Para encurtar caminho

José Horta Manzano

A tendência que os falantes têm de encurtar caminho e descobrir atalhos na língua assume diferentes roupagens. Por exemplo, numerosos verbos que costumavam ser pronominais estão deixando de sê-lo.

Mais e mais frequentemente, se ouvem frases como:

“Ele não acostuma com essa vida de casado” (em vez de ele não se acostuma)

ou

“Eu não importo de ficar esperando aqui” (em vez de eu não me importo).

A atual pandemia ergueu ao palco um verbo antes menos comum: vacinar. Temos de constatar que ele também está entrando na categoria dos que vão deixando de ser pronominais.

O recorte reproduzido no início do post está aí pra provar. Diz ele que “vacinar é motivo de vergonha”. Em outros tempos, a manchete seria “tomar vacina é motivo de vergonha” ou também “vacinar-se é motivo de vergonha”. O mundo evolui, e a língua vai junto.

Mas atenção, juventude! Quem estiver mandando bilhete para a namorada pode escrever do jeito que quiser. Já quem estiver em situação mais formal é bom tomar cuidado.

Namorada dá desconto; erro em prova tira ponto!

Vacinar = dar vacina, aplicar vacina.

Vacinar-se = receber vacina, ser vacinado.

Na dúvida, diga: “tomar vacina”. É mais simples, resolve o problema, não tira pontos e, ainda por cima, protege contra a doença.

O preço a pagar

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 junho 2021.

Domingo 23 de maio, o voo da Ryanair partiu de Atenas no horário previsto. O trajeto até Vilna (Lituânia) não chegava a 3 horas. Já faltando meia hora para o pouso, quando o avião cruzava o espaço aéreo da Bielorrússia, um caça MIG 29 das Forças Aéreas daquele país emparelhou e ordenou ao Boeing que pousasse imediatamente. Pelo rádio, os controladores aéreos explicaram ter recebido denúncia de bomba escondida no avião, daí a ordem de aterrissagem imediata.

O piloto obedeceu. Pousou em Minsk, capital do país. Ato contínuo, policiais entraram no avião e agarraram um dos passageiros, rapaz jovem, levado enquanto protestava aos berros. Ninguém entendeu o que se passava. Em seguida, todos foram evacuados. Após inspeção das bagagens, as autoridades informaram que, não tendo sido encontrado explosivo, devia tratar-se de falso alarme. Liberado, o avião seguiu viagem – com um passageiro a menos.

Descobriu-se que o rapaz capturado pelos bielorrussos era Roman Protassevitch, de 26 anos. Autoexilado no exterior, ele tinha sido redator-chefe de uma plataforma de oposição ao regime do país, muito atuante na recente onda de contestação à reeleição do presidente Alexandre Lukachenko – o último ditador da Europa – , homem que há 27 anos controla a Bielorússia com mão de ferro. Nos calabouços do país, o rapaz há de estar passando maus momentos. Dado que é acusado de ‘terrorismo’ e que seu país é o último da Europa a aplicar a pena de morte, teme-se por seu futuro.

A União Europeia não podia deixar de punir o ato de pirataria que atingiu um de seus aparelhos voando entre dois de seus aeroportos. Em outros tempos, se declararia guerra; hoje, ataca-se o bolso. A UE anunciou que vai aplicar sanções pesadas contra a economia bielorrussa. Sete setores serão atingidos, entre os quais as exportações de potássio, tabaco e derivados de petróleo – importantes fontes de renda do país. Além disso, o ditador, sua família e uma centena de personagens do regime estão proibidos de entrar em território europeu. Seus haveres pecuniários e imobiliários serão confiscados. Os EUA, o Canadá e o Reino Unido também anunciaram sanções. Washington não vai mais conceder visto de entrada a 155 personalidades bielorrussas.

Temos hoje, no Brasil, um capitão que sonha com uma carreira de ditador. Ele tem conseguido avançar no projeto explorando o lado venal da alma humana. Cargos, títulos, promoções, verbas, aumentos de salário, benefícios têm sido distribuídos a mancheias. Essa fidalguia tem-lhe granjeado apoios importantes. Capturadas as principais instituições da República e cooptados os representantes do povo, não é impossível que nosso aprendiz de ditador realize seu sonho. O grande obstáculo serão as eleições de 2022. Com a imprudente cumplicidade do Parlamento, doutor Bolsonaro é bem capaz de conseguir, de um modo ou de outro, impugnar o resultado das urnas e melar o jogo a seu favor. Se as coisas correrem a seu contento, teremos em breve um Lukachenko tropical.

O primeiro risco vem de fora. Uma vez instalado na incômoda posição de país de governo ditatorial, o Brasil terá problemas feios. Desde a criação da ONU, ao final da última guerra, a comunidade internacional tem mostrado clara rejeição a regimes autoritários. Cuba, Coreia do Norte, Irã são exemplo de nações que sofrem sanções em virtude de não se encaixarem no Zeitgeist. No Brasil, sofreremos pesado castigo coletivo. A Bielorrússia ainda tem a Rússia, vizinha e madrinha. O Brasil-ditadura não terá vizinho nem padrinho. Se Bolsonaro e os filhos forem impedidos de viajar para o exterior, não hão de fazer caso. Já se a proibição atingir amigos, assessores e congressistas, ah, o perfume do croissant fresquinho das boulangeries parisienses há de fazer muita falta.

O segundo risco vem de dentro. Tropical ou não, autocrata é autocrata, um indivíduo paranoico, que desconfia de tudo e de todos. Sua imaginação doentia vive à cata de novos inimigos, reais ou imaginários. O capitão, com histórico de afiliação a 9 diferentes partidos, é descompromissado e volúvel. Uma vez parafusado ao trono, ninguém poderá mais se considerar a salvo, nem dormir tranquilo na certeza de que os perseguidos serão sempre os petistas, psolistas e “comunistas”. Hoje é dia do “outro”, mas amanhã esse “outro” pode ser qualquer um. Até os que hoje se enrolam na bandeira pra clamar por intervenção militar.

Teve rachadinha na vacina?

Celso Rocha de Barros (*)

Depois que Bolsonaro, de forma documentada e indiscutível, cometeu assassinato em massa contra o povo brasileiro, crimes de corrupção podem parecer menores. E, normalmente, seriam. Qualquer mãe que tenha perdido filho porque Bolsonaro não comprou vacina preferia que Bolsonaro lhe tivesse roubado a carteira.

Mas é importante lembrar que esta roubalheira aconteceu durante o assassinato em massa de 2020-2021, com dinheiro que poderia tê-lo evitado, e que talvez tenha sido parte da motivação por trás do assassinato em massa. O governo Bolsonaro pode ter matado filhos de mães brasileiras enquanto também lhes batia a carteira.

(*) Celso Rocha de Barros é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Reino Unido). O texto foi extraído de artigo publicado na Folha de SP em 27 jun° 2021.

Sacrifício no altar

José Horta Manzano

Seitas e religiões antigas tinham sacrifícios rituais. O Antigo Testamento lembra a hebreus e cristãos a alegoria do quase-sacrifício de Isaac, interrompido in extremis pela chegada do anjo. Muçulmanos têm metáfora equivalente, representada pelo sacrifício de Ismael, irmão mais velho de Isaac.

Mais perto (geograficamente) de nós, temos os incas que, até a chegada dos europeus, entregavam moças adolescentes aos oficiantes para serem assassinadas e oferecidas aos deuses para que não castigassem o império com catástrofes naturais e outras pragas. Depois de escolhidas, as jovens eram, durante meses, preparadas para o grande dia do sacrifício.

Ao observar a sequência de imagens que reproduzo acima, não pude deixar de associar a cena brasiliense com os relatos sacrificiais. A simbologia está presente.

  • O menino, que ainda está longe de ter chegado à idade da razão, é ingênuo e inocente. Não tem condições de entender que sua imagem há de ficar para a posteridade como símbolo triste e involuntário da desvairada passagem do capitão pelo Planalto.
  • A maneira como o pequenino está paramentado indica que passou por preparação específica antes de ser levado ao altar – exatamente como as donzelas andinas.
  • A criança chega ainda mascarada, numa imagem que sugere a virgindade e a proteção contra todo mal externo que possa atacar o corpinho.
  • No momento supremo, o capitão age com a brutalidade que lhe é característica e arranca a proteção. É o defloramento simbólico praticado pelo Grande Sacerdote.
  • As mãos erguidas do que se supõe serem os pais do ‘sacrificado’ aparecem ocupadas em clicar freneticamente, no intuito de eternizar o instante sublime. A criança assiste, ingênua, à movimentação. Daqui a algumas décadas, quando for adulto, o menino por certo se envergonhará de ter sido um dia entregue como troféu a um miserável bufão.

A foto termina aqui. Não sei dizer se, assim que a criança voltou para o colo dos orgulhosos pais, a máscara voltou a ser instalada na posição de onde nunca devia ter sido retirada.

Tanto faz. De qualquer maneira, o mal estava feito. Se o pobrezinho não se tiver contaminado com o bafo pestilento do Grande Sacerdote, é porque tem corpo fechado e assim continuará pelo resto da vida. Pode jogar fora a máscara.

Deixa que eu pago

José Horta Manzano

Em abril de 2019, com sua costumeira meiguice, o presidente Bolsonaro esbravejou: “O Brasil não pode ser o paraíso do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. Agora, não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay aqui dentro.”

Em julho daquele ano, sempre calçando as mesmas luvas de ternura, reincidiu: “O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer. Desculpem aqui as mulheres aqui tá?”.

Referindo-se a uma jornalista, em fevereiro de 2020, soltou esta finura: “Ela queria um furo. Ela queria dar o furo!”.

Na mesma linha do presidente, seu ministro Guedes aproveitou a plateia que o acompanhava numa palestra de setembro de 2019. Entusiasmado, mandou: “Ah, o Macron falou que estão botando fogo na floresta brasileira. O presidente devolveu, falou que a mulher dele é feia’. Tudo bem, é divertido. Não tem problema nenhum, é tudo verdade, o presidente falou mesmo. E é verdade mesmo, a mulher é feia mesmo.”.

Em abril de 2019, a ministra Damares (que cuida da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos!) foi fiel ao exemplo do chefe. Numa audiência na Câmara Federal, ousou: “A mulher deve ser submissa. Dentro da doutrina cristã, sim. Dentro da doutrina cristã, lá dentro da igreja, nós entendemos que um casamento entre homem e mulher, o homem é o líder do casamento”.

São citações que aparecem, entre outras, numa ação civil em que o MPF (Ministério Público Federal) requereu que a sociedade brasileira seja ressarcida do prejuízo causado pelas falas discriminatórias e preconceituosas de membros da alta hierarquia do governo federal. A 6ª Vara Cível Federal de SP aquiesceu e condenou a União a pagar 5 milhões de reais em reparação dos danos morais coletivos contra a mulher brasileira.

Sem sombra de dúvida, o julgamento parece justo. De fato, não é normal deixar passar em branco um conjunto de insultos e deboches tão abastado que deixa a impressão de ser ataque coordenado – sabe-se lá com que intenções. No entanto, algo me parece fora do lugar. Explico.

A União Federal, em última análise, somos nós, o povo. Assim como o Exército Brasileiro (que o capitão insiste em chamar de “seu”) não pertence a nenhum indivíduo, a União também é instituição coletiva, uma extensão do povo brasileiro. A União é formada por todos nós, não somente pelo governo de passagem. Instituição permanente, ela precede os atuais governantes e lhes sucederá.

Dito isso, fica estranho obrigar a União a pagar a conta das impropriedades cometidas por membros do governo. Cobrar da União isenta os autores das infrações. Em última instância, significa cobrar de todos nós, que, com nossos impostos, sustentamos os cofres federais. O julgamento da ação deixa um quadro estranho, em que a parte lesada é condenada a ressarcir a si mesma.

Na minha opinião, o certo seria cobrar de cada agressor o preço de sua ousadia. Que se condenem os que proferiram impropérios: o capitão, dona Damares, doutor Guedes e quem mais for. Individualmente. Querer castigá-los repassando a conta para todos os contribuintes não está certo. Visto que a conta não vai pesar no bolso dos infratores, hão de sentir-se livres de continuar proferindo impropriedades.

Gente mole

José Horta Manzano

Pesquisa publicada ontem pelo Ipec revela que a polarização continua firme no cenário eleitoral. Para as presidenciais de 2022, só dois (presumíveis) candidatos têm chance: Bolsonaro e o Lula. O resto é o resto – um punhado de nomes que, juntos, perfazem 10% do eleitorado.

Me recuso a acreditar que o eleitorado brasileiro se divida entre o antigo presidente (e ex-presidiário) e o atual presidente (e talvez futuro presidiário). Não é possível que, de cada dez cidadãos, somente um recuse dar seu voto a um desses dois políticos de qualidade duvidosa, ambos situados a um passo da prisão (passada ou futura).

Continuo acreditando que nós, aqueles que rejeitamos tanto o demiurgo quanto o genocida, formamos uma maioria silenciosa. Civilizados e discretos, não nos agrada sair em passeata, gritar slogans, segurar faixas, protestar de motocicleta, soltar rojões, vestir como torcida organizada, caminhar enrolados em bandeira. Se isso não aparece nas pesquisas, é porque nenhum nome conseguiu se mostrar suficientemente forte até agora.

Os políticos não bolsonaristas e não lulistas estão dormindo no ponto. O país está num momento crítico. Se eles não se mexerem, nosso futuro periga ser cada vez mais tenebroso. Se o próximo presidente for Lula ou Bolsonaro, qualquer um dos dois, teremos a continuação do desastre atual.

Há pouca diferença entre os dois. São ambos autoritários, incultos, estatizantes, mentirosos, traiçoeiros, populistas, poltrões, corruptos, permissivos. O que os distingue é a psicopatia de Bolsonaro, fator agravante para o desempenho de qualquer mortal.

Se os verdadeiros políticos de oposição – aqueles que se opõem aos dois – não abandonarem vaidades e não se reunirem em torno de um nome comum para enfrentar a ambos, estarão dando a vitória ao Lula, de mão beijada. O barbudinho é sempre melhor que o capitão, mas será que é realmente isso que queremos?

Olimpíadas em modo covid

José Horta Manzano

O povo japonês é conhecido por seu espírito disciplinado e rigoroso. Na preparação dos Jogos Olímpicos, que o país deverá acolher dentro de um mês, as autoridades anunciaram os cuidados que os atletas de diferentes modalidades de esporte deverão tomar para estancar o alastramento da pandemia. Aqui estão alguns deles.

Lançamento de martelo
Para evitar o contacto do martelo com as mãos no momento do arremesso, deverá ser usado um estilingue.

Salto com vara
Antes de agarrar a vara, o atleta deverá calçar luvas cirúrgicas.

Pugilismo
Para evitar projeção de perdigotos no momento da luta, os boxeadores deverão manter sempre distância de um metro e meio.

Futebol
A fim de prevenir aglomerações, somente será permitida a presença de 4 jogadores em campo ao mesmo tempo. A cada 10 minutos, se fará o rodízio: saem 4, entram outros 4. E assim até o fim do jogo. (O goleiro será autorizado a permanecer.)

Ginástica
O atleta deverá desinfetar barras e argolas antes e depois de cada apresentação. Frascos de álcool 70° serão postos gratuitamente à disposição.

Luta livre
Dado que este esporte deixa os atletas ofegantes, o uso de máscara será obrigatório durante todas as provas.

Ginástica rítmica
Para evitar contacto próximo, cada ginasta executará o número separadamente. Ao final, uma montagem sincronizada de vídeo será apresentada no telão com os dois atletas.

Nado quatro estilos (medley)
Durante a prova, a cada virada, os atletas deverão lavar as mãos cuidadosamente.

As autoridades nipônicas agradecem a todos os participantes pela compreensão. E declaram sentir-se orgulhosas de tornar as Olimpíadas mais seguras.

Cambalhotas na língua

Ruy Castro (*)

Quando escuto a primeira sílaba, meus ouvidos já entram em alerta. Alguém vai dizer a palavra “especificamente”. É um dos advérbios mais em voga no momento, e cada pessoa o acentua numa sílaba diferente. Alguns carregam no “fi”: especiFIcamente. Outros fazem a língua dar uma cambalhota e põem o peso no “pe”: esPÉcificamente. E há quem tenha de dar um salto mortal sem rede para pronunciar ÉSpecificamente. Só os puristas acentuam direito o “ci”: espeCIficamente.

Outra tendência da nova fala brasileira é a desmoralização do sujeito. Lembra-se dele nos seus tempos de cartilha? O sujeito era aquele termo da oração que formava com o verbo e o predicado uma espécie de Trio Maravilhoso Regina da língua – sabonete, água de colônia e talco. Mas parece que o sujeito, ele não é mais suficiente na frase. As pessoas, elas agora o acoplam a um pronome. O resultado, ele fica assim como você está lendo. Temo que, em breve, os escritores, eles passem a fazer o mesmo em seus textos. E, quando isso acontecer, o leitor, ele vai se dar conta da monotonia da coisa. Aliás, essa monotonia, ela acontece também na língua falada. Mas as pessoas, elas ainda não acordaram para isso.

E a palavra “robusto”? No passado, robustas eram as meninas que tomavam Toddy. Hoje, abundam robustas acusações contra os bolsonaros e não acontece nada. E quem ainda tolera o “simples assim”? Nos anos 80, só os leitores de Paulo Francis, introdutor dessa expressão na língua, a usavam. Agora qualquer pazuello faz uma cara beócia e vasovagal e a emprega para explicar que um manda e outro obedece.

Por sorte, clichês agonizantes como “reto e direto”, “sem querer interromper e já interrompendo”, “zona de conforto”, “ponto fora da curva” e “tudo junto e misturado” já saíram de moda, e só os desinformados ainda os usam.

Claro que a fala do dia a dia, ela é meio assim, tudo junto e misturado, não?

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Milagre?

José Horta Manzano

Num raro sincericídio cometido nas barbas de apoiadores entusiastas, Jair Bolsonaro confessou ontem que é milagre ter conseguido segurar-se no mandato até agora.

Apesar do apreço que tenho e da reverência que sinto para com o capitão, devo discordar. Peço vênia, Excelência!

Milagre, em nossa língua, é palavra reservada para acontecimentos benéficos, favoráveis e auspiciosos. É sempre usada em sentido positivo.

Tem sido assim desde os milagres bíblicos, em que paralíticos voltavam a caminhar, cegos recobravam a visão e multidões eram alimentadas com meia dúzia de peixes.

Milagre não é a faísca acidental que bota fogo na casa, mas a chuva que apaga o incêndio.

Como tem feito em frequentes ocasiões, Sua Excelência distorce a realidade a seu favor. O fato de ter-se mantido na Presidência até agora não é milagre. A língua oferece um balaio de termos que se adaptam melhor. À escolha:

maldição,
desgraça,
fatalidade,
desventura,
cataclismo,
desventura,
infortúnio,
sinistro,
catástrofe,
adversidade,
desdita,
calamidade,
desastre,
estrago.

A lista não é exaustiva, mas vou parar por aqui pra este post não ficar demais deprimente. Ai de nós!

Protestos

Amsterdã: protesto em letras laranja, a cor-símbolo do país

José Horta Manzano

Brasileiros que vivem no exterior, mesmo que estejam em situação apertada e passando necessidade, não recebem auxílio de Brasília. É natural. Bizarro seria se a pátria-mãe continuasse a sustentar filhos que decidiram deixar o lar e morar sozinhos.

Essa não-dependência lhes permite acompanhar com certa isenção os acontecimentos nacionais. O fascínio lulopetista, por exemplo, que arrebatou multidões em território brasileiro, pegou menos firme por aqui. O brasileiro do exterior logo se deu conta de que artifícios como a bolsa família, apesar do intenso marketing, estavam mais pra embuste eleitoreiro que pra solução radical pra extinguir a miséria.

Nas eleições de 2018, os brasileiros estavam, em maioria, decididos a dar um basta ao lulopetismo. Fosse qual fosse o candidato, votariam nele, desde que afastasse o Lula e seus companheiros. O resultado é que, apesar do histórico de sucesso do partido, somente 45% dos eleitores votaram em Haddad. Brasileiros do exterior foram ainda mais explícitos: apenas 29% dos eleitores deram seu voto ao candidato lulopetista, exprimindo nas urnas um sonoro basta!. Foi de encher de orgulho qualquer brasileiro pensante.

Tendo em vista o desastre que tem sido a gestão Bolsonaro, parece-me justo e natural que os que vivem no Brasil e que sentem na pele as consequências de um governo caótico se revoltem e se disponham a sair às ruas em passeata. Mas… e no exterior? Será que a rejeição a Bolsonaro se aplica também aos compatriotas que vivem fora? Aqueles que, em 2018, votaram em massa em Bolsonaro e lhe garantiram 71% do total dos votos eram realmente bolsonaristas ou apenas antipetistas? Está chegando a hora do “vamos ver”.

E estamos começando a ver. Foi no sábado que passou. Cento e cinquenta cidades brasileiras foram palco de passeatas e manifestações diversas em que milhares exprimiram repúdio a Bolsonaro. No mesmo dia, os brasileiros do exterior deram a resposta à dúvida que expus logo acima. A colônia estabelecida na Europa e nos EUA não se fez de rogada. Brasileiros saíram às ruas de Londres, Berlim, Lisboa, Zurique, Nova York, Paris com o mesmo ardor dos que encheram avenidas paulistanas, cariocas e soteropolitanas.

As urnas de 2022 confirmarão, mas podemos desde já nos sentir aliviados: se os brasileiros do exterior consagraram Bolsonaro em 2018, não foi pelos méritos do capitão, mas por ter encarnado a imagem do antipetista por excelência. E estamos todos assistindo à decomposição dessa imagem. Como ensinou Ary Barroso, “toda quimera se esfuma como a brancura da espuma que se desmancha na areia”.(*)

(*) Do samba-canção Risque (1953).

Kit covid

José Horta Manzano

As autoridades japonesas estão monitorando de perto tudo o que diz respeito à organização dos Jogos Olímpicos, que terão lugar no país daqui a um mês.

Neste domingo, apresentaram a Vila Olímpica à imprensa e anunciaram as mais recentes medidas de proteção dos atletas. Entre elas, estão a instalação de uma clínica especializada no estudo da febre, assim como a distribuição de um kit covid.

O estojo anticovid contém álcool em gel e sabonete medicinal. Pode parecer uma evidência, mas não há que esquecer que o país vai receber atletas de quase 200 países – e nem todos têm hábitos de higiene suficientes para protegê-los nestes tempos de pandemia.

Se nosso capitão, em vez de investir tempo, esforço e dinheiro em remédios milagrosos, tivesse, desde o começo, mandado distribuir sabonete e álcool em gel a toda a população – jovens e velhos, ricos e pobres, urbanos e rurais –, certamente não estaríamos hoje chorando a morte do quingentésimo milésimo(*) brasileiro.

Num país de pobres, só mandar lavar as mãos não funciona – o cidadão às vezes não tem dinheiro nem pra comer. Precisa dar o sabão. É mais eficaz que cloroquina.

(*) = 500.000°

Estúpido

Ascânio Seleme (*)

A declaração de Bolsonaro de que é preferível se contaminar com o coronavírus do que tomar a vacina é o ponto máximo que sua ignorância conseguiu alcançar nestes dois anos e meio de governo. Desnecessário explicar a idiotice criminosa.

É urgente que se pare o festival de besteiras que ele pronuncia diariamente nas redes sociais. Esperar por Arthur Lira não adianta. Talvez seja o caso de apelar para as redes. Por muito menos, Donald Trump foi suspenso do Facebook e banido pelo Twitter.

(*) Ascânio Seleme é jornalista. Trecho de artigo publicado no jornal O Globo de 19 junho 2021.

Rodeios

José Horta Manzano

Às vezes é complicado abordar um assunto. Nessas horas, a gente dá voltas, enrola, tergiversa, rodeia, fica sem jeito e não encontra coragem. O tempo passa e o que tinha de ser feito vai ficando cada dia mais difícil. É o que está ocorrendo há mais de ano na política brasileira.

Logo que assumiu a Presidência, Jair Bolsonaro começou a dar sinais inquietantes de que não era o funcionário certo no cargo certo. Sua adoração por Trump, a história da mudança da embaixada em Israel, a ofensa à mulher de Macron acenderam luz amarela. “Será que esse homem bate bem da bola?” – era a pergunta que corria por becos e ladeiras.

A pergunta continua no ar, sem resposta definitiva. Será um bobão amalucado ou simplesmente um ignorante mal-intencionado? Saberemos um dia com certeza. O que, desde já, sabemos é que a prova de fogo da pandemia foi um revelador que desnudou o rei. O atual presidente não está capacitado pra exercer o cargo. Sua troca é mais que urgente. Só não enxerga quem não quer.

Os poderosos do andar de cima, no entanto, têm-se mostrado incapazes de atacar o problema. Rodeiam, rodeiam e sempre atiram para os lados sem mirar o centro. Faz tempo que estão nesse “faz que vai, mas não vai”. Parece que têm medo do tigre de papel.

Em vez de pressionar o presidente da Câmara para instaurar logo um processo de impeachment, instalaram uma CPI. Convocam gregos e troianos, gente fina e gente à toa, bem-intencionados e mentirosos. Mandaram que um determinado indivíduo seja trazido à força diante do comitê. Sabem todos perfeitamente que o nome do mal é um só: Jair Bolsonaro. Mas evitam atacá-lo de frente.

Será que todos têm medo de melindrar o capitão? Eleitoralmente, terá muito a ganhar quem se dispuser abertamente a desalojá-lo do pedestal. Essa atitude de “rabo no meio das pernas” não é produtiva. Num dos momentos mais dolorosos de sua história, não é disso que o Brasil precisa. Francamente.

Como é que é?

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que lei obrigava. O que estava na lei era pra ser cumprido sem discussão.

Fico feliz em saber que, nestes admiráveis tempos modernos, leis apenas sugerem. Deve ser sinal de que nosso povo evoluiu e chegou ao ponto de dispensar imposições. Sugestões bastam.

Ninguém segura o progresso.

Chué

José Horta Manzano

Quero crer que a foto foi batida no interior de um dos palácios oficiais que a República destina ao presidente: Alvorada, Planalto ou Granja do Torto. Dá pra imaginar o momento que antecedeu a imagem congelada.

De repente, o capitão se levanta e ordena a um serviçal que, de pé, assistia ao jogo, pronto pra atender a um chamado.

“Ô amizade! Pega teu telefone aí e tira uma foto de mim aí! Péra, não, você fica ali, péra um pouco, é pra mim sair na frente da tela. Deixa eu espichar o dedo. Pronto, agora, pode tirar!”

O resultado é o que se vê acima. É raro ver tanto mau gosto reunido numa só imagem. É verdade que bom gosto não é exatamente o que se espera do personagem. Assim mesmo, a gente tem sempre um fiozinho de esperança – que se esfiapa a cada vez.

A tela
Sua Excelência, aproveitando-se da exposição que o cargo lhe dá, aponta para o logo de uma emissora de televisão amiga. Ao fazê-lo, faz propaganda da empresa. Pega muito, mas muito mal. Presidente da República, justamente pela visibilidade de que dispõe, não pode exercer o papel de garoto-propaganda de empresa nenhuma. É indigno do cargo, e injusto para com as emissoras concorrentes.

Se eu fosse responsável por uma dessas emissoras que não tiveram direito a receber a bênção presidencial, entrava com pedido de ressarcimento pelo fato de minha empresa não ter sido contemplada com tratamento igual. É questão de isonomia. Ou Sua Excelência faz propaganda de meu canal também, ou exijo compensação financeira. A Justiça não ia ter como negar. E serviria de lição ao presidente descarado.

Eu poderia fazer propaganda de quem bem entendesse, que o alcance de minhas palavras não iria muito longe. Quando são figuras públicas que se pronunciam, como o presidente da República, é diferente. Uma palavra dessa gente causa forte impacto. Vale como exemplo o gesto do jogador Ronaldo, que outro dia, numa entrevista coletiva, empurrou para o lado uma garrafa de Coca-Cola: 30 minutos depois, a marca havia perdido 4 bilhões de dólares de valor de mercado.

Qualquer dia destes, o capitão devia fazer-se fotografar em frente à tela na hora da novela. Queria ver qual é o logo que aparece no canto.

A camiseta
Pelo que entendi, a camiseta (ou camisola, como preferem nossos amigos lusos) que o presidente veste é o uniforme de um time de futebol de Santa Catarina. Uma cadeia de lojas patrocina o time, o que explica as letras de 20cm de altura. Neste caso, fica complicado falar em propaganda indevida, como no caso da emissora de tevê.

Mas não fica complicado falar do requinte de mau gosto do capitão. De fato, quem ostenta um barrigão daqueles deve abster-se de vestir camiseta justinha. Pior ainda se for de cor amarela. O homem engordou muitíssimo de um ano e meio pra cá. A boia do palácio deve ser superior ao que serviam na cantina da Câmara.

Os fios
Esta não tem muito a ver com o capitão, mas ele não deixa de ser cúmplice. Você reparou naqueles fios que saem do decodificador de tevê? Minha casa não é o Palácio da Alvorada, mas aqui os fios são mais comportadinhos. Aquela fiação pendurada que aparece na foto presidencial está mais pra gato montado pra sugar o sinal do vizinho otário que paga a assinatura.

Os objetos
Repare na coleção de objetos disparates captados pela câmera. Temos:

  • o decodificador (que ficava melhor se estivesse disfarçado dentro de um compartimento, com os fios camuflados dentro de uma canaleta ou de um conduíte);
  • um calendário (que lembra brinde de fim de ano da farmácia da esquina);
  • um objeto (que parece ser um agrupamento de cristal de rocha desses que a gente traz de lembrança de viagem);
  • um livrinho azul (que não deve ser a Constituição, pois o presidente guarda a dele religiosamente na mesinha de cabeceira, para consulta diária, como todos sabem);
  • um vaso azul.

Ah, vou contar um segredo, que talvez nem o capitão saiba. Vamos falar baixinho, que é pra ele não ouvir. Sabe o vaso de porcelana que aparece justamente entre a tela e o capitão? Vão me desculpar pela ousadia, mas é a peça de maior valor nessa imagem; vale mais que a tela e o dono da casa adicionados. Pelo alto valor, até destoa dos demais objetos expostos. Só que tem um senão: o vaso é… chinês!

Não deixem que o capitão fique sabendo, senão ele vai ter pesadelos à noite.

Chué
Faz tempo que não ouço o termo chué, que pus no título. Me pergunto se seu prazo de validade já não estaria vencido. É adjetivo e significa ordinário, à toa, reles, pífio, cafona.

É palavra de origem árabe, língua em que significa pouco, pequena quantidade. Entrou na nossa língua no tempo da ocupação da Península Ibérica pelos mouros. É interessante que tenha sobrevivido em português, mas não em espanhol nem em catalão.

Por outro caminho, o termo também chegou ao francês atual. A importação foi feita na época em que a Argélia, região onde se fala um dialeto árabe, era colônia francesa. Em francês, a palavra é usada ora como substantivo, ora como advérbio. Tem a forma chouya (pron: chuiá) e mantém o significado original de quantidade pequena, pouco.

Se ele pôr

José Horta Manzano

Tenho dificuldade em entender a razão pela qual um cidadão é obrigado a dizer a verdade sob risco de ser preso, enquanto um outro é eximido dessa responsabilidade, podendo ficar em silêncio ou até contar mentiras.

Não entendo tampouco por que razão a CPI mantém o convite a pessoas que gozam do privilégio de poder mentir sem sofrer sanções. Que valor tem um depoimento em que o arguído pode até estar mentindo?

Por último – mas não menos importante –, a conjugação dos compostos do verbo pôr é complicada. Isso acontece porque muitos falantes (e escreventes) se esquecem de detalhe importante: todos os verbos derivados se conjugam exatamente como o pai da família.

Os tempos mais comuns não apresentam dificuldade. Ela surge na hora de utilizar o futuro do subjuntivo.

      • Pôr    =  se ele puser
      • Dispor =  se ele dispuser
      • Compor =  se ele compuser
      • Repor  =  se ele repuser

e, naturalmente:

      • Depor  = se ele depuser.

Consertando a linha fina da chamada: Se depuser, ex-governador poderá ficar em silêncio e não precisará assumir compromisso de falar a verdade.

(Dizer a verdade ficaria melhor. Mas não vamos pedir demais.)

O presidente está com medo

Rosângela Bittar (*)

A autoconfiança, expressa em sinais de que pode tudo, é falsa. Acompanhamos sua performance como se ele estivesse no picadeiro. Ora engolindo fogo e soprando-o sobre a seleção brasileira de futebol, que obrigou a jogar a Copa América, competição refugada por três países mais responsáveis que o nosso. Resultado parcial: 52 infectados em apenas duas rodadas.

Ora no tiro ao alvo dos palanques eleitorais, nos quais nem a motocada de 12 mil fanáticos, nem a genuflexão de militares da ativa, conseguem lhe dar consistência. Como no globo da morte, irrompe em avião prestes a decolar lotado, onde colhe o fundo musical de sua campanha à reeleição, que não será aproveitado nos jingles: Genocida!

(*) Rosângela Bittar é jornalista. O texto é parte de artigo de 16 jun° 2021, que merece ser lido na íntegra. 

Brazilian lives matter

VIDAS BRASILEIRAS CONTAM

 

José Horta Manzano

Quando se fala em populações que passam fome, nós, os bem alimentados, costumamos imaginar que isso só ocorre em terras distantes – Etiópia, Sudão do Sul, Eritreia – lugares que a gente só conhece de ver no mapa.

Temos dificuldade em admitir que nosso país abriga legiões de malnutridos. Não estou a falar dos que sofrem as consequências de eventual catástrofe; falo dos famintos crônicos, pessoas com quem cruzamos na rua, que vivem nas mesmas cidades que nós, gente que carrega uma chaga invisível que temos grande dificuldade em reconhecer. São um mundaréu de gente que ninguém vê.

Ainda que pareça exagero, a verdade é que o Brasil é um país onde a fome é crônica. Sempre foi assim, e continua. Os dirigentes lulopetistas, mais preocupados em meter a mão nos cofres da República, demoraram mais de 13 anos no andar de cima, mas não resolveram o problema. Bolsonaro, mais preocupado em comprar apoio (com nosso dinheiro) para perpetuar-se no poder e assim escapar de futuros processos, não está nem aí para o drama dos que têm fome dia após dia. A pandemia, por seu lado, só fez piorar o quadro.

Nós nos recusamos a enxergar, mas os estrangeiros veem. A artista americana Beyoncé acaba de lançar uma campanha de assistência às famílias brasileiras que passam fome. Dá muita vergonha ver nosso país na situação dos que têm de estender a mão pra poder sobreviver. Exatamente como os paupérrimos Sudão e Eritreia – é assim que somos vistos.

No entanto, dinheiro há. O que não há (nem nunca houve) é o desejo sincero de resolver o problema da pobreza no Brasil. Se outros países que já foram pobres lograram eliminar a miséria, por que não conseguimos nós?

Em 1970, nosso PIB per capita era de US$ 450, ou seja, 60% maior que o da pobre Coreia do Sul, com seus US$ 280. Passaram-se 50 anos. O Brasil descobriu petróleo, se livrou do regime militar, mandou até um astronauta passear (de carona) no espaço. A população mais que dobrou de tamanho. E o país não deslanchou. Em 2018, nosso PIB per capita foi de US$ 9.080. Por seu lado, com investimento maciço na Instrução Pública, a Coreia conseguiu, no mesmo ano, um PIB de US$ 32.730, ou seja, quase 4 vezes o do Brasil.

Faço votos para que a campanha de dona Beyoncé traga algum alívio às barrigas que roncam em nossa terra porque, se depender de nossos eleitos, vão continuar roncando.