José Horta Manzano
Fui pra uma visitinha de rotina à médica que faz o que pode pra manter a saúde deste blogueiro à tona. Casada com um suíço, a doutora mora aqui há muitos anos. Mas guardou a vivacidade e o sotaque dos que nascem e crescem pelas bandas do Rio da Prata.
Procurando ser simpático, sempre chego cumprimentando e soltando as primeiras frases em castelhano. Só faço isso no comecinho, que espanhol não é a língua em que me sinto mais à vontade. Só que ontem não foi possível passar logo para o francês. Aqui vai o porquê.
Assim que nos cumprimentamos, evoquei a débâcle da bolsa argentina no dia anterior e deixei escapar um «que desastre ayer en Buenos Aires, doctora!». Ah, foi a conta. Como boa portenha, minha cara ‘doctora’ estava em estado de choque com o que está acontecendo no seu distante país. Soltou o verbo. Me lembro de ter ouvido os termos «hecatombe», «horror», «desgracia», «tragedia» y otras cositas amables.
Por discrição, não perguntei quais eram as preferências políticas dela. Fiquei sem saber se estava satisfeita ou indignada com a derrota de Macri nas prévias presidenciais. Por seu lado, não foi difícil perceber que estava enfurecida com as declarações de doutor Bolsonaro. É compreensível. Ela não está sozinha nessa fúria. Seus 45 milhões de compatriotas hão de compartilhar o mesmo estado de espírito.
Ao esculhambar nossos hermanos, desqualificando e tratando de «esquerdalha» a ampla maioria que votou no candidato Fernández, nosso presidente foi muito mais longe do que toleram as regras básicas de convivência entre nações. Ele não tem direito de se intrometer no resultado de um pleito democrático e limpo organizado no estrangeiro.

Alberto Fernández, vencedor das prévias argentinas, devolve as amabilidades a Bolsonaro tratando-o de racista, misógino e violento. A política da boa vizinhança começa bem.
Se as barbaridades proferidas por doutor Bolsonaro incomodam no plano nacional, fora do país é ainda pior: chocam e horrorizam. Afinal, a fala do presidente é a voz oficial do Brasil! É como se nós todos tivéssemos ofendido os hermanos. Nossos vizinhos devem estar se sentindo hostilizados pelos 200 milhões de brasileiros.
Doutor Bolsonaro se excedeu no derrame verbal. Vaticinou um futuro de miséria para os argentinos e, inspirado em Trump, anunciou que não estamos dispostos a receber hordas de “balseros” – refugiados provenientes do país vizinho. Humilhou um povo inteiro. Dá muita vergonha.
A verdade é que doutor Bolsonaro passará, mas a Argentina será sempre nossa vizinha de parede. Não convém se indispor com quem vive ao lado. Tenho certeza de que os brasileiros decentes estão se sentindo constrangidos.
Não recebi procuração para pedir desculpas em nome do povo brasileiro. Mas fiz questão mostrar à ‘doctora’ minha indignação. Disse-lhe o que penso de nosso presidente. Tenho a impressão de que ela se acalmou.