Separação dos Poderes

José Horta Manzano

Não é pra ser chato, mas… que remédio? Tem horas em que não há outro jeito. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, alojada no Senado da República, aprovou uma proposta de emenda à Constituição. Antes de falar dela, gostaria de saber por que razão a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça, velha de guerra) acrescentou a «cidadania» ao já pomposo título.

Que quer dizer cidadania? O dicionário diz que é a condição de cidadão. Diz também que cidadão é o sujeito que usufrui de direitos civis e políticos. Trocando em miúdos, a população é inteiramente constituída de cidadãos, exceção feita aos incapazes e àquela meia dúzia da qual tais direitos foram temporariamente retirados. Em resumo, a tal «cidadania» é, na prática, a condição de todos nós. Podiam ter feito economia. CCJ já estava de bom tamanho, não precisava de extensão. Dada a bronca, passemos à PEC.

Propõe-se mudança na forma de escolher ministro para o STF. Na efervescência atual, a alteração me parece ir no bom sentido, embora o passo seja tímido. A PEC preconiza que a escolha final continue a ser feita pelo presidente da República a partir de lista tríplice. Duas mudanças maiores são propostas.

Barão de Montesquieu (1689-1775), filósofo e homem político francês

A primeira diz respeito ao colegiado encarregado de elaborar a lista. Ele será formado por oito magistrados, entre os quais os presidentes do STF, do Superior Tribunal de Justiça, do Superior Tribunal Militar e da OAB. A segunda mudança ‒ que poderá eventualmente ser vista como inconstitucional ‒ limita o mandato de ministro do STF a dez anos sem recondução possível.

A meu ver, a proposta padece de dois defeitos congênitos. Por um lado, a limitação do mandato de juiz é assunto delicado. Aos magistrados, a Constituição garante a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios. Portanto, ainda que a limitação do mandato de ministro do STF pareça desejável, entra em choque com a lei maior.

Por outro lado, o fato de a escolha final continuar sendo prerrogativa do presidente da República deixa um gostinho desagradável de desrespeito à isonomia dos Poderes. A escolha dos magistrados do STF pelo chefe do Executivo revela subordinação do Judiciário ao presidente da República, o que não é bom sinal.

A PEC ainda tem longo caminho pela frente. Tem de passar por duas sessões no Senado para, em seguida, atravessar o filtro da Câmara. Durante a tramitação, sofrerá, sem dúvida, emendas e modificações. Em todo caso, antes de votar, suas excelências deveriam reler os escritos do barão de Montesquieu (1689-1755), o filósofo e pensador político francês que elaborou a teoria da separação dos Poderes.

Lobo mau

José Horta Manzano

Quarenta anos atrás, um Pelé no auge da fama teve a ousadia de declarar que «brasileiro não sabe votar». Foi um Deus nos acuda. Pareceu a todos que o homem tinha trocado os pés pelas mãos ‒ literalmente. Ainda que fosse genial com a bola nos pés, a afirmação pegou mal. Todos tomaram a frase como ofensa pessoal, como ultraje à inteligência coletiva.

As décadas se sucederam, os militares se foram, a democracia bem ou mal se instalou, o povo readquiriu o direito de votar. Apesar de tudo isso, as peripécias da política nacional de lá pra cá tendem, infelizmente, a dar razão ao craque. A alfabetização generalizou-se, primeiro a tevê e hoje a internet se encarregaram de difundir informação instantânea até os grotões do país e, no entanto, os representantes eleitos pelo povo continuam a confirmar a incômoda declaração do antigo rei dos estádios.

by Régis Soares, desenhista paraibano

by Régis Soares, desenhista paraibano

O Senado, veneranda instituição composta por 81 senhores encarregados de nos conduzir pelo bom caminho, deu a um certo senhor Lobão a incumbência de presidir a CCJ ‒ Comissão de Constituição e Justiça, grupo de trabalho de capital importância. Compete a esse seleto clube de eleitos estudar a fundo as questões que lhe são propostas e orientar os demais senadores sobre como votar.

Neste momento, a CCJ se debruça sobre a constitucionalidade do tema que se convencionou chamar caixa dois. Discute-se a concessão de anistia aos que se valeram desse subterfúgio para financiamento partidário. A questão é atualíssima e merece reflexão. O que for decidido pelos parlamentares marcará o país.

O fato de incumbir a CCJ de refletir sobre o assunto é surreal. A realidade é cristalina. Caixa dois, dizem os dicionários, consiste em falsificar registro contábil a fim de subtrair voluntariamente ao fisco recursos de origem ilegal. Ora, convenhamos, a charmosa expressão oculta uma realidade bem menos sexy. O nome da coisa é estelionato, fraude, roubo.

Ainda que os «recursos não-contabilizados» tivessem origem em doações lícitas, o fato de não os declarar já constituiria crime de fraude. Caso sejam fundos de origem criminosa, a não-contabilização caracteriza cumplicidade, um duplo crime. O caixa dois, já tipificado no Código Penal, dispensa que se perca tempo e esforço a reestudar o que estudado está.

Dinheiro 4Senhor Lobão concedeu entrevista, na qual mostra que sua decisão já está tomada. A depender dele, anistia deverá ser concedida aos que praticaram a fraude e aos que dela se beneficiaram. Não vamos perder de vista que esse senhor foi eleito pelo voto popular. Há sinais claros de que outros membros da CCJ concordam com a visão do presidente do grupo. Tudo parece indicar que o parecer da comissão recomendará a concessão de anistia aos que tiverem cometido o crime.

Caso a aberração se concretize, larga brecha estará aberta. Assim como partidos políticos terão sido beneficiados pela anistia dos «malfeitos», todas as empresas e ‒ por que não? ‒ todas as pessoas físicas se sentirão no direito de requerer tratamento idêntico. Caminhamos para a descriminação da fraude e do roubo.

O fim do mundo está próximo, distinto leitor. Senhor Lobão & companheiros estão com fome de lobo. Salve-se quem puder.

Frase do dia — 213

«A senadora Kátia Abreu, indicada para o ministério da Agricultura, em 2007 foi relatora da proposta de derrubada da CPMF na Comissão de Constituição e Justiça.

O fim do imposto do cheque foi a maior derrota do governo Lula, usada na campanha de reeleição de Dilma para acusar Marina Silva e Aécio Neves de terem contribuído para ‘retirar recursos da saúde’.»

Dora Kramer, em sua coluna no Estadão de 26 nov° 2014, ao apontar a memória seletiva que reina no andar de cima.

Frase do dia ― 38

«Todo mundo aplaudiu quando Jânio Quadros, naqueles tumultuados sete meses em que exerceu a presidência da República, nomeou um negro para embaixador do Brasil num país da África. Carlos Lacerda foi o único a protestar, lembrando estar vaga nossa embaixada na Suécia: “Vão nomear um lourinho para Estocolmo?”»

Carlos Chagas em sua coluna, in Diário do Poder de 2 nov° 2013, referindo-se à recente decisão da CCJ/Câmara de reservar quota para parlamentares negros.

Passo tímido, pacote flácido

José Horta Manzano

Dia 13 de agosto — que não era sexta-feira —, a OAB passou às mãos da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal seu projeto de reforma política. É um projeto tímido, que está mais para gambiarra que para reforma. Assim mesmo, poucos acreditam que venha a ser debatido e sacramentado por suas excelências a tempo de valer para as eleições de 2014.

Palhaço

Palhaço

A reforma aventada tem, pelo menos, o mérito de existir. É mais uma prova de que a sociedade pensante brasileira não está acomodada, muito menos satisfeita, com o funcionamento da política no País.

A OAB garante que, uma vez introduzida essa modificação, desaparecerá o chamado «efeito Tiririca». Essa incongruência, que faz que meia dúzia de candidatos totalmente desconhecidos sejam eleitos a reboque dos votos excedentários recebidos por um candidato estrela, não é novidade no País. Antes do nobre palhaço, Clodovil, Enéas e outros personagens em voga já exerceram o mesmíssimo papel. Essas figurinhas carimbadas são, aliás, ultracobiçadas. E não só por partidos nanicos.

É uma distorção flagrante do sistema de representação popular, mas não é a única nem a pior. Como já tive ocasião de comentar neste espaço algumas semanas atrás (post Época de mudanças), algumas disposições da Constituição outorgada em 1988 traem o princípio basilar de que todos os brasileiros são iguais perante a lei. A limitação do número máximo (70) e do número minimo (8) de deputados que cada Estado tem direito de mandar a Brasília desvirtua a isonomia entre os eleitores. Na hora de escolher seus representantes, os brasileiros não são todos iguais. O voto de um roraimense vale pelo de dez paulistas. É disfunção tão flagrante, que fica difícil captar por que a Assembleia Constituinte de 1988 terá introduzido esse dispositivo.

Palhaço

Palhaço

Uma outra mudança que, mais dia, menos dia, terá de ser feita é a introdução do voto distrital. O Brasil tem Estados enormes e pouco populosos. Tem também Estados menores, mas densamente povoados. No sistema atual, cada Estado representa um distrito. Não é a melhor maneira de proceder. No final, não sendo ligado a nenhum distrito, a nenhuma região particular de seu Estado, o deputado não se sente na obrigação de representar ninguém em especial. Como corolário, o eleitor não se sente representado por nenhum deputado em particular. Aliás, poucos são os eleitores que se lembram em quem votaram. No voto distrital, o País é dividido em distritos, cada um com população equivalente. E cada distrito elege o seu deputado, em votação majoritária de dois turnos.

Para corrigir de verdade, uma nova Constituição teria de ser escrita. Mas isso, além de ser demorado e trabalhoso, incomoda muita gente. Não vai ser fácil chegar lá. Vamos ter de nos contentar com puxadinhos, como esse que a OAB está propondo. Que remédio?

Cá entre nós: no duro mesmo, o «efeito Tiririca» é produto da ignorância de imensos contingentes de nossa maltratada população. É pela instrução pública que as reformas deviam começar.

Desconcertante

José Horta Manzano

Para quem vive no exterior, tem períodos em que a leitura dos jornais brasileiros é desencorajante. Fica a impressão de que o País está se desmanchando, se liquefazendo.

Estes dias, ficamos sabendo que, para induzir os brasileiros a acreditarem no sucesso de certos programas educacionais, autoridades federais encarregadas da Instrução Pública andam maquiando estatísticas de bolsistas custeados com dinheiro público. Parece que alguns são contados duas vezes. Pode até lembrar certos municípios onde o número de eleitores é maior do que a população. Só que aqui estamos falando de autoridades encarregadas da ― vá lá o termo ― Educação!

Crédito: Silvana Saboia

Crédito: Silvana Saboia

Outro exemplo vindo da bem-intencionada elite que ora ocupa o andar de cima nos foi dado pelos ínclitos deputados federais componentes da Comissão de Constituição e Justiça. A confraria ― que conta, entre outras sumidades, com José Genoino e João Paulo Cunha, ambos condenados no processo do mensalão ― aceitou que seja posta em pauta uma proposta de emenda constitucional pra lá de acintosa. Obra de um obscuro deputado, visa a desequilibrar a isonomia entre os poderes da República. Na prática, retira do STF a atribuição de Corte Constitucional, para deixar ao Congresso a palavra final.

Outra manchete apavorante informa que assaltantes atearam fogo a uma dentista cujo único crime foi não dispor, naquele momento, de muito dinheiro na bolsa. Em matéria de ferocidade, estamos superando lutas tribais sírias, afegãs e africanas.

Um dos blogues alojados no Estadão nos conta que, no segundo semestre de 2012, o governo brasileiro foi o que mais pedidos fez ao google para que retirasse conteúdo da rede. Nem a Venezuela, nem Cuba, nem a China, nem mesmo a Rússia ousaram tanto quanto nossos mandachuvas tupiniquins. Devem ter mais medo que os outros todos. É por aí que começa o “controle social da mídia”.

Bom, acho que, para um sábado, é suficiente. Vamos parar por aqui, que evitar depressão é dever de todos.

Mas fica a frustrante impressão de que, no Brasil, os marcadores da civilização estão desregulados. Os parâmetros andam afrouxados, e os limites, incertos.

Com certeza é só impressão minha.