esperneio de nosso guia, além de não lhe ser de utilidade, periga piorar a percepção de nosso país no exterior. O Brasil que ele denuncia compara-se a uma república de bananas.

Perguntar não ofende
De onde estará saindo o dinheiro para pagar esse batalhão de advogados nacionais e internacionais? Advogado com gabarito para atuar junto à ONU cobra até para atender ao telefone. Pra uma hora de conversa com um profissional desse padrão, pode ir contando alguns milhares de dólares. Naturalmente, cobram adiantado.