humor
Máximas do Barão ― 37
Direitos
Francisco de Paula Horta Manzano (*)
Almoçar fora aos domingos sempre é uma maneira agradável de o marido dizer que gosta da mulher, poupando-a de parte dos trabalhos domésticos, nem que seja uma vez por semana. Ou pode ser uma negociação antecipada (sem que a mulher se dê conta) para o maridão ir assistir ao jogo de futebol logo mais, tomando aquela cervejinha com os amigos. É preciso a mulher ficar atenta para julgar da sinceridade de um convite para almoçar fora num domingo.
De uma maneira ou de outra, muita gente acaba fazendo um programa desses aos domingos. Muita mulher desatenta acaba assinando um alvará para o marido abandoná-la pelo resto do dia, voltando a casa só bem mais tarde, depois de muitas cervejas e, dependendo da quantidade delas, com dificuldade até mesmo para se lembrar do nome da própria esposa:
— Ô… Ô… Ah!… Ifffone!!!
E, quando finalmente se lembra do nome da mulher, sente extrema dificuldade para se lembrar do assunto do qual queria tratar. Aí desiste e deixa pra outra hora.
Mas enfim aconteceu num domingo desses que o Genivaldo foi com a distraída Ivone almoçar fora. Ele já engatilhando as cervejinhas com os amigos mais tarde. Ela indo ingenuamente almoçar.
O Genivaldo é um desses sujeitos que se acham com todos os direitos e mais alguns que, aliás, não tem. Mas, mesmo assim, briga por eles. Tipo “você sabe com quem está falando?” e a outra pessoa nem ousa perguntar “com quem?”. Aí, pelo sim, pelo não, são obtidos os direitos e, de quebra, alguns privilégios também.
Assim, quando chegaram ao restaurante e fizeram menção de ocupar uma determinada mesa num lugar privilegiado junto a uma janela, um garçom, pedindo mil desculpas, indicou-lhes uma outra, num cantinho meio solitário, onde quem se senta parece estar de quarentena. Aquelas mesas já estavam reservadas para um cliente antigo do lugar.
‒ Como assim, não podemos nos sentar aqui? Só porque um figurão vem por aí?
‒ Não se trata disso, meu senhor ‒ respondeu muito polidamente o garçom ‒ é que ele reservou as mesas desta ala. Estão reservadas faz uma semana. É isso.
O Genivaldo já estava começando a espumar discretamente pelo canto esquerdo da boca, o que, para quem o conhecia, não era bom sinal.
‒ Então é isso? A gente trabalha, paga os impostos todos em dia e, quando resolve almoçar fora, não pode porque alguém mais importante segura a mesa antes de chegar ao local!
Comedidamente o garçom tenta explicar-lhe:
‒ Meu senhor, não se trata disso, é que simplesmente o nosso outro cliente fez reserva antecipada. Se me permite, temos uma mesa disponível alí naquele cantinho que, se for de seu agrado…
E apontou para um canto que só não era fora do restaurante porque providencialmente havia uma parede ali, justamente onde a mesa se encostava. Aliás, a mesa estava quase embutida na parede a ponto de deixar no ar uma pitada de dúvida sobre qual das duas viera primeiro: a parede ou a mesa. Podia-se arriscar um palpite de que ambas haviam sido instaladas ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
O Genivaldo aceitou e se dirigiu para o cantinho junto com a esposa.
Garçom que é garçom não olha em volta para saber onde é que estão precisando de seus serviços. Acho que nas próprias escolas de formação profissional aprendem a desviar o olhar justamente para os lados onde não há ninguém. Em seguida, com poucos anos de prática, alguns chegam a atingir a perfeição. Você faz um discreto sinal com uma das mãos, mas nada. Você então ergue o braço em nova tentativa, mas o garçom continua a fingir que não viu. Em desesperada tentativa, quando você quase se levanta da cadeira e ergue o braço para chamar a atenção, como se estivesse numa estação de trem, quando todo o restaurante já se deu conta da sua agitação, só o garçom ainda não reparou. Provavelmente, quando você já estiver subindo à mesa para arriscar um zapateado, daqueles que terminam com um sonoro “olé”, aí sim, o garçom vai se resolver a vir até você.
Assim foi com o casal Genivaldo. A mesa à qual se sentavam ficava num canto quase esquecido do resto do restaurante (aliás, do resto de todo o mundo), bem pouco visitada pelos garçons que, a julgar pelo tempo que demoravam a voltar ao salão, pareciam estar em pleno campeonato de palitinhos na cozinha e somente nos intervalos davam umas voltinhas pelo salão, para reforçar a impressão de que ainda estavam por lá e para que os clientes não se sentissem em abandono total.
O bife à parmigiana pedido chegou à mesa em forma de peixe assado (devido a um pequeno mas lamentável equívoco do garçom). De sobremesa, veio um manjar branco em lugar do sorvete de framboesa encomendado (por outro menor mas também frustrante equívoco, coincidentemente do mesmo garçom). Como é natural, tais acontecimentos acrescentaram legitimidade a todas as reclamações feitas pelo Genivaldo, não ao garçom e muito menos ao gerente do restaurante, claro que não, mas à pobre Ivone que, como todas as esposas dedicadas, exerce, entre outras, a função de ouvidora do marido.
Saíram do restaurante depois de pagar a conta, obviamente sem deixar gorjeta alguma.
Quando foram reganhar o carro na rua, viram um policial lavrando uma multa por estacionamento em local proibido. O Genivaldo ainda tentou reclamar:
— Ô, seu guarda! Mas e os direitos da gente? Todo o mundo para por aqui. Será que só eu não posso?
— Não se preocupe não. Aqui todos têm seus direitos garantidos. Já multei todos os outros que estão estacionados e o senhor teve sorte: sua multa é um direito seu e, com ela, foi-se a última folha do meu bloquinho. Todos são iguais, sim, senhor…
(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.
Quadrinhos ‒ 266
Incidente diplomático
Eduardo Affonso (*)
– Sr. Modesto Araújo, quero te apresentar aqui o novo chapeiro.
– Mas, seu Jaílson, esse não é o…
– Ele mesmo, o Ednardo. Meu filho.
– Ele tem experiência com chapa, fritura, essas coisas?
– Ele é diplomata. Fez Instituto Rio Branco. Foi embaixador na China. E já comeu pastel frito, não comeu, Ednardo?
(Ednardo concorda com a cabeça)
– Pois é, já comeu. E comeu na China, onde fritam muito pastel. É o chapeiro ideal para a JB Lanches.
– É que pastel não é feito na chapa…
– Modesto Araújo, você não está entendendo. Ele é meu filho. Portanto, está mais que qualificado para o posto de chapeiro.
– É que o fato de ele ser um diplomata… será que não vai atrasar um pouco o serviço? Ele pode querer negociar o hambúrguer bem passado por um ao ponto, não chegar nunca a um acordo com o cliente se o ketchup tem precedência sobre o alface, e aí a fila não anda…
– Com meu filho de chapeiro aqui, quando o presidente da França vier comer uma esfirra, vai falar direto com ele, sem nem fazer o pedido no caixa. Se for um xeique saudita, ele frita a coxinha de acordo com os preceitos do Alcorão. De protocolo ele entende. E de cerimonial. Ele sabe que o canudo fica à direita do copo de refrigerante e os sachês de mostarda vêm hierarquicamente embaixo dos de maionese.
– O senhor é que manda, seu Jaílson. Eu sou só o gerente desta franquia da JB Lanches. Se o senhor diz que o seu filho embaixador vai ser um bom chapeiro…
– Ele fala “quibe” e “esfirra” em vários idiomas Sr. Modesto Araújo. Fala aí “quibe” e “esfirra” em árabe, Ednardo, pro Modesto ver que você é a pessoa mais capacitada para o cargo.
(Ednardo tosse, coça a cabeça e começa a balbuciar alguma coisa.)
– Viu como ele fala? Vai lá, meu filho, que a chapa é tua. E se o pessoal do RH criar algum problema, é você quem vai pra chapa, Modesto, e ele fica de gerente.
(Modesto Araújo abaixa a cabeça, resignado. Gritos atrás do balcão. Era o pessoal do RH com o Bepantol na mão tentando – tarde demais – explicar pro embaixador Ednardo que a chapa é quente).
(*) Eduardo Affonso é arquiteto e colunista do jornal O Globo.
Máximas do Barão ― 36
Quadrinhos ‒ 263
Máximas do Barão ― 35
Quadrinhos ‒ 262
Quadrinhos ‒ 261
Histórias da fronteira
José Horta Manzano
Era uma cidadezinha pequena, bem na fronteira com a Argentina. É domingo, e a Igreja fica cheia para a missa das 10h. Argentinos, brasileiros, até o prefeito. Começa o sermão:
‒ Irmãos, estamos hoje aqui reunidos para falar dos Fariseus, aquele povo desgraçado como esses argentinos que estão aqui.
‒ Ohhh! Um coro de indignação varreu a igreja. Os argentinos saíram xingando o padre. Houve briga na porta. O prefeito quase teve um ataque de apoplexia. Terminada a confusão, ele foi falar com o padre na sacristia.
‒ Padre, pega leve, os argentinos vêm para este lado, gastam nas lojas e nos restaurantes, trazem divisas para a cidade. Não faça mais isso.
Durante a semana a conversa na cidadezinha foi recorrente: o padre e o sermão do domingo. Aquele zum-zum-zum todo foi deixando as pessoas curiosas, todos querendo saber o que mais tinha acontecido.
Finalmente, vem o domingo. O prefeito vai até a sacristia para uma conversinha com o padre.
‒ Padre, o senhor lembra do que conversamos antes, não? Por favor, não arrume nenhuma encrenca hoje, certo?
Começa o sermão.
‒ Irmãos, estamos aqui reunidos hoje para falar de uma pessoa da Bíblia: Maria Madalena. Aquela mulher, a prostituta que tentou Jesus, como essas argentinas que estão aqui.
Não deu outra: pancadaria na igreja. Quebraram velas nos corredores, saíram tapas, socos e houve até atendimento no pronto-socorro da cidade. O prefeito novamente foi ao encontro do padre:
‒ Padre, o senhor não me disse que iria pegar leve? Padre, se o senhor não amansar, vou escrever uma carta à diocese e pedir a sua suspensão imediata.
Durante a semana, o tumulto foi maior ainda. As conversas eram frenéticas. Ninguém perderia a missa do domingo seguinte, nem por decreto.
Na manhã do domingo, o prefeito espalha soldados pela igreja e entra na sacristia .
‒ Padre, pega leve desta vez, senão te levo em cana!
A igreja estava abarrotada. Quase não se conseguia respirar de tanta gente. E o padre dá início ao sermão.
‒ Irmãos, estamos aqui reunidos hoje para falar do momento mais importante da vida de Cristo: a Santa Ceia.
O prefeito respirou aliviado. E o padre continua o sermão:
‒ Jesus disse naquele momento aos apóstolos: “Esta noite, um de vós Me trairá.” Então João perguntou: “Mestre, sou eu?” E Jesus respondeu: “Não, João, não és tu”. E Pedro perguntou: “Mestre, sou eu?” E Cristo respondeu: “Não, Pedro, não és tu.” Então Judas perguntou: “Mestre, acaso soy yo?”
Quadrinhos ‒ 260
Quadrinhos ‒ 259
Quadrinhos ‒ 258
Quadrinhos ‒ 256
Pai de cachorro
Quadrinhos ‒ 249
Quadrinhos ‒ 247
Quadrinhos ‒ 245
Máximas do Barão ― 32
«O feio da eleição é perder.»
Apparicio Fernando de Brinkerhoff Torelli, o “Barão de Itararé” (1895-1971), humorista gaúcho.